O Real Jardim Botânico da Ajuda entre o Barroco e o Iluminismo

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O Real Jardim Botânico da Ajuda entre o Barroco e o Iluminismo

Isabel Mayer Godinho Mendonça Escola Superior de Artes Decorativas da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva

O Real Jardim Botânico fez parte das reais quintas situadas na encosta da Ajuda virada ao Tejo, num enquadramento paisagístico único, logo abaixo do “paço velho” e da confinante “real barraca”, construída a seguir ao terramoto de 1755 nos terrenos onde hoje se ergue o Palácio Nacional da Ajuda. Implantado em dois amplos terraços com cerca de 3,5 hectares, fazia parte de um complexo museológico e científico, no qual se incluíam um Museu de História Natural, um Laboratório Químico, uma Biblioteca e uma Casa do Risco. Construído inicialmente a pensar na instrução e recreio dos infantes D. José e D. João, filhos de D. Maria I, transformar-se-ia, em breve, num centro experimental ligado à estratégia ultramarina da Corte. Mas o Jardim Botânico não era um mero repositório de espécies vegetais mais ou menos exóticas, tendo obedecido a um programa construtivo previamente delineado. Do projecto inicial existem ainda os vários lagos guarnecidos de esculturas, as balaustradas que delimitam os terraços e enquadram as escadarias, e mesmo uma estátua figurando provavelmente o infante D. José. A exploração de um fundo documental, em grande parte inédito, permitiu-nos acompanhar em pormenor a evolução da obra do Real Jardim Botânico, reconhecer

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os artistas e os artífices que nela intervieram e identificar praticamente todos os materiais utilizados.

Nasce o Jardim Botânico O Real Jardim Botânico da Ajuda está situado a Sul do palácio comprado por D. João V ao conde de Óbidos em 1726, a meio da encosta da Ajuda, com o Tejo e o mar como cenário. A aquisição deste velho paço seiscentista, a par dos palácios da Calheta e de Belém e terrenos confinantes, implantados na mesma encosta (conhecidos a partir de então pela designação genérica de Reais Quintas de Cima, do Meio e de Baixo, respectivamente) terá visado a construção de um novo palácio real e da igreja patriarcal anexa, propósito postergado pela edificação do complexo monumental de Mafra.

Vista aérea do Real Jardim Botânico da Ajuda.

O projecto foi retomado, em circunstâncias muito diversas, após o terramoto e a consequente ruína do Paço da Ribeira, dando-se então início a um edifício provisório em madeira e lona, que se foi consolidando através de constantes obras de enriquecimento dos seus interiores.

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A “Real Barraca” – como ficou conhecido para a posteridade o paço em madeira, gizado pelo cenógrafo e arquitecto bolonhês João Carlos Bibiena, membro da famosa dinastia de artistas italianos, chamado expressamente por D. José em 1752 para a construção dos teatros reais – desapareceu em 1794, consumida pelo fogo. No seu lugar ergueu-se o actual Palácio da Ajuda, que continua por terminar, passados mais de duzentos anos sobre o início da controversa obra, com riscos de Manuel Caetano de Sousa, de José da Costa e Silva e de Francesco Fabri 1.

A encosta da Ajuda, vendo-se ao alto a Real Barraca, num desenho a tinta da China de autor desconhecido da segunda metade do século XVIII, anterior a 1794 (Museu da Cidade).

A construção do Real Jardim Botânico 2 teve início em 1768 no espaço ocupado até então pela horta e pomar que envolviam o paço da Quinta de Cima, junto ao qual funcionava, desde o reinado de D. João V, um pequeno teatro de ópera. Na sua génese terão estado as sugestões do matemático italiano Miguel

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Sobre o palácio da Ajuda e a Real Barraca vejam-se os estudos de Ayres de CARVALHO, Os três Arquitectos da Ajuda, Lisboa, edição do autor, 1979, e “A Real Barraca e o Palácio da Ajuda”, in Belas-Artes, Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes, 3ª série, nºs 11-13, 19881991, pp. 5-17. O Palácio de Belém e a Quinta de Baixo foram minuciosamente analisados nos artigos da recente publicação Do Palácio de Belém, Lisboa, Museu da Presidência da República, 2005. O Jardim Botânico da Ajuda foi objecto de vários estudos, nomeadamente dois relatórios finais de licenciatura em Arquitectura Paisagística, de Manuel de Azevedo COUTINHO, O Jardim Botânico da Ajuda, Lisboa, Instituto Superior de Agronomia, 1948, e de Ana Luísa de Sousa SOARES e Teresa Maria CHAMBEL, Jardim Botânico da Ajuda, Lisboa, Instituto Superior de Agronomia, 1995, ambos policopiados. Veja-se ainda a obra coordenada por Cristina CASTELBRANCO, Jardim Botânico da Ajuda, Lisboa, Associação dos Amigos do Jardim Botânico da Ajuda e Livros Horizonte, 1999.

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Franzini, preceptor dos príncipes D. José e D. João, e do 3º marquês de Angeja, Pedro José de Noronha, coleccionador e botânico muito próximo do rei D. José 3. É ao naturalista italiano Domingos Vandelli, contratado em Pádua em 1764 como professor do Real Colégio dos Nobres, que se deve o projecto para o Jardim Botânico. Para o coadjuvar na criação do Jardim, de que foi nomeado director em 1768, fez vir de Itália o jardineiro Júlio Mattiazzi, que com ele colaborara no Horto Botânico de Pádua. Vandelli manteve o cargo de director até 1810, ano em que foi afastado por supostos envolvimentos com os invasores franceses. Entre 1772 e 1791 permaneceu principalmente em Coimbra, onde dirigiu a instalação do Jardim Botânico da Universidade e leccionou as cadeiras de História Natural e de Química. Durante a sua ausência, as obras no Jardim da Ajuda e nos edifícios anexos (onde foram instalados o Museu de História Natural e o Laboratório de Química) ficaram sob a administração de Mattiazzi.

Jardim da Corte e centro experimental da estratégia ultramarina A finalidade primordial da instituição do Jardim e dos estabelecimentos científicos anexos foi – dissemo-lo – a educação dos netos do rei D. José, filhos da futura D. Maria I (em especial o príncipe do Brasil, D. José, que o marquês de Pombal pretendia sucedesse directamente ao avô, o que só não terá chegado a acontecer pela sua morte prematura aos 27 anos). Logo desde o início, porém, o complexo da Ajuda teve ainda outra vertente: um centro experimental ligado à estratégia ultramarina da Corte. Ali foram recebidas plantas e sementes de vários pontos do globo (oriundas de outros jardins congéneres da Europa, mas também e sobretudo dos territórios portugueses na América, em África e na Ásia, não esquecendo as ilhas atlânticas 4), tendo o jardim funcionado como uma verdadeira plataforma de aclimatação e redistribuição de espécies botânicas.

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Cf. João Carlos BRIGOLA, Colecções, Gabinetes e Museus em Portugal no século XVIII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian / Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2003. Na Ilha da Madeira, por exemplo, esteve instalado, em 1798, um grupo de investigadores com o encargo de remeter plantas para o Jardim Botânico - Arquivo Histórico Ultramarino, Reino, Maço 2147, ofício de D. Rodrigo de Sousa Coutinho para José Maria Cardoso Soeiro, corregedor da Ilha da Madeira, de 22 de Agosto de 1798, citado por Rómulo de CARVALHO, A História Natural em Portugal no Século XVIII, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve, 1987, pp. 67, 68.

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No Museu guardavam-se testemunhos dos “três reinos da Natureza”, representando os vários continentes, mas também muitos objectos relacionados com culturas de alguns dos povos autóctones das possessões portuguesas, irregularmente representados em função dos diversos resultados obtidos nas várias “expedições filosóficas” organizadas nos últimos anos do século XVIII, assim designadas pela postura iluminada que esteve na sua origem: observar, analisar e interpretar a Natureza nos seus diversos domínios 5. A par desta “atitude filosófica”, estiveram presentes outros interesses de carácter económico, orientados para o desenvolvimento da agricultura e da indústria. Assim, na Casa do Laboratório de Química, além da actividade no campo da investigação mineralógica, faziam-se análises químicas dos produtos vegetais e dos solos. Durante alguns anos, por exemplo, foi ali extraído por destilação o anil vindo do Brasil, com vista à sua utilização na indústria têxtil. O Museu e o Laboratório eram ainda complementados por uma Biblioteca e uma Casa do Risco, onde vários desenhadores se ocuparam na reprodução dos exemplares de plantas e animais chegados ao Jardim Botânico e ao seu Museu. Alguns desses “riscadores” integraram as missões científicas ultramarinas, auxiliando os naturalistas e jardineiros nos levantamentos realizados.

A “arquitectura” do Real Jardim Botânico Como já atrás referimos, o Jardim Botânico da Ajuda totaliza 3,5 hectares e está implantado em duas plataformas rectangulares de dimensões desiguais, com uma diferença de cotas de 6,8 metros, que comunicam entre si por uma monumental escadaria de vários lances com patamares intercalares. Uma balaustrada em pedra delimita a Sul a plataforma superior e prolonga-se em declive suave, acompanhando o desnível do terreno, pelos dois lados do terraço inferior, onde se rasgam duas escadas menores, com dois lances intercalados por patamar, de belo traçado circular. Tanto a escadaria central como as laterais são ladeadas pelos mesmos balaústres. 5

Em 1783 partiram de Lisboa várias missões científicas com destino a Cabo Verde (o naturalista João da Silva Feijó acompanhado de um riscador), Angola (o naturalista italiano Ângelo Donati e o riscador João António), Goa e Moçambique (o naturalista Manuel Galvão da Silva, o riscador António Gomes e o botânico João da Costa), e ao Pará, no Brasil (o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, acompanhado do botânico Agostinho Joaquim do Cabo e dos desenhadores Joaquim José Codina e José Joaquim Freire). Sobre estas expedições, veja-se Rómulo de CARVALHO, ob. cit, Miguel Figueira de FARIA, A Imagem Útil, Lisboa, EDIUAL, 2001, e João Carlos Pires BRIGOLA, ob. cit..

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Existe ainda o projecto inicial, acompanhado de uma legenda e sem assinatura nem data, mas feito, muito provavelmente, sob a supervisão do próprio Vandelli 6.

Projecto para o Jardim Botânico da Ajuda (Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas)

No projecto estavam já previstos, na plataforma superior, os três tanques com repuxos, um maior central, polilobado, alinhado com a escadaria principal e com a porta de acesso ao palácio (que deveria ser rasgada no corpo central do edifício, em nível mais elevado, o que nunca chegou a acontecer), e dois menores separados por canteiros em disposição geométrica, destinados à cultura experimental de espécies botânicas (assinalados na legenda da planta como “Jardim Botânico”). Estavam previstas duas estátuas apoiadas em pedestais a meio dos canteiros, entre os tanques laterais e o tanque central, que não terão chegado a ser realizadas. Encostadas à parede do Paço, nos extremos do jardim, estão desenhadas duas grandes estufas. Duas outras, de menor dimensão, são assinaladas a Oeste desta plataforma, à entrada de um espaço de recorte polilobado pontuado por arbustos. Do lado oposto encontramos um espaço também recortado por arbustos, destinado, segundo indicação na legenda da planta, a “Praça para voltar as Caroagens”. 6

Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas (AHMOP), D5C, publicada por Miguel Figueira de FARIA, ob. cit., p. 157, e Cristina CASTEL-BRANCO, ob. cit., p. 68.

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No plano inferior estava previsto um traçado geométrico de canteiros bordados de arbustos e intercalados por outras duas fontes circulares com repuxos. A entrada principal do jardim rasgava-se no muro envolvente do lado sul, alinhada com a escadaria principal. Em redor da plataforma inferior dispunham-se seis cascatas de perfil arredondado ou ovalado: duas nos vértices dos ângulos criados pela união dos muros que dividem os dois terraplenos, duas encostadas ao mesmo muro, em posição intermédia, entre as cascatas dos ângulos e a escadaria principal, e as outras duas encostadas ao muro que delimita o Jardim a Sul, a meio caminho entre as extremidades do terrapleno e a entrada principal. Também em torno do Jardim, no plano de baixo, estão assinalados bancos, havendo ainda “Piramidas de vazos” indicadas na legenda, mas não na planta. No muro do lado sul rasgava-se o acesso ao Museu e ao Laboratório, embora não estejam desenhadas as respectivas construções. Está, no entanto, assinalada a “Caza de David Peres” (o compositor napolitano ao serviço da Casa Real portuguesa), adossada ao ângulo sudeste do Jardim. Duas entradas laterais secundárias estão igualmente marcadas na planta e indicadas com legendas: a “Entrada para o teatro” (o teatro de corte situado a Norte do jardim e a Poente do palácio), no canto superior norte, e a “Sahida para a memoria” (a igreja da Memória, construída na encosta da Ajuda, a meio caminho entre a Quinta de Cima e a Quinta do Meio, em memória do atentado de que foi vítima D. José em Setembro de 1758), do lado oposto, a Sul. Finalmente, os terrenos em declive, paralelos aos lados menores do Jardim (a Este e a Oeste), destinavam-se, segundo a legenda da planta, a “bosques de árvores Estrangeiras”. Algumas alterações foram entretanto introduzidas na versão construída. Segundo Vandelli, que esteve ausente em Coimbra entre 1772 e 1791, seriam da responsabilidade do jardineiro Mattiazzi, a quem acusou de ter desprezado a colecção de plantas (que diminuíram de 5000 para 1200), em benefício das “conchas e outros animaes do Muzeo, e de querer ser Arquitecto”. O mesmo Vandelli, na Relação da origem, e estado prezente do Real Jardim Botânico, Laboratório Chymico, Museo de Historia Natural, e Caza do Risco, escrita provavelmente em 1794 ou 1795, assinala ainda outras faltas do jardineiro seu conterrâneo: a altura excessiva das “pyramides para os vasos” e a falta de “canos de chumbo para fazer fácil a rega”, no plano inferior, onde também não tinham

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ainda sido cultivadas as “plantas medicinais para as Artes e a Economia”, referindo também o estado de ruína das estufas em madeira e a ausência das pequenas estufas para os ananases previstas no projecto inicial 7.

O Jardim Botânico visto da plataforma superior.

As alterações introduzidas ao projecto inicial deram ao Jardim Botânico uma maior carga barroca, sobretudo visível no grande tanque central da plataforma inferior, de perfil movimentado e recheado de ornatos barrocos e de esculturas de animais, interligadas por um sugestivo jogo de água, no recorte arredondado das escadas laterais e do patamar superior da escadaria principal, culminando no cenográfico enquadramento da estátua do príncipe do Brasil, D. José, coroado de louros e trajando à romana, segundo a verosímil identificação de Ayres de Carvalho 8.

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Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo (IAN/TT), Ministério do Reino, Maço 444, “Relação da origem, e estado prezente do Real Jardim Botanico, Laboratorio Chymico, Museo de Historia Natural, e Caza do Risco”, transcrito por CASTEL-BRANCO, FARIA e BRIGOLA, ob. cit.. Ayres de CARVALHO, Os três Arquitectos da Ajuda., p. 32.

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Perspectiva axial do Jardim Botânico, vendo-se ao fundo o Paço do Conde de Óbidos, também conhecido como "paço velho" da Quinta de Cima.

O tanque, de grandes dimensões e perfil polilobado, é compartimentado interiormente em tanques menores, permitindo a instalação de diferentes plantas aquáticas. No rebordo exterior apoiam-se urnas de perfil clássico e inscrevem-se O tanque principal do Jardim Botânico, vendo-se ao fundo o Palácio da Ajuda.

grandes motivos vegetalistas barrocos. Uma fonte axial, composta pela sobreposição de vários corpos de perfil arredondado envolvidos por conchas, serve de sustentáculo a quatro cavalos-marinhos rodeando um enorme peixe; no remate, rãs no meio de vegetação aquática, em posição intermédia, e jibóias enroscadas em troncos de árvores, no corpo inferior. Em redor desta fonte central dispõem-se

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patos, grandes peixes voadores e leões-marinhos, estes tratados de forma bastante ingénua. Outras jibóias enroladas inscrevem-se nas divisórias interiores do tanque. Também o traçado da escadaria central e das escadarias menores laterais mostra alterações em relação ao projecto original. A escadaria central prevista na planta (desenhada a lápis, mas assinalada na legenda) era um pouco diferente, alargando-se em dois corpos salientes laterais. A versão que foi realizada tem ainda todos os componentes da escadaria barroca, pela disposição dos vários lances convergentes e divergentes, com patamares intermédios, pela colocação em “trainel” dos balaústres dos dois patamares superiores, conformando-se ao seu traçado arredondado, e, sobretudo, pelo enquadramento da estátua do príncipe: um nicho rasgado no alçado principal, no topo do primeiro lance de degraus, ladeado por duplas pilastras jónicas e encimado por uma grande cartela barroca, a que se sobrepõe um cesto de vime florido. Outros quatro nichos, hoje vazios, dois em cada um dos corpos laterais, destinavam-se certamente a outras estátuas de vulto.

A escadaria principal.

As duas escadas laterais simétricas, rasgadas a meio do plano inferior, adoptaram um perfil mais dinâmico, contracurvado, acentuado pela forma como foram esculpidos e colocados os balaústres, na diagonal e inclinados para fora, em “trainel”.

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Uma das escadas laterais.

Apesar das insinuações de Vandelli sobre a interferência de Mattiazzi nas obras do Jardim Botânico, é difícil aceitar que este jardineiro de profissão se tenha de repente transformado em arquitecto. Por trás das alterações ao projecto inicial, certamente feito debaixo das instruções de Vandelli, poderá estar, como sugere Ayres de Carvalho, Manuel Caetano de Sousa, arquitecto da Casa do Infantado a partir de 1786, a quem a C Corte encomendaria pouco depois o projecto para o novo palácio da Ajuda, na sequência do incêndio da Real Barraca, em 1794 9.

A obra do Jardim Botânico da Ajuda através da documentação A documentação que encontrámos na Torre do Tombo (no fundo da Casa Real e ainda no fundo dos Núcleos Extraídos do Conselho da Fazenda / Casa das Obras e Paços Reais) permitiu-nos acompanhar a obra do Jardim Botânico e das construções anexas onde estiveram instalados o Museu de História Natural, o Laboratório de Química, a Casa do Risco e a Biblioteca. Entre 1768 e 1777 as despesas com a obra do Real Jardim Botânico estão integradas nos gastos das três quintas e dizem essencialmente respeito ao

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Ayres de CARVALHO, Ibidem, p. 18.

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pagamento de jardineiros, compra de plantas e de vasos. Não encontrámos quaisquer referências a obras concretas, nem no Jardim, nem nos seus anexos 10. A partir de Setembro de 1777 as despesas começaram a ser custeadas pelo Real Bolsinho (a conta particular da soberana), sendo descritas de forma muito pormenorizada. De Setembro a Dezembro de 1777 foram pagos numerosos carregamentos de materiais de construção para o jardim: 877 carradas de areia da praia, 70 carradas de tijolo do cais de Belém, 11 carradas de pedra do telheiro das obras e vários moios de cal dos fornos de Ayres de Saldanha, conde da Ega. Em Abril, Julho e Agosto desse ano, uma equipa de canteiros, sob as ordens do aparelhador João Gomes, alvenéis (pedreiros), carreiros e ribeirinhos (carregadores) realizaram trabalhos na mina por trás da Casa da Ópera, tendo esta obra sido abastecida com pedra negra, pedra de Alcolena, areia e cal 11. Entre 1777 e 1794 as despesas com a obra do Jardim Botânico, e mais raramente com a Casa do Laboratório e com o Museu de História Natural, são apontadas em folhas avulsas, com regularidade matemática, no final de cada mês 12. A partir de 1795 as despesas são assinaladas de forma diversa, inscritas em livros e diferenciadas pelos vários espaços do Jardim: plano de cima, plano de baixo, Museu, Casa do Risco, Biblioteca e Casa do Laboratório 13. Todos os meses são elaboradas folhas de mão-de-obra, com os dias de trabalho e os montantes pagos aos diversos intervenientes, sob a supervisão do desembargador João Rodrigues Vilar, com a ajuda de um apontador. Nessas folhas estão registados o pagamento, dia a dia, de aparelhadores, canteiros, alvenéis, cabouqueiros, carpinteiros, serradores, pintores, entalhadores e estucadores, carreiros, “ribeirinhos” e “marés”, “homens de pau e corda”, muitos trabalhadores indiferenciados, e ainda de um escultor, um “cascateiro”, um funileiro e um calceteiro. Surgem também recibos de pagamentos realizados a determinados profissionais, sempre identificados pelo nome e por vezes com a indicação do local da oficina, a quem foram feitas encomendas específicas para a obra em curso:

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IAN/TT, Casa Real, Cxs. 3587 a 3591 (1768 a 1777). Idem, ibidem, Cx. 3631. Idem, ibidem, Cxs. 3631 a 3636 (1777 a 1781), 3638 (1782), 3640 (1783), 3642 a 3646 (1784 a 1788), 3649 (1789), 3651 a 3654 (1790 a 1792), 3656 e 3657 (1793 e 1794). Idem, Núcleos Extraídos do Conselho da Fazenda / Casa das Obras e Paços Reais, Livros 94 (1795 a 1798), 95 (1797 a 1800), 97 (1800 a 1802), 102 (1795 a 1798), 103 (1800 a 1806). No mesmo fundo existem ainda mais três livros – 104, 105 e 106 – com despesas de funcionamento do Real Jardim Botânico referentes ao período da gestão de Avelar Brotero, entre 1806 e 1821.

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vários ferreiros (como Tomás da Silva, António Tomás, Manuel da Silva Agostinho, Manuel da Cruz, Manuel dos Santos, João António da Costa e Maria Joaquina dos Mártires) são pagos pelo “aguço das ferramentas” utilizadas pelos canteiros, cabouqueiros e “sulinhadores” nas minas de onde vem a pedra para a obra (sobretudo a mina de Alcolena) e pelos consertos dos cubos dos carrinhos de entulho, mas fornecem também trancas e fechaduras, fechos, lemes, aldrabas, chapas e grelhas em ferro, caixilhos de ferro com rede, pregos e tachas; os serralheiros António Martins de Carvalho, Manuel da Silva Agostinho e Pedro José Cotrim fabricam ferragens para portas, janelas e móveis, reparam fechaduras e vendem também uma extraordinária variedade de tachas e pregos; as chaves de bronze para as fontes, aldrabas e caixilhos de rede de fio de latão foram realizados nas oficinas dos latoeiros Jacinto Álvares Guerra, António Martins de Carvalho e Joaquim António; os cabouqueiros Pedro Francisco e António Leitão forneceram muitas varas e palmos de pedra lioz de diferentes dimensões, pedra bastarda e lajedo branco e negro; Manuel Francisco foi pago por “sassos”, calhaus e cascão para as cascatas; a Fábrica dos irmãos Stephens vendeu vidraça a peso ou por medida para as estufas e para as janelas, colocada por vidraceiros, como António Torres, José Domingues e António Gonçalves de Carvalho, que, por vezes, venderam também os vidros já betumados; os tanoeiros José de Sá e Henrique de Paula forneceram e repararam os baldes e os barris utilizados para carregar água para a obra; por várias vezes chegaram barrotes e vigas para as construções, tábuas de casquinha e tábuas “da terra” para os armários, para as portas e janelas do Museu e para as estufas e cancelos do Jardim, fornecidos pelo serrador José Domingues; dos telheiros dos oleiros Domingos Rodrigues Mafra e António Gonçalves da Fonseca vieram tijolos e telhas; Domingos de Abreu e Mariana Josefa venderam areia para argamassa e areia vermelha; da loja de Simão Rodrigues chegaram manilhas de cozinha para encanar a água e telhões vidrados; a cal, comprada inicialmente ao conde da Ega, passou a ser comprada nos fornos do mosteiro dos Jerónimos, em Belém. A par destes materiais, também algumas lojas fornecem habitualmente a obra do Jardim Botânico: José Gomes Franco, António da Silva, António Gonçalves, Pedro Álvares, Dionízio Chevalier & Cª, António da Costa (estabelecido na Pampulha) e José António Ramalho venderam material diverso destinado sobretudo aos pintores, douradores e estucadores (óleos e vernizes, fezes de ouro, água-raz, alvaiade, gesso mate e grosso, retalho, vermelhão, verdete, preto de Itália, anil de

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Castela, verdete, jalde lino, flor de anil, sombra de Colónia, zarcão, maquim, cinabre, cinzas azuis, folhas de prata e de ouro, brochas e pincéis, papel, lápis, penas, esponjas, tinta de escrever, pós de sapatos para tintas, tigelas e panelas); António Simões, com loja em Alcântara, vendeu chumbo em rolo, chumbo em barra e solda; da loja de Manuel Gonçalves vieram a folha de Flandres para forrar uma estufa e rolos de chumbo; José Domingues forneceu cestos e “tamiça”, tachos para grude e pedras de afiar; António Martins de Carvalho assegurou o abastecimento de grude da Baía, peles de lixa, brim e vários tipos de tecido para forrar algumas salas do Museu; Manuel Francisco de Freitas vendeu cordas para andaimes; António Ferreira Neto forneceu vassouras, cirandas, peneiras e fogareiros; Pedro Peres, João Pires, Manuel Fernandes e João António Gomes venderam por várias vezes carvão para fazer os betumes e as matérias-primas para o seu fabrico – cera, breu e pó de pedra –, além de vassouras, meadas de algodão, mechas, manilhas de cotovelo, papel, tinta e areia para escrita; também João Ferreira dos Santos, em Alcântara, e Lucas Dias da Silva forneceram cera branca em grumo, para fazer o betume branco da cantaria, e cera para betume de breu ou betume preto, para o lajedo da mesma cor; da Fábrica de Louça do Rato vieram, sobretudo durante os anos de 1795, 1796 e 1797, vários fretes com vasos de faiança, bustos e estátuas; finalmente, desde o início da obra chegaram igualmente muitos carregamentos de vasos de barro da olaria de Antónia Maria da Conceição. O fornecimento de água ao jardim foi naturalmente uma das preocupações dos seus construtores. Por várias vezes encontrámos referências a obras realizadas na Mina por trás da Casa da Ópera, a Noroeste do jardim, e à construção da conduta da água do Jardim das Senhoras, no Palácio da Ajuda, a Nordeste do jardim. Existem igualmente muitas referências a obras de construção e reparação das estufas. Apesar disso, na mencionada Relação, Vandelli critica a sua falta de manutenção, dificultada pelo facto de serem feitas em madeira, sem pilares em pedra. As estufas foram certamente melhoradas após o regresso de Vandelli de Coimbra, já que, em 1799, encontrámos referências à decoração da chamada “Casa da Verdura”, situada na extremidade noroeste do jardim, guarnecida com “feixes de arcos para descer a verdura” e com uma mesa de pedra, certamente aquela que ainda hoje podemos ver no jardim, realizada pelos canteiros da obra e assente pelo pedreiro Tomás de Barros. Na mesma altura, esta “Casa da Verdura” foi decorada com canapés e aparadores feitos pelo carpinteiro Domingos de Sousa.

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O mesmo carpinteiro fez de empreitada, no ano de 1799, a obra dos “cancelos dos parques do Jardim Botanico” (no plano de baixo, ou seja na plataforma inferior): numerosas vedações móveis em madeira, assentes em bases de pedra, articuladas por meio de ferragens variadas fornecidas pelo serralheiro José Gonçalves da Silva (lemes, fechaduras e fechos pedreiros). A obra prolongou-se pelo ano seguinte, sendo então realizados os “cancelos dos redondos do jardim”.

A obra escultórica do Real Jardim Botânico Das informações coligidas, as mais interessantes dizem respeito à obra escultórica da responsabilidade dos numerosos canteiros que ali trabalharam entre 1786 e 1799, em grande parte ainda subsistente: os lagos e as cascatas decorados com esculturas de animais e plantas; os balaústres que dividem os dois planos do jardim e enquadram as escadarias, bem como a obra da escadaria principal do Jardim. Quanto à estátua do príncipe D. José, ela foi realizada, ao que tudo indica, pelo escultor Silvério Martins, pago entre Agosto e Novembro de 1786 nas folhas de obras do Real Jardim Botânico. A obra lavrada do Jardim foi realizada por contratação particular, através de empreitadas específicas. O contratador João Gomes (que igualmente exerceu as funções de aparelhador de cantaria) foi o responsável pela obra de cantaria do jardim, mandando fazer por empreitada e ajuste directo, aos oficiais que tinha sob as suas ordens (a maioria trabalhava também na obra do Jardim desde pelo menos 1777), os balaústres da antepara e das escadarias. Nos recibos distinguem-se os balaústres direitos, pagos a 2$400 réis a unidade, dos balaústres de rampa, pagos a 2$700, e dos de “trainel”, a 3$000. Foram pagos 1150 balaústres, entre Setembro de 1786 e Dezembro de 1788. Entre muitos outros canteiros refiram-se os nomes de Joaquim Barbosa, José Lourenço, Jerónimo Ferreira, Joaquim Francisco, Manuel da Costa, Manuel Freire, António dos Santos, Francisco Xavier, António Lino, José de Oliveira, José dos Santos Mafra, Joaquim de Oliveira Benfica e Dionísio da Silva Beja. João Gomes também se encarregou de mandar fazer todas as outras pedras lavradas, assinando os recibos pelos pagamentos. Durante o ano de 1786 foram lavradas sete pedras grandes para o lago, cada uma por 55$000, quatro “fechos” para a escada, por 17$000 cada, várias pedras para o nicho grande da escada “que leva hum asafate”, no valor total de 96$000, incluindo o custo da cantaria – ou seja,

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o nicho principal onde foi colocada a estátua do infante D. José, com um cesto de flores lavrado, apoiado na grande cartela sobre o fecho do arco – e ainda os quatro capitéis das pilastras que ladeiam o mesmo nicho, no valor unitário de 8$000. Em 1787 João Gomes recebeu ainda 62$000 “pelo resto da Pedra do Nixo que leva o asefate”, e 20$000 pelo lavor de quatro golfinhos, a que acresceram 30$000 pela cantaria utilizada.

Balaústres do Jardim Botânico: direitos, de rampa e de “trainel”

Em 1791 voltamos a encontrar pagamentos ao mestre canteiro, em meses diferentes, por duas pedras lavradas, cada uma no valor de 50$000, e por quatro golfinhos (um para a cascata, por 50$000, e os outros, por 61$000 cada, um deles com a indicação de se destinar ao lago). Em 1792 realiza 26 conchas para o lago grande, do plano inferior, cada uma por 6$000, 12 outras, com ornato, por 15$500 cada, para a segunda bacia do tanque, e mais sete para a terceira bacia, por 9$750. Em 1793 continua a obra do lago grande: quatro cavalos-marinhos, a 65$000 cada um, e uma última concha para a terceira bacia, que ficou por 9$470; “pello

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ornato dos quatro cavalos marinhos” recebeu mais 22$895 e “por hum peixe que vay entre os quatro Cavalos Marinhos” mais 49$500. Para o lago, lavrou ainda cinco patos, cada um por 32$500. Neste mesmo ano, João Gomes realiza um leão para o tanque grande da cascata, pelo preço de 57$600. Em 1794, mais três patos para o tanque principal, ao mesmo preço dos anteriores, “huma pedra redonda em a qual vai huma cobra enroscada” por 50$000 (que repetiria alguns meses depois), “duas pedras ovadas que (sic) cada huma delas huma cobra imrroscada”, pelo mesmo valor de 50$000 cada uma, e “huma pedra com a qual se lhe fizerão duas cobras gyboyas emrroscadas a huma arvore”, repetida mais três vezes durante o ano, cada uma por 98$500.

A estátua do príncipe do Brasil, no nicho central da escadaria principal e a “pedra do asafate”, na cartela que encima o nicho da escadaria principal.

Em 1795 e 1796 continuam as compras de materiais para as cascatas – “sassos”, calhaus e cascão. A partir de Novembro de 1786 encontramos por várias vezes o mestre cascateiro, Matias José, entre a mão-de-obra especializada do Jardim Botânico. Durante estes dois anos, Leandro Gomes, filho de João Gomes, foi pago pelo fornecimento de “sassos” para a cascata, pelas “pedras que fez para a Cascata”, pela “factura da obra de relevo” e ainda pela “empreitada do repuxo de pedra que fez para o lago do jardim”, auferindo um total de 258$160. Em 1799 aparece ainda o pagamento de um carreto de uma pedra para o repuxo do lago, provavelmente “destinada à figura” que foi realizada, em Janeiro

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de 1800, pelo “mestre escultor de pedra”, Francisco de Paula, pela qual recebeu 80$000. No mês seguinte foi fornecido chumbo para o “Cano da Pedra do Repucho Lingoas e Olhos dos Golfinhos”. Embora não seja claro a que pedra relevada diz respeito este pagamento, é possível que se trate dos quatro golfinhos do tanque do plano superior, de qualidade escultórica bastante superior.

[ Pormenores esculpidos na bacia do tanque central da plataforma inferior.

Animais esculpidos no tanque central da plataforma inferior

Quanto à estátua que ainda hoje decora o nicho central da escadaria principal, terá sido realizada, ao que tudo indica, pelo escultor Silvério Martins, que entre Agosto e Setembro de 1786 trabalhou todos os dias no Jardim Botânico, recebendo 1$000 réis por dia. Na mesma altura estava a ser terminado o nicho para onde se destinava a estátua, referido como “o nicho grande da escada que leva o asafate”. 18

Praticamente todos os relevos em cantaria e todas as estátuas de vulto presentes no jardim estão documentados através dos recibos passados pelos canteiros e escultores

responsáveis.

Infelizmente

desapareceram as cascatas, várias vezes mencionadas, repletas de animais esculpidos. Na documentação analisada só não encontrámos referência à obra do portal de acesso ao Museu e Laboratório, de paramento rusticado e rematado por dois bustos, figurando um homem jovem e um adulto. Quanto aos dois tanques em

Portal de acesso ao Museu de História Natural.

forma

de

concha

ovoide,

decorados com pares de dragões, que hoje encontramos junto à entrada principal do Jardim, do lado da calçada da Ajuda, serão talvez os restos das cascatas que foram construídas e que encontrámos assinaladas na planta, com a mesma configuração. A obra esculpida do Real Jardim Botânico revela assim alguns contornos que ajudam a esclarecer o panorama da escultura em Lisboa em finais do século XVIII, no limiar entre o Barroco e o Neoclássico. Em paralelo com o acentuado peso barroco já referido, visível no conjunto cenográfico da escadaria principal e do lago central, e ainda no perfil movimentado das escadarias laterais e do recorte do patamar superior da escadaria principal, tornado mais evidente pelo tipo de balaústres aí utilizados, encontramos sinais do gosto neoclássico nas urnas que decoram tanto o tanque central como os tanques laterais dos dois patamares do jardim. Os numerosos canteiros que aqui trabalharam sob as ordens de João Gomes naturalmente mais não fazem que repetir modelos aprovados pelo arquitecto da obra. Entre eles destaca-se Leandro Gomes, filho de João Gomes, que então lavrava

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as cantarias da fachada e da escadaria do Picadeiro de Belém 14. Infelizmente, os golfinhos que fez para as cascatas desapareceram com elas.

Tanque com dragões, um possível reaproveitamento das cascatas. Em baixo, um pormenor do projecto, mostrando o tanque de uma das cascatas.

Dos dois escultores que aparecem na documentação do Jardim Botânico – Silvério Martins e Francisco de Paula – o primeiro está associado à Escola de Escultura de Lisboa, dirigida por Machado de Castro. Nascido em 1752, Silvério Martins aprendeu a sua arte com Alexandre Giusti, em Mafra (nos anos 70 e 80), tendo sido colaborador de Barros Laborão, após a morte do mestre italiano. Em 1785 trabalhava já como ajudante da Escola de Escultura de Lisboa, junto de Machado de Castro. Silvério Martins foi ainda modelador de barro e autor de um presépio já desaparecido da igreja paroquial de Linda-a-Pastora, a sua terra natal. Nenhuma outra obra de sua autoria era conhecida até à data 15. 14

15

Leandro Gomes lavrou todas as cantarias do edifício do picadeiro de Belém entre Outubro de 1789 e Dezembro de 1798. Cf. Isabel Mayer Godinho MENDONÇA, “Picadeiro. Do Palácio de Belém”, in Do Palácio de Belém, ob. cit., pp. 265-301. Agradeço estas informações à Dra. Sandra Costa Saldanha. Cirilo Volkmar MACHADO, Collecção de Memórias relativas às vidas dos pintores, e escultores, architetos, e gravadores

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A estátua pedestre do príncipe D. José, realizada em 1786, mostra muitas semelhanças com a estátua pedestre de D. Maria I, que hoje se encontra na Biblioteca Nacional de Lisboa, muito provavelmente a mesma que em inícios do século XVIII se encontrava na Biblioteca Pública e que foi referida por Cirilo Volkmar Machado nas suas Memórias 16. As duas figuras envergam uma couraça e sobre ela um manto preso num dos ombros; o príncipe, jovem e hercúleo, está coroado de louros, enquanto a rainha, com os traços do tempo marcados no rosto, apenas mostra uma pluma no toucado; ambos seguram um rolo ou um bastão de comando; junto da rainha está representado o globo terrestre.

O tanque lateral da plataforma inferior do Jardim Botânico.

Segundo Cirilo, a estátua da rainha foi “inventada” por Machado de Castro e executada por dois dos seus alunos, Faustino (Faustino José Rodrigues) e Feliciano (Feliciano José Lopes) 17. A estátua do príncipe, esculpida por Silvério Martins, reflecte naturalmente a influência de Machado de Castro, de quem este escultor era ajudante desde a sua vinda para Lisboa.

16 17

portuguezes e dos estrangeiros, que estiverão em Portugal, Lisboa, Imprensa da Universidade, 1922, p. 210, refere-o entre os alunos de Giusti em Mafra, indicando apenas a sua naturalidade e o ano da sua morte. Ayres de Carvalho, além de ter identificado pela primeira vez esta estátua com o príncipe D. José, atribuiu-a ao escultor Machado de Castro, a quem o Marquês de Ponte de Lima, ministro de D. Maria I, a teria encomendado: “Se o Marquês de Ponte de Lima, sucessor do Marquês de Angeja em 1783, como Ministro de D. Maria, uma das primeiras obras que encomendou a Machado de Castro foi a estátua da rainha para pôr na sua quinta de Mafra, não é de surpreender que em 86-87 mandasse esculpir a estátua do príncipe D. José futuro rei de Portugal, na grandiosa escadaria do Jardim Botânico que Manuel Caetano de Sousa terá desenhado a dois passos da “Barraca” real…”. Cf. Ayres de CARVALHO, Os três Arquitectos da Ajuda, p. 32. Cirilo Volkmar MACHADO, ob. cit., p. 213. Idem, Ibidem.

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Quanto ao segundo escultor documentado, Francisco de Paula, não encontrámos quaisquer referências à sua actividade. Terá provavelmente alguma relação familiar com um outro artista homónimo – Francisco de Paula de Araújo Cerqueira – nascido em 1808 e portanto de uma geração posterior, que foi aluno de Faustino José Rodrigues 18.

Azulejos e outras obras cerâmicas no Real Jardim Botânico Na documentação do Jardim Botânico encontrámos numerosas referências a pagamentos pelo fornecimento de azulejos ao mestre azulejador Francisco Jorge da Costa, um fornecedor habitual da Casa Real, autor de vários silhares de azulejos do palácio de Queluz, do palácio de Belém e do seu Picadeiro, e do vizinho palácio Calheta 19. Em Setembro de 1791 forneceu azulejos para as ”Cazas e Chaminé da Química Espremental”: 1721 peças “de almofadas de cores”, a 28$000 o milheiro, 1240 azulejos “de Moizaque de cores”, a 20$000 o milheiro, 55 alisares de cores a 160 réis cada e ainda 1000 “Azulejos velhos” a 10$000 o milheiro. Em Outubro do mesmo ano forneceu “Azuleijo novo e velho”, que assentou no Jardim Botânico: 946 azulejos de mosaico de cores, 1412 azulejos velhos e 100 alisares. Em Janeiro de 1792 vendeu 3287 azulejos de cores a 24$000 o milheiro, 870 azulejos velhos e 53 alisares. As vendas durante estes dois anos atingiram um total de 237$936. Os fornecimentos de azulejo continuaram, já que Francisco Jorge da Costa recebeu, a partir de Dezembro de 1798, quantias regulares “por conta da importância dos azulejos que tem fiado da sua Fabrica”, num total de 123$968. Em Abril de 1798 foram ainda pagos 532 azulejos de brutesco, embora não seja referido o nome do fornecedor. A factura discriminava o preço pago pelos azulejos, pela pintura e pelo corte e assentamento. Em 1800 aparece ainda um pagamento por nove carradas de azulejo. Todos os azulejos mencionados na documentação desapareceram, à excepção de alguns silhares de padronagem polícroma, ainda in situ, aplicados nas escadas 18

19

Francisco de Paula de Araújo Cerqueira faleceu em 1855. No ano seguinte, foi publicado em Lisboa, na Tipografia de G. M. Martins, o Discurso Fúnebre em Memória do Senhor Francisco de Paula de Araújo Cerqueira, da autoria de João José dos Santos. Em 1791 Francisco Jorge da Costa forneceu os azulejos do Picadeiro do Palácio de Belém (Cf. Isabel Mayer Godinho MENDONÇA, ob. cit.), do viveiro dos Pássaros, na Quinta de Baixo e do Palácio Calheta, na Quinta do Meio (Cf. Ana Paula Rebelo CORREIA, “Azulejos. Do Palácio de Belém”, in Do Palácio de Belém, ob. cit., pp. 221-243).

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que conduzem do Jardim ao Museu, num dos pátios do edifício do Museu e no seu interior. No muro que delimita os dois patamares, dos lados da escadaria monumental, existiam ainda na primeira metade do século XX silhares de azulejos em azul e branco, representando albarradas floridas (segundo informação oral da Srª D. Helena Ramalho, descendente do bibliotecário do rei D. Luís, na altura locatária do edifício onde funcionou o Museu de História Natural), certamente os últimos vestígios dos “azulejos velhos” vendidos por Francisco Jorge da Costa e por ele aplicados no Real Jardim Botânico.

A escada de acesso ao edifício do Museu de História Natural.

A par dos silhares de azulejos novos e velhos, o Jardim recebeu entre 1795 e 1797 várias peças decorativas em faiança, oriundas da Real Fábrica do Rato – bustos, estátuas e vasos. Nenhuma destas peças chegou aos nossos dias 20.

As obras no Real Museu de História Natural Também os edifícios anexos ao Jardim Botânico, onde funcionou o Museu de História Natural, o Laboratório, a Casa do Risco e a Biblioteca, de planta em “U”, em redor de um pátio interior, receberam obras pagas pelo Real Bolsinho. 20

No Jardim existe ainda um vaso em faiança branca com as iniciais de D. Luís pintadas a azul, um testemunho muito mais tardio deste tipo de decoração.

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Implantados numa plataforma, a Sul do Jardim Botânico, deitam a fachada principal de dois pisos para a Rua do Jardim Botânico.

Estado actual da fachada do edifício do Museu de História Natural.

No interior dos edifícios encontramos um espaço exíguo e muito compartimentado, onde “as amostras das produções das Colónias” devem ter sido expostas com alguma dificuldade 21. Em três dos portais do edifício (de acesso ao pátio interior e às duas alas onde funcionou o Museu e o Laboratório), inscritos nos tímpanos, três excertos do Livro dos Salmos anunciavam aos visitantes que os objectos naturais que nesses espaços se guardavam eram obra do Criador 22. A documentação consultada revelou-nos os nomes dos artistas e artesãos que aqui trabalharam entre 1780 e 1794 na decoração das várias salas e nas obras dos armários e dos pedestais destinados a expor os produtos naturais: dois estucadores o mestre João Baptista Falcão, auferindo 1000 réis por dia, e um ajudante, João Carlos, pago a 400 réis por dia 23; quatro pintores – João António Alves a 1000 réis diários, Francisco Xavier e José António Baptista a 600 réis, e Joaquim Patrício da 21

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Na já citada relação escrita por volta de 1795, Domingos Vandelli reconhecia a exiguidade do espaço onde não cabia “em Armários com distribuição systematica tudo o que contem este riquíssimo Muséo; o qual não inveja pela riqueza, e abundancia de produções naturaes os maes famoso Muséos da Europa”. IAN/TT, Ministério do Reino, Maço 444, transcrito por João Carlos BRIGOLA, ob. cit., p. 306. Na porta de acesso ao pátio: “Venite et videte opera domini / quae posuit prodigia super terram / Psalm 45”; na porta de acesso à zona do Museu: “Quis Deus Magnus, sicut Deus noster? Tu es Deus qui facis mirabilia! / Psalm 76”; na porta de acesso ao Laboratório existe uma outra inscrição, igualmente alusiva ao Livro dos Salmos, como nos informou a Sra. Dª Gracinda Henriques, actual locatária do espaço do antigo Museu, a quem agradecemos o acesso ao local. Encontrámos estes dois estucadores a trabalhar na Quinta de Baixo, na casa de fresco por baixo da varanda e no viveiro dos pássaros. Cf. Isabel Mayer Godinho MENDONÇA, “Dos Estuques. Do Palácio de Belém”, in Do Palácio de Belém, ob. cit., pp. 244 a 263.

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Inscrição num dos portais de acesso ao Museu de História Natural: “Venite et videte opera domini / quae posuit prodigia super terram / Psalm 45”

Silva a 400 réis –, vários carpinteiros, entre os quais Feliciano José Pereira, José Baptista, José Moreira, Jacinto de Brito e Manuel José, o serrador Manuel Domingues, o entalhador António Tomás Baptista e o serralheiro António Martins de Carvalho. As cinco sacadas em ferro ainda existentes foram realizadas na oficina do serralheiro João Abraão Hirsch, em 1784, enquanto a sacada da torrinha foi feita pela oficina de ferreiro de Maria Joaquina dos Mártires. A documentação consultada revelou-nos ainda que entre 1795 e 1798 foram pagos 460$000, repartidos em prestações de 30$000, ao mestre marceneiro José Aniceto Raposo, “por conta da importância por que tomou de impreitada as Estantes do Muzeo e isto todos os mezes à extinção della”. Nesses recibos são ainda referidos os móveis que a corte ficara a dever ao marceneiro: os armários do Gabinete de Mineralogia. Em Setembro de 1802, Aniceto Raposo recebeu ainda 11$000 “pelas amostras de madeira que fez e preparou para o Real Jardim”, ao que tudo indica, um mostruário de madeiras variadas. José Aniceto Raposo foi um dos raros marceneiros que assinou as suas obras, de acordo com a obrigação imposta nos “Novos Capítulos do Regimento do ofício de carpintaria de móveis e samblagens”, de 1770, pertencente à Corporação de que foi secretário. Tinha a sua “Fábrica de Marcenaria” ao Bairro Alto, em frente ao

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chafariz do Loreto, conforme é referido nas etiquetas apostas em alguns dos seus móveis, onde também estão estampilhadas as suas iniciais 24.

*** Desde o início da sua construção em 1768, junto ao paço velho que pertencera ao conde de Óbidos e à Real Barraca gizada pelo cenógrafo Bibiena, o Real Jardim Botânico da Ajuda reuniu várias vertentes: Uma vertente lúdica – um espaço aprazível destinado ao lazer da família real, com uma implantação paisagística única, tendo o rio Tejo como horizonte, traçado em função do palácio real e em íntima ligação com ele; Uma vertente didáctica – já que foi pensado como instrumento de educação dos netos de D. José, filhos de D. Maria, em especial o príncipe do Brasil, homónimo do rei; Uma vertente política e económica – pois constituiu uma das facetas experimentais da estratégia ultramarina; no complexo do Jardim Botânico e dos espaços anexos (Museu e Laboratório) aclimataram-se plantas trazidas de outros continentes com vista à sua utilização agrícola e industrial, fizeram-se experiências e análises de solos, reuniram-se plantas, animais e minerais. Com a finalidade de abastecer estes espaços organizaram-se “Expedições Filosóficas” em três continentes. Construído ao longo do último terço do século XVIII, o Real Jardim Botânico da Ajuda é ainda um jardim barroco criado como extensão do palácio real, onde a paisagem construída se associou à escultura e às artes decorativas de forma enfática e muito cenográfica, nas escadarias debruadas de balaústres acompanhando o recorte dos lances e patamares, nos tanques e cascatas recheados de relevos e de jogos de água, e ainda nos desaparecidos silhares de azulejos e nas estátuas e bustos em faiança que decoravam os dois patamares. As vicissitudes que acompanharam a corte portuguesa entre 1788 e 1821 (as mortes do príncipe D. José e do rei consorte D. Pedro III, a loucura de D. Maria I e a apressada partida da Corte para o Brasil, motivada pelas invasões francesas, onde permaneceu até ao regresso de D. João VI em 1821), a que se juntou o devastador 24

São conhecidos seis móveis assinados por José Aniceto Raposo: no Museu da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, uma mesa giratória (oriunda do Palácio da Vila em Sintra) e dois pedestais, um tremó numa colecção privada em Inglaterra, um contador no Museu Nacional de Arte Antiga e um tremó em talha dourada no palácio de Queluz. Cf. Fernanda Castro FREIRE, 50 dos melhores móveis portugueses, Lisboa, Chaves Ferreira Publicações, 1995, pp. 108 a 111.

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saque das colecções do Museu da Ajuda, perpetrado sob instruções de Napoleão por Étienne Geoffroy Saint Hilaire, ajudam a explicar o esquecimento a que o Jardim esteve votado durante praticamente dois séculos. Só agora, após o restauro realizado pelo Instituto Superior de Agronomia entre 1993 e 1997, o Jardim Botânico da Ajuda voltou a recuperar uma parte dos múltiplos sentidos que acompanharam a sua construção.

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