O que se deve esperar da social democracia no Brasil?

May 22, 2017 | Autor: Sergio Abranches | Categoria: Social Justice
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RISCO POLÍTICO----Artigos I Maio 2002

O QUE SE DEVE ESPERAR DA SOCIAL DEMOCRACIA NO BRASIL?1 Sérgio Abranches Provocado por uma questão de natureza crítica e normativa, que mantive no título desse ensaio, meu primeiro impulso foi escrever uma espécie de “manifesto social democrático”, expondo um diagnóstico do projeto social democrático para o Brasil, seus desvios e possíveis rotas para correção de rumos. Resisti. Manifestos devem ser obras políticas coletivas, nascidas da reflexão crítica sobre a prática concreta, não o resultado de um exercício intelectual solitário, ainda que imaginado para ser debatido em um espaço político. Preferi garimpar em um veio propriamente analítico, no terreno puramente intelectual, ainda que para refletir sobre a política na prática. Olhar em frente, para os desafios que estão no caminho da construção da social democracia brasileira. Eles estão divididos em quatro blocos. No primeiro, tratei do desafio da democratização. Da fixação da democracia como princípio inarredável de ação política. No segundo, da orientação social de governos social democráticos, que deve ser sua marca diferenciadora. No terceiro, da tarefa imperativa de conceber e implementar uma alternativa real e viável ao neoliberalismo. Finalmente, no quarto dos desafios postos pela globalização. 1. Da Democracia Democracia como regra procedimental e não como algo orientado para determinados fins por mais legítimos e justos eles sejam. Estou entre aqueles que consideram que democracia não comporta qualquer adjetivação. Quem adjetiva a democracia o faz para desvalorizar o contexto democrático vigente, em nome de uma “outra” democracia futura, melhor e mais democrática. É a mesma operação que Lênin fez, ao distinguir a “democracia burguesa” e a “democracia proletária”, que se perpetuou na disjuntiva “democracia formal” vs. “democracia substantiva”. Semelhante, também às várias maneiras de separar a democracia “puramente representativa” das democracias “participativa”, “deliberativa”, “interativa” e similares. A operação é epistemologicamente a mesma: a adjetivação da democracia existente a desvaloriza pela afirmação de um valor superior, ainda que meramente virtual “teórico”, utópico, normativo. A negação da democracia inexistente valoriza o objeto virtual do desejo pela negação do objeto real, concreto, vivido, pela desvalorização sistemática da democracia existente. Por que, então, admitir a noção de social democracia? De fato, desse ponto de vista, existe apenas uma formulação admissível que permite designar um movimento político com vocação verdadeiramente democrática como social democrático. O termo social democracia deve ser entendido como uma afirmação da crença de que é possível usar os recursos da democracia para dar uma orientação social às políticas públicas. A forma política é democrática e a substância da política pública é social. Em outras palavras: no conceito 1

Trabalho preparado para ser apresentado no Seminário “O que esperar da Social Democracia no Brasil?”, Instituto Teotônio Vilela, Brasília, Fevereiro de 2002, coordenado pelo prof. José Giusti Tavares.

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social democracia, o termo democracia denota o modo de governança e o social, a orientação das políticas de governo. Não vou fazer uma teoria da democracia. Não caberia no propósito dessas proposições. Mas estou convencido de que se espera da social democracia que valorize pela prática correta e pela dedicação ao seu aperfeiçoamento, a democracia existente. A democracia sem adjetivos. Como o que se postula nessa corrente política é uma “social” democracia, é preciso todo o cuidado para que o social não se torne a adjetivação da democracia que a nega em nome de uma “outra democracia”, socialista ou “mais” social. No que se refere à prática política dos agentes da social democracia, o termo democracia denota o modo comportamental e o social, a direção da ação. Parece trivial, mas não é. O que mais se vê nas discussões sobre a governança no Brasil e nas chamadas sociedades emergentes é a negação da democracia pela afirmação de uma outra virtude, que daria à democracia uma substância “verdadeiramente” democrática. Não existe isto. Não existe um “quê” não político ou não formal ou não procedimental que, adicionado à forma democrática, alteraria sua essência para melhor. O sacrifício da forma pelo conteúdo, neste caso, transmuta a forma em “outra coisa”, em uma forma nãodemocrática de governança. Não faço essas observações como crítica. Faço-as mais como uma nota de precaução. É que se cria tanta expectativa com a democracia, que é praticamente certo que a experiência democrática será frustrante ou decepcionante em alguma medida. Eu me lembro muito bem de como se sonhava, nos anos 70, no Brasil, que a democracia trouxesse além da liberdade – se é que é possível algo além da liberdade – justiça social, distribuição de renda, fim da pobreza, autonomia externa, supercrescimento. O regime militar se dissolveu, mas a democratização não promoveu esses outros valores na magnitude desejada. Obviamente desejos legítimos, mas que pouco têm a ver com democracia. Têm a ver com a orientação de políticas públicas (policy orientation) dos governos formados democraticamente. Se eles não se formarem com base em uma constelação de interesses que promova esses objetivos, eles não serão realizados e isto não pode ser considerado como um déficit da democracia e sim como um déficit dos governos2. Por outro lado, o 2

Essa frustração com a democracia nada tem a ver com ser emergente, subdesenvolvido ou em desenvolvimento. É universal. Tem a ver com a confusão entre democracia como valor e como um conjunto de instituições e governos formados de acordo com as regras democráticas de representação e decisões oriundas dos procedimentos decisórios próprios à democracia. Confusão entre o modo de governança e o exercício da governança, entre política e governo. Ou, se quiserem uma confusão entre política e políticas públicas, entre politics e policy. Uma discussão semelhante a esta pode ser encontrada nos volumes gêmeos editados por Ian Shapiro e Casiano Hacker-Cordón Democracy’s Value, Cambridge University Press, 1999 e Democracy’s Edges, Cambridge University Press, 1999. O ponto da frustração com a democracia está feito já na introdução dos editores ao primeiro volume citado: “Promises and disappointments: reconsidering democracy’s values”, págs. 1-19.Ver também, por exemplo, Takashi Inoguchi, Edward Newman e John Keane – “Introduction: The changing nature of democracy”, em Inoguchi, Newman e Keane (eds.) – The Changing Nature of Democracy, United Nations University Press, 1998, págs. 1-21-. Para uma visão atualizada da disjuntiva democracia formal e democracia substantiva, ver Elmar Altvater – “The democratic order, economic globalization and ecological restrictions – on the relation of material and formal democracy”, em Democracy’s Edges, págs. 41-63. Uma outra visão dessa disjuntiva é apresentada por Philippe Van

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déficit de governo não pode, em todas as circunstâncias, ser imputado apenas à fragilidade das coalizões que criaram as condições de governança ou a um problema de “agência”. Ele deve ser contextualizado, para que não caiamos sempre no puro voluntarismo, atribuindo à “falta de vontade política”, déficits de governo fortemente determinados por constrangimentos do contexto doméstico e/ou internacional. Há, evidentemente, um grau amplo de autonomia dos agentes estatais, em todo contexto histórico, mas não é menos certo que haja também um significativo espaço de determinação estrutural e/ou conjuntural da sua ação. Há duas razões principais – entre muitas outras – que explicam aquele potencial de frustração da democracia. A primeira é que a efetivação do modelo formal (teórico) de democracia e seus instrumentos de realização da “vontade geral” é imperfeita. O que existe são diferentes graus de aproximação ao “ideal democrático”. Neste sentido, seria mais correto falar em democratização, na evolução permanente das instituições democráticas em direção ao “ideal democrático”, do que em democracia como um estado final a que se chega, quando de estabelece a democracia em uma determinada sociedade, em uma determinada época3. Não é preciso sublinhar que se chegar ao “ideal democrático”, à polis inclusiva, já é uma tarefa grandiosa demais para uma coorte de gerações, o que dizer da exigência de, além da “forma democrática”, ainda realizar objetivos substantivos que se lhe imputam como decorrência, mas que a rigor nada têm a ver com ela? É possível ter crescimento e distribuição com e sem democracia, por exemplo.4 A segunda razão, apontada corretamente por Przeworski5, é que a regra da maioria, essencial à democracia, não é um instrumento adequado para se chegar ao “ideal democrático clássico”, nem para resolver os problemas distributivos associados à idéia de justiça substantiva. As razões oferecidas por Przeworski interessam menos aqui – não por que não sejam relevantes, são – do que a conclusão em si. E eu adicionaria que isto é Parijs, em “Contestatory democracy versus real freedom for all”, em Democracy’s Values, cit. págs. 191199. John Roemer oferece um interessante contraponto crítico a essas concepções adjetivadas ou superlativas de democracia, em “Does democracy engender justice?”, em Democracy’s Values, cit. págs. 56-68. 3 Essa distinção entre a democracia como processo ou estado final é semelhante à que Roemer (cit.) utiliza como uma das dimensões para distinguir as espécies de justiça procedimental ou estado final. Ver a democracia como procedimental é vê-la como um processo que comporta evolução e aperfeiçoamento continuados, ainda que intermitentes. Concebê-la como um estado final, equivale a vê-la como uma construção de instrumentos para outras finalidades. Minha preferência explícita é pela visão da democracia como procedimental. Creio ter deixado as razões dessa preferência claramente estabelecidas em “A democracia brasileira vai bem, mas inspira cuidados: proposições sobre a democracia brasileira e o presidencialismo de coalizão”, em João Paulo dos Reis Velloso (coordenador) - Como vão o Desenvolvimento e a Democracia no Brasil? , José Olympio, 2001, págs. 251-279. Philippe Schmitter, em artigo de 1998, adota essa visão da democracia como processo, ao dizer que: “as democracias não devem ser consideradas como plenamente consolidadas: únicas entre os tipos de regimes, elas devem conter nelas mesmas potencial para sua evolução continuada e, eventualmente, auto-transformação”, em “Some basic assumptions about the consolidation of democracy”, em Inoguchi e outros, cit. pág. 23-36. 4 Um ponto semelhante – não igual – é feito por Adam Przeworski, na sua defesa de uma “concepção mínima” de democracia, em “Minimalist conception of democracy: a defense”, em Democracy’s Value, cit. págs. 23-56, muito próxima da noção apresentada por Bobbio, ao perguntar: “o que é democracia se não um conjunto de regras para a resolução de conflitos sem derramamento de sangue?”, em O Futuro da Democracia, Paz e Terra, 2000. 5 Przeworski, op. cit.

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verdade, mesmo quando se imaginam mecanismos de defesa da minoria contra a tirania da maioria. A tarefa, portanto, daqueles que valorizam a democracia é trabalhar pela maior aproximação da democracia existente ao “ideal democrático”, não a construção de “uma outra” democracia. Isto significa incrementar os mecanismos de prestação de contas efetiva dos governantes (accountability) que no Brasil são insuficientes, para dizer o mínimo. Aperfeiçoar – não alterar – o processo eleitoral, para tornar o voto mais imparcial e o processo mais competitivo. Rever radicalmente os procedimentos – eventualmente a própria existência – da justiça eleitoral. Aperfeiçoar os mecanismos que dão transparência às atividades do Legislativo e do Executivo. Ampliar o escopo para a manifestação do contraditório, especialmente das minorias, em relação às políticas implementadas pela regra da maioria. Cada uma dessas frases requer detalhamento impraticável no escopo desse trabalho. O coração do argumento é que todo o trabalho de aperfeiçoamento da democracia existente deve ser minimalista, isto é, deve envolver o mínimo possível de mudança nas regras do jogo e o máximo de esforço para fazer com que as regras existentes sejam mais claras e mais bem aplicadas.6 2. Do Social Orientação Social como regra decisória na formulação das políticas públicas e critério para construção da agenda de ações políticas da Social Democracia Há, atualmente, uma clara convergência entre diferentes linhas partidárias, na maioria das democracias, em relação a políticas de incremento do bem-estar. Especialistas e políticos convergem em direção a certos tipos de políticas. Há dois problemas aqui, um deles claramente identificado por Roemer7 – essas políticas tendem a promover o bem-estar, sem aumentar a igualdade de condições, ao contrário, podem até aumentar a desigualdade. Este, aliás, é um argumento que tenho usado no debate sobre a questão social no Brasil, há muito tempo. É claro que a eliminação da pobreza, que corresponde à elevação geral do bem-estar na sociedade – e, sobretudo, dos despossuídos – reduz em alguma medida a desigualdade presente.8 Mas, de fato, a eliminação da pobreza – ou da miséria, se preferirem – pode significar, basicamente, a transição, para os miseráveis, de uma situação de privação absoluta para uma situação de privação relativa. Isto é, embora não mais 6

A lamentável intervenção judiciária promovida pelo TSE, sob a liderança do ministro Nelson Jobim, impondo de forma rigorosamente não democrática a verticalização das coligações a partir daquela formada para lançar candidatos à presidência nas eleições de 2002 é um exemplo contemporâneo do que não se deve fazer, sob pretexto de “melhorar” a democracia. As pobres justificativas jurídicas enunciadas pelo ministro, no exercício da presidência do TSE, não validam a violência política cometida. Sobre isto escrevi, à época, “Um caso de baixa instrução”, No.,13.02.2002; “Cavalo de Tróia”, No., 27.02.2002; “O Avesso da Reforma”, Veja 09, 2002; “Casuísmo Puro”, Veja 13, 2002; “Meios Maus e Fins Trocados”, No., 01.03.2002. 7 “Does democracy engender justice?”, cit. 8 Sérgio Abranches, “Política Social e Combate à Pobreza: a Teoria da Prática”, em Sérgio Abranches, Wanderley Guilherme dos Santos e Marcos Antônio Coimbra, Política Social e Combate à Pobreza, Jorge Zahar Editor, 1987, págs. 9-30. Os argumentos de Wanderley Guilherme dos Santos, no mesmo volume, “A Trágica Condição da Política Social”, págs. 33-51, são complementares aos meus.

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miseráveis, continuarão pobres em comparação aos mais ricos. O combate à pobreza é, do ponto de vista político e de políticas públicas, uma questão ligada à melhoria das condições materiais de vida, não uma questão redistributiva em si. Embora com conseqüências sociais relevantes se refere mais ao domínio do econômico, da economia política do desenvolvimento. Mais ainda, o voto econômico dos eleitores é sempre um voto pela melhoria das condições materiais de vida, não necessariamente um voto pela redução da desigualdade. O segundo problema, é que essa convergência é superficial e pode servir como obstáculo a intervenções mais profundas, destinadas a reduzir as desigualdades mais duráveis na sociedade. O ponto fundamental é que a demanda por mais bem-estar em geral, que pode ser lida como demanda por mais desenvolvimento – sem adjetivos – ou demanda por crescimento real (mais emprego, mais renda e menos inflação) tem um potencial majoritário, na agregação de preferências dos eleitores. A demanda por mais igualdade, que implica alterar as posições presentes e, portanto, maior conflito, tem um potencial majoritário muito inferior, se não for claramente minoritária, ao ser contenciosa. É exatamente essa diferença no potencial de conflito ou consenso, entre duas propostas de política – combate à pobreza ou combate à desigualdade – que requer uma articulação política distinta para agregar lideranças capazes de persuadir um conjunto majoritário de forças sociais a apoiar uma estratégia de combate às desigualdades a qual implica em gerar perdas para certos setores sa sociedade e ganhos para outros. Na verdade, a postura social democrática deveria ser a de minimizar perdas e maximizar ganhos no tempo. Em outras palavras, a orientação social a ser impressa nas políticas públicas deveria seguir dois princípios relativamente simples de enunciar, mas muito difíceis de implementar politicamente. O primeiro seria de eliminar, o mais rapidamente possível, toda e qualquer transferência de recursos públicos para os setores mais ricos ou não-pobres da sociedade, em todas as dimensões das políticas públicas. O limite para essa decisão seria o ponto em que a retirada de benefício financiado com recursos públicos de um determinado setor reduzisse seu bemestar material prejudicando significativamente sua capacidade de atender com dignidade a suas necessidades básicas. Um limite, digamos, paretiano forte: impediria qualquer subsídio aos ricos e manteria o uso de recursos públicos sempre no limite mínimo de atendimento de necessidades básicas ou direitos associados ao progresso individual, como a educação. Um exemplo claro dessa diferença seria a educação universitária subsidiada. Por esta regra, quem não tem recursos para cursar a universidade teria direito ao subsídio. Mas as famílias que pudessem financiar os estudos superiores de seus filhos, sem sacrifício significativo do seu nível de vida, não teriam mais direito ao subsídio. O segundo princípio, de focalização, seria dar prioridade aos mais pobres – e sempre ao segmento mais despossuído entre os despossuídos – na alocação de recursos públicos. O limite a essa transferência seria o ponto em que um determinado segmento atingisse um nível sustentável de bem-estar que o equiparasse ao segmento menos aquinhoado dos nãopobres. Em outras palavras, o subsídio termina, aonde termina a pobreza. 5

Esses dois princípios atenderiam, basicamente, aos critérios de maximização das oportunidades para os que têm menos e minimização dos benefícios públicos para quem tem mais. Critérios muito elementares de justiça social e, ainda assim, com elevado potencial de conflito. Se a social democracia conseguisse transformar esses princípios e critérios em elementos imperativos para suas políticas públicas, nos executivos municipais, estaduais e federal e para o voto de seus parlamentares, nos três níveis da federação, estaria promovendo uma revolução no comportamento político do partido, dando-lhe uma consistência programática que vai muito além dos planos indicativos de governo. Estaria criando, por outro lado, um constrangimento ao exercício do mandato, impondo-lhe imperativos que ferem a regra democrática internamente. Para conciliar esse imperativo mínimo para o mandato, o partido deveria maximizar o esforço interno de persuasão e criar mecanismos justos de resolução de conflitos. Deveria contemplar, inclusive, a possibilidade de dissidência consentida, para aquelas situações nas quais um político ou um grupo de políticos se sinta impedido de aplicar, em determinada circunstância, essa “orientação social imperativa”. Orientação que, derivada de um compromisso político-programático do partido, identificaria o voto na social democracia como um voto nesses princípios de distributivismo não populista e com o mínimo possível de conflito e dano ao bem-estar dos que já ultrapassaram a linha de pobreza. A formulação mais clara que vi, contemporaneamente, no contexto do debate político partidário brasileiro, está em documento redigido por um grupo de cientistas sociais, contendo sugestões para uma agenda integrada de políticas públicas para o Brasil, focada no combate à pobreza e à desigualdade: “Apesar de serem tratadas como algo natural, a desigualdade e a pobreza são fenômenos historicamente determinados, que decorrem de uma trajetória especificamente brasileira. São o resultado de decisões de política econômica e social adotadas ao longo de nossa história, que transferem renda do conjunto da população para os seus membros mais ricos. Estão ligados ao paternalismo de nossa formação social, que gera dependência por parte dos pobres e prepotência das elites. São potencializados por um conjunto de instituições que protegem os mais ricos e educados da concorrência, aumentando seus lucros e salários sem qualquer contrapartida em ganhos de produtividade e eficiência, e reduzindo o potencial de crescimento da economia e do mercado de trabalho”9. A maneira de combater o paternalismo e as políticas fiscais regressivas seria, segundo o documento, “uma profunda reorientação na alocação dos recursos públicos em benefício de programas que fazem uma clara opção pela redução da pobreza entre as crianças e negros, que foram abandonadas pela política social no passado”10.

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André Urani e outros, “Desenvolvimento com justiça social: esboço de uma agenda integrada para o Brasil”, IETS, Policy Paper no. 1, Dezembro de 2001. 10 Idem.

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Estou convencido de que essa orientação atende aos requisitos do mundo contemporâneo, marcado pela globalização e por constrangimentos de natureza nova à exeqüibilidade de certos tipos de ação estatal. Além disso, conferiria concreção, operacionalidade e foco à orientação de políticas públicas, que justifica a associação do “social” à adesão aos princípios da “democracia” sem adjetivos11. Em artigo recente sobre o estado da democracia brasileira12, ao falar sobre nossos déficits na área de políticas públicas, tentei sublinhar que existe um duplo desafio no tratamento da questão social no Brasil. Primeiro, esse que acabo de discutir, de combater a pobreza – elevação geral do bem-estar, principalmente dos despossuídos – e a desigualdade – redução dos diferenciais de renda entre os distintos grupos sociais – que, embora difícil de implementar, está ao alcance de políticas sociais e fiscais socialmente orientadas e adequadamente focalizadas. O segundo déficit é muito mais difícil de enfrentar e transcende essas políticas públicas de natureza distributiva, fiscal ou técnica, pois se refere ao às desigualdades duráveis para usar a felicíssima expressão de Charles Tilly13, as quais não temos reduzido e temos elidido sistematicamente e que correspondem a diferenças categóricas do tipo preto/branco, mulher/homem. O combate à desigualdade durável, envolve ainda mais conflito e barreiras culturais e ideológicas do que o ataque às manifestações “puramente econômicas” da desigualdade. O problema é que não será possível reduzir a desigualdade a partir de um determinado ponto, sem enfrentar, principalmente, o problema do racismo no Brasil. Ele tem pelo menos duas dimensões relevantes e de difícil tratamento político e na formulação de políticas públicas e ações estatais. De um lado, envolve profundos – porém encobertos – conflitos normativos. Conflitos que se referem à ordem normativa de nossa sociedade, definida, como o conjunto de normas que expressa a nossa resposta presente a duas questões fundamentais, seguindo a concepção de Peter Berger14: “quem somos nós?” e “como devemos viver em conjunto?”. A primeira questão envolve um problema de identidade coletiva, que tem sido o centro de toda a discussão sobre a suposta “democracia racial” – a simples necessidade do adjetivo já nega a sua existência – a tolerância racial, o “mulatismo”, a cordialidade brasileira e por aí vai. O fato de termos uma polêmica que atravessa as décadas em torno dessa questão, transparente nas ruas e nas estatísticas, já revela um enorme conflito normativo subjacente. A segunda, contém um potencial significativo conflito e de disfarce, de mascaramento da real situação de convivência social interétnica no Brasil. São várias as dimensões desse conflito e nenhuma delas é trivial. De início, o fato de que não tenhamos segregação racial 11

Ver, a respeito, o capítulo sobre “A Questão da Desigualdade” de Anthony Giddens, em The Third Way and its Critics, Polity Press, 2000. 12 “A democracia brasileira vai bem...” cit., pág. 256. 13 Charles Tilly – Durable Inequality, University of California Press, Berkeley, 1998. Ver, também, Inoguchi e outros, cit. Ian Shapiro – Democratic Justice, Yale University Press, 1999. 14 “Conclusion: General Observations on Normative Conflicts and Mediation”, em Peter Berger (ed.) The Limits of Social Cohesion: Conflict and Mediation in Pluralist Societies, Westview Press, 1998, págs. 352-372.

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explícita, embora tenhamos um alto grau de discriminação racial, complica significativamente a redefinição da convivência. Porque as linhas da segregação são socioeconômicas e não puramente raciais, elas criam um véu, de viés econômico, que permite esconder o racismo. Mas o xis da questão é que, embora haja favelados e miseráveis brancos, não há como negar que a pobreza brasileira é predominantemente negra e que a exclusão social tem um viés racial. É possível até admitir o argumento que, contemporaneamente, a exclusão social não tem mais um viés racial ativo, embora continue a ter uma distribuição racialmente enviesada, por causa da exclusão racialmente determinada no passado, que se reproduz nas pautas de exclusão social e econômica atuais. Mas isto não nega a existência do racismo, nem das desigualdades raciais. O que se pode admitir é que se trata de um desafio do tipo definido pelo filósofo político John Rawls15, sobre a retificação da posição original, que está na base da injustiça social, no caso em relação aos negros. Em termos muito simplificados, o que Rawls propõe é que existem desigualdades que perduram na ordem social atual, oriundas do próprio processo de fundação dessa ordem, a partir de uma posição original desigual dos diferentes grupos sociais e das diferentes pessoas. Essa desigualdade, vamos denominá-la durável, só pode ser eliminada se promovemos uma intervenção nessa ordem social, para retificar as posições originais desiguais. É, também, admissível, ainda seguindo Rawls, que parte da negação da existência do racismo no Brasil não se deva a um sentimento de discriminação racial, mas ao efeito do que ele denominou de “véu da ignorância”. A falta de consciência de que existe uma falha na construção social, que determina oportunidades desiguais para negros e “não-negros”, levaria uma parte dos não-negros a negar a existência do racismo e a não apoiar normas e políticas que permitissem retificar essa situação de desigualdade. Mas existe uma parcela da sociedade que resiste a essa retificação por racismo mesmo. Ora, é inadmissível que um partido social democrático não se proponha, programaticamente, a mediar esses conflitos normativos e a retirar esse “véu de ignorância”, para revelar essa “falha normativa” , como a define o sociólogo Peter Berger, criando condições para aprovação majoritária de medidas de retificação. Basta examinar a reação – inclusive de lideranças da social democracia – à menção de ações afirmativas, para se ter uma boa medida do grau de dissenso que esta questão provoca no Brasil, apesar da condenação explícita da discriminação racial. Há mais aceitação, por exemplo, à legislação antidiscriminatória, do que a políticas de discriminação positiva ou regras de ação afirmativa. Por que? Porque a convicção da inexistência de racismo no país retira da idéia de legislação antidiscriminatória ameaça aos interesses dos não-negros. O “véu da ignorância” faz com que o potencial de conflito da regra de não-discriminação seja reduzido na percepção dos atores sociais. O mesmo não é verdade, porém, com relação à ação afirmativa, porque ela dá transparência 15

John Rawls – A Theory of Justice, Oxford University Press, 1971.

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à noção de que os negros terão potencializadas suas oportunidades, o que ameaça os interesses presentes dos não-negros. E a intensidade da reação contrária à idéia de discriminar a favor dos negros é elevada pela negação da existência de racismo. Porque ao não admitir que existe uma desigualdade especificamente racial, a idéia de corrigí-la mediante ações afirmativas, aparece como injusta e discriminatória. Mas o problema existe e não pode ser negado por aqueles que não têm justificativa para se abrigar sob o véu da ignorância. À social democracia não se pode facultar essa atitude. O que se espera dela é que adote um posicionamento ativo no sentido de: 1. eliminar o véu de ignorância que permite o mascaramento do racismo em desigualdade puramente econômica e social, sem viés racial algum; 2. mediar o conflito normativo, buscando formas mais consensuais de retificação da situação desigual dos negros; 3. formular programas de ação afirmativa, adaptados às condições peculiares da sociedade brasileira, à luz das lições contemporâneas sobre sucessos e insucessos na adoção de programas dessa natureza e desenhados de modo a maximizar o apoio social e minimizar o conflito normativo sobre eles. Não consigo ver um partido social democrático numa sociedade como a brasileira, que não tenha um posicionamento ativo sobre a questão racial e não o coloque no centro de suas discussões e de sua ação política, como parte inextricável de seu compromisso com a justiça social. Nesse sentido, tanto o Instituto Teotônio Vilela deveria ter um departamento de estudos especificamente voltado para a questão racial como elemento constitutivo da questão social brasileira, como na estrutura diretiva do partido, deveria haver um departamento para articular ações políticas afirmativas na questão racial. Diga-se, de passagem, que nenhum partido no Brasil dá efetiva representação aos negros no país16. Embora tenha havido uma aproximação entre movimentos negros e o PT, o partido jamais adotou uma posição ativa e clara em relação à questão racial, como distinta da questão da desigualdade social em geral. Isso deixou o movimento negro praticamente despartidarizado e, em certa medida, despolitizado. Os dois eixos social democráticos não reconhecem, até agora, portanto, um dos fundamentos da desigualdade durável brasileira, como uma questão em si, que merece ações políticas e de políticas públicas nela focalizadas. Na minha opinião, uma falha política e normativa de proporção significativa e que produz uma deficiência grave na orientação social dessas correntes. A ênfase que dei à questão racial não tem por objetivo reduzir a importância das desigualdades de gênero, como parte da desigualdade durável no Brasil que caberia a um partido social democrático tratar como prioridade programática central, no capítulo do combate à desigualdade. Primeiro, é preciso ver que existe uma justaposição muito perversa entre o componente racial e o componente de gênero da desigualdade durável brasileira. A categoria mais despossuída e desprotegida da sociedade nacional é a das mulheres negras. Mas, é claro que existe um eixo especificamente associado às diferenças de oportunidade

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O único partido político brasileiro que já adotou procedimentos organizacionais nessa direção foi o PDT, embora no passado já tenha sido mais ativo no campo da promoção da participação dos negros, quando seu líder, Brizola governava o Rio de Janeiro, por exemplo.

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entre homens e mulheres que está dissociado da questão racial. Quando os dois se superpõem encontramos o máximo possível de desigualdade. 3. Da Superação do Neoliberalismo Alternativa real ao chamado neoliberalismo que marque, ao mesmo tempo, uma ruptura clara com o passado nacional-estatista e as coalizões que o sustentaram A crise fiscal do estado, que atingiu a praticamente todos os países capitalistas industriais do mundo – com exceção dos estados desenvolvimentistas asiáticos – ao mesmo tempo em que condenou o estado keynesiano, produziu a hegemonia do que ficou conhecido como neoliberalismo, na verdade uma política de ajustamento estrutural do estado, que objetivava debelar a crise fiscal, “desconstruindo” o aparato estatal de bem-estar social e de governança econômica, privatizando e desregulando a economia mista característica do capitalismo europeu e de países latino-americanos como Brasil, México e Argentina. Uma tarefa conduzida, em não poucos casos, pela própria social democracia ou partidos similares, na América Latina. Esse processo coincidiu com a exaustão técnica e política do socialismo de estado, na URSS, no Leste Europeu e na Europa Central. A convergência histórica entre os colapsos do estado keynesiano na Europa capitalista e do socialismo de estado, levou à hegemonia do neoliberalismo, por razões diferentes, como única alternativa viável para o restabelecimento das condições de crescimento sustentável da economia. Em poucos anos, essa alternativa se transpôs para a América Latina – que enfrentava sua própria crise, com a explosão da dívida do Terceiro Mundo e o surto hiperinflacionário – e, mais tarde, às economias asiáticas, que até meados dos anos 90, pareciam imunes a esses problemas, a ponto de muitos analistas os virem como candidatos potenciais à hegemonia futura. O sociólogo alemão Claus Offe, um dos primeiros a identificar e explicar a crise do keynesianismo, fez um diagnóstico sombrio e “sóciocético” do quadro atual para as social democracias: “aparte alguns alertas dos verdes sobre como não organizar a produção, o tema de como melhor organizar a produção desapareceu virtualmente da agenda socialista ou social-democrática. Como projetos de distributivismo socialista são atualmente amplamente vistos como parasitas que comprometem o crescimento e a produção e, portanto, não podem promover o crescimento em nenhum modo distintamente socialista, se tornam duvidosos e facilmente desacreditados”.17 Mais adiante, diz, Offe “as noções de regulação inteligente da produção de maneira a garantir os direitos dos trabalhadores no ponto de produção, juntamente com a noção de pleno emprego, são similarmente difíceis de implementar nas economias abertas de hoje”.18 Para Offe, a era do após II Guerra Mundial acabou definitivamente no ano de 1989 e “seu final marcou o fim de um amplo consenso a respeito de regimes regulatórios subjacentes à ordem social e ao modo como forças de mercado disruptivas deveriam ser contidas”. O resultado, é que “não existe à mão qualquer visão potencialmente hegemônica de uma ordem social justa, diferente da que presumivelmente emergiria da operação livre das

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Claus Offe – “Fifty years after the great transformation”, em Inoguchi, Newman e Keane, cit. pág. 42. Pág. 43.

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forças de mercado dentro e entre economias irrevogavelmente abertas”.19 Offe termina seu diagnóstico concluindo que, embora as curas para a aparente impotência do poder estatal e apatia ou desorganização das forças políticas e ideológicas que poderiam usá-lo para obter uma sintonia fina da ordem social sejam conhecidas, ainda não se vislumbra a possibilidade de surgimento de uma alternativa ao neoliberalismo. O caminho seria adotar medidas que são muito difíceis de administrar: cultivar a vida associativa na sociedade civil e o desenvolvimento de regimes democráticos transnacionais acessíveis e responsivos. Enquanto isto, conclui, a pergunta não é exatamente “o que fazer?”, mas se “existe alguém capaz de fazer alguma coisa?”. O pessimismo de Offe, que contém um certo derrotismo típico do euroceticismo pósmoderno, de qualquer forma chama atenção para um fato concreto e indisputável. Até agora não surgiu uma alternativa viável e persuasiva ao neoliberalismo, capaz de superar seu potencial majoritário. E a tarefa de concebê-la cabe intrinsecamente à social democracia. Ao contrário de Offe, creio que existem algumas linhas menos utópicas e abrangentes que podem servir de pista para a difícil construção de uma alternativa, que reponha o estado na agenda, embora como uma síntese entre a experiência anterior, evidentemente esgotada, e sua negação, o neoliberalismo, em vias de exaustão. Não tenho dúvida de que o colapso do estado keynesiano no bojo de uma crise fiscal do estado quase universal, criou um ambiente novo que, juntamente com determinados aspectos irreversíveis da globalização, afastam em definitivo certas práticas do passado. A principal é obviamente a política fiscal relaxada do após guerra. A nova ordem capitalista mundial impõe um grau de restrição fiscal infinitamente superior e não se trata de uma mera imposição ideológica. São limites reais à capacidade extrativa dos estados, dados pelo imperativo de manter um padrão mínimo de competitividade econômica. O sociólogo francês, Alain Touraine, afirma, com razão, que diante das ameaças do “liberalismo selvagem” não se trata de fechar as portas, mas de criar novas formas de regulação política e social da economia. Mas não devemos esquecer, lembra ele, que a escolha não é entre a inação e o neoliberalismo, mas, claramente, entre uma “esquerda defensiva”, apoiada no estado e no corporativismo do setor público, porém cada vez menos capaz de inovar e lutar contra as desigualdades, e uma esquerda que “unifique objetivos econômicos e objetivos sociais”, que ponha no primeiro plano de sua agenda a luta contra a desigualdade e que encontre meios de gestão e uso dos recursos do Estado independentes do aparelho de estado.20 O primeiro desafio, portanto, é compatibilizar democracia, orientação social e os imperativos da competitividade econômica21: um, voltado para a economia doméstica e o estado, a restrição fiscal; outro, voltado para a produção e a economia global, a abertura 19

Págs. 43-44 Ver Alain Touraine – “Si nous voulons que renaisse la gauche…”, Le Monde, 24/4/2002, também publicado em português como “Que esquerda queremos”, Folha de São Paulo, 24/4/2002. 21 Ver, por exemplo, as idéias – mais positivas – de Ian Marsh – “Political representation and economic competitiveness: is a new democratic synthesis conceivable?”, em ‘Inoguchi, Newman e Keane, cit. págs. 136-156. 20

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econômica. Claus Offe tem toda razão ao tratar as economias de hoje como irrevogavelmente abertas. De fato, é difícil imaginar a viabilidade política interna de uma economia autárquica no mundo de hoje, com o nível de globalização da informação que atingimos e que não tínhamos na fase imediatamente anterior do capitalismo. Como disse Touraine, não se trata de fechar as portas, mas de criar um caminho alternativo, eficaz e contemporâneo ao neoliberalismo. Por outro lado, existe, de fato, um constrangimento novo na economia mundial, geralmente tratado de forma conspiratória pela esquerda e pelos críticos da globalização, que é a hegemonia do mercado de capitais sobre o velho capital bancário, no financiamento do investimento, doméstica e globalmente. A mudança no padrão de financiamento do capitalismo, ou se quiserem a mudança na lógica do capitalismo financeiro, reforça a restrição fiscal – o risco de não-pagamento e o “moral hazard” passam a ser as principais ameaças à reprodução ampliada do capital financeiro aplicado nos projetos de investimento e no financiamento dos governos – e torna, ao mesmo tempo, todas as economias mais vulneráveis aos efeitos de movimentos abruptos no fluxo de capitais, decorrentes de instabilidades ou crises regionalmente localizadas e que no passado não tinham como se propagar. A tragédia argentina mostra que há um custo político elevado – além evidentemente dos custos financeiros, econômicos e sociais – quando se lida de forma irresponsável, voluntarista ou populista com a dívida contraída no mercado de capitais. O resultado não é apenas a quebra os bancos – muitos, na verdade conseguem se safar – mas a destituição principalmente da classe média de sua poupança. Em decorrência, os governos acabam forçados a usar recursos do Tesouro em operações de salvamento dos bancos, para salvar parte dos depósitos das pessoas, quando há tempo. As tecnologias financeiras terminam por transferir o maior risco associado ao não pagamento da dívida pública aos poupadores individuais, sem proteção senão da autoridade monetária. Os investidores corporativos têm mais informação sobre o risco embutido nesses papéis e mecanismos de hedge – proteção financeira – que lhes dá maiores garantias. Podem até perder, na eventualidade de um default, mas não na magnitude que os poupadores pessoa física perdem. Esta é uma das questões da ordem financeira global que as esquerdas latino-americanas ainda não compreenderam. Por isto lidam tão facilmente com a idéia de moratória unilateral. O custo político vem com a reação dos poupadores destituídos. A “bronca” e o “panelaço” nas ruas argentinas têm a ver com o desespero de famílias de classe média atiradas, do dia para a noite, na pobreza. Uma nova pobreza, que é o inverso recíproco da nova riqueza. O ressentimento feroz dos novos pobres é gêmeo avesso da euforia consumista dos novos ricos. Essa nova característica do capitalismo pós-moderno implica em um duplo desafio de governança: global e doméstico. No plano global, é evidente que se torna necessário o desenvolvimento de mecanismos de proteção das economias nacionais ou regionais e, sobretudo das poupanças das famílias, dos efeitos desse dominó financeiro. As alternativas propostas22 ainda não estão suficientemente apuradas para obterem apoio majoritário, mas permitem avançar na direção de soluções mais refinadas. É certo que a agenda e a 22

Como, por exemplo a proposta de James Tobin, de um imposto global.

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dogmática do FMI e do Banco Mundial terão que ser redefinidas, para se ajustarem ao novo padrão, olhando para as necessidades das economias afetadas. Até agora, por exemplo, o FMI só se ajustou à necessidade de proteger os investidores, apertando a ortodoxia fiscal ao paroxismo. A tragédia da Argentina ilustra bem os efeitos destrutivos dessa ortodoxia fiscal, que evidentemente vai muito além da restrição imperativa a que me referi acima. Não há justificativa, senão exacerbado desprezo ideológico, para o tratamento conferido à Argentina pelo FMI, sponte sua e por pressão do Tesouro do EUA. Para estabelecer um novo nexo entre os imperativos da competitividade econômica e os requisitos de orientação social da ação governamental, em um contexto democrático, é preciso recuperar de forma nova, alguns componentes da social democracia do após-guerra. É claro que o que se requer é uma nova estrutura de formulação de políticas públicas, adaptada ao novo ambiente fiscal mais restritivo. A busca dessa nova estrutura contempla alguns elementos sobre os quais já é possível se ter uma idéia mais clara e precisa e outros para os quais ainda não se tem resposta. Começo pelo mais simples, embora de muito difícil implementação. A primeira tarefa da social democracia nessa busca de um novo modo de governança como alternativa ao neoliberalismo é a recuperação da capacidade operacional do estado. A fase neoliberal desconstruiu o estado e, apesar das muitas críticas e de evidentes exageros, na maioria dos casos esses aparatos estatais estavam mesmo superdimensionados, operavam em áreas já desnecessárias e onerosas, concentravam renda por meio de gastos altamente regressivos em benefício de castas corporativistas, de segmentos decadentes do patriciado industrial e da própria máquina estatal. A desconstrução era necessária. O problema é que o neoliberalismo não tinha, não tem e não terá – porque não é de sua natureza – um plano de reconstrução ou de reforma positiva do estado. O desafio, portanto, é reformar positivamente o estado ou construir um novo estado. E é um desafio fundamental, pois como bem afirmam Juan Linz e Alfred Stepan, sem estado dificilmente pode haver democracia23. Só o mercado não é fundamento suficiente para a ordem democrática. Ou, como diz Ian Marsh, é preciso dotar o estado de novas capacidades diretivas, para além do dirigismo do passado, para isto é necessário que ele recupere capacidade estratégica e o prestígio burocrático24. Por prestígio burocrático, entendo a construção de um funcionalismo civil profissionalizado, técnico e valorizado, não apenas – mas também – em seus rendimentos salariais, mas principalmente no seu status. Parece uma tarefa fácil, mas não é. Primeiro, porque é árduo o caminho a trilhar para relegitimar a função pública, depreciada tanto pelos excessos corporativistas e privilégios do passado, pela corrupção e pela ineficácia, quando pela pregação ortodoxa neoliberal. A 23

“Toward consolidated democracies”, em Inoguchi, Newman e Keane, cit. págs. 48-67. Ian Marsh – “Economic Governance and Economic Performance”, em Ian Marsh, Jean Blondel e Takashi Inoguchi (eds.) – Democratic Governance and Economic Performance: East and Southeast Asia, United Nations University Press, 1999, págs. 47-78. 24

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burocracia pública só se relegitimará pelos seus resultados e, a partir deles, um paciente trabalho de construção simbólica, valorativa, que redefina a imagem da burocracia e do burocrata perante a sociedade. Segundo, porque para fazer isto é preciso enfrentar a restrição fiscal, o que implica em reduzir o tamanho da burocracia, não apenas aumentando sua produtividade e reduzindo seus custos operacionais per capita ou por unidade de serviço prestado, mas principalmente revendo drasticamente as funções do estado para torná-las muito mais seletivas, focalizadas e estrategicamente orientadas. Não se trata de um estado mínimo, mas se trata, certamente, de um estado enxuto ou, se preferirem do estado estritamente necessário. Para levar a cabo uma reforma do estado nesses moldes existem critérios, modelos e tecnologia. Mas falta um projeto político-econômico, uma orientação programática que possa agregar as maiorias necessárias e, crucialmente, mobilizar a própria burocracia para que se engaje de boa fé nesse projeto de reforma que vai requerer intervenções cirúrgicas em seu próprio tecido, para fortalecer o organismo reestruturado. Sei que esta não é uma tese consensual. Mas estou convencido de sua necessidade e, mais, que é o único caminho viável para construção de uma alternativa que possa conquistar a legitimidade e a maioria necessárias para confrontar o neoliberalismo. A vantagem do neoliberalismo, como lembra Claus Offe, é que, ao exacerbar os efeitos da maior liberação das forças de mercado, adquire grande capacidade de “minimização coletiva das perdas”. O que significa isto? Que o mercado liberado das amarras regulatórias e do protecionismo elimina de forma desimpedida, continuada e inconspícua todos os fatores de produção que se mostram incapazes de desempenho dentro do padrão corrente de eficiência. Esses fatores falhos são forçados a se adaptar e encontrar usos alternativos mais produtivos. Essa ação de seleção natural do mercado é mais poderosa que qualquer autoridade política ou agência de planejamento, diz ele, sejam elas autoritárias ou democráticas. Porque o mercado é um poder anônimo e não-intencional, não sofre restrições eleitorais, nem pode ser culpado pela falha de algum fator de produção. Ao contrário do governo, que é eleitoralmente condicionado e pode ser condenado pela operação faltosa que determina falhas em algum fator de produção. O intervencionismo, o burocratismo e a estatização de setores produtivos regulares e contestáveis no mercado, também esgotaram suas possibilidades políticas, fiscais e de legitimação social. Somente um novo modo de regulação, muito menos intervencionista, mais orquestrador e muito mais seletivo teria condições de legitimação atualmente. A capacitação estratégica do estado é uma questão bem mais complexa. Ian Marsh sugere alguns requisitos mínimos para ela. Primeiro, é preciso dotar o estado de capacidade para obter e usar informação estratégica diferenciada. “Se as informações e perspectivas geradas pelo estado não podem ser diferenciadas daquelas oferecidas pelo mercado, sua capacidade de liderança e catalisador em intervenções seletivas é afetada negativamente de forma significativa”.25 Na sua visão, o estado tem uma função educadora na economia, não é apenas um agente para monitoramento e descoberta, mas um ambiente para formação de motivos, conjuntos 25

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de escolhas e idéias para agentes privados. Um sistema de aprendizado que pode mobilizar cidadãos na direção de soluções diferentes às de mercado, embora compatíveis com a economia de mercado e os requisitos de competitividade econômica. Um requisito adicional, nesta perspectiva, é recuperar a visão de longo prazo, como um recurso essencial para a capacitação estratégica do estado e que faz parte do conjunto de habilitações e informações estatais diferenciadas daquelas do arsenal privado. Nesta nova fase do capitalismo financeiro predomina a visão de curto prazo. Por outro lado, as instituições de gestão macroeconômica do estado, sobretudo os bancos centrais e as áreas de política fiscal, monetária e orçamentária, terminam prisioneiras dessa visão de gestão do curto prazo e do acompanhamento de conjuntura, perdendo de vista o longo prazo e as soluções estruturais requeridas para a sustentação de um ciclo mais longo de crescimento.26 Essa análise de Ian Marsh, embora ainda em um plano quase puramente normativo, reflete uma fina percepção de necessidades críticas para construção de uma alternativa contemporânea ao neoliberalismo. Toca, na minha opinião, em quatro questões fundamentais para uma nova concepção social democrática do estado e da governança econômica “pós-choque neoliberal”. Primeiro, a reconstrução de um estado estritamente necessário, com uma burocracia valorizada e prestigiada. Segundo, a dotação de capacidade estratégica ao estado, principalmente com a recuperação da visão de longo prazo. Tem a ver com a modernização tecnológica e com a capacidade de uso de conhecimento pelo estado, com a geração e o processo de informação estratégica, que implica em mecanismos de emanagement da informação gerada e/ou apropriada pelo aparelho estatal e uma revisão profunda da missão da agência de informação estatística e demográfica, como peça crítica desse sistema. Terceiro, a cuidadosa seletividade das ações estatais, para mantê-las compatíveis com a operação do mercado, de um lado, e viáveis no plano das restrições fiscais, de outro, auxiliando e não prejudicando o desempenho competitivo da economia27. Finalmente, quarto, a busca de novas formas de governança econômica, que não repitam os erros e os excessos do passado e se mantenham fiéis às inarredáveis restrições fiscais. É o que Touraine chama de novas formas de regulação política e social da economia. Eu adicionaria que deveria ser parte essencial dessa compatibilização entre restrição fiscal e ação positiva, a aplicação, também como critério de governança econômica voltada para a manutenção e expansão da competitividade da economia, o princípio de escolha de políticas que minimizem (com tendência a zero) a transferência de recursos públicos para setores capitalistas. Por duas razões. A primeira, para obedecer, também na governança econômica – e não apenas na política social – o princípio de discriminação positiva, 26

Creio ser justo dizer que a crise energética recente no Brasil, em muito se deve a esta hegemonia da visão de curto prazo, sobre a visão estratégica de longo prazo. Houve, também, falhas regulatórias e de monitoração. Todas indicativas do debilitamento estratégico do estado. 27 Esse ponto é, aliás, enfatizado por Herbert Kitschelt – “European Social Democracy Between Political Economy and Electoral Competition”, em H. Kitschelt, P. Lange, G. Marks e J. Stephens (eds.) – Continuity and change in Contemporary Capitalism, Cambridge University Press, 1999, págs. 317-345: “os social democratas não podem ter a esperança de que poderão evitar políticas de liberalização do mercado que aumentem a competitividade internacional de setores econômicos domésticos… O que os distingue ainda dos partidos conservadores é que desenvolvam fórmulas que tornem a liberalização menos dolorosa para os setores mais vulneráveis da sociedade.”

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somente alocando recursos públicos – agora mais escassos, dadas as restrições fiscais inarredáveis – a setores realmente despossuídos e/ou vulneráveis da sociedade e da economia. Segundo, para permanecer rigorosamente fiel à orientação social que lhe deve ser inerente, que impõe duas restrições alocativas fundamentais: eliminar gastos regressivos, que contribuem para aumentar a concentração da renda, e maximizar os efeitos redistributivos de cada unidade de recurso público. Estes dois princípios podem ser vistos como critérios operacionais para unificar objetivos econômicos e sociais, tarefa que diferenciaria a nova da velha esquerda, como sugeriu Touraine. Como diz Kitschelt, os social democratas, por outro lado, devem se diferenciar dos neoliberais por buscarem um equilíbrio distinto entre eqüidade e eficiência, por meio do uso judicioso de arranjos extramercado para assistir a economia produtiva, com mais eficácia e ganhos sociais do que o zelo ideológico pela liberdade irrestrita das forças de mercado. O xis da questão está no termo “judicioso”, que é valorativo, mas indica, não obstante, uma restrição, um imperativo de seletividade e de limites à ação do estado no mercado28. Essa discussão, embora ainda muito genérica e abstrata, aponta para algumas direções muito concretas, que definem prioridades muito nítidas para a social democracia. A primeira, educação. Educação é uma espécie de vetor crítico, para o qual convergem todos os componentes da ética social democrática. É o que nos coloca pari passu com o mundo pós-moderno. Tanto lá, como cá, a educação se tornou um eixo crítico. E a realização dessa prioridade também há que ser judiciosa, pois é farta a evidência de que, mal distribuída, a educação é um poderoso concentrador de renda e não um instrumento para equalizar as oportunidades. Primeiro, o próprio ideal democrático se realiza melhor e mais rapidamente com mais educação, melhor distribuída: quanto mais educada a cidadania, mais capaz de autoregulação e de controle sobre o governo e o estado, de voto imparcial e autônomo. Segundo, pode ser um instrumento poderoso de compatibilização entre combate à pobreza e à desigualdade. A educação tem o poder de tirar pessoas da pobreza e de equalizar as condições de progresso social. Terceiro, boa educação aumenta a empregabilidade, a produtividade e, portanto, contribui de uma forma socialmente positiva para o imperativo da competitividade econômica. A segunda prioridade, emprego, fundamentalmente, via retreinamento e busca de formas mais flexíveis de relacionamento capital/trabalho, porém que garantam a proteção indispensável ao trabalhador e que estimulem a adoção pelos empregadores de novas formas de remuneração de desempenho e a transferência de maior autonomia de decisão 28

Sobre governança econômica, ver ainda, J. R. Hollingswoth, P. Schmitter e W. Streck (eds.) – Governing Capitalist Economies, Oxford University Press, 1994; S. Berger e R. Dore (eds.) – National Diversity and Global Capitalism, Cornell University Press, 1996; J. R. Hollingsworth e R. Boyer (eds.) – Contemporary Capitalism: the embeddedness of institutions, Cambridge University Press, 1997, J. L. Campbell, J. R Hollingsworth e L. Lindberg (eds.) – Governance of the American Economy, Cambridge University Press, 1991 e Sérgio Abranches – “Ruptura e adaptação: o novo paradigma produtivo e a formulação de políticas públicas para a economia”, em J. P. dos Reis Velloso (coord.) - O Brasil e o Mundo no Limiar do Novo Século, José Olympio Editora, 1998, págs. 207-236.

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para o trabalhador (empowerment). é preciso redefinir a noção social democrática de pleno emprego, adaptando-a à nova economia. Talvez o ideal possível seja, agora, o de assegurar a “plena empregabilidade”. A terceira, desconcentração e diversificação da atividade econômica, como mecanismo de redução de desigualdades regionais. Há muito, ainda, que caminhar na definição de um novo modelo de estado e de novas formas de governança social democrática do capitalismo contemporâneo, inclusive para adaptar os novos princípios social-democráticos gerais às especificidades locais e à nova forma de interação entre o local e o mundial, dada pela globalização. 4. Da Globalização Alternativa de inserção autônoma no processo de globalização que defina o escopo da soberania nacional, sem negar a globalização e buscando um espaço ativo na governança global. A globalização é inevitável. É um dado técnico, tecnológico, financeiro, comercial e político inarredável. O uso dos meios associados ao processo que se convencionou chamar de globalização e a forma de promover a incorporação de economias nacionais e/ou regionais a esse estágio superior da internacionalização dos capitais é que podem variar. Há muita mitologia construída em torno desse processo, cuja existência Alain Touraine chega ao ponto de negar, vendo nele não mais que a dissociação entre os mundos técnicoeconômico e cultural.29 Compreender os mecanismos da globalização para cada país em particular é essencial para desenvolver as políticas mais adequadas à plena inserção à economia mundial com o máximo de autonomia e o maior benefício econômico e social possíveis. A fase neoliberal da globalização talvez tenha sido um fator necessário no processo de transição, para permitir a destruição de componentes do estágio anterior de internacionalização do capitalismo, necessária para liberar, em escala quase planetária, a plena eclosão das novas forças vitais do processo de acumulação de capital, a rápida absorção do novo progresso técnico pelos setores na vanguarda da nova revolução industrial e a redefinição do papel das periferias e das economias emergentes, estas já no perímetro externo do núcleo desenvolvido do capitalismo. Esse estágio, representado pela extensão global do alcance do capital financeiro e do comércio de mercadorias, abrindo novas fronteiras para a expansão capitalista central, requer tipicamente, como os estágios anteriores de evolução do capitalismo, nas suas fases iniciais, um processo radical de eliminação de entraves jurídicos, institucionais e políticos, que configuram o limite superior de regulação e governança da última etapa, portanto a mais madura, do modo de produção e acumulação antecedente30. 29

Alain Touraine – “Société politique, démocratie et responsabilité de l‘individu”, s/d, s/e. Eric Hobsbawn registra esse processo de obsolescência da governança e a “crise da política” no seu The Age of Extremes: A History of the World, 1914-1991, New York, Vintage, 1994, particularmente págs. 1011. Immanuel Wallerstein também anotou essa “falência das instituições”, levando a uma certa desordem sistêmica, embora talvez imaginando que essa crise sistêmica fosse terminal, não fundadora de uma nova ordem sistêmica mundial, ainda sob a égide do capitalismo, quando diz que as contradições do sistema 30

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Trata-se, como disse o historiador Eric Hobsbawn, do fim de uma “era histórica”, que traz muitas e novas incertezas, mas tudo indica não ser o fim do capitalismo ou da história e sim um novo salto no processo de desenvolvimento das forças materiais de produção social, portanto de mudança da estrutura econômica e da superestrutura legal de governança econômica, de que falava Marx na sua crítica da economia política.31 É de se esperar que um processo de transformação tecnológica, infra-estrutural e estrutural tão rápido e de escala mundial produza ondas sucessivas de turbulências e custos sociais elevados. O próprio requisito de desimpedimento da ação das novas forças de acumulação certamente elimina a possibilidade de construção contemporânea de uma rede de proteção social minimamente capaz de minimizar esses custos. O resultado inicial foi, em muitos casos, o aumento da desigualdade intra e inter nacional e a criação de bolsões ampliados de pobreza, tanto das economias domésticas, quanto em âmbito mundial32. Entre as noções correntes sobre a globalização que a pesquisa mais recente tem ajudado a compreender melhor está a dos seus efeitos sociais negativos. A idéia de que ela está associada, de forma genérica, a um aumento da pobreza e da desigualdade em todo o mundo, indiscriminadamente, começa a ser contestada e substituída por uma visão menos negativista e determinista, que, se confirmada, permite o desenvolvimento de políticas que controlem esse efeito. Há evidência persuasiva de que a associação entre globalização e desigualdade não é unívoca, nem unidirecional. Seus efeitos dependem da estrutura socioeconômica de cada país, de sua forma de inserção no processo de comércio internacional e dos padrões de abertura econômica. A abertura à mobilidade da força de trabalho parece contribuir mais para o efeito concentrador, do que à mobilidade de capitais ou mercadorias, por exemplo.33

capitalista mundial chegaram a um ponto em que nenhum dos mecanismos para restaurar o funcionamento normal do sistema pode mais funcionar efetivamente, levando ao “caos sistêmico”. Immanuel Wallerstein – After Liberalism, New York, The New Press, 1995, pág. 268. 31 “Em um certo estágio do seu desenvolvimento as forças materiais de produção na sociedade entram em conflito com as relações existentes de produção. De formas de desenvolvimento das forças de produção, essas relações se tornam suas amarras, tem início um período de revolução social. Com a mudança da fundação econômica a imensa superestrutura se transforma mais ou menos rapidamente”. Karl Marx, Contribuição à Crítica da Economia Política, várias edições, em várias línguas. Para a citação, usei a tradução do alemão para o inglês que me estava à mão, publicada por Lewis Feuer na coletânea Marx & Engels – Basic Writings on Politics and Philosophy, New York, Anchor Books, 1959, pág. 42. 32 Como argumentam com razão, Roger Burbach, Orlando Núñez e Boris Kagarlitsky em Globalization and its Discontents: The Rise of Postmodern Socialisms, London, Pluto Press, 1997. Mas, ao contrário deles, não creio que a globalização, primeiro, esteja esgotando suas capacidades, segundo, que nos seus estágios subseqüentes, requeira custos sociais tão elevados ou um ambiente institucional radicalmente neoliberal, quanto no seu início. Ver a discussão mais rica e sofisticada desta questão, por exemplo, no volume coletivo Giovanni Arrighi e outros, Chaos and Governance in the Modern World System, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1999. Igualmente útil é a controvérsia entre Charles Tilly, “Globalization Threatens Labor’s Rights”, Aristide Zolberg, “Response: Working –Class Dissolution” e Lourdes Benería, “Response: The Dynamics of Globalizaton” sobre o tema em International Labor and Working-Class History, 47:1995, 1-23, 28-38, 48-52, respectivamente. 33 Ver o detalhado e interessante estudo de Philippe Aghion e Jeffrey G. Willliamson – Growth, Inequality and Globalization: Theory, History and Policy, Cambridge, Cambridge University Press, 1998.

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As crises que atingiram o pólo novo da economia hegemônica, o EUA, do Japão e dos países emergentes que foram incorporados a esse primeiro movimento ampliado do que se convencionou chamar de globalização, mostram que essa fase inicial do processo está se esgotando e enfrentando suas primeiras contradições estruturais, com impacto cíclico nas economias. As dificuldades de avanço da economia européia, atrasada no processo de transformação estrutural do capitalismo, talvez indiquem, por outro lado, a impossibilidade de resistência bem sucedida a essas mudanças. Os críticos mais ácidos do processo de globalização têm razão ao acentuar que ele envolve forças simultaneamente centrípetas e centrífugas. Concentra e integra capitais, comércio e finanças principalmente nas metrópoles capitalistas e entre elas. Mas, também é verdade, como foi no passado, que esse movimento contraditório abre espaço para a incorporação ao centro hegemônico de novas metrópoles. Cria, por assim dizer, novas dependências e novas autonomias. Um dos desafios políticos da social democracia é encontrar os caminhos que levam à acumulação de autonomias e à superação de dependências, durante esta nova fase de “expansão sistêmica”, em escala global, para usar a expressão de Arrighi e Silver.34 Também é razoável admitir, como esses críticos postulam, que, como em toda expansão capitalista, se trata de um processo contraditório e que traz embutido em sua própria dinâmica sementes de sucessivas crises. Mas não necessariamente que essa trajetória de ciclo e crise levará à ruptura econômica, abrindo espaço quase automaticamente para o “neo-socialismo” 35. Há evidência de que este estágio está marcado por crescentes unidade e diferenciação na economia global. Há e continuará havendo, em simultâneo, maior rivalidade entre as potências capitalistas avançadas e intermediárias, múltiplas coalizões setoriais e temáticas entre elas, algumas vezes antagônicas entre si, além da formação de blocos regionais e da emergência de guerras comerciais gerais, setoriais ou focadas em produtos.36 É possível que essas contradições levem a uma ruptura do quadro de hegemonia unilateral do EUA que parece, mesmo, insustentável no longo prazo.37 O resultado desse processo ainda não é claro ou discernível. Provavelmente ao invés de uma nova potência hegemônica o que esteja à frente seja um mundo multipolar ou pluripolar, configurando uma coalizão hegemônica de forças relativamente diferenciadas. Do ponto de vista da governança econômica global, uma coalizão multipolar criaria condições satisfatórias para o tipo de regulação proposto persuasivamente por Hilst e 34

Giovanni Arrighi e Beverly J. Silver na “Introdução” do volume coletivo Chaos and Governance in the Modern World System, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1999, págs. 1-36. “In our model, systemic expansions are embedded in a particular hegemonic structure they tend to undermine. They are the outcome of the interplay of the two different kinds of leadership that jointly define hegemonic situations. Systemic reorganization promotes expansion by endowing the system with a wider or deeper division of labor and specialization of functions. Emulation provides the separate states with the motivational drive needed to mobilize energies and resources in the expansion. There is always a tension between these two tendencies because a wider and deeper division of labor and specialization of functions involves cooperation among the system’s units, while emulation is based on and fosters their mutual competition.” (pág. 30). 35 Menos ainda, como defendem Burbach, Núñez e Kagarlitsky – op. cit. que o novo modelo, que surgirá para substituir o capitalismo, está contido in sêmen na economia “pós-moderna” da China! 36 Entre outros, Burbach, Núñez e Kagarlitsky, op. cit., pág. 55. 37 Arrighi, Silver e demais autores do volume coletivo já citado sustentam que se trata de uma crise hegemônica.

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Thompson, quando falam de agências regulatórias internacionais, políticas de alcance regional ou de um novo sistema financeiro internacional, que reduza a informalidade dos processos atualmente em curso.38 Encontrar uma forma apropriada de inserção autônoma é um dos desafios novos da social democracia. Esse desafio tem duas dimensões básicas. Uma associada à inserção do país. Outra, no âmbito da governança democrática global. A primeira delas tem a ver com o fato concreto de que a globalização cria sérios constrangimentos à liberdade de organização econômica nacional, tanto através da competição entre mercados interdependentes, quanto por meio da aplicação de regras do jogo supranacionais39. A tarefa da social democracia é desenvolver mecanismos de articulação global, que facilitem a inserção soberana no mercado global e uma visão estratégica que permita ao país usar em seu benefício os recursos da globalização. Minha convicção pessoal é de que essa estratégia deve ser fundamentalmente positiva e não reativa. Dou um exemplo. O Brasil sofre evidentemente restrições significativas a suas exportações, em razão de truques protecionistas aplicados pelos governos do EUA e da Europa. Essas restrições nos impedem de eliminar nossa fragilidade externa, expressa em um vultoso déficit em transações correntes, que nos força ao endividamento. A forma reativa de lidar com essa restrição é, por exemplo, levantando barreiras protecionistas retaliatórias, fechando a economia, para tentar minimizar suas fragilidades, que se tornam mais aparentes na exposição aberta ao mercado global. É uma estratégia que tem apoio político doméstico, sobretudo no velho patriciado industrial e nos setores nacionalistas, mas que, na minha opinião, está fadada ao fracasso. Seus efeitos colaterais negativos sobre a competitividade econômica atuarão como um constrangimento adicional a nossa inserção proveitosa no mercado global. A forma positiva seria construir coalizões transnacionais, incorporando nelas inclusive setores econômicos europeus e estadunidenses igualmente prejudicados por essas barreiras protecionistas, com o objetivo de eliminá-las. Portanto, a resposta estrategicamente correta seria mais abertura e mais globalização. Aqueles que imaginam ser este um caminho utópico devem se lembrar da experiência recente do ministro da Saúde, José Serra na reunião da OMC em Doha que, ao construir uma coalizão na qual estavam presentes inclusive organizações não governamentais relevantes e aproveitando a mudança de visão do EUA por causa do atentado de 11 de setembro, conseguiu retificar a decisão sobre patentes de fármacos estratégicos no combate à AIDS, criando um precedente jurisprudencial que pode permitir uma ampliação da revisão da política de patentes. O exemplo serve para ilustrar a possibilidade de uma ação política no cenário global, muito mais proveitosa, do que um encastelamento doméstico e isolacionista. Essa busca de coalizões globais, para atuar democraticamente nos fóruns globais constitui o 38

Paul Hilst e Grahame Thompson – Globalization in Question: The International Economy and the Possibilities of Governance, Cambridge, Polity Press, 1996, cap. 6. 39 J. R. Hollingsworth e R. Boyer – “Coordination of Economic Actors and Social Systems of Production”, em Hollingsworth e Boyer, cit. pág.5.

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caminho político possível para fazer frente ao fato de que há uma clara disjuntiva entre a autoridade formal do estado e o alcance espacial dos sistemas contemporâneos de produção, distribuição e troca que limitam a competência e efetividade da autoridade política nacional.40 A esse fato se acopla outro, preexistente, que é o diferencial de poder entre os estados-nação que, todavia, não desapareceram com a globalização. As assimetrias de poder persistem como ameaça à soberania e ao potencial de desenvolvimento de nações emergentes. Só a projeção regional e global maximizando seus recursos mais modestos de poder e persuasão, na composição oportunista de coalizões transnacionais e, em muitos casos unindo estados e ONG’s, parece capaz de abrir o caminho para a inserção soberana. O desafio principal é encontrar meios de explorar as contradições sistêmicas. Sobretudo aproveitando as oportunidades de cooperação que abram caminho para o avanço autônomo do país no concerto global e usando as tensões da liderança hegemônica, principalmente para potenciar as capacidades competitivas do país, aumentando seus graus de autonomia e sua capacidade de ação política independente. Se a hipótese de que aquelas crises marcam o final de estágio inicial desse processo se confirmar, dela decorrem duas conseqüências. A primeira é que, para liberar as novas forças determinantes da acumulação ampliada do capital, que se traduzem em crescimento a níveis superiores ao padrão puramente vegetativo – o qual não é suficiente para reduzir os níveis de desocupação, nem permite a reciclagem da mão de obra liberada pela mudança – os países que ainda resistem à mudança terão que promovê-la. Podem fazê-lo com um grau superior de governança e, eventualmente, evitando o aumento adicional dos custos sociais da adaptação ao novo estágio do capitalismo. A segunda é que os países que já ingressaram nessa nova lógica dinâmica, terão que encontrar novos mecanismos de governança econômica, de modo a regular a nova ordem capitalista, de um lado, sem inibir sua capacidade de crescimento, de outro, atuando sobre as falhas do mercado. A noção de que a globalização “dissolve” ou “supera” o estado-nação é um mito causado pelo que Hobsbawn chamou, muito apropriadamente, de “névoa global” (global fog) produzida pelas incertezas da transição de um estágio a outro da ordem capitalista mundial.41 Essa segunda necessidade tem um correspondente, também, no plano da governança global. É evidente que as instituições multilaterais que regulam a ordem econômica global não estão à altura do desafio representado por essa nova e mais avançada forma hegemônica assumida pelo capitalismo. E há aspectos da nova ordem que nunca foram submetidos a regulação ou coordenação transnacional no passado e que agora precisam, como um requisito funcional dessa própria ordem no seu conjunto, serem submetidos a regras de governança. É o caso, por exemplo, da expansão financeira globalizada. O FMI não tem na sua institucionalidade qualquer recurso técnico, operacional ou, principalmente, político, para atuar como banco central global ou agência de regulação financeira global.42 40

David Held – Democracy and the Global Order: From the Modern State to Cosmopolitan Governance, Stanford University Press, 1995. 41 Ver, sob este aspecto a interessante discussão de Arrighi e Silver, no texto já citado. 42 Ver, por exemplo, o tratamento desse tema em Hilst e Thompson, op. cit. e Robert Gilpin, The Challenge of Global Capitalism: The World Economy in the 21st Century, Princeton, Princeton University Press, 2000.

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A questão da governança global é um desafio geral sobre como projetar o “ideal democrático” no plano das instituições globais e no espaço de centros de poder e autoridades políticas interconectadas e interdependentes. Trata-se da construção de uma nova institucionalidade política global, democrática, capacitada a aumentar a confiança na relação entre nações e a responsabilização (accountability) dos governos por suas ações no plano global. Redesenhar democraticamente as instituições multilaterais. Criar redes de proteção social que cubram os danos sociais acarretados por eventos de alcance global. Mecanismos de decisão e critérios para a área ambiental. Critérios democráticos para o combate às redes clandestinas de ação criminosa, sem violar os princípios de governança democrática doméstica nos países que as abrigam involuntariamente, ou a soberania dessas nações. O que se espera é que a social democracia atue ativamente para formular e encontrar mecanismos operacionais e politicamente viáveis de implementação de uma nova e extensa agenda. Essa agenda requer um esforço interno significativo, para dar identidade e consistência novas à social democracia brasileira e também a sua “re-internacionalização” pela participação mais ativa nos fóruns social democráticos internacionais, para discutir essa nova agenda alternativa ao neoliberalismo e à globalização. Até agora, só o presidente Fernando Henrique Cardoso fez isto. O partido em si, tem sido muito tímido, seja na mobilização da inteligência acadêmica doméstica de orientação social democrática para contribuir na formulação dessa agenda, seja na busca de espaço de influência internacional para evitar que ela siga dominada pelos interesses da social democracia européia. 5.Por conclusão A social democracia brasileira enfrenta desafios que lhe são peculiares, porque decorrem das especificidades histórico-estruturais do caso brasileiro. Tratei das que considero mais relevantes. Deixei algumas de muita importância de fora. O fato, por exemplo, de hoje haver expressões do pensamento e da ação social democrática em mais de um partido. Consigo identificar evoluções em direção à social democracia em algumas lideranças significativas hoje no PT, no PPS e no PTB, além do PSDB, por força das circunstâncias específicas da sociedade política brasileira e da luta política que nela se trava. É um desafio significativo e estratégico, o de buscar a união de todas as forças desse campo, para pavimentar um caminho mais direto e mais seguro para a formação de maiorias social democráticas, processo de grande importância no presidencialismo de coalizão. Quanto menos heterogêneas forem as coalizões majoritárias, melhor para a governança e para a governabilidade. Não pretendo me estender sobre esta questão aqui, mas julguei que deveria pelo menos mencioná-la, por sua importância para os padrões de governança futura no país. Há, entretanto, desafios que são comuns ao campo social democrático em escala global. Do que tenho notícia no debate político e acadêmico sobre três temas que discuti aqui – combate à desigualdade, alternativa ao neoliberalismo e globalização – a perplexidade e a escassez de respostas amadurecidas são gerais. Isto dá à social democracia de países emergentes, como o Brasil, a oportunidade de participar de uma discussão que ainda está 22

em processo, permitindo-lhes ocupar espaços e introduzir na agenda global a perspectiva dos emergentes evitando que o pensamento “neo-social-democrático” seja tão etnocêntrico e tão expressivo dos interesses das nações centrais, como foi a “velha social” democracia. Para isto, os partidos social democráticos precisam fortalecer seus vínculos acadêmicos domésticos, de um lado, e buscar formas ativas e agressivas de projeção internacional, de outro. A social democracia brasileira tem muitas carências e uma das mais notáveis, hoje, é a de uma agenda internacional, que a introduza no espaço global de debate e ação política. A social democracia brasileira precisa adquirir uma visão internacionalista, compatível com os caminhos da globalização.

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