O RECONHECIMENTO DA DIFERENÇA NA EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

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DIREITOS DE CRIANÇAS A ADOLESCENTES NA AMAZÔNIA: Referências para a formação de Conselheiros Tutelares e de Direitos e outros atores do Sistema de Garantia.

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Organizadores Salomão Hage, Lúcia Isabel Silva e Nazaré Araújo

DIREITOS DE CRIANÇAS A ADOLESCENTES NA AMAZÔNIA: Referências para a formação de Conselheiros Tutelares e de Direitos e outros atores do Sistema de Garantia.

1º Edição Editora Gráfica UFPA Belém – 2015

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2015 by, Editora Gráfica UFPA Título: Direitos de Crianças a Adolescentes na Amazônia: Referências para a formação de Conselheiros Tutelares e de Direitos e outros atores do Sistema de Garantia, 2015. Organizadores: Salomão Hage, Lúcia Isabel Silva e Nazaré Araújo Comitê Científico: Carlos Alberto Batista Maciel, Edval Bernardino Campos, Flávia Cristina Silveira Lemos, Lília Iêda Chaves Cavalcante, Lúcia Cortes da Costa, Paula Regina Arruda de Azevedo, Reinaldo Nobre Pontes e Sandra Helena Ribeiro Cruz.

Revisão: Joana Sena Projeto Gráfico e capa: Cláudio Lima Assunção Diagramação: Joana Sena Impressão e Acabamento: Gráfica da Universidade Federal do Pará – UFPA.

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Organizadores: Salomão Hage, Lúcia Isabel Silva e Nazaré Araújo. Direitos de Crianças a Adolescentes na Amazônia: Referências para a formação de Conselheiros Tutelares e de Direitos e outros atores do Sistema de Garantia/ 1ª ed.,-Belém-Pará-2015. – 540p. Indexado em EscoladeConselhos – http://www.escoladeconselhospara.com.br ISBN 2446-8924 1.

Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências da Educação, Escola de Conselhos.

ISSN 2446-8924 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem autorização. 1ª Edição: Novembro de 2015. Instituto de Ciências da Educação / ICED – UFPA Rua Augusto Corrêa, nº 01. Campus Universitário do Guamá – Setor Profissional CEP: 66075-110, Belém – Pará [email protected] http://www.escoladeconselhospara.com.br/ https://pt-br.facebook.com/escoladeconselhospara/

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O RECONHECIMENTO DA DIFERENÇA NA EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Luanna Tomaz de Souza11

A EVOLUÇÃO INTERNACIONAL DO DIREITO DA CRIANÇA

Em seu desenvolvimento histórico, os direitos humanos estiveram muito mais centrados a um ser humano genérico e universal, ignorando-se as especificidades de uma série de outros sujeitos (como indígenas, mulheres e crianças) que apenas nas últimas décadas têm sido objeto de importantes documentos, como a Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas (2007) e a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo (2007). Em realidade, a compreensão da infância como uma fase diferenciada no desenvolvimento do ser humano é recente e não pode ser entendida dentro de uma mera abstração, mas como reflexo de um conjunto de compreensões sobre família, maternidade, direitos, juventude, aspectos socioculturais e também jurídicos. Desde o século XII, a sociedade desenvolve modelos para infância, alijando, contudo, determinadas crianças de vivê-los, principalmente as mais pobres (ARIÉS, 1978). Somente muito recentemente a noção de criança surge no cenário jurídico internacional. Em 26 de setembro de 1924, uma primeira Declaração dos Direitos da Criança foi adotada reconhecendo que a responsabilidade pela criança é coletiva e internacional. Em 20 de novembro de 1959, surge uma segunda declaração perfilhando a necessidade de proteção e cuidados específicos à infância.

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Professora da Universidade Federal do Pará. Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PA. Doutoranda em Direito (Universidade de Coimbra). E-mail: [email protected]

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Ambas as declarações, contudo, continham problemas, pois não possuíam grande força coativa. A 1a Declaração não teve grande impacto sobre os Estados, pois se afirmava como uma declaração de obrigações dos homens e mulheres sem força coercitiva. A 2a Declaração, mesmo sem força coercitiva, criou forte impacto internacional sendo convocadas a partir dela diversas reuniões internacionais. Em 1989, há a Convenção Internacional Relativa aos Direitos da Criança12, que reafirma a necessidade de proteção da infância, mas ao mesmo tempo, erige a criança como um sujeito de diversos direitos, retomando alguns princípios já estabelecidos em instrumentos internacionais anteriores. Em seu art. 1o, define criança como todo ser humano com idade inferior a 18 anos, exceto quando, pela lei do país, a maioridade seja estabelecida antes e erige princípios como o do “superior interesse da criança” e o da prioridade que já estavam consagrados na 2a declaração13. Diferente das demais, esta cria mecanismos coercitivos e mais de 50 artigos que contemplam diversos direitos. Existem também vários documentos voltados à questão da relação entre jovens e criminalidade, que são influenciados também pelo reconhecimento das garantias penais aos adultos tais como: as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores, de 198514, as Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil, de 1990 - "Diretrizes de Riad"

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, e as Regras

Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade – Regras de Havana,

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e as Regras Mínimas das Nações Unidas para Medidas Não

Resolução 44/25 da Assembleia Geral, de 20 de novembro de 1989.

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Ambos estão consagrados no art. 227 da Constituição. O primeiro estabelece que todas as ações relativas às crianças devem considerar, especialmente, o “interesse maior da criança” e o segundo estabelece que as ações voltadas à proteção da infância têm prioridade sobre toda e qualquer ação. 14

Conhecidas como “Regras de Beijing”. Elas estendem aos menores de idade garantias processuais tradicionalmente asseguradas aos maiores de idade. Este texto internacional prega também o desenvolvimento da especialização e da profissionalização da “justiça de menores”, assim como o recurso preferencial a procedimentos extrajudiciais e a medidas educativas diversas da privação de liberdade. 15

Diretrizes para a prevenção da delinquência juvenil, documento que passou a nortear a formulação e a execução de programas e políticas nessa seara, com ênfase nas atividades de assistência e de estímulo à participação da comunidade. 16

Definem a privação de liberdade de forma ampla, estendendo a proteção a toda forma de internação em estabelecimento público ou privado do qual o jovem não possa sair por sua livre e espontânea vontade.

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Privativas de Liberdade – “Regras de Tóquio”

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, também de 1990. Estes documentos

são importantes por traçar limites ao que, em regra, ficava sob tutela somente dos Estados. No sistema interamericano também temos textos gerais de proteção dos direitos humanos aplicáveis à infância, como o “Consenso de Kingston”, de 13 de outubro de 2000 – textos que reúne as deliberações e recomendações adotadas na V Reunião Ministerial relativa à Infância e à Política Social nas Américas 18 - e a Declaração do Panamá - resultado da X Cúpula Ibero-Americana de Chefes de Estado e de Governo “Unidos pela Infância e Adolescência, Base da Justiça e da Equidade no Novo Milênio” 19. Os textos descritos permitem esboçar um modelo de intervenção preconizado na esfera internacional, onde as crianças são vistas como titulares de direitos universalmente reconhecidos, direitos estes que devem ser garantidos tanto pelo Estado, como pela família ou ainda pela sociedade como um todo (MACIEL, 2010).

A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA NO BRASIL A construção social da infância no Brasil envolveu processos de agenciamento das crianças em espaços institucionais com funções de controle, prevenção, repressão e educação, orientadas por filosofias políticas ligadas às concepções da infância e às formas de gerenciamento da mesma. Em geral, o reconhecimento jurídico das crianças no ordenamento brasileiro é dividido em três fases: Doutrina do Direito Penal do Menor; Doutrina da Situação Irregular e Doutrina da Proteção Integral (ISHIDA, 2011). São momentos que 17

Disciplina sobre o ato infracional juvenil em todos os estágios do processo, estabelecendo a privação da liberdade como medida excepcional. 18

Dentre os compromissos deste texto, temos o de garantir a toda criança ou adolescente em conflito com a lei um tratamento respeitoso das garantias processuais, dos princípios consagrados pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança e de outros instrumentos legais nacionais ou internacionais de proteção da infância. 19

Estes países reconhecem que a pobreza e a miséria, as desigualdades e a exclusão sociais, e a violência familiar são as principais causas da delinquência juvenil, comprometendo-se a reduzir estas desigualdades, punir as violações de direitos e modernizar suas instituições com a participação da sociedade civil.

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representam, acima de tudo, regimes discursivos e processos históricos relacionados a posições sobre o papel do Estado, contextos políticos e valores socioculturais mais vastos que os expressos nos códigos legais (OLIVEIRA, 2012). Temos um primeiro momento, que vai desde as primeiras leis penais até início do século XX, momento em que as crianças eram tratadas praticamente iguais aos adultos, no que concerne à responsabilidade penal. Nesse momento, a atuação do Estado para a infância era voltada a programas de assistência médica, numa perspectiva higienista20, cabendo à Igreja a responsabilidade sobre as crianças que não recebiam proteção da família ou que precisavam ser catequizadas, como as indígenas. A partir do início do século XX até o seu final em meados da década de 1980, temos o período da chamada Doutrina da Situação Irregular, que se caracteriza por uma intensa aliança entre a Justiça e a Assistência. A inspiração nesse período vem dos Estados Unidos da América (EUA), primeiro país a criar uma Justiça Especializada. A política criminal juvenil dos EUA baseava-se na predominância do poder dos juízes sob a intervenção familiar. No reflexo destas discussões, surge no Brasil, em 1923, o Juízo de Menores, tendo sido José Cândido de Albuquerque Mello Mattos o 1o Juiz de Menores da América Latina. Em 1927, advém o Decreto 17.943-A, o 1o Código de Menores do Brasil, ou Código Mello Matos. Este ultrapassa em muito as fronteiras da ação jurídica sob a infância (MACIEL, 2010). Surge nesse momento a categoria do “menor”, que simbolizava a "infância pobre e potencialmente perigosa, diferente do resto da infância". Para Rita de Cássia Oenning da Silva (2013, p.11), “o conceito menor é notoriamente uma desqualificação destas crianças e adolescentes colocando-as numa condição de menor valor (menos pessoa) que outras crianças”. O Código claramente alertava que não atuaria sobre todas as crianças numa conceituação extremamente preconceituosa e segregadora, reveladora de uma 20

O movimento higienista surge a partir do liberalismo, na primeira metade do século XIX quando os governantes começam a dar maior atenção à saúde dos habitantes das cidades. Para estes, principalmente médicos, a doença era um fenômeno social que abarcava todos os aspectos da vida humana e havia a necessidade do Estado intervir para garantir a “melhoria” da população.

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compreensão de infância patologizante típica da aliança entre o saber jurídico e o saber médico do movimento higienista. Este define o “delinquente” não mais como vítima, mas sim como alguém que possui algum grau de desajuste em relação ao padrão aceitável de conduta infantil em torno dos padrões psiquiátricos (RIZZINI, 1997).

Art. 1o - O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 anos de idade, será submetido pela autoridade competente ás medidas de assistência e proteção contidas neste Código. Art. 14. - São considerados expostos os infantes até sete anos de idade, encontrados em estado de abandono, onde quer que seja. Art. 26. - Consideram-se abandonados os menores de 18 anos: [...] IV, que vivam em companhia de pai, mãe, tutor ou pessoa que se entregue á pratica de actos contrários á moral e aos bons costumes; V, que se encontrem em estado habitual de vadiagem, mendicidade ou libertinagem; VI, que frequentem lugares de jogo ou de moralidade duvidosa, ou andem na companhia de gente viciosa ou de má vida. VII, que, devido á crueldade, abuso de autoridade, negligencia ou exploração dos pais, tutor ou encarregado de sua guarda, sejam: [...] c) empregados em ocupações proibidas ou manifestamente contrarias á moral e aos bons costumes, ou que lhes ponham em risco a vida ou a saúde; d) excitados habitualmente para a gatunice, mendicidade ou libertinagem.

Para o “menor”, a resposta adequada era a cultura da institucionalização, tanto aqueles que houvessem cometido um delito ou qualquer um que fosse declarado numa situação irregular pelo magistrado. Apesar de colaborar para a distinção entre a vida adulta e a infância, este código não consegue impedir o binômio carência/delinquência, com uma clara criminalização da pobreza. Em 1979, temos um “novo” Código de Menores, consagrando a teoria menorista da situação irregular e inspirado pelo regime totalitário e militarista vigente

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no país. Este firmou o “menor” como objeto de tutela do Estado, legitimando a intervenção estatal sobre as crianças e os adolescentes que estivessem em uma circunstância que a lei estabelecia como situação irregular, operando uma clara divisão entre a infância protegida e os “menores” (QUEIROZ, 2013).

Art 1o - Este Código dispõe sobre assistência, proteção e vigilância a menores: I - até dezoito anos de idade, que se encontrem em situação irregular; II - entre dezoito e vinte e um anos, nos casos expressos em lei. Parágrafo único - As medidas de caráter preventivo aplicam-se a todo menor de dezoito anos, independentemente de sua situação. Art 2o - Para os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor: I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las; II - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável; III - em perigo moral, devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes; IV - privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V - Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária; VI - autor de infração penal.

Surgem nesse período diversas políticas. Em 1941, é criado o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), demonstrando o reconhecimento pelo Estado do “problema do menor” com um problema nacional. Seu objetivo era o de propiciar atendimento dentro dos estados aos “menores” pela criação de escolas de reeducação. 54

O SAM recebe severas críticas de corrupção, maus-tratos e ineficiência, sendo criada em 1964 a Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor (FUNABEM), por meio da Lei nº 4.513. Tinha como objetivo formular e implantar a Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM), por meio do estudo do problema do “menor” planejando soluções. Nesse contexto, é criada também a Fundação Estadual do BemEstar do Menor (FEBEM) como uma nova forma de atendimento as crianças e adolescentes pobres uma escala mais reduzida. Substituía o enfoque correcionalrepressivo do extinto SAM, pelo enfoque assistencialista em que pese não tenha obtido muito êxito (RIZZINI, 1997). Na ditadura militar os “menores” tornam-se problema de segurança nacional e as FEBEMs passam a virar “depósitos” de crianças, sob as mais diferentes justificativas. Todo esse processo resulta em inúmeras violações denunciadas por diversos segmentos como os Movimentos dos Meninos e Meninas de Rua e o Fórum Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes (FNDCA). A partir de 1980, com a redemocratização do país, inicia-se um clima legislativo extremamente propício a mudanças que começam com a Reforma Penal de 1984, trazendo ao invés de menores “irresponsáveis”, a expressão “inimputáveis”, já que a responsabilização aconteceria, mesmo que de maneira diferenciada. A Constituição Federal de 198821 também sofre os impactos das pressões dos movimentos sociais, de intelectuais e o avançar internacional, estabelecendo reconhecendo expressamente a tutela jurídica de direitos fundamentais e a reconfiguração da família e de novos sujeitos, como a criança e o adolescente. É nesse espírito de pressões e mudanças, em âmbito nacional e internacional, que surge a Lei 8.069/90 – O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) rompendo com a doutrina da situação irregular em nome da doutrina da proteção integral. Segundo Lamenza (2008), esta representa todas as iniciativas que garantam à criança e ao adolescente um ambiente propício ao seu regular e peculiar desenvolvimento. O ECA erige assim, juntamente com a Constituição, um sistema de

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Em especial os artigos 296 a 298.

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garantias e um tripé formado pela família, pela sociedade e pelo Estado na proteção das crianças e dos adolescentes. A partir desse novo tratamento, a criança passou a ser considerada em sua dignidade de pessoa humana e sujeito pleno de direito: à vida, à educação, à saúde, ao lazer, à convivência familiar, à integridade física e psicológica também. Repudia-se o uso da palavra “menor”, trazendo o novo Estatuto às expressões “criança”, definida como o jovem até os 12 anos incompletos, e “adolescente”, o jovem entre 12 anos completos e os 18 anos incompletos, reconhecendo as diferenças existentes em cada um destes. A criança passou de simples objeto de tutela a verdadeiro sujeito de direitos e deveres, recebendo ampla proteção do Estado. A infância e a adolescência são reconhecidas como fases específicas e especiais da vida humana, com seres em desenvolvimento, de nenhuma forma aptos a se auto determinarem, sendo dignos de uma proteção especial e de prioridade absoluta22 nas políticas públicas, na família e na sociedade. O ECA reconhece uma gama de direitos que devem ser assegurados de forma integral e prioritária, com atuação de todos os entes federativos, da sociedade e da família. O art. 3o do estatuto começa a enumerar os direitos assegurados, sustentados a partir de três princípios, conforme comentário de Paolo Vercelone (2013, p.1):

Os princípios afirmados no artigo são três: a) crianças e adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais assegurados a toda pessoa humana; b) eles têm direito, além disso, à proteção integral que é a eles atribuída por este Estatuto; c) a eles são garantidos também todos os instrumentos necessários para assegurar seu desenvolvimento físico, mental, moral e espiritual, em condições de liberdade e dignidade.

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Art. 4o - É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

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Garantem-se assim o direito à vida e à saúde; o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade; o direito ao esporte e ao lazer; o direito à profissionalização e à proteção ao trabalho; e à convivência familiar e comunitária. Há de se reconhecer os avanços trazidos pelo Estatuto que reconhece direitos deste o ventre materno, como o direito de alimentação à gestante, o nascimento digno e saudável, até o direito de brincar, tantas vezes violado por crianças que precocemente adentram o mundo do trabalho. Embora se possa visualizar nisto a consolidação das crianças e dos adolescentes como titulares de direitos, não se pode afirmar, ainda, que seja pacífico o reconhecimento de certas dimensões de direitos, como é o caso daqueles que dizem respeito à sexualidade.

3. OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NA AMAZÔNIA A Doutrina da Proteção Integral, presente no Estatuto da Criança e do Adolescente, representa grande avanço, na medida em que evita a produção de dicotomias entre “crianças normais” e “menores”, defendendo que as mesmas devam ser pensadas na integralidade da condição. Todavia, o advento do ECA não rompeu com a influência de práticas anteriores, clientelistas, assistencialistas, patrimonialistas e de segregação, pautadas em racismos variados. Segundo Galindo et al (2014, p. 63), o eugenismo23 e o higienismo da atualidade têm deslocamentos, mas muitos de seus ideários foram disseminados no campo de saberes, de poderes e de subjetivações, bem como nas práticas de segurança e nas políticas públicas de modo geral:

“Se a FEBEM concretamente foi abolida do Sistema de Atenção Psicossocial, a lógica FEBEM, concebida como uma disposição de saberes, práticas e jogos de forças, persiste”.

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O movimento eugenista estimulava a esterilização de grupos discriminados bem como penas capitais, internações e prisões perpétuas.

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Segundo Oliveira (2012), a qualificação de sujeitos de direitos às crianças e aos adolescentes possibilitou a estruturação de uma concepção (proteção integral), de uma forma de gestão (participativa e descentralizada) e de um método (não assistencialista e, quanto aos atos infracionais, de caráter socioeducativo) com a objetivação das relações24. Para o autor, entretanto, é necessário adequar práticas e pensamentos, principalmente em contextos socioculturais e em relações de poder nas quais se mesclam, conflitam e negociam mais de uma forma de pensar o agenciamento jurídicoestatal e a cidadania da criança, o que não ocorre com a formalização normativa de outros mecanismos institucionais e recursos discursivos. Nesse contexto, não pode haver uma forma homogenizadora, impositiva e naturalizada de se instrumentalizar a construção social da infância. O artigo 30 da Convenção dos Direitos da Criança estabelece que:

[n] os Estados em que existam minorias étnicas, religiosas ou linguísticas ou pessoas de origem indígena, nenhuma criança indígena ou que pertença a uma dessas minorias poderá ser privada do direito de, conjuntamente com membros do seu grupo, ter a sua própria vida cultural, professar e praticar a sua própria religião ou utilizar a sua própria língua.

Ocorre que o Estatuto da Criança e do Adolescente ainda preserva uma imagem idealizada de infância, estabelecendo quem é criança (de 0 a 12 anos incompletos) e adolescente (de 12 a 18 anos incompletos)25, quando esta pode trabalhar (acima dos 16 anos)26 que muitas vezes não se coaduna com determinados contextos específicos da Amazônia, como o indígena, o quilombola ou o ribeirinho. O único 24

Simmel (1983) aponta a tendência moderna de desconexão entre as dimensões objetivas e subjetivas, sendo cada vez mais os objetos autônomos perante os sujeitos e as relações pautadas por uma predominância do meio sobre o fim. 25 26

Art. 2° do ECA. art. 7º, XXXIII da Constituição Federal.

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momento em que o Estatuto da Criança e do Adolescente menciona as crianças indígenas e quilombolas é no art. 28, §6o quando afirma que na adoção devem ser consideradas e respeitadas sua identidade social e cultural. O Projeto de Lei no 295/2009 buscava acrescentar dispositivos ao Estatuto da Criança e do Adolescente, para dispor sobre os direitos da criança e do adolescente indígenas, mas foi arquivado. Este projeto de lei, contudo, levanta uma importante discussão sobre a possibilidade de relacionar integralidade e pluralidade, com compromisso ético de relativização das supostas normalidades conceituais ocidentais, substituída pela valorização da perspectiva sociocultural dos “outros” e de incremento das políticas de inclusão social27. Em realidade, vivemos em um país que resiste ao reconhecimento das diferenças, sejam de gênero, étnicas e/ou raciais, o que alimenta desigualdades. Na Amazônia, convivemos com diferentes contextos culturais e grupos étnico-raciais e precisamos que as políticas públicas alcancem a população em toda a sua diversidade, reordenando-se os discursos, as práticas e as instituições. Todavia, muitas das leis e políticas públicas ainda partem de uma visão idealizada e universal de infância e sofrem pressões sociais que impedem discussões que ampliem essa perspectiva, como foi o caso recente da alteração do Plano Nacional de Educação (PNE) sendo suprimido o item:

“São diretrizes do PNE a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”28.

27

OLIVEIRA, 2012

28

Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2014-04/comissao-da-camara-aprova-texto-base-do-pne-eretira-questao-de-genero. Acesso em: jan. 2012.

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Tais alterações impedem que se amplie o olhar acerca da complexidade das identidades desses sujeitos e das desigualdades sociais que vivenciam por intermédio de um enfoque integrado, alcançando a criança a partir de seu contexto sócio-político. A cidadania pressupõe, não apenas, o reconhecimento dos direitos, mas garantias sociais, jurídico-institucionais para que estes direitos possam ser usufruídos sem quaisquer tipos de discriminação. Para que as crianças sejam cidadãs, este conceito precisa ser redimensionado na justa medida da constatação das antinomias de seu cotidiano através da reconstrução de sua identidade político-social; da articulação entre a esfera pública e a privada; e das distorções entre lei e realidade.

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REFERÊNCIAS ARIÈS, P. História social da infância e da família. Rio de Janeiro: LCT, 1978 GALINDO, Dolores; LEMOS, Flávia Cristina Silveira; SOUZA, Leonardo Lemos de; RODRIGUES, Renata Vilela. Como se forja o menor: tramas da atenção psicossocial e da proteção social. Barbarói, Santa Cruz do Sul, n.41, p., jul./dez. 2014 ISHIDA, Váter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente – doutrina e jurisprudência. 13. ed. São Paulo: Altlas, 2011. LAMENZA, Francismar. O direito da criança e do adolescente ao tratamento contra a drogadição. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XI, n. 58, out 2008. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=3145lame. Acesso em jan 2015. MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. 4. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010. OLIVEIRA, Assis da Costa. Direitos humanos dos indígenas crianças: perspectivas para a construção da Doutrina da Proteção Plural. 2012. 240f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Instituto de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Pará, Belém, 2012. QUEIROZ, Bruno Caldeira Marinho de. Evolução Histórico-normativa da Proteção e Responsabilização

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Paolo.

Comentando

o

ECA.

2010.

Disponível

em:

http://www.promenino.org.br/noticias/arquivo/eca-comentado-artigo-3-livro-1---temacrianca-e-adolescente. Acesso em: 09 fev. 2013.

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