\"O Reabrir Dum Diálogo Estético Interrompido: As Santas Mães De Aljubarrota\" in GOMES, Saul António (coord) Cadernos de Estudos Leirienses, nº 9, setembro de 2016, ISSN 2183-4350, pp. 283 a 293

May 27, 2017 | Autor: João Grave | Categoria: Sculpture, Portuguese Art, Saint Anne, Coimbra Sculpture Workshop, sixteenth century art
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Cadernos de Estudos Leirienses – 9 * Setembro 2016

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LEIRIA SETEMBRO DE 2016

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O reabrir dum diálogo estético interrompido: as Santas Mães de Aljubarrota João Grave*

Nota Explicativa O presente artigo versa sobre a escultura das Santas Mães de Aljubarrota, peça incluída na exposição permanente do Núcleo Museológico de Arte Sacra da Paróquia de Aljubarrota (NMAS), aberto ao público em 2014. Com exceção duma nota de rodapé, nada mais se escreveu sobre esta peça. O catálogo duma exposição realizada em 1995, sobre a Arte Sacra nos Coutos de Alcobaça, também não faz referência à imagem ou sequer a qualquer peça do espólio do Núcleo Museológico. Tal leva-nos a crer que o conjunto das peças que constituem o espólio artístico do referido núcleo é desconhecido por parte da comunidade científica. Desta forma, assume-se como principal prioridade do presente estudo trazer esta imagem para debate, reabrir o diálogo estético que esteve até hoje interrompido. Apesar do culto à mãe da Virgem advir dos primeiros tempos do Cristianismo, sendo logo no século VI objeto de culto nas cidades de Jerusalém e Constantinopla1, Santa Ana não é referida nos textos bíblicos. A sua grande fonte hagiográfica é antes o Proto-Evangelho de Tiago, ou livro da Natividade da Virgem.

* Aluno do Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1

NIXON, Virginia, Mary’s Mother: Saint Anne in Late Medieval Europe, The Pennsylvania State University Press, 2004, p. 11-12.

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Contudo, conforme Nixon sublinha2, serão as histórias que circulam por toda a Europa medieval que irão disseminar a história do casal estéril a quem o anjo anunciou que iam ser pais da Virgem Maria, sendo que de entre estas fontes destaca-se a conhecida Legenda Aurea de Jacobus Voragine. A génese do culto em Aljubarrota não nos parece advir diretamente duma fonte escrita, mas antes do próprio orago da matriz: Santa Maria. Não se quer com isto propor que o culto a Santa Ana remonte às fundações do templo medieval, mas antes que o culto à mãe da Virgem tenha surgido da própria invocação da igreja em data que não nos é possível determinar. Todavia, não esquecemos que tanto o Mosteiro de Alcobaça como o Santuário de Nossa Senhora do Sítio de Nazaré podem ter tido um papel fulcral no desenvolvimento do culto na região dos Coutos de Alcobaça. Para o efeito basta termos em conta que, se no primeiro encontramos uma cópia manuscrita da obra de Voragine3; no segundo , o tema da Natividade da Virgem terá sido foque de especial atenção, não necessariamente através de programas artísticos, bastava sê-lo tratado oralmente, e, nesse sentido, Santa Ana e São Joaquim seriam uma presença obrigatória. Com base no Couseiro Ou Memórias Do Bispado De Leiria (CMBL), sugerimos que no século XVII o culto a Santa Ana já estaria implantado em Aljubarrota. De facto, esta fonte faz referência a um painel onde estava representada a Apresentação da Virgem no Templo e, por conseguinte, Santa Ana4. Para além disso, parece ser aqui que encontramos a primeira referência à imagem das San2

Ibidem. VORAGINE, Jacobo de, Legenda Áurea, Livraria Civilização, Porto, 2004, volume I, p. 26, intitulada de Flores Seu Legendae Sanctorum, esta cópia da Legenda Aurea, a julgar pela letra, parece ter sido escrita na passagem do século XIII para o XIV, em data próxima, portanto, da morte do autor. Tal indica-nos a rapidez com que esta obra chegou ao extremo ocidental europeu (Ibidem). 4 A referência a este painel insere-se na descrição do retábulo de Nossa Senhora do Ó. De acordo com o autor, este desenvolvia-se da seguinte forma: “em nicho de pau, dourado, (…) e, nele [no retábulo], em pintura, a Assunção da Senhora, S. Joaquim, Santa Ana e o Menino no Templo, a Apresentação, Visitação, Santa Catarina, Santa Bárbara e Santa Apolónia”. Por questões de carater lógico, parece-nos incongruente que Santa Ana seja representada com o Menino no Templo, antes quer-nos parecer que, na realidade, o painel referido pelo Couseiro Ou Memórias Do Bispado De Leiria (CMBL) representaria a Apresentação da Virgem no Templo e não o tema descrito pelo autor, fruto certamente duma representação pouca esclarecedora no que toca ao sexo da criança. Também nos quer parecer que o painel, dito da Apresentação, fosse na realidade a representação da Anunciação do Anjo. A nossa hipótese prende-se com o próprio carater didático de obras deste género, repetir o tema da Apresentação no Templo (independentemente de se tratar da de Cristo ou 3

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tas Mães: “fora do altar [da Capela do Fundador]5, em um nicho na parede, Santa Ana, Nossa Senhora e o Menino, de vulto.” 6 Presentemente, encontram-se duas imagens de Santa Ana a ensinar a Virgem a ler na igreja de Nossa Senhora dos Prazeres de Aljubarrota, ambas do século XVIII. A crer no CMBL, parece que a escultura das Santas Mães de Aljubarrota terá sido peça encomendada para figurar na igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, contudo é-nos impossível afirmar quem terá sido o seu encomendador, dada a variedade de possibilidades e a impossível confirmação de qualquer uma delas. Poderá ter sido encomenda da própria paróquia, ou dos administradores da Capela do Fundador, ou até mesmo oferta de devotos… A própria localização referida pelo CMBL é ambígua. Na verdade, notamos que não existe espaço na Capela do Fundador para a realização dum nicho escavado. Isto porque a parede este encontrava-se ocupada pelo altar – a imagem encontra-se “fora do altar” –, a sul pelos arcossólios e a oeste é ocupada por uma fresta e por um porta-óleos. Não excluímos, contudo, a hipótese de que o nicho ficasse na zona da parede oeste em que, mais tarde, seria aberto o acesso ao púlpito, a crer na descrição do autor, ainda por construir. Por outro lado, não podemos deixar de estranhar a omissão do nicho maneirista de São Gabriel7, e da imagem do mesmo, que se encontra logo de da Virgem) iria quebrar o diálogo com o painel subsequente, o da Visitação, pois ou se narrava um acontecimento muito posterior (no caso de ser a Apresentação de Jesus no Templo), ou um muito anterior (no caso de ser a Apresentação da Virgem no Templo). Podemos ainda pensar que este diálogo seria quebrado pelo painel da Assunção que estaria entre os da Apresentação da Virgem no Templo e o de São Joaquim. Porém, bastava que o painel central tivesse dimensões maiores para assegurar a diferença entre os dois relatos. Por outro lado, a combinação dos temas da Apresentação da Virgem no Templo e da sua Assunção parece-nos lógica, na medida em que representaria o início e o fim da vida da Virgem. 5 A Capela do Fundador trata-se duma capela funerária instituída no século XIV por Martim Palença para nela repousar junto com sua esposa. A capela é coberta por uma abóbada de nervuras assente em quatro colunas de capitel vegetalista. Os túmulos dos seus donatários encontram-se sob dois arcossólios na parede sul, a do fundo. A capela era originalmente iluminada por duas frestas, uma na parede oeste, outra na parede este, esta última atualmente entaipada, do lado de dentro, por um retábulo barroco. 6 ANÓNIMO, Couseiro Ou Memórias Do Bispado De Leiria: Transcrição Da Segunda Edição De 1898, Textiverso, Leiria, 2001, p. 63. 7 A imagem de São Gabriel trata-se duma escultura de pedra em pose rígida e hierática. Notamos um prenúncio de movimento no eixo diagonal que orienta a inclinação da figura, percetível da lateral da imagem. Esta escultura poderá tratar-se de parte dum conjunto da Anunciação, como o existente na

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Fotografia 1 Desconhecido, Santas Mães, século XVI, 53x33x23 cm, pedra policromada, NMAS. (INVº NASA: 001). (Foto do autor)

Fotografia 2 – Capela do Fotografia 3 – Parte do arco Fundador vista desde a nave da de acesso à Capela do Funigreja de Nossa Senhora dos dador e nicho onde está a Prazeres de Aljubarrota imagem de São Grabriel, a (Foto do Autor) crer a original localização das Santas Mães (Foto do autor)

seguida ao arco de acesso à Capela do Fundador. Numa obra tão minuciosa e cuidada na descrição, este aspeto parece-nos de resto estranho, pelo que nos questionamos se este nicho não seria, na realidade, aquele em que se localizaria a escultura das Santas Mães, o que se nos assemelha como a hipótese mais provável. Não sabemos se, com a colocação de uma das imagens setecentistas de Santa Ana na igreja, as Santas Mães de Aljubarrota terão sido retiradas do culto, porém parece o mais certo. Após um longo período escuro, durante o qual a imagem esteve recolhida, possivelmente no acervo dos bens paroquiais, esta surge numa exposição realizada no âmbito das comemorações dos seiscentos anos da Batalha de Aljubarrota, em 1985, no lugar onde é atualmente o NMAS8. igreja de Santa Maria da Alcáçova em Montemor O Velho, sendo que, a julgar pela sua posição atual, estabeleceria um diálogo com a escultura da Virgem do Ó semelhante ao estabelecido pelas duas esculturas da igreja anteriormente referida. Apesar da bibliografia consultada referir a imagem como uma obra do século XVI, num estudo a publicar, da autoria de Carla Varela Fernandes, a imagem é associada à produção de Mestre Pêro. 8 Esta exposição trata-se, na verdade, da primeira tentativa para a fundação dum museu. Ao que nos foi indicado, esta exposição não contou com plano museológico nem com a participação de técnicos de conservação e restauro, somente com a classificação das peças por parte de docentes da Universidade de Coimbra. Este primeiro projeto ter-se-á mantido durante cerca de seis ou sete anos, findos

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Fotografia 4 - Desconhecido, Fotografia 5 - Desconhecido, Santas Mães, século XVI, Santas Mães, século XVI, 53x33x23 cm, pedra policro53x33x23 cm, pedra mada, NMAS. (INVº NASA: policromada, NMAS. (INVº 001). (Foto do autor) (pormenor NASA: 001). (Foto do autor) do rosto de Santa Ana) (pormenor do rosto da Virgem)

Fotografia 6 - Desconhecido, Santas Mães, século XVI, 53x33x23 cm, pedra policromada, NMAS. (INVº NASA: 001). (Foto do autor) (pormenor do Menino)

Com o seu encerrar, e perante o valor da peça, é de crer que esta tenha feito parte do conjunto que foi guardado na Casa Pastoral até ter sido submetida aos trabalhos de conservação e restauro que resultaram no seu aspeto atual. Este trabalho insere-se numa campanha que teve por fim o devido restauro e conservação das peças do espólio da paróquia de Aljubarrota, a fim de que estas pudessem figurar na exposição permanente do referido NMAS, local onde estão atualmente as Santas Mães, conforme já referido. A escultura quinhentista das Santas Mães de Aljubarrota filia-se nos valores estéticos vinculados pela escultura coimbrã, encontrando-se nela similaridades plásticas com o trabalho de Diogo Pires O-Velho. De facto, se compararmos a escultura do NMAS com a Virgem do Leite (ou Nossa Senhora da Conceição) da igreja de Leça da Palmeira, obra do escultor acima referido, notamos claras afinidades, por exemplo, no tratamento dos panejamentos, em especial o acumular de pregas aos pés da imagem. Com esta escultura, as Santas Mães partilham ainda os mesmos postura e olhar hieráticos, o mesmo rosto inexpressivo. Tal como acontece na imagem de Leça da Palmeira, também o nosso caso de estudo tem a sua os quais é encerrado por questões de ordem logística que se prendiam com a construção do Centro e Casa Pastoral. Salvo as peças que foram guardadas na Casa Paroquial, as restantes foram submetidas a condições inapropriadas. Agradecemos ao Pe. Ramiro Portela a cedência desta informação.

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Fotografia 7 – Diogo Pires O-Velho, Virgem com o Menino, ou Virgem do Leite, ou Nossa Senhora da Conceição, c. 1478, Igreja Matriz de Leça da Palmeira (Foto: c@stelo)

Fotografia 8 – Desconhecido, Santas Mães, século XVI, 53x33x23 cm, pedra policromada, NMAS. (INVº NASA: 001). (pormenor dos panejamentos e do pé da Virgem) (Foto do autor)

Fotografia 9 – Diogo Pires O-Velho (atrib.), Santas Mães, finais do século XV, Igreja de Santa Maria do Castelo de Pinhel (Foto de José Manuel Oliveira in Paulo Pereira, 1995, vol. 2)

elegância “de certo modo escondida pela massa volumosa de panejamentos”, a qual “confere alguma expressividade à imagem (…) pouco expressiva e sem vida própria”9. Contudo, se compararmos as Santas Mães de Aljubarrota com as de Pinhel e Oliveira do Hospital, atribuídas a Diogo Pires O-Velho, notamos uma clara discrepância. Enquanto que nas imagens atribuídas ao autor a diferença entre as três gerações – avó, mãe e Filho – é feita através do tamanho das figuras, de rosto idealizado, no caso da escultura de Aljubarrota esta também é feita através do tratamento naturalista do rosto das figuras e não tanto através dos diferentes tamanhos destas. De facto, se, nas Santas Mães pirenses, Santa Ana é representada com um rosto jovem e idealizado, sendo o único indicador da sua idade avançada o toucado que usa, nas de Aljubarrota a idade da figura é, antes de mais, dada pelas rugas que se rasgam no sulco nasolabial, mais ténues na testa, e 9

FERNANDES, Carla Varela, Imaginária Coimbrã dos Anos do Gótico, Universidade de Lisboa, Lisboa, 1997, 2 Vols. (tese de mestrado), p. 136.

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Fotografia 10 - Diogo Pires O-Velho Fotografia 11 - Oficina (atrib.), Santas Mães, séc. XV ou Portuguesa, Santas Mães, XVI , Capela de Santa Ana de século XIV-XV, madeira Oliveira do Hospital. policromada, MNAA (1394 (Foto: Paróquia de Oliveira Esc) (Foto de José do Hospital) Pessoa/DGPC)

Fotografia 12 - Oficina de Coimbra, Santas Mães, século XV, calcário policromado, MNAA (1045 Esc) (Foto de José Pessoa/DGPC)

pelos seus olhos cavados (Fotografia 4). Há, portanto, claras preocupações com uma representação naturalista. O Menino, deitado sobre o colo da avó, é muito desproporcional. É representado com ombros muito largos e com braços e mãos rudes. Nota-se, contudo, uma preocupação em esculpir mãos de criança. Destacamos ainda o tratamento do cabelo do Menino, encaracolado nas pontas como o da Virgem de Leça da Palmeira. Por seu turno, o tratamento das mãos da Virgem é igualmente grosseiro. O véu que usa sobre a cabeça indica ser casada e, um olhar atento, denota uma reentrância anelar que envolve a cabeça da imagem, sugerindo que esta teve coroa amovível (Fotografia 5). Quanto ao tema, este era de resto familiar nas oficinas coimbrãs10 e muito comum na escultura portuguesa da segunda metade do século XV11. 10

Carla Varela Fernandes aponta que 14% da produção de imagens da Virgem no século XV versava sobre esta temática. Vide FERNANDES, Carla Varela, op. cit., p. 157, Gráfico II. 11 SANTOS, Reinaldo, A escultura em Portugal, Academia Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1948, volume 1, p. 56.

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Fotografia 13 - Desconhecido, Fotografia 14 – Lucas Cranach Fotografia 15 - Dries Holthuys, Santas Mães, século XV-XVI, O Velho, Virgem e o Menino Santas Mães, anterior a 1500, calcário policromado, Diocese com Santa Ana, c. 1520, madeira de carvalho, de Leiria- Fátima (Foto: Alte Pinakothek, Munique Igreja de St. Hermes, Departamento do Património (Foto: Wikimedia Warbeyen Cultural - Diocese - Domínio Público) (Foto: Rp-Online) de Leiria-Fátima)

Do conjunto que tivemos a possibilidade de observar12, notamos a presença quase constante do livro ou do pergaminho, atributos de Santa Ana. As Santas Mães de Oliveira do Hospital são exemplo deste caso. Não obstante, por vezes, este é omitido, como acontece com as Santas Mães de Aljubarrota, ou as de Pinhel. Os tratamentos das figuras variam, deixando sempre nítida a representação de três gerações: avó, mãe e filho. Tal distinção podia ser feita através da sobreposição de figuras, como já referimos, cada uma sobre o colo da outra (Fotografias 11, 12 e 13); ou, como acontece na escultura do NMAS, através do tratamento naturalista do rosto. Quanto ao tratamento da temática, parece-nos ainda de grande interesse destacar o diálogo estabelecido entre as três gerações. Nos exemplares mais antigos, ou nos menos eruditos, notamos que ou o diálogo entre as figuras se assiste só entre a Virgem e o Menino (Fotografia 11), sendo Santa 12

Agradecemos neste sentido o precioso auxílio da Dr.ª Maria João Vilhena de Carvalho, curadora da coleção de escultura do Museu Nacional de Arte Antiga. Aproveitamos o momento para deixar ainda o nosso agradecimento aos preciosos auxílios da Dr.ª Carla Varela Fernandes, Dr. Rui Rasquilho e Prof. Dr. Vitor Serrão.

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Ana quem interceta o observador, na medida em que parece ser a única figura que se lhe mostra disponível. É curioso, neste sentido, o caso de duas esculturas existentes no Museu Nacional de Arte Antiga, muito semelhantes entre si, em que é a Virgem que, sentada no chão com o Menino ao seu lado, toma o atributo de Santa Ana, quase como mera espetadora da cena. Porém, são vários os exemplos em que este diálogo entre gerações é muito ténue, por vezes quase impercetível (Fotografia 12 e 13). Gravura 1 - Hans Springinklee A figura das Santas Mães de Aljubarrota (c.149/1495 – após 1527), Virgem distancia-se destas representações na medi- com o Menino e Santa Ana0, 1518, xilogravura, 24,4x18,1cm, da em há, ainda que rude, um maior contacto Staatliche Graphische Sammlung, entre as gerações. Porém, o seu aspeto mais Munique (Foto: Hellenica World) curioso é o gesto da Virgem, que segura as mãos do Menino, sem paralelo no universo das imagens analisadas. Trata-se, apesar do tratamento um tanto rudimentar do gesto, duma imagem, diríamos, de ternura13. Na busca pela origem deste diálogo estabelecido entre a Virgem e o Menino, chegámos ao norte da europa e à Anna Selbdritt. É, pois, na arte alemã e flamenga que encontramos um tratamento da temática mais próximo ao das Santas Mães de Aljubarrota (Gravura 1 e Fotografias 1, 11 e 12). Na verdade, o diálogo estabelecido entre a Virgem e o Menino da peça de Aljubarrota encaixa-se no modelo norte europeu, é uma reprodução ingénua do gesto de carinho que se estabelece entre as duas figuras na Europa do norte. Este aspeto, somado ao já referido seguimento dos valores plásticos de Diogo Pires O-Velho, leva-nos a crer que as Santas Mães sejam uma obra de princípios do século XVI, quando em Coimbra se conhece “um confronto entre duas correntes” preconizadas por Diogo Pires O-Velho e por Olivier de Gand14. Só atendendo a este contexto é que podemos explicar a síntese que 13

“termo usado pela historiografia francesa, (…) conta as imagens referentes à iconografia mariana em relação com gestos de afetividade” in FERNANDES, Carla Varela, op. cit., p. 186. 14 DUARTE, SOUSA e CHICHORRO, Berta, Odete e Frederica Ressano Garcia, A Escultura De Coimbra: Do Gótico Ao Maneirismo, Departamento da Cultura da Câmara Municipal de Coimbra, Coimbra, 2003, p. 83.

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esta escultura em si encerra: por um lado, segue a estética de Diogo Pires OVelho, por outro, adapta-se ao naturalismo da escultura flamenga, trazido para Coimbra por Olivier de Gand e seus auxiliares, em especial, Jean de Ypres15, sendo de crer que terá também sido por esta via que o autor das Santas Mães entrou em contacto com a representação flamenga do tema. Desta forma, quer-nos parecer que esta imagem do NMSA se trata duma peça muito peculiar, atendendo precisamente a esta síntese que faz de duas correntes estéticas que chocavam em Coimbra. Apesar do tratamento um tanto grosseiro da obra, esta não deixa de expressar humanismo na relação que estabelece entre as três gerações, nas quais ficam expressas claras preocupações de caráter naturalista, conforme já explanamos. O aspeto anteriormente referido, leva-nos a questionar sobre o verdadeiro impacto das encomendas quinhentistas à Flandres nos artistas portugueses, que, escondidos no anonimato, são obrigados a lidar com os valores plásticos que herdaram dos grandes mestres escultores da sua época e com as novidades trazidas através dessas mesmas encomendas à Flandres. Parece-nos, portanto, necessário rever esta questão, tendo em conta a influência destes mestres norte-europeus nos escultores que trataram temas flamengos em cinzel português. Bibliografia – ANÓNIMO, Couseiro Ou Memórias Do Bispado De Leiria, Transcrição Da Segunda Edição De 1898, Textiverso, Leiria, 2011. – CARVALHO (coordenação), Maria João Vilhena de, O Sentido das Imagens: Escultura e Arte em Portugal [1300-1500], Instituto Português dos Museus, Lisboa, 2000. – DUARTE, SOUSA e CHICHORRO, Berta, Odete e Frederica Ressano Garcia, A Escultura De Coimbra, Do Gótico Ao Maneirismo, Departamento da Cultura da Câmara Municipal de Coimbra, Coimbra, 2003. – FERNANDES Carla Varela, Imaginária Coimbrã dos Anos do Gótico, Universidade de Lisboa, Lisboa, 1997, 2 Vols. (tese de mestrado) – GOUVEIA, António Camões (coordenação), O Brilho Do Norte: Esculturas E Escultores Do Norte Da Europa Em Portugal, Época Manuelina, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1997. – NIXON, Virginia, Mary’s Mother: Saint Anne in Late Medieval Europe, Pensilvânia, Pennsylvania State University Press, 2004. – PEREIRA, Paulo (direção), História da Arte Portuguesa, Círculo de Leitores, Lisboa, 1995, vol. 2. 15

Ibidem.

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– SERRÃO, Vitor, MOURA, Carlos, MOREIRA, Rafael (comissão científica), Arte Sacra Nos Antigos Coutos De Alcobaça, Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico, Alcobaça, 1995. – RÉAU, Louis, Iconografía Del Arte Cristiano, Serbal, Barcelona, 1996, Tomo II, vol. 3. – SANTOS, Reinaldo, A escultura em Portugal, Academia Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1948, vol. 1. – SANTOS e RODRIGUES, Ana Maria Olivença Trindade dos, e José Casimiro, Aljubarrota Villa: VI Centenário Da Batalha De Aljubarrota, Edição Paróquia de Aljubarrota, Lisboa, 1985. – VORAGINE, Jacobo de, Legenda Áurea, Livraria Civilização, Porto, 2004, volume I.

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