O registo arqueológico de um porto Atlântico: a Horta do século XIX

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Foi assumido há muito que a arqueologia dos campos de batalha tem um interesse científico alto, estando, por isso, entre os processos de formação do registo arqueológico mais procurados a nível internacional em épocas históricas, onde se podem encontrar relatos, muitas vezes pormenorizados, do decorrer dos combates2. Estão entre estes casos alguns dos projectos de investigação mais mediáticos desenvolvidos até à data em todo mundo na área da arqueologia subaquática, destacando-se a escavação em Inglaterra dos restos do Mary Rose, navio de Henrique VIII que naufragou em 1545 numa batalha contra os franceses ao largo de Portsmouth, perante a Coroa inglesa, que se encontrava na costa (Marsden, 2003). Destaca-se também o estudo do submarino Hunley e do navio USS Housatonic, ambos perdidos em 1864, em Charleston durante a Guerra Civil Americana3. Em Portugal, o mesmo interesse pela arqueologia dos campos de batalha, que remonta em terra a escavações no campo da Batalha de Aljubarrota4,   C  entro de História d’ Aquém e d’Além Mar (CHAM), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa (UNL) e Universidade dos Açores (UAç); Observatório do Mar dos Açores (OMA); Bolseiro de Doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) 2   Sutherland, T.L. (2005) Battlefield Archaeology - A Guide to the Archaeology of Conflict [em linha]. Disponível em www.bajr.org/documents/bajrbattleguide.pdf [Consultado a 03 de Março de 2015]. Conlin, D. L. e Russell, M. A. (2010) – “Maritime Archaeology of Naval Battlefields”, in C. R. Geier, L. E. Babits, D. D. Scott, e D. G. Orr (eds), The Historical Archaeology of Military Sites: Method and Topic, College Station: Texas A & M Press, pp. 39-56. 3   Conlin, D. L. e Russell, M. A. (2010) – “Maritime Archaeology of Naval Battlefields”, in C. R. Geier, L. E. Babits, D. D. Scott, e D. G. Orr (eds), The Historical Archaeology of Military Sites: Method and Topic, College Station: Texas A & M Press, pp. 39-56. 4   Catarino, H. (2001) - “À descoberta dos vestígios arqueológicos”, in J. G. Monteiro (coord. de), Aljubarrota revisitada, Coimbra - Imprensa da Universidade, pp. 97-132. 1

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leva a que a primeira escavação arqueológica subaquática tenha ocorrido no local de naufrágio do navio almirante francês L´ Océan, na praia da Salema, afundado em Vila do Bispo em 1759 durante a batalha de Lagos, que opôs a França ao império britânico durante a Guerra dos Sete Anos5. Neste quadro, em teoria, a batalha ocorrida entre o navio corsário General Armstrong e as forças britânicas há 200 anos, teria um potencial muito elevado, não só porque resultou na perda do navio americano, mas também porque envolveu três navios britânicos, com um poder de fogo extraordinário. Justifica-se, pois, o exercício de procurar no registo arqueológico da baía da Horta os vestígios do Armstrong. O conhecimento actual do património cultural subaquático do entorno ao porto da Horta resulta sobretudo dos trabalhos arqueológicos desenvolvidos desde 2002 por uma equipa actualmente no Centro de História d’ Aquém e d’Além Mar (CHAM), das Universidades Nova de Lisboa e dos Açores. Estes permitiram registar e estudar vestígios arqueológicos subaquáticos que documentam a navegação desde o século XVI, destacando-se, das épocas mais antigas, os restos da Nossa Senhora da Luz e do naufrágio do marfim (Baía da Horta 1 – BH-001). A primeira, uma nau da Carreira da Índia portuguesa que naufragou à entrada da baía de Porto Pim em 1615 quando voltava de Goa através da Rota do Cabo, com uma carga de tecidos, pedras preciosas, porcelanas e outros produtos orientais6. O segundo, os restos dispersos de um navio provavelmente britânico do primeiro quartel do século XVIII, onde, entre outros materiais, se destacam mais de uma centena de cachimbos ingleses e de presas em marfim de elefante que nos remetem para as rotas comerciais no Atlântico setecentista7.   A  lves, F.J. S. (1984) - “Océan ‘84. A primeira campanha de escavações arqueológicas subaquáticas realizadas em Portugal. Notícia preliminar”, Informação Arqueológica (1984) 6, pp. 5-10. Blot, J. Y. e Blot, M. L. (2013) - Fahrenheit 1759 - The Battle of Lagos, Edições Subnauta. 6   Bettencourt, J. (2005-2006) - “Os vestígios da nau Nossa Senhora da Luz: resultados dos trabalhos arqueológicos”, Arquipélago – História, 2ª série, IX-X, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, pp. 231-273. 7   Bettencourt, J. e Carvalho, P. (2010) – “A história submersa na baía da Horta: resultados preliminares dos trabalhos arqueológicos no “naufrágio do marfim” (primeiro quartel do século XVIII)”, in Actas do V Colóquio “O Faial e a Periferia Açoriana nos séculos XV a XIX, Horta: 5

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No entanto, são do século XIX a maior parte das evidências arqueológicas registadas no porto da Horta, como deixava antever o conhecimento histórico e a análise das referências a naufrágios ocorridos nos Açores e, que evidenciam o papel estratégico que este porto passou a assumir enquanto escala de apoio à navegação no Atlântico a partir do século XVII8. A maior parte destas evidências corresponde a materiais dispersos, localizados durante o acompanhamento arqueológico das dragagens efectuadas no quadro da construção do novo terminal de passageiros, incluindo-se, por exemplo, várias cerâmicas industriais, instrumentos de navegação ou outros equipamentos (Figs. 1 e 2). Registaram-se também, para este período, pelo menos cinco prováveis contextos de naufrágio, em estados de conservação muito distintos e com evidências materiais também diversas, mas que nos obrigam a colocar duas questões. Será possível identificar o Armstrong no registo arqueológico da Horta? E se não, qual o significado histórico dos vestígios actualmente conhecidos? Destes cinco casos (Fig. 3), podem ser de imediato excluídos os restos localizados em BH-005, onde se destaca parte de um mastro, com 16 m de comprimento, construído em liga de ferro, muito semelhante a estruturas deste tipo ilustradas na enciclopédia ilustrada do Capitão Paasch’s de 18909. O acompanhamento das dragagens nas zonas periféricas permitiu registar outros restos, dispersos, com a mesma cronologia, nomeadamente parte de uma roda de leme e várias bigotas, que sugerem um depósito relacionado com um naufrágio ainda não identificado. Não foram localizadas outras evidências arqueológicas nas proximidades, o que indica que estes vestígios poderão ser restos de um naufrágio arrojado à praia, cuja descrição é frequente na documentação oitocentista,

Núcleo Cultural da Horta, pp. 139-152.   C  osta, R. (2011) – “A propósito da Horta dos cabos submarinos. A relevância da Ilha do Faial na construção da “civilização atlântica”, In O Porto da Horta na História do Atlântico. O tempo dos cabos submarinos, Horta: Museu da Horta e Associação dos Antigos Alunos do Liceu da Horta, pp. 69-80. 9   Paasch, H. (1890) - Illustrated marine encyclopedia, Antuérpia. 8

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que dá conta da recuperação e arrematação da madeira e outros objectos de navios lançados contra a costa. Só para referir um exemplo, ficou célebre o naufrágio de nove navios durante uma tempestade que assolou a ilha do Faial nos dias 17 e 18 de Janeiro de 185810. Conhecida também é a fotografia de uma baleeira Sullivan, publicada no Arauto de 15 de Janeiro de 1913, que encalhou na praia, em frente à embocadura da Ribeira da Conceição (Fig. 7)11. Muitas destas madeiras são ainda hoje visíveis na estrutura de várias habitações da cidade da Horta. O primeiro caso a considerar corresponde, por isso, ao sítio Baía da Horta 3 (BH-003), onde entre 2009 e 2012 durante o acompanhamento arqueológico das dragagens foram recuperados 14 canhões, dispersos e profundamente enterrados sob 3 m de sedimentos. As sondagens por escavação efectuadas nesta área não permitiram localizar depósitos bem preservados, tendo no entanto sido recuperadas algumas balas em chumbo, uma fivela em estanho e um peso de moedas, que sugerem que os canhões fariam parte de um contexto de naufrágio contra à praia, em frente ao Castelo do Bom Jesus.

Fig. 1 Sino recuperado durante o acompanhamento das dragagens efectuadas na baía da Horta.   C  orsépius, Y. (2001) – Documentos Enviados pela Capitania do Porto da Horta entre Janeiro de 1839 e Novembro de 1862 Existentes no Arquivo Central da Marinha, Edição do Autor. 11   Informação pessoal de Frederico Cardigos, a quem agradecemos. 10

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Fig. 2 - Dois faróis, descobertos durante o acompanhamento das dragagens.

Fig. 3 - Localização dos sítios de naufrágio, certos ou prováveis, identificados até à data na baía da Horta.

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Fig. 4 Pormenor da boca do canhão BHAC007.2, recuperado no sítio BH-003. Por debaixo das concreções, camada densa e dura que corresponde a precipitados que se misturam com a areia, com a vida marinha e com os produtos de corrosão, escondiam-se os pormenores originais do canhão, entre os quais a tampa em madeira que evitava a entrada de água para interior do tubo. A formação destas concreções, que mascaram os objectos em ligas ferrosas, diminui significativamente as taxas de corrosão. A sua remoção causa por isso uma desestabilização dos objectos, exigindo a implementação de medidas de conservação.

Não foi possível observar os pormenores da maior parte dos canhões, que foram transferidos para dois depósitos visitáveis, criados na baía de Entre-os-Montes. Estão, no entanto, actualmente à guarda do Museu da Horta três canhões em extraordinário estado de conservação (Fig. 4), recuperados porque a draga removeu praticamente toda a concreção que os protegia, que foram analisados pormenorizadamente. O maior (Fig. 5), pode ser enquadrado no “tipo Armstrong” ou “Armstrong-Frederick”, adoptado pelas forças britânicas a partir de 1725, tendo características muito semelhantes às produções de 1760-178012. Estas peças têm ainda outras características de origem britânica, como o P (de Proved), marca de prova que as peças tinham sido testadas e aprovadas, ou a numeração relativa ao seu peso em libras inglesas, ambas gravadas no primeiro reforço. Estas características dos canhões e a localização do contexto sugerem que BH-003 poderá corresponder aos restos de um navio britânico naufragado com grande probabilidade na segunda metade do século XVIII, não podendo, assim, ser evidência do Armstrong, até porque se encontra muito   R  oth, Rudi (1989) – “A proposed standard in the reporting of history artillery”, The International Journal of Nautical Archaeology, 18.3, pp. 191-202.

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longe do Forte de Santa Cruz. Canhões desta tipologia, dominante na marinha britânica até início do século XIX, apareceram em vários naufrágios ingleses, como o HMS Colossus, de 1798 ou o Roses II 13 que naufragou em inícios do século XIX. Nos outros três casos, foram detectadas evidências de navios construídos em madeira. No primeiro caso, BH-002, foram recuperadas apenas algumas peças dispersas, durante as dragagens, que tinham a particularidade de apresentar parte das chapas em liga de cobre que protegiam as obras vivas. Esta protecção dos cascos, que se vulgarizou a partir do século XIX, deixou um registo arqueológico interessante na baía da Horta, constituído por dezenas de fragmentos, alguns com as marcas dos fabricantes, nomeadamente das produções da Vivian & Sons Ltd., que produziu entre 1809 e 1916, ou da Muntz’s Metal Company Ltd. de Birmingham, que fabricou entre 1830 e o século XX14 ou da companhia Corradini, de Nápoles (Fig. 6). O segundo caso, mais interessante, corresponde aos vestígios de um navio registado como Baía da Horta 4 (BH-004), constituído por fragmentos das balizas e dos forros exterior e interior. A fixação destas peças, com pregadura mista, em madeira, ferro e ligas e cobre, é claramente do século XIX, mas mais uma vez este sítio tem um potencial limitado devido à sua pequena dimensão e à inexistência de contextos claramente associados nas proximidades, onde foram, porém, recuperados vários sapatos em couro. O conhecimento deste contexto esteve no entanto na origem da descoberta do sítio mais importante do século XIX até à data registado na baía da Horta. Com efeito, o aumento da cota de funcionamento do terminal de passageiros para os -8 m (ZH) obrigou ao alargamento da área de dragagem durante uma segunda fase do empreendimento, desenvolvida entre 2012 e 2013. O conhecimento prévio de BH-004, que estava fora da área   P  ujol, Marcel et al. (2003) - Roses II, Perola V i Presido: Tres vaixells enfonsats a l’Empordà durant la guerra del francès (1808-1814), Monografies del CASC 4, Girona: Museu d’Arqueologia de Catalunya – Centre d’ Arqueologia Subacuàtica da Catalunya. 14   Bingemam, J., Bethell, J., Goodwin, P. e Mack, A. (2000) – “Copper and other sheathing in the Royal Navy”, The International Journal of Nautical Archaeology, 29.2, pp. 218-229. 13

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inicial de dragagem, levou a condicionar esta fase da empreitada à realização de sondagens e remoção da estrutura, tendo sido criado um perímetro de protecção durante os trabalhos efectuados por uma draga de sucção. A realização destas sondagens, após a dragagem das zonas circundantes, não revelou a existência de outros depósitos arqueológicos relacionados com BH-004, mas permitiu detectar um rasto de destruição com várias madeiras que resultou na descoberta de outro navio (Baía da Horta 6 - BH006), situado no limite da zona dragada e, por isso, apenas parcialmente perturbado (Fig. 8).

Figura 5 - Desenho de dois canhões descobertos no sítio BH-003

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Fig. 6 Pormenor de um fragmento de um navio, descoberto na zona dragada em 2012, com um chapeamento em liga de cobre fabricado pela companhia Corrani, de Nápoles.

Fig. 7 - A baleeira Sullivan, na praia, em fotografia publicada no Arauto de 15 de Janeiro de 1913.

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Fig. 8 - Vista geral do navio Baía da Horta 6 (BH-006), durante os trabalhos arqueológicos de registo efectuados em 2013 (foto: Friederike Kremer-Obrock).

Fig. 9 - Planta da estrutura principal do navio BH-006.

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Os vestígios localizados em BH-006 encontram-se aproximadamente 110 m a leste do arranque do molhe de protecção da Marina da Horta, ponto da costa que lhe fica mais próximo, submersos entre as linhas batimétricas dos -7 e -8 m (ZH), em fundo de areia que se encontrava na base da extensa praia que ocupava a baía da Horta antes da construção da avenida marginal. Os trabalhos de registo arqueológico, efectuados em 2013, permitiram verificar que o contexto se encontra actualmente em dois núcleos. A estrutura principal preserva parte do casco ao longo de um máximo de 12,5 m, sem a quilha, e sem uma inclinação relevante (Fig. 9). Com marcas evidentes da draga, esta mantém três níveis distintos da estrutura do navio, incluindo parte das balizas, do forro exterior e do forro interior. Sem entrar pormenorizadamente em questões técnicas, é necessário referir algumas características que nos permitem abordar aspectos como a cronologia ou origem deste navio. Trata-se ainda, sem dúvida, de um navio construído em esqueleto primeiro, que se baseia no desenho das formas sobre um cavername longitudinal e transversal, o que explica a existência de várias marcas incisas nos planos das balizas o que está relacionado com o seu risco ou com a sua sequência no processo construtivo. A organização do cavername, em carvalho, parece obedecer à construção com balizas duplas, a acreditar na sobreposição a topo que se pode observar em várias fiadas, algumas ligadas com cavilhas em madeira. Balizas duplas onde os planos, apesar de ligados, não encostavam, tendo por isso um espaçamento assegurado pela colocação de tarugos entre os madeiros. Esta característica é particularmente interessante porque a utilização de tarugos em madeira poderá estar associada à progressiva redução da grossura dos braços, que se verifica em fases mais recentes da construção naval em madeira, já do século XIX ou mesmo XX15. Este esqueleto recebeu depois um forro exterior e outro interior em toda a sua extensão, em várias espécies de pinho. As tábuas do forro exterior encontravam-se ligadas às balizas com cavilhas de madeira e pregos em liga   Castanheira, E. (1991) - Manual de Construção do Navio de Madeira, Lisboa: Dinalivro.

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de cobre. Por sua vez, o forro interior era fixo com pregos em ferro, a maior parte concrecionada. Ambos eram ainda ligados com cavilhas anilhadas em liga de cobre, tipologia que atravessava todo o conjunto forro exterior/ balizas/forro interior, tal como acontecia com as cavilhas em madeira, já mencionadas. A utilização de pregadura em liga de cobre está relacionada com a aplicação de um chapeamento no mesmo material no exterior do navio, que deveria proteger a totalidade das obras vivas e que era visível na extremidade sudoeste ou possível de tactear em zonas onde se tinha acesso sob o forro exterior. Características semelhantes foram registadas no complexo da roda de proa localizado a noroeste da estrutura principal, provavelmente deslocado pela draga, onde foram registadas chapas e cavilhas anilhadas em liga de cobre, a maior com mais de 130 cm. Estas características e os dados disponíveis relacionados com BH-006 permitem lançar algumas hipóteses. Em primeiro lugar, a utilização de um forro em liga de cobre é sobretudo uma característica da construção naval oitocentista, embora tenha sido adoptada na década de 1760. Numa primeira fase, na segunda metade do século XVIII, a fixação das chapas ao forro era assegurada com pregos em ferro, mas a reacção galvânica provocada pelo contacto entre este metal e o cobre destruía-o rapidamente, sendo por isso substituída, entre 1780 e 1830, por cavilhagem e chapeamento em ligas de cobre, como acontece em BH-006, o que constitui o terminus post quem para o naufrágio. Os exemplos internacionais deste tipo de construção são variados, encontrando-se casos nos Estados Unidos16, no Reino Unido17, na Austrália18 ou na Holanda19, não sendo fácil determinar a origem e cronologia do navio apenas com base no estudo dos seus   Jones, T. (2004) - The Mica shipwreck: deepwater nautical archaeology in the Gulf of Mexico, Dissertação de mestrado apresentada na Texas A&M University. 17   Whitewright, J. e Satchell, J. (eds) (2011) - The Archaeology and History of the Flower of Ugie, Wrecked 1852 in the Eastern Solent, HWTMA monograph No 1/BAR British series 551. 18   Staniforth, M. (1985) - “The Introduction and Use of Copper Sheathing - A History”, The Bulletin of the Australian Institute for Maritime Archaeology, 9, pp. 21-48. 19   Adams, J., Holk, A. F. L. van e Maarleveld, Th. J. (1990) - Dredgers and Archaeology. Shipfinds from the Slufter, Alphen aan den Rijn. 16

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pormenores construtivos. A utilização de pregadura mista, de cobre, ferro e madeira, é no entanto uma característica essencialmente encontrada nos exemplos das primeiras décadas do século XIX, como acontece no navio SL4, de 1838, escavado em Roterdão, mas a sua utilização mantém-se até ao século XX. Em segundo lugar, a espessura das balizas (entre os 25 e os 30 cm) e do forro interior (entre 13 e 14 cm) apontam para um navio de médio porte. Por exemplo, por comparação, o Lloyds Register de 1834 estabelece para um navio de 500 toneladas cavernas com não menos do que 32,5 cm de largura e um forro interior com, pelo menos, 8 cm de espessura20. Mas este é um exercício extremamente perigoso nesta fase da investigação. Determinar a origem do navio também não é fácil, uma vez que os objectos claramente associados se resumem a uma tampa circular em madeira, recuperada entre as balizas, e a uma peça em liga de cobre, com forma afunilada, descoberta entre as tábuas do forro interior. No entanto, a identificação por Teresa Quilhó (do Instituto de Investigação Científica e Tropical e Instituto Superior de Agronomia) das espécies norte americanas P. strobus e P. lambertiana, numa cavilha e num tarugo21, sugere uma origem também norte-americana para o navio BH-006. Sempre no campo das hipóteses, a localização do contexto, próximo do forte de Santa Cruz, é obviamente sugestiva, e poderia tornar BH-006 num forte candidato ao Armstrong, mas é mais provável que este vestígio possa corresponder a uma das muitas baleeiras americanas que se perderam na Horta durante o século XIX, tipologia mais representada entre os naufrágios registados na documentação escrita coligida até à data. Por exemplo, entre as vinte e nove perdas ocorridas entre 1839 e 1862 no porto da Horta, registadas na documentação enviada pela Capitania do Porto às autoridades régias em Lisboa analisada por Yolanda Corsépius estão   W  hitewright, J. e Satchell, J. (eds) (2011) - The Archaeology and History of the Flower of Ugie, Wrecked 1852 in the Eastern Solent, HWTMA monograph No 1/BAR British series 551. 21   Quilhó, Teresa (2014) – Análise da estrutura de madeiras – Amostras navio BH004/006, Lisboa: Instituto Superior de Agronomia. 20

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registados onze naufrágios de baleeiras americanas22. Esta é uma hipótese a considerar na continuidade desta investigação. Em suma, os vestígios arqueológicos detectados até à data na baía da Horta não podem ser relacionados com o naufrágio do Armstrong mas evidenciam a importância estratégica assumida pelo porto da Horta durante o século XIX, enquanto escala, nomeadamente americana. Este é um património impar em Portugal, com potencial científico apenas inicialmente explorado, capaz de projectar os Açores a nível internacional dado o seu carácter marcadamente universal, mas também por se constituir num potencial embrião de um desejável pólo museológico que mostre e promova a vocação marítima da cidade da Horta. Agradecimentos A todos os participantes nos trabalhos arqueológicos desenvolvidos desde 2008 na baía da Horta. À Patrícia Carvalho, a Cristóvão Fonseca a Tiago Silva, pela revisão do texto.

  C  orsépius, Y. (2001) – Documentos Enviados pela Capitania do Porto da Horta entre Janeiro de 1839 e Novembro de 1862 Existentes no Arquivo Central da Marinha, Edição do Autor.

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