O rabo (re)clama

May 27, 2017 | Autor: Thereza Coelho | Categoria: Critical Thinking, Filosofía, Poesía, Ceticismo, Linguagem
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O rabo (re)clama Thereza Christina Bahia Coelho1

Desde quando entramos nesse movimento linguageiro circular centrífugo? Me dirás que a língua é dinâmica e acompanha a velocidade dos processos sociais e eu direi que, além disso, ou, independente disso, existe um motor que regula o acesso e o torna deliberadamente (in)acessível ad infinitum. Esse motor é humano. É restrito e restritivo. É recursivo, renitente, circular, expulsivo. A cada ciclo, dezenas, centenas, milhares de nocautes. Eis uma imagem:

Fonte: Google Imagens

Se abro mais o leque das associações, sou capaz de projetar na tela mnemônica que me acompanha imagens de um desenho animado em que o animal antropoformizado, de pé e com socos, lança no espaço inúmeros oponentes em movimentos ritmados: pá, pá, pá, pá... Noto, entretanto, uma incongruência entre as duas imagens evocadas. No primeiro movimento circular não há força de lançamento centro-periferia. Trata-se da cabeça querendo engolir o rabo, infinitamente, como um mantra. Essa foi a figuração inicial do pensamento que se tenta desenrolar nesse texto, de forma um tanto enigmática. Propositalmente enigmática, pois a beleza da arte é o suspense. Seguido de uma revelação. Contrariamente, na segunda imagem, é possível identificar mais visivelmente o vetor em seu processo violento de troca com o além-círculo.

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Núcleo de Saúde Coletiva (NUSC). Universidade estadual de Feira de Santana (UEFS). E-mail: [email protected]

A força centrípeta faz com que se mantenha o movimento circular. A força centrípeta nos tira da inércia. É um movimento que bloqueia outro movimento. Correias e correrias

A linguagem anda. Fato. Seus guardiões correm. Que coisa estranha! Falo das regras gramaticais e das regras e regras que vão sendo criadas a todo instante deixando milhões de rabos em polvorosa, numa corrida sem fim. As regras, que deveriam atender a duas funções, qualidade e estabilidade (uniformidade), perdem ambas, pois a finalidade se transmuta e se torce virando a mesma e única finalidade geral, total e irrestrita: fazer dinheiro.

Normas e padrões ouro

Uma outra ilustração pode ser obtida por meio do caso. O que é a Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT. Um órgão do governo? Não. Uma empresa privada com fins lucrativos? Sim. Tem utilidade social? Questionável. Precisamos dela para viver? Que acham? Quem é a cabeça da cabeça? O nome não interessa, mas tem a seguinte trajetória no mundo dos troços: Engenheiro Mecânico, graduado pela Universidade de Taubaté (SP), com MBA em Estratégia Industrial e Gestão de Negócio pela Universidade Federal Fluminense... blá, blá, blá.. Iniciou sua vida profissional em 1978, na Companhia Siderúrgica Nacional (CSN)... blá, blá, blá... e participou diretamente no processo de privatização da Companhia Vale do Rio Doce. Pronto. Peguei a cabeça pelo rabo. Se queremos compreender as operações mentais e a geração e fixação do conhecimento necessitamos observar a linguagem. Se queremos entender a linguagem, devemos nos ater à comunicação cotidiana e ordinária dos homens e mulheres que usam esta ferramenta, a linguagem, para construir e desconstruir mundos (Wittgenstein, 2005). A impossibilidade de se conhecer, entretanto, objetos mutantes como a linguagem, tem sido colocada desde Sexto Empírico (2015), que dividiu a gramática em duas: a que trata do ler e escrever e tem utilidade; e a que tenta enclausurar a linguagem em fórmulas universais e pretensamente científicas. Como Sexto Empírico, Saussure (Saussure, 2006; Eco, 2003) também lançou mão da divisão da linguagem entre língua

e fala para tentar resolver o problema da relação estrutura-conteúdo, sem grande sucesso. Porém, o objetivo meio escorregadio desse texto não é discutir linguística, semiótica, nem nenhum objeto das Letras, em si, mas o uso que todos nós fazemos das palavras para comunicar coisas necessárias, ou mesmo desnecessárias, porém atraentes, angustiantes, fortes e banais, e os processos que domesticam, controlam, dominam esse uso. As referências a sábios e filósofos será sempre pontual e despretensiosa. Trata-se de uma abordagem absolutamente singular que oscila entre a razão e a poesia, urdindo sua teia de dis-conjecturas (meio a la Xenófanes).

Flutuação intrauterina

Eu sou uma astronauta presa à nave apenas por um cordão umbilical. No silêncio pleno do vácuo negro pontilhado de tênues piscares, realizo minúsculas tarefas, minuciosas. Aperto parafusos, botões, em uma situação de constrangimento físico. Ombros doem, espátulas, punhos, dezenas de nódulos reclamam a falta de ergonomia. Dor! Puxo vírgulas, apago espaços, troco pontos de lugar. Negrito italianamente, reduzo os códigos a outros códigos, translitero, transito de site em site, calculo a veracidade dos manuais, a utilidade e a confiabilidade. Permaneço horas em velocidade estável em relação à maquina de computar. Viajamos juntos, eu e meu piano de sons clicados... tic...tic...tic...plan... plan... plan... Tic-tic, plan- pla-plan. Psiu! Respiro fundo e prendo a respiração: serão os passos da cadela ou de algum invasor, lá fora, no escuro do jardim sideral? A cadela, sempre ela, vigia assustante. Os invasores estão atrás da folha à frente, invisíveis. Será que acompanham o movimento cadente das letrinhas? Tenho essa paranoia desde que ganhei meu primeiro computador, em 1993. Era um notebook. Quando ele ficava mais lento sempre achava que havia um hacker espreitando minha digitação e escrevia na tela: sai desgraçado! Quem te chamou aqui? Às vezes desligava o aparelho e religava... Eu sou uma internauta, nacionauta, peripatética e cética. Naturalmente, desconfiada. Mas, não fico navegando a ermo. Meus movimentos são circulares, ao redor da terra brasilis. Acompanho seus deslizamentos, afogamentos, queimadas e furacões. De vez em quando embarco no Apolo 11, só para me situar em relação ao universo e o mundo. Checo se os astros e asteroides estão nas suas devidas órbitas, se as marés estão subindo e descendo, e quantas vezes a terra se mexeu além do que devia, e em quantos megatons. Então, volto para as homes que compõem meu império. Um conjunto de blogs e páginas dentro de redes e mais redes de relacionamentos e emails. De lá, volto pra base, visito cada caixinha de palavras. Caixinhas dentro de caixinhas. Palavras dentro de palavras. E o sol dá mais uma volta. A deusa sopra seu eterno segredo (Popper, 2014, p.169):

“Nunca será isto estabelecido: que as coisas que não são, existem”. Se a via da verdade (Alétheia) é redonda, compacta e escura, a via da opinião (Doxa) é jogo de luzes e palavras, pura humana convenção. Selene não nasceu hoje pra mim (constatação triste). Daqui da nave ela inparece estática, eidética. Nem sol, nem escuridão, só a doxografia da luz fria a ditar o ritmo da respiração: tic, tac, tic, tac. Pink Floyd é a maior banda do planeta e ponto final. Triiiiimmmmmm! O celular tocou: hora de dormir. Recolhe o rabo. Nocaute, nocaute... no-caution. Liga a Centrífuga: tritura. Epoké!

Referências: 1. Eco, H. Tratado geral de Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003. 2. Popper, K. R. O mundo de Parmênides: ensaios sobre o Iluminismo présocrático. São Paulo: Editora UNESP 2014. 3. Saussure, F. Curso de Linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2006. 4. Sexto Empírico. Contra os gramáticos. São Paulo: Editora UNESP, 2015. 5. Wittgenstein, L. Investigações Filosóficas. Petrópolis: Vozes, 2005.

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