O Reinado De Nossa Senhora do Rosário em Cláudio/MG: Um breve relato etnográfico

June 8, 2017 | Autor: Vinícius Eufrásio | Categoria: Antropología, Música, Etnomusicologia, Música Popular Brasileira, Musicologia
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O REINADO DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO EM CLÁUDIO/MG: Um breve relato etnográfico Vinícius Eufrásio de Oliveira1 Letícia Veiga Vasques2

RESUMO

Dentre as várias tradições existentes no catolicismo popular existe na cidade de Cláudio/MG, e nos povoados em seu entorno, a prática do Reinado de Nossa Senhora do Rosário. Esta manifestação de caráter profundamente religioso na sua concepção enquanto ritual - oriunda das culturas de matrizes africanas, sobretudo da cultura bantu atualmente tem se tornado uma forma de lazer cultural por parte de uma grande parcela da população claudiense apropriada no seu contexto social. A partir de uma perspectiva de observador nessa identificação da transição de valores comunitários intrínsecos a esta manifestação, este trabalho propõe um breve relato etnográfico a fim de identificar, registrar e compreender as particularidades deste ritual e sua absorção no processo de transformação dos valores religiosos, sociais e culturais.

Palavras-chave: Reinado; Congado; Cláudio/MG; Etnografia.

1. INTRODUÇÃO Este trabalho é um relato etnográfico sobre os dias 15 e 16 de agosto de 2015 do festejo do Reinado de Nossa Senhora do Rosário ocorrido na cidade de Cláudio, em Minas Gerais. A partir de uma abordagem etnomusicológica (CLIFFORD, 2008;

1

Possui licenciatura em música com habilitação em canto (2012), e especialização em música brasileira e educação musical (2013) pela UNINCOR - Universidade Vale do Rio Verde. Cursa mestrado no Programa de Pós-Graduação em Música da Faculdade de Música da UFMG (Linha de Pesquisa: Música e cultura). Paralelamente cursa especialização em educação musical com ênfase em música popular pelo UNIS – Centro Universitário do Sul de Minas. E-mail: [email protected]. 2 Graduada em Tecnologia em Gestão de Marketing pelo Centro Universitário do Sul de Minas, UNIS-MG. Bolsista da FAPEMIG, nos anos de 2009-2010, tendo realizado estudo na área de marketing social. Pósgraduada em Comunicação Empresarial e Marketing, pela mesma instituição. Mestranda em Letras: Linguagem, Cultura e Discurso, pela UNINCOR Universidade Vale do Rio Verde, realizando pesquisa na área de literatura, acerca do gênero romance-reportagem.

2 GONÇALVES, 2008; SEEGER, 2008; SILVA, 2011b) o presente trabalho descreve e analisa o contexto cultural, religioso e social de duas partes do ritual, sendo estas, a missa conga e o festejo de domingo. Tal abordagem se faz necessária para que seja possível uma maior aproximação do pesquisador com a prática musical produzida pelos congadeiros ao longo do rito, buscando uma compreensão de sentidos a partir de um perspectiva transcultural1, a fim de refletir também sobre de que forma a sociedade claudiense tem resinificado essa manifestação da cultura religiosa de origem afro-brasileira. A principal finalidade deste relato etnográfico é abrir margem e chamar a atenção para a possibilidade de realização de estudos mais aprofundados acerca da cidade de Cláudio e os povoados em seu entorno e sobre as relações de reprodução de valores sociais existentes nas manifestações do Congado nestas localidades.

2. O REINADO DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO Dentre as mais importantes expressões da religiosidade e da cultura afro-brasileira presentes em Minas Gerais, destaca-se o Reinado de Nossa Senhora do Rosário, ou Congado, que a cada ano homenageia os santos de sua devoção 2 e seus antepassados, recriando uma memória vinculada a ancestralidade. Tal expressão desenvolveu-se dentro do sistema escravocrata brasileiro, como resultado de uma resistência ao processo de imposição cultural sofrido pelos negros (LUCAS, 2014, p. 15). Os grupos participantes do ritual do Congado também são identificados pelos nomes de ternos, guardas ou cortes, e são compostos de homens e mulheres de variadas idades e também por crianças que cantam, tocam e dançam sob o comando dos denominados capitães ou comandantes que, dentre suas várias responsabilidades, puxam os cantos de louvores (COSTA, 2006, p. 11). O citado ritual tem suas origens e fundamentações em uma matriz mitológica denominada como mito fundador, que envolve a aparição de Nossa Senhora do Rosário no período da escravidão, que rejeita os louvores do brancos, mas, se encanta pela adoração dos escravos, passando a ser tida como protetora do povo negro (SILVA, 2011a, p. 2–5). Glaura Lucas (2011, p. 63) oferece em seu trabalho uma narrativa da história fundadora do Reinado sob a perspectiva do senhor João Lopes, Capitão Mor da

3 Irmandade Nossa Senhora do Rosário do Jatobá até 2004, localizada na cidade de Contagem/MG. A história que é narrada como ponto fundacional do Reinado é encontrada na literatura em diferentes versões. Mas um estudo realizado por Renata Nogueira da Silva (2008, p. 5) aponta que:

É importante enfatizar que as versões se organizam em torno das seguintes unidades estruturais: 1) Nossa Senhora do Rosário aparece num determinado local; 2) Vários grupos de brancos e negros tentam tirá-la; 3) Apesar das inúmeras tentativas a santa retorna ao local em que apareceu; 4) Os grupos de Congo tentam tirar a santa; 5) Nossa Senhora do Rosário sai, mas quando lhes dão as costas ela volta; 6) Os negros mais velhos, organizados no terno de Moçambique, com sua cantoria e dança cadenciada, conseguem retirar a santa e esta se senta num tambor do Moçambique.

De acordo com Hall (apud SILVA, 2008, p. 4), os mitos fundadores são transitórios, ou seja, não apenas estão fora da história, mas são fundamentalmente de caráter histórico. Estes portanto, têm a estrutura de uma dupla inscrição, caracterizandose como anacrônicos. Seu poder redentor encontra-se no futuro, que ainda está por vir, porém, funcionam atribuindo o que predizem à sua descrição do que já aconteceu, do que era a início. Possuem estrutura narrativa cíclica, mas dentro da história, seu significado é frequentemente transformado. Além disso, em se tratando de rituais de Congado, deve-se levar em conta os vários contatos culturais ocorridos ao longo do tempo e a reelaboração de valores culturais, como por exemplo, em relação ao contato foçado com o catolicismo, religião da classe dominante na época do Brasil escravista. Portanto, dentro dos ritos, além da prática fundamentada no já citado mito, estão presentes muitos outros conhecimentos e valores derivados de matrizes africanas, principalmente ligados a cultura bantu, que trazido para o novo mundo, sobreviveram estrategicamente às imposições de dominação de uma cultura e religião já estabelecidas no país, misturando-se com esta, e consequentemente transformando-se (LUCAS, 2014, p. 16).

2.1. Reinado em Cláudio/MG: Breve contextualização histórica

4 Em Cláudio, no estado de Minas Gerais, aproximadamente à 130 quilômetros da capital Belo Horizonte, os meses de junho, julho e agosto são marcados por folguedos semanais em vários dos povoados que rodeiam a cidade, e inclusive em seu próprio centro urbano. Tendo duração de sexta à segunda-feira, as festas do Reinado de Nossa Senhora do Rosário ilustram uma tradição religiosa presente há muitos anos, considerada como a mais antiga manifestação cultural e religiosa do município. O Reinado de Nossa Senhora do Rosário em Cláudio é realizada em vários dos povoados3 do entorno da cidade entre junho e agosto, sendo estes: Bananal, Palmital, Matias, Corumbá, Monsenhor João Alexandre (Cachoeira de Itamembé), Machadinho, Bocaina, São Bento, e na sede do município, onde é realizado no adro 4 da Igreja do Rosário e em torno da Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição (Praça dos Excombatentes). Este relato etnográfico trata dos eventos sonoros ocorridos em determinados momentos do Reinado realizado na sede do município. Ao considerarmos a etnografia como a escrita sobre o modos pelos quais as pessoas fazem música, ou seja, como uma abordagem descritiva da música (SEEGER, 2008, p. 39), faz sentido conhecermos um pouco da história que cerca o contexto da festa do Reinado de Nossa Senhora do Rosário que acontece em Cláudio e nos povoados em seu entorno. Este festejo é considerado como sendo a manifestação religiosa e cultural mais antiga da cidade, tendo sido autorizada em 1854 por Dom Antônio Ferreira Viçoso, o então bispo de Mariana/MG. Assim, foram consentidos aos devotos de Nossa Senhora do Rosário a permissão para exercerem suas funções, rezas, terços e reinados na Capela da Aplicação do Arraial do Cláudio, então nome do município, sob a exigência de que formalizassem a instituição da Irmandade do Rosário a qual caberia administrar a capela. Então no ano de 1856 os Estatutos Sociais da Irmandade foram aprovadas pelo então bispo e pelo presidente da Província (MOURA et al., 2007, p. 4). As celebrações congadeiras aconteceram ali por muitos anos, mas possivelmente nos primeiros anos do século XX5, por determinação do pároco local, João Alexandre de Mendonça, foram proibidas perante a alegação de suspeitas sobre a prática de rituais de magia negra entre os ternos. O cessar dessa proibição só viria acontecer em 1945, com o pároco Manuel da Cruz Libânio, exigindo da Irmandade plena obediência aos preceitos da Igreja Católica e rompimento de qualquer vínculo que houvesse com supostos rituais de feitiçaria (MOURA et al., 2002, p. 04; TEIXEIRA, 2012, p. 17).

5 No entanto, no período de proibição houve certa resistência por parte dos congadeiros, e estes, continuaram a fazer as celebrações do Reinado nas imediações de fazendas e povoados existentes nos arredores da cidade. Dentre estes locais, podemos destacar a Fazendo da Praia e o povoado Bananal, onde os festeiros devotos não deixaram de professar sua fé mesmo sem o consentimento da Igreja (MOURA et al., 2007, p. 4). Vale citar que de acordo com um documentário produzido pela ONU (Organização das Nações Unidas) do Brasil6, desde que chegaram ao país, os praticantes de religiões de matrizes africanas foram alvo de perseguições por manifestarem a sua fé, e ressalta que ainda hoje, em 2015, atos de intolerância religiosa fazem parte do cotidiano. Entretanto, atualmente o Reinado de Nossa Senhora do Rosário, é oficialmente reconhecido como uma manifestação cultural de valor histórico para o povo da cidade de Cláudio, tendo recorrência anual desde 1945, e encontrando-se teoricamente sujeito a proteção pela Lei Municipal nº 803/98, de 05 de maio de 1998, e registado enquanto Bem Cultura de Natureza Imaterial pelo Decreto nº 15, de 4 de abril de 2006, o que garante aos praticantes devotos o direito de professarem sua fé (MOURA et al., 2007, p. 23).

3. RESPALDO ETNOGRÁFICO Para uma sólida fundamentação teórica deste trabalho faz-se necessário tratarmos um pouco sobre a etnografia e alguns dos principais pensamentos que a conceituam enquanto abordagem de estudo. A etnografia é entendida como um processo que requer observação e análise de grupos humanos (LEVI-STRAUSS, 1973, p. 14 apud GONÇALVES, 2008, p. 9) tratando-se de uma atividade eminentemente interpretativa, constituída de uma densa parte descritiva voltada à busca pela compreensão de estruturas de significação (GEERTZ, 1978, p. 15 apud GONÇALVES, 2008). Tal observação deve assumir um caráter participante, onde o pesquisador, mantém um contato direto com o objeto de estudo afim de obter informações sobre a realidade vivenciada pelas pessoas em seus próprios contextos (GIL, 2010, p. 129). Para James Clifford (2008, p. 21), é preciso ter em mente que uma etnografia está completamente vinculada a forma de se escrever, e que esta, deve incluir pelo menos uma tradução da experiência para a forma textual. José Alberto Salgado e Silva (2011b, p. 5) argumenta que talvez a mais abrangente tendência etnográfica recente seja caracterizada pela análise do autor quanto as próprias condições de produção de seu texto [...] variando

6 continuamente, em grosso modo, entre intenções de objetividade e intenções de subjetividade. Débora Wong (2007 apud SILVA, 2011b, p. 5) aponta na etnografia a possibilidade da descrição objetiva se misturar com comentários, comparações e julgamentos do observador/autor, destacando ainda a presença desta prática de escrita em relatos de viajantes e cientistas do século XIX.

4. UMA BREVE ETNOGRAFIA DO REINADO DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO EM CLÁDIO/MG Este texto trata-se de um relato de experiência etnográfica acerca de alguns dos acontecimentos que ocorreram nos dias 15 e 16 de agosto de 2015 nas intermediações do centro da cidade de Cláudio, em Minas Gerais. São apresentado a seguir fatos que foram presenciados a partir de uma tentativa de afastamento conceitual e de valores sociais, religiosos e culturais próprios, buscando a travessia de uma ponte para compreensão da cultura, religiosidade e prática social do outro, pois, de acordo com Peirano (2003, p. 7), a observação da cultura do outro a partir de critérios culturais próprios podem confundir a percepção.

4.1. A entrada em campo Tendo notícia de que o Reinado aconteceria em Cláudio nos dias 14, 15, 16 e 17 de agosto (2015), consegui me organizar para estar presente em dois dias do festejo. Programei minha saída de Belo Horizonte para sábado dia 15 por volta das 16:00 horas. Viajei lamentando ter perdido o levantamento de mastros que ocorreu na noite anterior, mas de acordo com meus anfitriões Júlio César da Silva e Eliza Maria Pereira 7, provavelmente ainda me surpreenderia com os acontecimentos que estavam por vir. Durante os dois anos e meio que lecionei música em escolas da cidade muitas pessoas, inclusive alunos congadeiros, me relatavam sobre a magnitude dos eventos relacionados ao Reinado. Todos os relatos traziam informações de um festejo enorme, repleto sonoridades diversas, produzidas por ternos locais e ternos visitantes que vinham para “ajudar8” no evento.

7 A residência onde fui recebido situa-se a poucos metros da praça da Igreja Matriz, local onde estava armada a maior parte da estrutura para a festa (palco, tendas, um grande espaço demarcado por cordas com mastros erguidos em homenagem aos santos de reverência do rito, e uma decoração remetendo à aspectos do império), pois nessa praça estavam levantados os mastros de Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia e Nossa Senhora das Mercês e lá aconteceria a grande concentração de ternos e a troca de coroas. Por volta de 19:00 horas, vindo de longe, ouvi o batuque das caixas soando o ritmo característico de uma guarda de moçambique, ou seja, alguns ternos já saiam da casa de seus capitães9 para buscarem os reis para a celebração da missa conga e da troca de coroas que aconteceria dentro de algumas horas.

4.2. A missa conga na noite de 15 de agosto Nos últimos meses, devido

a meu crescente interesse sobre

etnomusicologia, tenho dedicado algum tempo para visitar festejos relacionados a tradições populares, sobretudo relacionado ao congado, devido a sua abundante presença em Minas Gerais. Nessas visitas tenho tido a oportunidade de aprender um pouco sobre os elementos desta cultura religiosa de matriz africana, mas no entanto, o festejo que presenciei em Cláudio apresenta um grande contraste com o que pude conhecer ao longo deste meu período de visitação em festas de outras comunidades. Ao chegar na praça da Igreja Matriz, no centro da cidade, primeiramente depareime com uma estrutura decorada de forma luxuosa se comparada a estrutura de outros festejos que já tive a oportunidade de acompanhar, como na comunidade do Jatobá em Belo Horizonte, e na comunidade dos Arturos em Contagem, nos bairros Rosário e Água Vermelha em Formiga etc. Nestes

primeiros

momentos

de

observação

em

Cláudio,

notei

que,

esporadicamente, os ternos começaram a passar pela praça, entravam na área demarcada, onde estavam os mastros, através de um portal cujo em cima havia uma grande coroa dourada, circundavam os mastros erguidos no centro desta área em reverência, entoando cantos acompanhados por sons produzidos a partir de instrumentos percussivos e algumas vezes também a partir de instrumentos harmônicos, e depois seguiam em direção ao centro da cidade.

8 Passavam sempre de maneira performática, produzindo uma mistura de sons com suas caixas, sanfonas, violões, cavaquinhos, gungas, reco-recos, bastões, pandeiros, entre outros. Alguns grupos chamaram-me a atenção por não possuírem o tradicional rosário cruzado no peito, característica que no presente festejo pude observar em apenas dois dos ternos que participaram da missa, ambos moçambiques. Cerca de 30 minutos depois de todos os ternos terem feito reverência aos mastros, vindo do centro da cidade, passando em volta da Igreja Matriz e indo em direção a praça, teve início o desfile, ou cortejo10, no qual vinham consecutivamente ternos de vilões, catopés, congos e moçambiques conduzindo os tradicionais reis negros e algumas pessoas tidas como membros da alta sociedade da cidade representando a realeza, trajando vestes remetentes à corte portuguesa. Logo após os ternos de moçambique, em sequência, seguiam o Rei e Rainha Congo, a representação da Princesa Isabel e de um grupo de escravos, os Reis e Rainhas das Coras Menores, e por último, o Rei e Rainha das Coras Grandes. Após a realeza sentar-se aos tronos dispostos no palco montado frente a área demarcada foi dado início a celebração da missa conga, onde alternadamente várias guardas entoaram seus cantos e fizeram seus batuques, ilustrando sonoramente a cerimônia. A missa durou cerca de duas horas, mas nem todos os ternos entoaram cantos. Dado seu fim, muitos ternos11, que encontravam-se dispersos12 em meio ao espaço da festa, começaram a seguir caminhando, alguns de forma a se misturarem completamente, em direção ao quartel dos ternos, onde ali dariam início a um jantar. Naquele mesmo momento, dentro da área demarcado em frente ao palco soava um moçambique que percutia seu batuque e entoava seu canto para o Rei e Rainha Congo. Partindo dali, seguiram com estes em passo ritmando ao chaqualhar das gungas em direção ao quartel enquanto os outros integrantes da realeza eram alvos de fotografias, conversavam com pessoas no entorno do palco, e seguiam para seus carros. Na condução do Rei e Rainha Congo através da considerável distância até o quartel das guardas13, no bairro Rosário, os moçambiqueiros não deixaram o som parar nem por um minuto sequer, tocando interruptamente, mantendo quase que um mesmo andamento por todo o percurso. Após ao término da missa a audiência presente esvaiu-se em questão de minutos, e então, pouquíssimas pessoas seguiram os Reis e o terno oriundo da cidade de Oliveira, situada a aproximadamente 45 quilômetros da cidade de Cláudio, que conduziam a realeza negra até o jantar.

9

4.3. O festejo de domingo O domingo, dia 16 de agosto, foi um dia de muito sol, poucas nuvens no céu, e um forte calor. No entanto, nem se tinha ouvido ainda as doze badaladas do meio dia e muitas pessoas já se encaminhavam sentido a festa do Reinado. No domingo os cortejos partiram de pontos distintos da cidade. Os ternos visitantes aparentemente14 saíram do quartel logo após almoçarem, acredito que os ternos da cidade de Cláudio saíram das casas de seus capitães ou outros locais previamente estabelecidos, pois não os vi ali nas proximidades do bairro Rosário já os encontrando na praça da Igreja Matriz. Um grande cortejo conduzindo os Reis das Coroas Grandes e Reis das Coroas Menores sairiam em cavalgas da Escola Municipal Wilson Veado. Todos estes cortejos teriam como destino final a praça da Igreja. Caminhando junto a alguns ternos em direção à praça pude perceber o quanto a cidade incorpora o festejo do Reinado de Nossa Senhora do Rosário. Nas residências ao longo da rua via-se varandas lotadas, com churrasqueiras acessas e copos de cerveja sobre as mesas. Pessoas circulavam de um lado para o outro, e quanto mais nos aproximávamos da praça era possível de se ver um número crescente de pessoas surgindo e se juntando para prestigiar o festejo. Em meio ao percurso pude me deparar com um terno de moçambique, já junto do Rei Congo, batucando e entoando cantos em frente à residência da Rainha Conga, reverenciando-a para que ela se juntasse a eles, suguindo em direção a praça da Matriz. Terno após terno passavam tocando ao redor da Igreja, entravam na área demarcada onde estavam erguidos os mastros e faziam ali suas reverências aos santos. Após este momento saíam da área demarcada a procura de uma sombra para se assentarem. Muitos ternos sentavam-se em unidade, outros se separavam misturando-se em meio as pessoas, alguns ternos misturavam entre si sentando-se próximos um do outro. Ao passear por entre os ternos chamou-me a atenção o quanto era presente o número de tambores industrializados, algo que até então não me recordo de ter visto em tamanha quantidade em outros festejos aos quais visitei. Posso dizer que os tambores confeccionados pelos próprios congadeiros estavam longe de ser maioria ali entre aqueles ternos presentes. Outro ponto que novamente me chamou a atenção foi a questão do rosário no peito, pois novamente pude perceber que nem todos os congadeiros o utilizavam. O uso

10 do rosário pode ser mais observado em meio principalmente as pessoas que aparentavam mais idade, e em meio aos moçambiqueiros, mas também não eram todos. Nesse meio tempo, já eram quase 17:00, o entorno da praça da Igreja Matriz, a rua que liga esta com a praça do Automóvel Clube, e a própria praça do Automóvel Clube foram ficando cada vez mais repletas de pessoas. Uma quantidade de gente igual eu nunca havia visto em nenhuma outra festa na cidade. Vendedores ambulantes de comes e bebes circulavam no ambiente, ou ficavam parados com grandes caixas de isopor com gelo e bebida. No decorrer do entardecer e início da noite era difícil ver alguém que não estivesse com uma lata de cerveja na mão, e isso me levou a questionar sobre o quanto a população da cidade já havia incorporado o evento como uma opção de lazer. Isso ficaria mais nítido ainda com o passar das horas e com o decorrer da celebração. Em determinado momento, nenhum terno de congado soava mais, estavam todos aguardando a chegada do cortejo que sairia de frente a escola Wilson Veado, foi então, que ouvi o som de trompetes em melodia triunfal, e ao perceber, vinha pela rua uma carruagem trazendo músicos vestidos com um traje preto, estilizado assim como se vê em filmes que retratam os tempos das antigas monarcas. Seguindo-os, vinham logo atrás Reis das Coroas Maiores e Menores, elegantemente trajados, acompanhados de algumas centenas de cavaleiros, muitos, notoriamente segurando alguma bebida alcoólica em uma das mãos. Esse grande cortejo, tomou a atenção dos espectadores presentes pra si, passou pelo entorno da praça e seguiu rumo ao quartel das guardas. O grande número de cavaleiros seguiu em cavalgada, mas os Reis pararam alguns quarteirões antes do quartel. Infelizmente devido a quantidade de pessoas presentes, não consegui ver com detalhes como aconteceu a organização dos Reis, pois quando me aproximei perto deles, já estavam em fila, aguardando que os ternos fossem busca-los. Na medida em que os cavaleiros passaram, os ternos de vilões já se puseram a batucar e entoar cantos seguindo-os em direção à onde estariam os Reis a sua espera. Terno após terno se enfileiraram em uma grande fila, formando um cortejo bastante performático, indo buscar os reis. Vilões na frente, depois catopés, em seguida congos e moçambiques. Ao se aproximarem dos Reis os ternos os saudavam e davam meia volta sentido à praça da Igreja novamente. Observei que alguns ternos saudavam os Reis das Coroas Grandes levando suas bandeiras para que fossem beijadas, no entanto, outros ternos apenas ali passavam sem nem realizar seu batuque por alguns instantes diante dos Reis;

11 eles passavam, faziam a meia volta, mas seguiam seu caminho retornando à praça da Igreja Matriz. Atrás do último terno, um Moçambique por sinal, vinham os Reis Congos para saudarem os Reis da Coroa Grande que seguiriam com eles rumo a Igreja. Pode ser indentificado no festejo desta cidade um grande contraste sobre a forma como os Reis Congos são tratados em relação aos Reis das Coroas Grandes e Coroas Menores. Estes últimos recebem toda uma atenção especial e estão envoltos a todo momento de um luxo do qual os Reis negros não participam. Como exemplos disso, podemos abordar uma matéria presente no site da Prefeitura Municipal de Cláudio referente ao festejo de 2014 que ao se referir ao cortejo dá um enfoque especial na presença dos Reis das Coroas Grandes15 e várias revistas veiculadas na cidade16, que em maior parte, destacam fotografias e nomes dos representantes destas figuras Monarcas na capa, não apresentando nem sequer quaisquer dados sobre os Reis Negros. Inclusive o próprio banner de divulgação do festejo segue as mesmas características. Ao chegarem na praça da Igreja os ternos adentravam a área demarcada, e os Reis subiam ao palco para ali permanecer. Neste momento já se aproximavam as 20:00, e fora realizada ali uma encenação da libertação dos escravos seguida da leitura da Lei Aurea com a participação de um terno entoando um canto que relatava a injustiça sofrida pelos negros. Após este momento que durou aproximadamente 30 minutos, deu-se início a uma série de agradecimentos17 por parte da jovem que representava a Princesa Isabel e consecutivamente foram anunciados os nomes das pessoas que assumirão os postos de Rei e Rainha das Coroas Grandes e Rei e Rainha das Coroas Menores, e também de Princesa Isabel no ano seguinte. Quero destacar aqui que neste momento já não havia na praça nem um quinto da audiência presente no momento que os ternos tocavam pelas ruas buscando os reis. Após o término dos agradecimentos os ternos retomaram seus batuques, e na mesma ordem de organização aqui já mencionada, seguiram para dentro da igreja, indo em direção ao altar, fazendo ali reverências, e então saindo pela porta do lado da igreja. Ao saírem da igreja os ternos já não tocavam mais, e seguiram apenas caminhando em direção ao quartel dos ternos para realizarem seu jantar. Não diferentemente da noite anterior, quando os Reis saem da igreja, brancos e negros tomam caminhos distintos. Brancos vão ao encontro de fotógrafos, amigos e familiares, e seguem para seus carros. Reis Negros permanecem na presença de um moçambique que tem a missão de lhes conduzir. Reparei que desta vez os Reis Congos

12 não foram até o quartel das guardas para o jantar, foram deixados pelo moçambique em suas residências, e sua condução foi realizada à parte de qualquer audiência ou qualquer público.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A cultura é dinâmica, histórica e resultante da intervenção do ser humana sobre o mundo em que vive e, por extensão, das escalas de valores que são criadas no cotidiano comunitário (RODRIGUES; OLIVEIRA; FREITAS, 2001, p. 9). Deste modo, é possível considerarmos que uma manifestação cultural pode apresentar diferentes aspectos de localidade para localidade, no entanto, não consegui deixar de ficar espantado com o contraste que o festejo de Cláudio representa em relação a outros que pude presenciar. Contraste este, que segundo minha observação, ocorre principalmente na ressignificação dos valores sociais que são representados e reproduzidos ao decorrer do festejo, pois é visivelmente óbvio o tratamento diferenciado entre Reis “brancos” e Reis “negros”, onde uns são colocados em posição de destaque em relação a outros, pondo em choque o caráter de resistência cultural que essa manifestação tradicionalmente representa, como já citado. Deixo aqui então aberta a possibilidade de uma crítica mais fundamentada, que não é apresentada agora por se acreditar que tal escrita necessitaria de um estudo mais profundo, embasado em uma pesquisa de base etnomusicológica mais sólida, calcada por um criterioso trabalho de campo, para melhor ponderar fatos e compreender com mais profundidade os significados atribuídos por cada um dos grupos étnicos que nesse festejo se juntam de um modo visivelmente separado.

The Reign of Our Lady of the Rosary in Claudio / MG: A brief ethnographic account

ABSTRACT

Among the various existing traditions in popular Catholicism exist in the city of Claudius / MG, and the villages around it, the practice of the Kingdom of Our Lady of the Rosary.

13 This deeply religious character to demonstrate its function as ritual - coming crop of African origin, mainly from the Bantu culture - today has become a form of cultural entertainment by a large portion of appropriate claudiense population in their social context. From an observer's perspective that identification of transition intrinsic community values to this demonstration, this paper proposes a brief ethnographic account in order to identify, record and understand the particularities of this ritual and its absorption in the process of transforming religious values, social and cultural.

Key words: Reign; Congado; Claudio/MG; Ethnography.

REFERÊNCIAS

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14 RODRIGUES, A. M. DA S.; OLIVEIRA, C. M. V. C.; FREITAS, M. C. V. DE. Globalização, cultura e sociedade da informação. Belo Horizonte, Perspectivas em Ciência da informação , 2001. Disponível em: . Acesso em: 30 out. 2015 SEEGER, A. Etnografia da música. Cadernos de Campo (São Paulo, 1991), v. 17, n. 17, p. 237–260, 2008. SILVA, B. T. DA. A Congada Mineira: festa, ritual e liminaridadeEnfoques, 2011a. Disponível em: . Acesso em: 30 out. 2015 SILVA, R. N. DA. A Festa Da Congada: A Tradição Ressignificada26o Reunião Brasileira de Antropologia. Anais...Porto Seguro/BA: 2008. Disponível em: SILVA, J. A. S. E. Notas sobre Descrição, Diálogo e Etnografia. Música e Cultura, v. 6, n. 1, 1 dez. 2011b. TEIXEIRA, D. S. Família Marcelino: Tradição, fé e cultura dos negros. 2o ed. Cláudio/MG: [s.n.].

1

Ver Glaura Lucas (2014, p. 25).

2

As homenagens aos santos são sobretudo à Nossa Senhora do Rosário e aos santos negros (São Benedito

e Santa Efigênia). 3

Os povoados em torno de Cláudio são: Frazão, Matias, Rocinha, Palmital, Corumbá, Córrego da Fábrica,

Monsenhor João Alexandre (Cachoeira de Imamembé), Custódios, Machadinho, Ribeirão dos Cervos, Ribeirão São Vicente, Bocaina, Cachoeira dos Pios, Jacarandá, Formiguinha, São Bento, Bananal, Sobrado, Canjerana, Canoas, Ribeirão do Santinho, Souzas, Tombadouro, Vargem Alegre, e Sete Lagoas (CARVALHO, 1992, p. 19). 4

O galpão localizado na parte de trás da Igreja do Rosário funciona atualmente como sede da Irmandade

do Rosário e é tratado pelos congadeiros como “quartel das guardas”. 5

Não se encontrou um registro preciso referente à provável data de proibição das práticas religiosas da

Irmandade Nossa Senhora do Rosário pelo pároco João Alexandre de Mendonça entre os dados disponíveis no Museu Municipal da Cidade de Cláudio, e nem nas publicações sobre o tema. 6

Informação retirada o site oficial da ONU Brasil. (“ESPECIAL: A intolerância contra as religiões de

matrizes africanas no Brasil | ONU Brasil”, [s.d.]). Disponível em: < http://nacoesunidas.org/a-intoleranciacontra-as-religioes-de-matrizes-africanas2/ >. Acesso em: 21/09/2015 7

Gostaria de destacar aqui estes dois nome devido a quantidade de informação que me cederam acerca do

festejo na cidade, e ao acolhimento com o qual me receberam em sua residência, possibilitando-me um contato mais próximo com a celebração.

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8

Não foram poucas as vezes que um aluno em especial, de nome William, disse-me: “professor, ontem eu

e meu avô foi ajudar os terno a bater caixa”. 9

Confesso ter achado interessante este fato, pois os festejos aos quais visitei, os congadeiros davam início

à sua prática partindo de dentro de uma capela. Em Cláudio, mas especificamente na noite de 15 de agosto, pude observar que alguns ternos que vinham de outras cidades comeram a tocar logo após descerem do ônibus com seus instrumentos. 10

Os termos desfile e cortejo foram os mais utilizados por alguns presentes no eventos ao se referirem à

aquele momento. 11

Um total de 13 ternos (um vilão, seis catopés, quatro congos, dois moçambiques).

12

Foram poucos os ternos que seguiram em unidade rumo ao quartel.

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Um ponto que me chamou a atenção é que bem ao lado do quartel das guardas está a Igreja do Rosário,

mas no entanto a mesma estava com suas portas fechadas e luzes apagadas. 14

Neste dia foi registrada a presença de 32 ternos, o que dificultou minha percepção, pois vi ternos tocando

em várias ruas adjacentes a Rua Belo Horizonte, via principal do festejo, e não soube ao certo se teria dado início ao seu batuque no quartel ou se saíram das casas dos capitães. 15

Disponível em: . Acesso em 26/09/2015 16

Dentre os principais exemplos vale destacar a revista Estação Cultura e suas edições de agosto do anos

de 2003, 2007, 2010, 2012, 2013 17

Os agradecimento foram direcionados principalmente aos seus pais e familiares que segundo a jovem,

possibilitaram que ela participasse do evento representando a Princesa Isabel.

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