O QUE REVELAM OS NEOLOGISMOS SOBRE O NOSSO TEMPO

June 2, 2017 | Autor: Miguel Lopes | Categoria: Sociologia, Lexicografia, Neologia, Lexicología, Cultura E Sociedade
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O QUE REVELAM OS NEOLOGISMOS SOBRE O NOSSO TEMPO Miguel LOPES Mestrando em Tradução e Assessoria Linguística Pela Universidade dos Açores "O Mundo era tão recente que muitas coisas ainda não tinham nome e, para as mencionar, era preciso apontá-las com o dedo." Gabriel Garcia Márquez (Cem Anos de Solidão)

Partindo do seguinte silogismo: A. a língua é, de alguma forma, um espelho da realidade que nos circunda; B. a realidade, isto é o nosso mundo, mudou nos últimos quinze anos; C. a língua incorpora essas mudanças; propomo-nos traçar um esboço do mundo em que vivemos neste início de terceiro milénio, por meio dos neologismos. Primeiro, confirmando a premissa “A” segundo a qual se estabelece uma relação indissociável entre a língua e a realidade; segundo, sublinhando a mutabilidade acelerada do mundo contemporâneo, premissa “B”; finalmente, deduzindo das duas premissas anteriores a nossa conclusão “C”, a saber que a língua também mudou rapidamente nos últimos anos e que devem existir evidências do fenómeno no seu substrato lexical, por ser este um dos componentes mais permeáveis à mudança. Para tal, analisámos uma lista de palavras que acreditamos serem portadoras de algo novo e que nos ajudarão a retratar a “nossa época”. 1. Língua, Cultura e Sociedade. (…) la langue [...] est une des manifestations ouvertes de l’identité culturelle auxquelles on est confronté dans la vie quotidienne.1

Os laços que se entretecem entre o uso da língua e a identidade sociocultural dos indivíduos emergiram dos estudos linguísticos sobretudo a partir da década de 1 BYRAM, Michaël. Culture et Éducation en Langue Étrangère. Paris. Les Éditions Didier. 1992, p. 64.

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1950 com os contributos da Sociolinguística e dos trabalhos precursores de Mikhail Bakhtine. Assumiram igualmente particular relevo, nas últimas décadas, com o enfoque dado pela Filosofia da Linguagem e pelos Estudos Culturais que, por sua vez, influenciaram a Didática das Línguas Estrangeiras, da qual Michaël Byram é um eminente representante. Neste campo específico, Geneviève Zarate explica que: Les vingt dernières années ont fortement mis l’accent sur la relation entre apprentissage de la langue et enseignement de la civilisation en s’appuyant, à la fin des années 60, sur les travaux du moment en lexicologie. Sur la base d’une articulation entre lexique et vision du monde se mettent en place des analyses et des pratiques qui auront une large diffusion.2

Retomaremos mais à frente a questão dos avanços da lexicologia. Voltemos antes à classificação da língua enquanto fator de identificação cultural. Para o indivíduo, a língua é um marcador cultural, como o vestuário, a casa ou qualquer instituição social na medida em que ela

…incarne essentiellement les valeurs, et les significations d’une culture ; elle fait référence à des artefacts culturels et signale l’identité culturelle d’un individu […] (la langue) incarne les valeurs et les artefacts d’une culture parce qu’elle réfère au réel.3





Convirá esclarecer que perfilhamos uma definição de cultura que vai ao

encontro das conclusões do antropólogo Clifford Geertz e que considera a cultura enquanto rede de sentidos incorporados por símbolos. Um sistema de ideias herdadas e expressas simbolicamente por meio das quais os homens e as mulheres comunicam, perpetuam e estendem o seu conhecimento no que concerne as atitudes perante a vida. Esta definição acentua, pois, o espaço central que a língua ocupa na qualidade de veículo de sentidos.



On peut affirmer une allégeance sociale et politique à travers le choix de variantes linguistiques. Parler le dialecte d'une classe sociale est une expression de l'appartenance […] Quand on négocie les significations (des mots), on s'accorde sur des dénotations habituelles. […] Le développement de ce processus permet d'étaler au grand jour certaines valeurs essentielles de notre société pour les préciser davantage.4

2 ZARATE, Geneviève. Représentation de l’Étranger et Didactique des Langues. Paris. Didier. 2012, p.

27.

3 BYRAM, Michaël. Op. cit., pp. 65-67. 4 Idem, Ibidem.

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A língua, pois, será diferente de outros marcadores culturais pelo quanto se

utiliza não só como símbolo para expressar uma pertença mas também como ferramenta intelectual para refletir sobre o seu próprio significado. Na obra acima citada, o autor refere eloquentemente os exemplos da palavra "alienação", por se revestir de uma forte conotação ideológica que oscila conforme a origem social do discurso e da palavra "trabalho", cujo significado tem evoluído com o tempo.

Assim, o uso das palavras resulta, por um lado, de uma escolha individual e, por

outro lado, de convenções determinadas socialmente, de modo que a realidade influencia as opções linguísticas disponíveis, da mesma maneira que estas refletem e refractam a realidade vindoura.

Les mots sont tissés d'une multitude de fils idéologiques et servent de trame à toutes les relations sociales dans tous les domaines. Il est donc clair que le mot sera toujours l'indicateur le plus sensible de toutes les transformations sociales […] Le mot constitue le milieu dans lequel se produisent de lentes accumulations quantitatives de changements […] Le mot est capable d'enregistrer les phases transitoires les plus infimes, les plus éphémères, des changements sociaux.5

2. O Mundo Contemporâneo



As sociedades modernas são [...] por definição, sociedades de mudança constante, rápida e permanente. [...] à medida em que áreas diferentes do globo são postas em interconexão umas com as outras, ondas de transformação social atingem virtualmente toda a superfície da terra.6

A tese de uma aceleração da história tem estimulado os pensadores da

atualidade. Sem querer entrar no debate do paradoxo da aceleração de um tempo constante ou essoutro debate sobre a inexorabilidade do sentido da história, partilhamos e recordamos, aqui, a ideia mais consensual de que foram sempre os novos meios técnicos que favoreceram a evolução da humanidade. A capacidade inesgotável de inovar, desafiando os limites do conhecimento e pondo à prova a sua adaptabilidade sempre caracterizou a essência humana. No entanto, o ritmo a que surgiram as invenções mais significativas na nossa existência intensificou-se, a tal ponto que assistimos, nos últimos anos, a uma avalanche tecnológica sem 5 BAKHTINE, Mikhail. Le Marxisme et la Philosophie du Langage. Paris. Les Éditions de Minuit. 1977,

pp.37-38.

6 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. DP&A Editora. Rio de Janeiro. 11ª edição.

2006, p.11.

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precedentes. Ora, se é verdade que o desenvolvimento tecnológico esteve, desde sempre, na base de alterações profundas nas nossas vidas, forçoso será reconhecer que vivemos um tempo revolucionário. Vaticina-se uma entrada abrupta na era da "Web semântica", da "Tecnomedicina" e do "Transhumanismo".

Neste trabalho, não pretendemos descrever estes novos conceitos. O objetivo

da sua evocação é o de interpelar as consciências e de vincar a natureza dos tempos que se avizinham. Gostaríamos, antes, de regressar à noção de aceleração do tempo e, mais precisamente, de aceleração das inovações tecnológicas até chegarmos à noção hodierna de "Novas Tecnologias de Informação e Comunicação" (NTIC), cuja lista não cessa de crescer7.

Un calendrier […] du récit de la saga de l'humanité quand on la ramène à une année imaginaire. […] Notre premier ancêtre humain est né le 1er janvier à zéro heure. Il a certes inventé les premiers outils dans la première journée. Mais le feu n'a pas été domestiqué avant la fin octobre. […] Les rites funéraires apparaissent pour la première fois le 13 décembre. La grotte de Lascaux a été peinte autour du 28 décembre. On chassait alors et on cueillait au hasard de l'errance. La révolution néolithique et l'agriculture commencent le 30 décembre. Le 31 décembre vers 4 heures du matin, est inventée la roue. La première machine à vapeur fonctionne à 22 heures. À 23h46 démarre l'utilisation de l'énergie nucléaire. […] Le premier téléphone tactile est commercialisé à 23h58 minutes et 31 secondes!8





O exercício teórico a que o eurodeputado francês Jean-Luc Mélenchon se

dedicou ilustra perfeitamente o modo como o número de novos artefactos se multiplicou no passado mais recente, abrindo um fosso importante entre gerações no espaço de duas décadas. Ma grand-mère allait au bal monté en char à banc et elle fut rapatriée en avion caravelle. Ma petite fille a sa playlist dans le Cloud et elle révise sur sa tablette numérique.9

As novidades tecnológicas não têm parado de surpreender e colocam novos

desafios à humanidade. Au cours de leur existence, tous les humains doivent à présent changer sans cesse profondément leurs usages et les connaissances qui vont avec à propos du quotidien le plus banal! Rares sont à présent les moments où l'utilisateur sait dire "comment ça marche". Et quand il sait on est déjà passé à autre chose. Le

7 Novas tecnologias de informação e comunicação. In: Wikipédia, a enciclopédia livre [Em linha].

Flórida: Wikimedia Foundation, 2016, rev. 7 Abril 2016. [Consult. 10 mai. 2016]. Disponível em WWW:. 8 MÉLENCHON, Jean-Luc. L'Ère du Peuple. Fayard Pluriel. 2016, p. 15. 9 Idem, p.16.

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changement permanent et l'ignorance de chacun à propos des objets maniés génère une société où la sophistication des choses surplombe la nouvelle rustrerie des utilisateurs.10



O frenesim da contemporaneidade conduziu-nos a uma situação

aparentemente contraditória onde nunca tivemos tantos recursos ao nosso alcance mas, onde as nossas vidas nunca foram tão complexas. "O mundo em que vivemos exibe as marcas da fragmentação, da descontinuidade e da inconsequência" (extraído da obra citada abaixo, p. 269) afirma Zygmunt Bauman. E o sociólogo acrescenta mordaz: [as identidades] perderam a sua solidez na sociedade moderna, perderam as suas feições definidas e a sua continuidade. O mundo construído de objetos duradouros foi substituído por um mundo feito de produtos prontos a usar e concebidos em vista de uma obsolescência imediata. Trata-se de um mundo em que as identidades podem ser adoptadas e depois postas de parte, como quem muda de roupa. O horror da nova situação está na circunstância de todo o diligente trabalho de construção se revelar inútil; a sua sedução vem da independência relativamente às tarefas passadas, de nada ser irrevogavelmente desfeito, de as opções em aberto se manterem a todo o momento. Tanto o horror como a sedução tornam a vida como peregrinação dificilmente exequível enquanto estratégia e improvável a sua escolha enquanto tal. [...] Não são grandes as suas perspetivas de sucesso.11



Neste início do século XXI, alguns autores defendem que estamos perante um

novo paradigma social, espoletado pelo advento da Internet e das tecnologias digitais e apresentado como sociedade da informação ou sociedade em rede, de acordo com Manuel Castells, ou sociedade do conhecimento, segundo a classificação de Andy Hargreaves. Vivemos num mundo onde o fluxo de informações é intenso, em permanente mudança, um mundo desterritorializado, onde não existem barreiras de tempo e de espaço para a comunicação interpessoal. A ideia subjacente ao conceito de sociedade de informação é, uma vez mais, de uma sociedade inserida num processo de mudança constante, uma nova realidade que exige dos indivíduos competências e habilidades para lidar com a informatização do saber. Change became the norm. By the middle of the nineteenth century, this was the trajectory of the economic impulse. It was, as well, the trajectory of the culture. […] What was happened in society in the last fifty years – as a result of the erosion of the religious ethic and the increase in discretionary income – is that the culture

10 Idem, p.65.

11 BAUMAN, Zygmunt. A Vida Fragmentada. Ensaios Sobre a Moral Pós-Moderna. Relógio D'Água.

Lisboa. 2007, p. 94.

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has taken the initiative in promoting change, and the economy has been geared to meeting these new wants.12

Independentemente da identificação do principal motor da mudança, o que ressalta da análise dos tempos modernos é a confrontação do indivíduo com uma grande instabilidade das formas de vida. Para finalizar esta secção, recomendamos a leitura dos relatórios da Entidade Reguladora para a Comunicação Social que avalia o estado da sociedade em rede em Portugal e o livro A Sociedade em Rede – Do Conhecimento à Ação Política13, organizado por Manuel Castells e Gustavo Cardoso, resultante das Conferências promovidas pela Presidência da República em 2005 no Centro Cultural de Belém. 3. Neologia e Neologismos Chegados aqui, importa esclarecer a relevância do estudo dos neologismos com o intuito de detetar os sinais de mudança na sociedade, desde a viragem de milénio, justificando-se a nossa abordagem pelo caráter dinâmico da língua e pela permeabilidade do léxico. Assim, Os fatores que contribuem para a mudança na língua podem ser, como vimos, diversos, mas a razão pela qual essas mudanças ocorrem é apenas a de otimizar a comunicação, adequando a língua e respondendo às necessidades comunicativas dos falantes que, também elas, se vão alterando. A ausência dessas necessidades comunicativas bloquearia a mudança e teria como consequência inevitável a morte da língua.14

A mudança no sistema linguístico afeta todas as suas componentes mas é,

particularmente, visível ao nível do léxico porque: (...) por um lado, sendo a componente lexical menos estruturada e o conhecimento lexical mais consciente, a mudança processa-se mais livremente e com mais rapidez, afetando unidades e não tanto a estrutura do léxico; por outro lado, uma vez que designamos a realidade e traduzimos o conhecimento que temos dessa realidade através de unidades lexicais, parece natural que a componente lexical seja a que reflete mais diretamente todas as alterações e toda a

12 BELL, Daniel. The Cultural Contradictions of Capitalism. Basic Books, Inc., Publishers. 1976, pp.

321-325. 13 Disponível para download ou consulta online em:

http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/a_sociedade_em_rede__do_conhecimento_a_acao_politica.pdf 14 ANTUNES, Mafalda. Neologia de Imprensa do Português. Tese de Doutoramento em Linguística pela Universidade de Lisboa. 2012, p. 13.

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evolução que o meio vai sofrendo.15

Como vimos, os estudos de Lexicologia têm sido produtivos em várias áreas, nomeadamente no ensino das Línguas, sobretudo por desvelarem uma mundividência em devir; o seu desenvolvimento levou à especialização do seu campo de estudo, do qual nasce a neologia definida como processo de criação lexical e os neologismos enquanto resultados desse processo. Na verdade, (...) o léxico não consiste apenas no sistema de criação lexical; ele encontra-se relacionado com as unidades da linguagem ligadas ao universo das coisas, às modalidades do pensamento, a todo o movimento do mundo e da sociedade. O estudo da neologia lexical consiste, portanto, também na recolha de um conjunto de neologismos que surgiram num período específico da vida de uma comunidade linguística, razão pela qual, considera a criação lexical indissociável do momento da sua criação, da sociedade e da comunidade linguística que os cria."16

Passando em revista os estudos de alguns dos principais linguistas dedicados a esta área, Mafalda Antunes cita Maria Teresa Cabré para reforçar o lado transdisciplinar da neologia:

(...) a neoloxía non pode interesarlles unicamente ós lingüistas, senón tamén a especialistas doutras materias como a socioloxía, a psicoloxía, a antropoloxía ou a enxeñería do coñecemento e das linguas. Non cabe dúbida de que a análise dos inventarios neolóxicos é unha boa base para facer reflexións sobre as características, a evolución e as perspectivas dunha sociedade nun momento dado.17



Relativamente às especificidades dos neologismos, convirá dizer que a sua

definição nem sempre é consensual. Para a finalidade do nosso trabalho, adotaremos aquela que nos é dada por Margarita Correia, seguindo a proposta de Alain Rey, a saber: 'Neologismo' é uma unidade lexical cuja forma significante ou cuja relação significado-significante, caracterizada por um funcionamento efetivo num determinado modelo de comunicação, não se tinha realizado no estádio imediatamente anterior do código da língua.18

15 Idem, p. 12. 16 Idem, p. 21. 17 CABRÉ, M. Teresa; Meritxell Domènech; Rosa Estopà; Judit Freixa e Elisabet Solé. "L’observatoire de

néologie: conception, méthodologie, résultats et nouveaux travaux". In: Jean
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