O que vemos,o que nos olha? Do analógico ao digital. Artigo na Revista Contemporâneo: Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade

May 26, 2017 | Autor: M. dos Santos Rocha | Categoria: Digital Humanities
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Artigo na Revista Contemporâneo: Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade Dra. Maria Carolina dos Santos Rocha O que vemos, o que nos olha? Do analógico ao digital: novas portas de percepção/novos mundos/ novos imaginários Vivemos num estado de turbulência epistemológica. As vibrações dos novos paradigmas que parecem agora ter a predominância nos ramos dos nossos conhecimentos teórico-práticos, fazem com que as suas configurações repercutam desigualmente nas várias regiões onde ainda existem traços remanescentes dos antigos paradigmas espistemológicos. Talvez por isso os sinais do futuro nos pareçam tão ambíguos tanto para a nossa percepção quanto para o nosso conhecimento. Gostaria de chamar a atenção neste espaço que, usando a metáfora da “inquietante estranheza”, de Freud, subsumimos sob a atmosfera do que seria aquilo que ele diagnosticou como uma ‘desorientação’ face à realidade, a reflexão de um ponto crítico levantado por Paul Virilio, urbanista e filósofo francês, na sua obra A Bomba Informática (1999/cap.7). Esse alerta diz respeito a uma mutação importante na contemporaneidade relativamente ao nosso funcionamento dos registros perceptivo e intelectivo do conhecimento, e na supremacia da função digital em detrimento da analógica. Efetivamente, quando desta maneira ímpar que nos é apresentada no século XXI, se acoplam de um lado a velocidade de ‘deslocamento’, ou seja, a velocidade da percepção propiciada pela decodificação feita pelos nossos sentidos, e, do outro, a velocidade da ‘transmissão’, ou seja aquela que nos apresenta interfaces/visões de mundo através da aparelhagem da tecnologia ótico-eletrônica, que desafios devemos esperar e que reflexões fazer a respeito desses novos jogos de mundo que “nos olham” e aos quais procuramos “olhar/compreender”? Trago um exemplo: em aulas na Universidade, ao procurar com que os alunos explicitem o conceito que eles possuem de analogia/analógico, observo que, quando não completamente atônitos frente a um questionamento que, em princípio, lhes parece estranho, a quase integralidade deles procede a uma definição do conceito pela oposição/diferença/negatividade que se efetiva mediante um modo de funcionamento técnico. Como isso se dá? Eles colocam a suposta definição do conceito de analógico em oposição à instrumentação contemporânea veiculada pelo funcionamento de um aparato ‘digital’. A definição do analógico aparece então, negativamente, como “aquilo que não funciona digitalmente”. A explicitação faz-se, em seguida, ao responder: “os telefones, por exemplo, não são mais analógicos, mas digitais…” . Na aparente simplicidade de tal escolha de resposta, constatamos com que facilidade parece cair no ostracismo, séculos de um funcionamento epistêmico e de uma pertinência existencial no modo de funcionamento do pensamento humano.Não que tudo esteja fadado a persistir, mas seu descaso merece, ao menos, algumas considerações para que nossas escolhas sejam, minimamente, responsáveis. Lembremos: a analogia é aquela função do pensamento/raciocínio que cria pontos de semelhança entre coisas diferentes; é a “identidade de relações entre os termos”, é a ‘proporção’ racional entre qualidades, entre quantidades (atributos, números, medidas…). Eis aí um princípio que foi dominante na esfera categorial da realidade sensível e supra-sensível; o elemento fundamental, por ex., do estudo comparado das formas vivas; a relação de quantidades matemáticas entre elas… Tudo isso parece esvair-se quando a tônica da definição recai na importância dada ao funcionamento/uso da aparelhagem/da instrumentação tecnológica: “o meu telefone não é analógico mas sim, digital”… Na etimologia grega “Aná”, de analogia, significa “no alto”/ “em direção ao alto” e nos dá a idéia de uma ultrapassagem, de uma superação que se efetiva no próprio ato de pensar a si próprio, ao outro e

a realidade com a qual nos confrontamos. Na Idade Média, por exemplo, a analogia foi mórmente pensada e trabalhada como uma categoria chave no processo de abstração que nos leva à transcendência. Já o sufixo ‘Logos’, o discurso, a palavra, a linguagem, a razão, vai indicar a prolixidade das implicações semânticas ancoradas à irrupção, na cultura grega, dessa nova maneira de organizar/pensar a multiplicidade entre o homem e o mundo concebido/percebido. As maneira de ver, de organizar o mundo mudam através dos séculos - e isso faz parte do próprio processo de descoberta, de invenção -. Mas, o que agora causa um impacto muito maior ao exame da nossa crítica, é justamente “a velocidade” com a qual essas transformações fizeram-se paralelas às do exercício de uma práxis técnica e, em conseqüência, na afetação de uma episteme e de uma imaginação das culturas que transcorreram a partir da Modernidade (1890). A propulsão própria ao engenho eletro-ótico aparece-nos agora como aquela que produz seu próprio horizonte de justificação, vale dizer, de legitimação. É nesse engenho e através da velocidade de propulsão que ocasiona seu impacto ótico na nossa visão, que se efetiva uma espécie de ‘resumo de mundo’ que, baseado num sonho/num imaginário de ubiqüidade, proporciona àquele que dele faz parte,paradoxalmente, comportamentos inerciais importantes. Expliquemo-nos: os deslocamentos agora, prescindindo cada vez mais do espaço físico real, leva-nos a pensar em uma nova partilha e faz-nos acionar uma nova ‘apropriação’ do espaço. Na verdade, a ausência crescente da mediação do espaço físico está prestes a causar novas formas de atrito e de violência no pensamento e na ação do homem, sem que pareça haver uma consciência muito clara do fenômeno. Ao esquecer a importância dessa mediação entre nosso sistema primeiro de referência espacial – o físico-, deixamos de lado aquele que formata nossa moral mais elementar de ocupação/de habitabilidade, e passamos para aquele da ‘ambiência’ temporal proporcionada pela tecnologia digitalizada. Talvez possamos dizer que saímos do ‘ambiente’ e entramos na ‘ambiência’ … Esse processo de ‘desmaterialização’ e ‘desqualificação’ daquilo que poderíamos chamar de “logísticas da percepção” que nos são oferecidas pela ótico-eletrônica, podem conduzir-nos a um estado de pauperização vis-à-vis da realidade física e, vai de si, a um empobrecimento do contexto imaginário, no habitar do próprio corpo e do mundo. O espaço físico não é uma espécie de “recipiente” qualquer, mas ele se prestou, através das teorias de Euclides, Galileu, Einstein, para uma invenção renovada da sua compreensão/interpretação através do tempo das descobertas científicas. Eis que, no despontar do século XXI, é como se tivéssemos tão simplesmente a preponderância superior de “um tempo real” – expressão legitimada pela instantaneidade oferecida na tela catódica/eletrônica -, no lugar de um espaço físico concreto e, ao que tudo parece indicar,tornado ‘o primo pobre’ das ofertas e das trocas… Façamos uma descrição simplificada do espaço para situá-lo no enfoque de um contraponto. Sabemos que: o espaço como dimensão é comprimento, largura, profundidade; o espaço como meio é a velocidade, ou seja, ele é uma sub ou super exposição de luz; o espaço como concretude (como um envelope vibratório- dos sons, por exemplo- ou envelope sensitivo – das percepções táteis, visuais, vitais)…Visão/Gosto/Tato/Audição/Olfato. … mas eis que agora o espaço nos aparece com a predominância acentuada de um mero ‘suporte’ técnico do seu meio (da sua velocidade) e não mais como o ‘envelope’, o circundante(o que circunda) da coisa contida. Sabemos bem que o espaço-tempo (o continuum) é aquele conceito resultante da teoria da relatividade onde se dá a fusão do conceito geométrico com 3 dimensões (a variável de comprimento, de largura e de profundidade) com o conceito de tempo. Compreendemos assim que o espaço quadrimensional de Minkowski-Einstein não é um espaço físico, mas que se trata de uma representação gráfica puramente figurativa das relações métricas e funcionais entre o espaço e o tempo físicos numa concepção unitária das leis da mecânica e da gravitação (A.Lamouche). É por isso que podemos dizer, talvez, que passamos a compreender em que medida a tecnologia da “tempo real” da ótico-eletrônica nos oferece, na verdade, uma espécie de horizonte de “substituição”. Ora, esse horizonte aparece agora como constituído por uma grande ótica de substituição que nos oferece um horizonte, por assim dizer, artificial. Lembremos que, sob esse aspecto, as conquistas siderais (o grande “passo para a Humanidade”, na lua...) foram, na verdade, aquelas a evidenciar a mudança na ordem da percepção e na utilização do

espaço, mas, na aurora do séc. XXI, através da exposição [da luz] eletro-magnética, encontramos um deslocamento epistêmico e imaginário para uma nova ‘fronteira’. Nessa fronteira, a informática aparece então como “uma energética” emergente tanto na formação (Bildung) quanto na informação do ser individual/social. Compreendemos porque se diz então que “a movência cultural e civilizatória” vai articular-se, no século XXI, a uma busca veicular que se centraliza através do desenvolvimento do engenho/ da máquina a um paradigma de habitabilidade sui generis. Posso pensar aqui, por exemplo, em uma maneira de encarar/avaliar uma cena artística da atualidade, fixando-me mórmente na arte do engenho performático/ do instrumento da ação como tentativa de habitar o espaço da obra pela própria “ação como veículo” com todas suas implicações: a performance; a instalação; a oficina. Podemos então entender a poluição “imaterial” dos meios de comunicação como possuindo um componente da ‘destruição do mundo’, ou, se quiserem, de um tipo de mundo, e isso na medida da destruição de seu tamanho//extensão – natureza //natura//constituição (tamanho-natural, dirá P.Viriliog). O tamanho-natural aparece como sendo aquele de uma medida natural/atual que passa a ser subavaliada, ou mesmo ignorada na sua densidade significativa e imaginária de formatação do próprio planeta Terra e, conseqüentemente, do homem-na-Terra. Sob essa perspectiva poderíamos talvez pensar que, ao perder essa ‘partilha’ com o espaço que era mantida pela “idealidade morfológica” da tamanho-natureza/natural, o homem torna-se um sem lugar, um ou-topos – eis o que para alguns autores seria o início para que pensássemos uma nova direção do humanismo… [Daí a uma outra vertente de ligação ao paradigma da ‘desorientação’ da inquietante estranheza, proposta por Freud]. Seria assim que o horizonte da técnica apresenta-se como uma espécie de nomadismo absoluto na medida em que a tecnologia passa a funcionar como um agente de desterritorialização desse suporte de habitabilidade que costumava assentar-se, físicamente, na extensão e, imaginária/simbolicamente, na idealidade morfológica da tamanho-natureza/natural da Terra. No entanto, paradoxalmente, a técnica que pré-figura o desejo ubiquitário de ação (uma ação que se irradia não propriamente do deslocamento/movimento físico do sujeito mas, eletrônico, do instrumento), vai configurar esse movimento como uma disposição ‘inercial’ no interior de um sistema cultural através da homogeneização crescente do ‘tempo real’ de uma comunicação informatizada e digital cuja cinemática propicia o espelhamento de um desejo humano de ubiqüidade tanto real quanto imaginária. Poderíamos nos adentrar nesse conceito de limite e falar do estremecimento de uma outra medida, vale dizer, de uma outra avaliação. Essa medida/avaliação seria a de unidade de vizinhança. O que nós verificamos é que essa unidade de vizinhança, transmutada pela ótica-eletrônica, passa a funcionar de uma nova maneira na interatividade propiciada pela informação, abrindo o imaginário do sujeito para a eclosão de uma categoria perigosa na provável fusão entre o voyeurismo e a denúncia ótica que ela – a unidade de vizinhança eletrônica - pode vir a propiciar…Assim é que a “teleproximidade”, por exemplo, cria um elo desafiador para a conjunção de tempo e de lugar nessa coabitação física que até agora foi a ‘unidade de vizinhança’. Se essa nova modalidade de ‘tele-visão’ nos propicia uma teleproximidade social que se preocupa em expor e invadir o espaço com um novo tipo de “iluminação”(concreta e imaginária), estamos em vias de criar uma espécie de “visão volante/ visão roubada”, onde desaparecem os ângulos mortos da vida cotidiana… numa trans-aparência puramente midiática do espaço real dos vivos (P.V., BI, p.62). Quando a própria mundialização de um mercado único (financeiro/midiático) passa a exigir a superexposição de toda atividade perguntamo-nos se, na verdade, não entramos numa espécie de mercado do olhar que vai fundo e mesmo, além, da preocpação preponderante do consumo de mercadorias… Depois da luz direta do século XX passamos para essa espécie de luz indireta do século XXI. Com efeito a iluminação eletro-ótica exige uma outra ótica nessa exigência de uma visão panóptica (vale dizer,controladora/totalitária) que procura estabelecer o “mercado do visível”… Paul Virilio vai falar-nos de uma ótica global que permite que todos se observem e se comparem incessantemente (B.I.,p.63). Há que se perguntar por esse mercado planetário onde aquele que é capaz de ver tudo passa a assemelhar-se àquele que pode tudo (podia fazer-se aqui uma alusão ao procedimento de Goebbels,

ministro de Hitler). Talvez nessa aproximação desse raciocínio compreendamos como a revolução da informação alimenta de maneira puramente cibernética a revolução da delação/denúncia generalizada (P.V.p.64). Terminemos com uma indagação: como e até que ponto o “tempo mundial” do condicionamento eletrônico se sobrepujará ao espaço físico? Talvez a velocidade - como uma categoria hermenêutica que indica, não fenômenos em si mas a relação entre os fenômenos - possa nos indicar um novo trajeto a fazer neste século XXI. ***

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