O real na linguagem cinematográfica: Griffith, Eisenstein e o neorrealismo italiano

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O real na linguagem cinematográfica: Griffith, Eisenstein e o neorrealismo italiano. I. O que Eisenstein censura em Griffith é a sua concepção inteiramente empírica do organismo, sem lei de gênese nem de crescimento; é o fato de ter concebido sua unidade de maneira inteiramente extrínseca, como unidade de congregação, reunião de partes justapostas, e não como unidade de produção; (DELEUZE, 1985, p. 42). Embora o cineasta soviético Sergei Eisenstein (1898-1948) considerava-se fiador da estética cinematográfica do cineasta estadunidense D.W. Griffith (1875-1948), tal fato não impediu Eisenstein de tecer críticas estéticas ao trabalho de Griffith. A revolução socialista na Rússia, a partir de 1917, municiou Eisenstein com novos paradigmas cinematográficos, novas formas de compreensão da função do cinema como veículo de arte, de maneira diametralmente oposta à que o mundo capitalista, onde Griffith se inseria, compreendia a função do cinema. Griffith foi o primeiro grande cineasta da história do chamado cinema clássico. Ajudou a consolidar o oeste estadunidense como o centro produtor de cinema daquele país, estabelecendo as bases do que hoje conhece-se por Hollywood. Participou da criação da United Artists, em 1919, com três outros nomes consolidados da indústria cinematográfica: Mary Pickford, Charles Chaplin e Douglas Fairbanks - uma iniciativa desses artistas de controlar seus próprios interesses à revelia dos estúdios tradicionais, que ficou célebre na frase "os loucos tomaram conta do sanatório"1. Para além de encarar o cinema puramente como negócio, Griffith era um pensador da linguagem cinematográfica. Seu primeiro filme de sucesso, O Nascimento de uma Nação (1915), conta a história de duas famílias, uma do norte e a outra do sul

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Frase atribuída a Richad A. Rowland, chefe do estúdio Metro, sobre a criação da United Artists. Ver BALIO, Tino. United Artists: the company built by the stars. The University of Wisconsin Press, 1974. p. 14.

dos Estados Unidos, que na primeira parte do filme viram antagonistas devido à Guerra Civil estadunidense, mas que se reconciliam na segunda parte do filme, que se passa após o conflito. Apesar do sucesso, o filme foi criticado pela forma benevolente com que apresentava os membros da Ku Klux Klan, ao mesmo tempo em que retratava os negros como violentos, corruptos e lascivos. Com seu filme seguinte, Intolerância (1916), Griffith parece determinado a responder seus críticos de forma contundente, apresentando uma obra cinematográfica de proporções épicas. Passado em um espaço de tempo de quase 2500 anos, Griffith planejava mostrar como a intolerância degenerava a moral das civilizações, começando na Babilônia antiga até chegar nos Estados Unidos do início do século XX. Ao contrário de O Nascimento de uma Nação, Intolerância não rendeu o esperado, muito porque o público não estava preparado para uma linguagem visual tão complexa. Ambos O Nascimento de uma Nação e Intolerância mostram a potência criativa de Griffith no que tange a montagem cinematográfica. Deleuze afirma que Griffith, mesmo não tendo inventado a montagem, concebeu a montagem como uma construção orgânica de imagens, onde cada imagem, sendo única e independente, sucede a uma outra imagem de forma organizada; e nessa organização, imagens independentes criam um sentido unitário, orgânico (DELEUZE, 1985). Em O Nascimento de uma Nação, essa linguagem fica evidente na cena de perseguição entre a jovem e o negro, que são seguidos pelo irmão dela. A alternância de planos, onde num primeiro momento mostra-se a jovem Flora Cameron em fuga, num segundo momento mostra-se o negro Gus em sua perseguição, e em seguida mostra-se o irmão da jovem Ben Cameron em busca de evitar uma catástrofe, apresenta uma forma inovadora de construção dramática do enredo, proporcionando ao expectador um momento de tensão necessária para o desenrolar da trama. Essa técnica da montagem alternada alcança uma dimensão singular em Intolerância. Para além de criar um efeito dramático, Griffith redefine o tempo da narrativa cinematográfica não como chronos, mas como kairós – a sucessão de iniquidades que marca as civilizações cruza-se de forma linear, aproximando milênios de história por um único fio condutor. E o malfeito perpetuado ao longo desses séculos só alcançará sua resolução no estágio civilizatório mais avançado, que seria no capitalismo estadunidense do início do século XX.

É justamente nesse ponto que Eisenstein critica Griffith. A concepção de História em Griffith parte do pressuposto de que seu desenlace se dá a partir das tensões individuais. Os grandes movimentos coletivos descritos nos filmes de Griffith - seja o massacre de São Bartolomeu em Intolerância, ou a ascenção da Ku Klux Klan em O Nascimento de uma Nação - só se põem em movimento porque existe uma tensão, um ponto de ruptura entre motivações pessoais que se chocam. Fica evidente tal mecanismo em O Nascimento de uma Nação, já que o exército de cavaleiros da Ku Klux Klan só se mobiliza para executar Gus porque ele atentou contra a vida de Flora Cameron, irmã de um membro da Klan. Eisenstein, ao contrário de Griffith, não enxergava o movimento da História como uma lei de causalidade, onde as motivações individuais movem as motivações coletivas. E, por conseguinte, não enxergava o desenvolvimento da trama cinematográfica como dependente exclusiva das motivações pessoais dos personagens. Eisenstein enxergava a História, e o desenlace da história ficcionada no cinema, a partir de um movimento estruturado, natural, onde haja uma relação causal entre as imagens que compõem a obra cinematográfica, como o diretor relaciona essas imagens, e como diretor deseja que o espectador sinta e perceba essas imagens. Para tanto, Eisenstein retira da Dialética da Natureza de Engels, para a montagem cinematográfica, o conceito de unidade orgânica, cujo sentido "afirma-se quando a lei da construção dessa obra corresponde às leis de estrutura dos fenômenos orgânicos da natureza" (EISENSTEIN, 1987, P. 11). Eisenstein acreditava que chegara ao ponto máximo do uso da unidade orgânica em O Encouraçado Potemkin (1925). Dividido em cinco atos, o filme de Eisenstei organiza as imagens desses atos independentes, em diferentes localidades da trama, convergindo-os para o movimento histórico concreto da luta de classes. A unicidade entre as imagens-movimento e o movimento da história se dá pelo desejo de fraternidade que unifica os amotinados do Potemkin, os marinheiros da frota russa e os habitantes de Odessa. Ao chamarem-se de "Irmãos", os amotinados, os marinheiros e os habitantes de Odessa dão um salto da sua necessidade individual para reconhecer nos outros as mesmas necessidades. Portanto, como diz Eisenstein: De uma célula do organismo que é o encouraçado, para o organismo do encouraçado como um todo; de uma célula do

organismo da frota - o encouraçado - para o organismo da frota como um todo - esse é o caminho que o sentimento revolucionário de fraternidade desenvolve-se tematicamente. (EISENSTEIN, 1987, p. 13). Quando Deleuze afirma que Griffith concebia a unidade da obra cinematográfica como "inteiramente extrínseca", ela é extrínseca ao movimento real da História. O que move Ben Cameron e os demais cavaleiros da Klan a executar Gus não é um conflito de interesses particulares, pois ninguém fraqueja para cometer o justiciamento. O grupo todo tem a certeza de cumprir o dever moral de fazer justiça, mesmo que a execução dessa justiça seja de algum modo imoral. O conflito que se dá em O Nascimento de uma Nação é aquele que surge da visão sulista pós-Guerra Civil, que deseja reafirmar seu projeto de nação segregacionista sem sofrer da inquisição moral do norte abolicionista. O que Griffith ignora, mas Eisenstein deixa transparecer em sua montagem cinematográfica, é que os interesses particulares não existem isolados dos interesses coletivos. Ben Cameron só conseguiu sua justiça particular porque havia um coletivo disposto a dispensar-lhe essa justiça, criando em todos o sentimento de que a justiça não foi somente para um, mas para todos. Da mesma forma, os amotinados do Potemkin só conseguiram escapar da punição porque a crueldade particular que atravessa o Potemkin, é a crueldade que atravessa toda a frota russa. A organicidade que Eisenstein busca, na verdade, é o movimento típico do homem histórico, que se reflete no personagem cinematográfico. Ben Cameron reflete na ficção o movimento típico do sulista segregacionista histórico, e da mesma forma os amotinados do Potemkin refletem o proletariado revolucionário na Rússia, porque ambos não poderiam existir em contexto diferente.

II. Mas os clichês da propaganda de guerra, até mesmo a sonoplastia clichê das batalhas (...) se desfazem quando o soldado escuta o apito de um trem e, no ritmo do motor da locomotiva, começa a repetir: "Voltando para casa, voltando para casa...". A euforia então se transforma em tristeza: "Não, não é bom voltar para casa. Minha casa é um barraco miserável" (GUÉRON, 2011, p.103). O neorrealismo italiano surgiu como um movimento de ruptura para o cinema, assim como o movimento histórico que o precedeu foi um momento de ruptura para a civilização ocidental. A Segunda Guerra Mundial foi o conflito de resolução das tensões políticas e econômicas deixadas pelo imperialismo europeu do século XIX, que não foram resolvidas com a Primeira Guerra - aquela que viria para acabar com todas as guerras. Mas enquanto resolvia problemas de uma ordem antiga, o pós-Segunda Guerra trazia problemas de uma nova ordem. Surge alí a hegemonia do imperialismo estadunidense, com um projeto civilizatório próprio, e esse novo projeto civilizatório será o mote do neorrealismo italiano. O soldado estadunidense, que é um protagonista incidental do filme Paisà (1946), de Roberto Rossellini, seria um representante desse novo projeto civilizatório que surge do pós-Segunda Guerra. Ao libertar Nápoles dos nazi-fascistas, a sensação do mundo ocidental era de que o mundo caminhava de volta em direção à racionalidade, abandonando a barbárie do totalitarismo. Roma torna-se o microcosmo do que, imaginava-se, seria o destino de toda a Europa. Entretanto, ao deparar-se com a desolação provocada pela guerra, o soldado passa a questionar que tipo de missão civilizatória ele fazia parte. E mais ainda, que tipo de projeto civilizatório era esse, que igualava estadunidenses e italianos em sua miséria. A imagem de uma Nápoles destruída, onde mulheres são obrigadas a se prostituir, e crianças praticam pequenos furtos, tudo pela simples necessidade de sobrevivência, cria no soldado estadunidense muito mais que empatia. Ele adquire consciência do movimento histórico que aproxima pobres italianos e estadunidenses, e fica evidente que ele pode ser fiador de nenhum projeto civilizatório superior. O soldado

sabe que, ao voltar para os Estados Unidos, não será aclamado como herói, nem receberá homenagens públicas. O que lhe espera é o ocaso de uma existência nulificada por sua condição de negro e pobre. No lugar de uma estadia no Waldorf Astoria em Manhattan, o que lhe convém é um barraco sujo no Mississippi. O neorrealismo promove uma inversão dialética no uso das imagens. No cinema clássico, as imagens só criam sentido porque estão condicionadas à trama cinematográfica, de maneira que o cienasta mostra na tela somente aquilo que é relevante para o desenvolvimento dos personagens, e também para a resolução de seus conflitos. À partir do neorrealismo as imagens criam sentido por si só, e esses sentidos impoem aos personagens um novo tipo de desenvolvimento dramático. Essas imagens que atravessam o personagem com novos sentidos, Deleuze denomina como imagem-afecção. Trata-se de encarar o sujeito da trama como consciente de uma perturbação na ordem dos acontecimentos, onde "o sujeito se percebe a si próprio, ou melhor, se experimenta e se sente 'de dentro'" (DELEUZE, 1985, p. 78). Ao "sentir-se de dentro", o personagem corta as cordas do titereiro, desprende-se de uma predestinação maniqueísta, onde suas ações são uma ficção travestida de realidade. Esgota-se a possibilidade de o personagem agir extrínsecamente ao movimento histórico, abrindo automaticamente a possibilidade do mundo real e concreto constituirse em um mundo de ficção. Desse modo, Rossellini aproxima-se de Eisenstein na busca de uma unidade orgânica das imagens, no sentido de buscar nas imagens-movimento o movimento histórico típico da civilização. Ao mostrar pela ficção a realidade concreta, sem parecer documentarista, Rossellini imediatamente quebra os clichês do cinema clássico: não há a jornada de um herói, nem a resolução dos conflitos da trama. Os conflitos são as molas propulsoras da trama cinematográfica, e a jornada do personagem se dá por conta desses conflitos. Se Ben Cameron responde por todos os sulistas segregacionistas do século XIX, o soldado estadunidense responde por todos os soldados aliados no front da Segunda Guerra. São "caracteres típicos sob situações típicas" (GUNNARSON, 1995, p. 16) Por essa perspectiva, pode-se analisar a trama da família Essenbeck em outro filme neorrealista: Os Deuses Malditos (1969), de Luchino Visconti. Os

Essenbecks são a típica família burguesa e conservadora alemã na década de 1930, como eram os Krupp e os Thyssen. O que une essas famílias da realidade e da ficção não é tanto o seu status econômico, ou sua estrutura tradicional, e sim a forma como se comportam diante do movimento histórico real, que atravessa a realidade e a ficção. Diante da falência da democracia formal da República de Weimar, os Krupp e os Thyssen, interessados em manter e expandir seus monopólios industriais, não vacilaram em apoiar os nazistas. E assim como ocorreu na realidade, os Essenbeck, na ficção, sujeitaram-se às maquinações dos oficiais da SS. Obviamente não podemos ignorar os tipos que Visconti insere na película. Se analisarmos por um espectro superficialmente moral, não seria difícil observar que os Essenbeck são uma família disfuncional. Sophie von Essenbeck é uma mãe superprotetora que desenvolve um complexo de Jocasta enrustido por seu filho, e tem como amante o alpinista social Friedrich Bruckmann, que manipula a família com a ajuda da SS para controlar seus negócios. Martin, filho de Sophie, é um rapaz abusivo e imoral que molesta sexualmente sua sobrinha e uma garota judia pobre, ambas menores de idade. Em vista desses tipos disfuncionais, a ascensão do nazismo seria plenamente justificada como resultado de uma sociedade corrompida e sem escrúpulos, numa operação estritamente griffithtiana que parte do individual para o coletivo. Visconti inverte essa lógica, deixando claro que o movimento histórico de ascensão do nazismo, mesmo levando a reboque um país inteiro, só ganha corpo porque se insere com capilaridade no meio desses tipos disfuncionais. A unidade orgânica formada pelos Essenbeck e pelos nazistas só é completa porque ambos operam disfuncionalmente, ao mesmo tempo em que cooperam para suas aspirações. Não à toa Visconti descreve a Noite das Longas Facas como uma orgia homossexual grotesca, onde homens travestidos cantam canções de Marlene Dietrich, da mesma forma como fez Martin von Essenbeck na festa de aniversário do seu avô. O triunfo do neorrealismo como vertente cinematográfica encontra-se justamente por esse reflexo da realidade concreta na ficção, sem que esse processo crie uma realidade falseada. Griffith encadeia a trama de seus personagens dentro de uma moral idealizada, descolada das tensões reais que movem os seres humanos reais. Eisenstein, e os neorrealistas a partir dele, buscam um encadeamento natural, típico, da

trama cinematográfica, que seja um reflexo das tensões reais humanas na ficção. Assim complementa Sánchez Vásquez: O homem é o objeto específico da arte, ainda que nem sempre seja o objeto da representação artística. (...) Portanto, ao refletir a realidade objetiva, o artista faz-nos penetrar na realidade humana. Assim, pois, a arte pode nos revelar um pedaço do real, não em sua essência objetiva, tarefa da ciência, mas em sua relação com a essência humana. (SÁNCHEZ VÁSQUEZ, 2010, p. 31)

Bibliografia: DELEUZE, Gilles. Cinema 1: a imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985. EISENSTEIN, Sergei. Nonindifferent Nature. Cambridge University Press, 1987. GUÉRON, Rodrigo. Da imagem ao clichê, do clichê à imagem: Deleuze, cinema e pensamento. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2011. GUNNARSON, Gunnar. Estética Marxista: realismo, sociedade de classes e alienação. Brasília: Edições Alva, 1995. SÁNCHEZ VÁSQUEZ, Adolfo. As ideias estéticas de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

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