O RELATO DE MULHERES SOBRE PARTOS E INTERVENÇÕES: REFLEXÕES SOBRE SAÚDE, DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA

July 14, 2017 | Autor: Elaine Müller | Categoria: Gênero, Humanizaçao do Parto e nascimento, Direitos Reprodutivos, Parto
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O RELATO DE MULHERES SOBRE PARTOS E INTERVENÇÕES: REFLEXÕES SOBRE SAÚDE, DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA Elaine Müller1 Laís Rodrigues2 Mariana Portella3 Camila Pimentel4 Daniella Gayoso5 Dandara Oniilari6 Roberta Pereira7 Marina Maria Silva8 RESUMO: Este trabalho é um desdobramento da pesquisa pautada nas narrativas de parto de mulheres e homens com diferentes experiências de parturição, desenvolvida pelo grupo de pesquisa Narrativas do Nascer, vinculado ao Departamento de Antropologia e Museologia da UFPE. Aqui se pretende refletir sobre a visão de mulheres que participaram de um grupo de apoio ao parto e nascimento humanizados realizado em Recife/PE, em relação às intervenções que elas e/ou outras mulheres foram submetidas ou conseguiram evitar durante o nascimento de seus filhos. Para tanto, foram utilizados relatos espontâneos fornecidos por essas mulheres durante um dos encontros promovidos pelo grupo do qual participaram durante a gravidez, cujo tema principal era “relatos de partos”. Nota-se que tais mulheres buscam melhorar as condições de atenção ao parto e criticar a crescente desumanização do nascimento, recorrendo, muitas vezes, às discussões sobre a humanização em saúde, às recomendações da Organização Mundial de Saúde e à Medicina Baseada em Evidências. A argumentação desenvolvida tende a questionar o aumento de cesáreas eletivas e a construção da noção de risco em relação ao parto natural. Essa última é compreendida como modo de justificar o controle que, paulatinamente, passou a ser exercido sobre o corpo da mulher na gestação e parto, e pode ser identificada pela transformação de um evento fisiológico em um acontecimento tecnocrático, marcado pelas diferenças em cada cultura. Isto possibilita o questionamento dos indicadores de saúde e de respeito aos direitos humanos, especialmente se articulados às noções de gênero. PALAVRAS-CHAVE: gênero, direitos reprodutivos, parto e intervenções

INTRODUÇÃO Este trabalho é fruto de algumas reflexões que têm sido feitas no grupo de pesquisa Narrativas do Nascer, vinculado ao Departamento de Antropologia e Museologia da UFPE, do qual as autoras fazem parte. Tais reflexões abordam os temas parto e nascimento enquanto eventos culturais, e com foco, principalmente, na perspectiva que as mulheres                                                                                                                 1

Antropóloga, Professora Adjunta do Departamento de Antropologia e Museologia da UFPE, coordenadora do Grupo Narrativas do Nascer. 2 Psicóloga, Doutoranda PPGA-UFPE. 3 Doula, Doutoranda PPGS-UFPE, coordenadora do Grupo Boa Hora do Instituto Nômades. 4 Doutoranda PPGS-UFPE. 5 Coordenadora do Programa Boa Hora do Instituto Nômades, doula e educadora perinatal. 6 Graduanda em Psicologia-UFPE. 7 Graduanda em Psicologia-UFPE. 8 Graduada em Letras e especialista em Gestão Pública – UFPE, colaboradora do Instituto Nômades.

 

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trazem sobre as suas experiências. Nesse sentido, os relatos de parto têm suscitado uma série de questionamentos e alguns projetos de pesquisa e de extensão sobre os modelos de atendimento ao parto na contemporaneidade. A antropóloga Robbie Davis-Floyd (2001) classifica como tecnocrático o modelo de assistência ao parto hegemônico no Brasil e em boa parte do mundo. Resultante da acumulação de uma série de mudanças, tal modelo encontra na masculinização da assistência, na medicalização e na hospitalização as suas características essenciais. Nele, a parturiente assume a condição de paciente fragilizada, perdendo autonomia e poder de decisão sobre a condução de seu trabalho de parto, entendido como um processo patológico e potencialmente perigoso (ROTHMAN, 1993; DAVIS-FLOYD, 2001). A adoção de uma série rotineira de intervenções médicas visa agilizar o processo de parturição, permitindo à equipe médica o máximo controle sobre os processos fisiológicos da mulher e do bebê. Em linhas gerais, é um modelo que supervaloriza a tecnologia médica em prol do que se convencionou acreditar que daria segurança aos pacientes (mãe e bebê) e controle sobre o sucesso do parto, deixando em segundo plano as particularidades, desejos e anseios da parturiente. Davis-Floyd (1992) vê nesse mecanismo a sedimentação de um senso de ordem cultural que avalia positivamente a transformação do parto – evento caótico, imprevisível e natural – em uma prática civilizada e regrada pela medicalização e por sua padronização protocolar. Uma série de mecanismos são amplamente utilizados para a manutenção desse modelo hegemônico, de modo que hoje boa parte das mulheres já o incorporou como sendo o “normal” ou o ideal. A começar pelas narrativas mais corriqueiras sobre o parir as impressões negativas alimentadas por relatos medonhos e dolorosos de amigas e parentes constituem motivação importante na preferência pelas comodidades de um parto rápido, indolor, “limpo” e supostamente mais seguro, comandado por uma equipe médica, em um ambiente hospitalar (SEIBERT et al., 2005). Uma consequência dessa filosofia de assistência é a proliferação de cesarianas como procedimento de rotina, conferindo um tempero adicional a esse modelo tecnocrático, manifesto na tendência à concepção do parto como evento cirúrgico, em detrimento do seu caráter fisiológico. A cirurgia cesariana se popularizou nos países desenvolvidos a partir de meados do século XX. Seus avanços e resultados a tornaram procedimento relativamente fácil e seguro, ao ponto de atualmente grande parte dos obstetras a preferirem em

 

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detrimento ao acompanhamento do parto vaginal, opção em que são seguidos pela preferência de muitas parturientes. Outro importante mecanismo de reprodução do modelo tecnocrático de atendimento ao parto é o modo como se conduz o acompanhamento pré-natal. Pode-se dizer que o consultório médico é o lugar principal onde se constrói a noção de risco, de modo a conduzir as vivências de parto para experiências o mais controladas possível. Não seria exagero afirmar que o pré-natal feito pelo obstetra, em larga escala, se reduz à pesagem da mulher, à aferição de pressão arterial, à ausculta da frequência cardíaca fetal e à solicitação e leitura de exames. A quase totalidade destes atendimentos despreza completamente fatores de ordem emocional e se esquiva em compartilhar com a mulher a decisão informada sobre o tipo de parto. Além disso, as mulheres da contemporaneidade têm um número reduzido de filhos, quase a totalidade deles nascidos em hospitais – ou seja, a mulher de hoje chega ao momento de seu parto sem nunca ter presenciado outra mulher parindo, como já foi comum em gerações anteriores. O fato é que, não raro, a mulher desconhece aspectos de sua fisiologia que tanto poderiam ser compreendidos sob o entendimento da tradição, quanto pelo saber médico. Quem acessar grupos de gestantes em redes sociais, facilmente encontrará mulheres solicitando ajuda por estarem em dúvida se estão ou não em trabalho de parto. Diante deste panorama, boa parte das mulheres “terceiriza” as decisões sobre seu parto, deixando nas mãos do obstetra a decisão final, o que contribui para que possamos observar um modelo de nascimentos sendo realizados como que numa “produção em série” (MARTIN, 2001), permeado de intervenções feitas em todas as “pacientes”, sem que haja grande reflexão sobre sua necessidade ou eficácia9, ou optando-se pela cesárea eletiva, sem indicações clínicas pautadas em evidências científicas10. A satisfação das mulheres com a parturição é deixada de lado, ou então ressignificada.

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Dentro do movimento pela humanização do parto, esse parto repleto de intervenções é chamado de “Frank”, de “Frankenstein”. É o parto que não pertence à mulher, já que tudo se passa como se ela fosse mais um elemento reproduzindo um modelo que a precede e que padroniza – uma espécie de “Matrix”, como se referem jocosamente algumas militantes, falando da necessidade da mulher tomar a “pílula vermelha” para encontrar modelos alternativos. 10 A obstetra Melania Amorim enumerou 9 indicações reais de cesárea, e mais de 55 justificativas de que se tem conhecimento de já terem sido usadas, como circular de cordão e bebê que não encaixa antes do trabalho de parto.

 

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Assim, os grupos de casais grávidos11 configuram-se como uma alternativa a esse modelo hegemônico de assistência ao parto. Tais grupos caracterizam-se pela troca de informações e experiências entre casais, visando contribuir para escolhas melhor informadas e experiências mais satisfatórias de parturição. Nesse trabalho, iremos abordar relatos de experiências de parto ocorridos em um destes grupos, o Boa Hora. Desde o início das atividades do projeto Narrativas do Nascer, ocorreram 5 encontros de relatos deste grupo, em 28/5/2011, 23/7/2011, 22/10/2011, 7/1/2012 e 14/4/2012. Como as coordenadoras do Boa Hora também fazem parte do grupo Narrativas do Nascer, pode-se dizer que presenciamos todos esses encontros. Alguns relatos foram gravados, fez-se observações escritas e cada um deles foi levado às reuniões semanais do Narrativas para serem discutidos e analisados.

ENTRE POLÍTICAS PÚBLICAS E POLÍTICAS DO CORPO O tema da humanização em saúde costuma estar atrelado à Política Nacional de Humanização – PNH – e, mais especificamente, à implantação do modelo no SUS. No entanto, mesmo antes da constituição da PNH, que ocorreu em 2003, questões relacionadas à humanização já eram amplamente discutidas por diferentes atores sociais e é possível listar algumas ações pontuais inspiradas nestas discussões, tais como: o Programa Nacional de Humanização da Atenção Hospitalar; o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento; o Método Canguru, dentre outras. O termo humanização, classificado por Carmen Suzana Tornquist (2002) como uma categoria polissêmica, é suscitado em vários contextos referindo-se à busca tanto de melhores condições de trabalho e formação para os profissionais de saúde quanto de uma maior qualidade de atenção aos usuários. O documento base do Ministério da Saúde sobre a Política Nacional de Humanização do Sistema Único de Saúde (Brasil, 2008) assume, entre outras diretrizes, que a Humanização deve ser vista como política que transversaliza todo sistema: das                                                                                                                 11  Ainda no contexto da humanização, surge a noção do “casal grávido”, destacando assim a presença ativa do companheiro nas questões referentes à maternidade. Essa concepção é entendida dentro do discurso feminista como uma proposta que possibilita a quebra, ou antes, o enfraquecimento do sistema patriarcal, como bem coloca Balbus quando afirma que “esse cuidado infantil conjunto por pai e mãe é uma condição indispensável para superar o patriarcado e a imaturidade emocional do qual ele é uma expressão” (BALBUS in HOLANDA, 1993: 125).  

 

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rotinas nos serviços às instâncias e estratégias de gestão, criando operações capazes de fomentar trocas solidárias, em redes multiprofissionais e interdisciplinares, implicando gestores, profissionais e usuários em processos humanizados de produção dos serviços, a partir de novas formas de pensar e cuidar da saúde, e de enfrentar seus agravos. Significa dizer que o estabelecimento da PNH pelo Ministério da Saúde procura confrontar tendências tecnocráticas e iatrogênicas arraigadas em políticas e serviços de saúde (SOUZA; MENDES, 2009, p. 682). É justamente o questionamento de práticas tecnocráticas e iatrogênicas que se constitui em um dos principais pilares da discussão sobre humanização do parto. De acordo com Simone Diniz (1997), a crítica à assistência aos partos estava atrelada a um movimento voltado ao questionamento da abordagem às mulheres nos serviços de saúde. Para esta autora, acreditava-se que as mulheres eram colocadas numa posição de subordinação que não era justificada por suas características biológicas, mas sim por determinações sociais. Tal situação, discutida também por Elizabeth Vieira (2003), faz uso do que se pode denominar de medicalização do corpo feminino para exercer controle sobre processos reprodutivos e de sexualidade. Anayansi Brenes (1991) refere que a introdução de médicos no acompanhamento ao parto “inaugurou, não só o esquadrinhamento do corpo feminino, como a produção de um saber anatômico e fisiológico da mulher, a partir do olhar masculino” (BRENES, 1991, p. 135). De acordo com Diniz (1997), a partir da década de 1960, o movimento de mulheres elege as relações de poder e lutas políticas no campo da reprodução como um de seus focos, tendo como principal reivindicação a autodeterminação sobre o corpo e a sexualidade. Assim, o modelo médico centrado numa condição patológica/defeituosa do corpo feminino passou a ser alvo de fortes críticas: percebeu-se que a visão do parto como potencialmente arriscado abria caminho para a utilização de uma tecnologia agressiva, invasiva e quiçá perigosa, que comprometia a autonomia e a autoridade da mulher sobre o processo de gestar e parir. O caráter desumano dessa tecnologia desconsiderava dimensões sociais, culturais, sexuais e espirituais do parto e do nascimento. Entretanto, desde o início desses questionamentos até o presente, pouca coisa mudou. Atualmente, a medicalização do parto atingiu consequências alarmantes, expressas pelos altos níveis de cesarianas programadas, especialmente em maternidades privadas,

 

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chegando, em algumas delas a atingir marcas em torno de 90%, em Recife 12. Vale esclarecer que a Organização Mundial de Saúde recomenda que as cesarianas cubram no máximo 15% dos partos atendidos nos sistemas de saúde (AMORIM, 2010; Ministério da Saúde, 2012). No cenário composto pelo sistema público, vê-se o excesso de intervenções desnecessárias, realizadas como rotina, de modo a tentar encurtar o tempo de permanência das parturientes na maternidade, mesmo que a contrapartida seja o aumento do desconforto dessas mulheres, dando origem a um quadro que se pode constituir numa violência institucional (AMORIM, 2011). Para ilustrar essas afirmações, pode-se citar a aplicação indiscriminada de intervenções tais como a tricotomia 13 , o uso de ocitocina 14 , a episiotomia15, o enema16, dentre outros exemplos de práticas não recomendadas pelo Ministério da Saúde, porém vigentes no atendimento de rotina em hospitais. Vê-se, portanto, num contexto de total impessoalidade, uma cascata de procedimentos, a pobreza das relações humanas e o sofrimento físico e emocional desnecessário causado pelo uso irracional da tecnologia (DINIZ, 2005). Em contraposição a este processo, surgiu um movimento em prol da humanização do parto, com a finalidade de melhorar as condições de atendimento e criticar a crescente desumanização do nascimento. Algumas das premissas básicas deste movimento seriam o questionamento da onipotência do profissional obstetra; a revisão quanto à forma de se relacionar com a parturiente e a família; a adoção de uma equipe interdisciplinar de modo a compartilhar conhecimentos; o respeito a diferenças de crenças e valores; e, especialmente, o fortalecimento da mulher em relação ao seu potencial de conduzir de maneira natural o parto (PONTE; LUNA, 2003). Tornquist (2002) salienta que o movimento defende mudanças na assistência hospitalar/medicalizada ao parto, tendo como base a Medicina Baseada em Evidências – MBE – e as recomendações da Organização Mundial de Saúde – OMS –, que, dentre outras coisas, incentivam o parto vaginal, o aleitamento materno no pós-parto imediato, o alojamento conjunto de mãe e filho, a presença do pai ou outro acompanhante de livre                                                                                                                 12

Segundo o Ministério da Saúde, a taxa global de cesáreas no Brasil é de 52% No sistema particular de saúde, a taxa é de 82%. 13 Raspagem dos pelos pubianos. 14 Hormônio sintético utilizado para aumentar as contrações e acelerar o trabalho de parto. 15 Corte feito no períneo sob a justificativa de facilitar a passagem do bebê e evitar possíveis lacerações. 16 Lavagem intestinal através da introdução de líquidos pelo ânus.

 

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escolha da mulher no processo do parto, o trabalho de enfermeiras obstetras na assistência aos partos normais, a inclusão de parteiras no sistema de saúde, a mudança de rotinas hospitalares consideradas desnecessárias – como as citadas anteriormente – dentre outras. A Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento (ReHuNa) foi fundada em 1993, pelo documento conhecido como A Carta de Campinas, um texto-denúncia que trata da violência obstétrica direcionada às parturientes sob forma verbal ou física, cuja conceituação compreende desde maus tratos e comentários jocosos à realização de procedimentos desnecessários. Como organização da sociedade civil, a Rede é mantida por instituições e participantes associados e articulados por todo o Brasil e tem como objetivo principal (...) a divulgação de assistência e cuidados perinatais com base em evidências científicas. Essa rede tem um papel fundamental na estruturação de um movimento que hoje é denominado “humanização do parto/nascimento”. Esse movimento pretende diminuir as intervenções desnecessárias e promover um cuidado ao processo de gravidez/parto/nascimento/amamentação baseado na compreensão do processo natural e fisiológico. A ReHuNa apóia, promove e reivindica a prática do atendimento humanizado ao parto/ nascimento em todas as suas etapas, a partir do protagonismo da mulher, da unidade MãeBebê e da medicina baseada em evidências científicas. Essa missão vem sendo buscada na prática diária de pessoas, profissionais, grupos e entidades filiados à rede e preocupadas(os) com a melhoria da qualidade de vida, o bem estar e bem nascer. (Rehuna, 2012)

A partir da criação dessa Rede, diversos encontros nacionais e regionais passaram a ser organizados todos os anos em várias cidades do país. Atualmente, as redes sociais da internet desempenham um papel importantíssimo no empoderamento de mulheres descontentes com as perspectivas que lhes são oferecidas para o momento do parto. A humanização dos partos e nascimentos é uma causa essencialmente ligada à mobilização social. Não é um paradigma que emana de uma mudança trivial ou pré-determinada, já inscrita na formação médica e na prática obstétrica, mas a face desse contexto mais amplo de articulação social. Não se trata, portanto, de um conjunto de experiências isoladas, mas de uma rede que lhe confere identidade. São muitas as correntes que compõem essa tendência geral de humanização, mais ou menos radicais em seus questionamentos e posições: ora comemorando os avanços da medicina, compactuando, portanto, com o modelo intervencionista que propiciaria à mulher um parto sem sofrimento (postura marcante nos anos 1980), ora adotando a crítica a esse modelo (tendência atual), entendendo a situação do parto como um momento culminante da feminilidade e do empoderamento da mulher; um momento que deve ser explorado e não reprimido.  

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De maneira geral, os pontos de consenso entre as múltiplas manifestações do movimento de humanização incluem a valorização do protagonismo feminino no evento fisiológico e cultural do parto; a condenação das intervenções médicas aplicadas por simples conveniência, seja do médico, da própria parturiente ou da instituição hospitalar; o respeito às particularidades de cada mulher e às suas preferências para o momento do parto; as redefinição das relações humanas na assistência; o entendimento do parto como um momento sagrado e, portanto, merecedor de reverência. Sob essa ótica, o corpo feminino, antes necessariamente carente de resgate, é redescrito como apto a dar à luz, na grande maioria das vezes, sem necessidade de quaisquer intervenções ou sequelas previsíveis. O nascimento, antes um perigo para o bebê, é redescrito como processo fisiológico necessário à transição (respiratória, endócrina, imunológica) para a vida extrauterina. O parto, antes por definição um evento médico-cirúrgico de risco, deveria ser tratado com o devido respeito como “experiência altamente pessoal, sexual e familiar”. Os familiares são convidados à cena do parto, especialmente os pais, antes relegados ao papel passivo de espectadores. De evento medonho, o parto passa a inspirar uma nova estética, na qual estão permitidos os elementos antes tidos como indesejáveis – as dores, os genitais, os gemidos, a sexualidade, as emoções intensas, as secreções, a imprevisibilidade, as marcas pessoais, o contato corporal, os abraços” (DINIZ, 2005: 630).

O GRUPO BOA HORA, PLANOS E RELATOS DE PARTO A participação no grupo Boa Hora geralmente está associada à valorização da informação na busca pelo parto natural/normal, por parte das mulheres. Algumas delas chegam ao grupo com a ideia de se “prepararem para o parto” e outras, no entanto, buscam somente conhecer melhor suas próprias gestações e partos futuros. Dessas últimas, grande parte se envolve emocionalmente com o grupo e à medida que acompanham os desfechos dos partos de suas colegas e que conhecem a possibilidade da assistência humanizada, terminam por desejar a experiência de um parto natural17, ou fisiológico. Dessa forma, o grupo Boa Hora caracteriza-se especialmente pela veiculação de informações, por trabalhos corporais e relaxantes e pela promoção de reflexão coletiva acerca do parto. A divulgação do grupo acontece especialmente por meio dos participantes antigos, que sugerem o grupo aos seus amigos e familiares. Além disso, a internet serve                                                                                                                 17

O parto natural é conceituado como o parto vaginal experienciado sem intervenções, distinguindo-se, assim, do parto normal, compreendido como ocorrido por via vaginal, mas podendo sofrer qualquer sorte de intervenções.

 

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também como ferramenta de divulgação. O grupo possui espaço em redes sociais como facebook e orkut, e a instituição responsável pela idealização e manutenção do grupo, o Instituto Nômades, conta com site na internet18. O planejamento dos encontros é realizado internamente e reflete a preocupação das facilitadoras em proporcionar aos participantes a maior abrangência possível de temas trabalhados, de modo que os encontros não se tornem repetitivos para as mulheres ou casais do grupo. Durante as reuniões, que acontecem de maneira informal, semanalmente, grávidas e casais são convidados a participar ativamente, intervindo sempre que quiserem e perguntando sobre o que lhes for desconhecido. Nesse sentido, os encontros não se dão no formato de palestras, mas são como conversas grupais, apesar de haver eixos que norteiam a discussão e que foram previamente determinados pelas facilitadoras. Toda pergunta tem pertinência e todo comentário é bem-vindo, o que favorece a construção de uma relação de intimidade entre os participantes, e não raramente de laços que permanecem após o nascimento dos filhos. Frequentemente as mulheres relatam eventos ocorridos durante o pré-natal e conversas que tiveram com seus médicos, com outros profissionais de saúde ou familiares. Geralmente, com o passar do tempo, as mulheres relatam o desenvolvimento de uma criticidade a respeito dos discursos dominantes sobre a questão do parto. Dessa maneira, aquilo que é ouvido não seria absorvido sem antes passar por um filtro crítico, ainda que tenha sido dito por um especialista, o obstetra. A atmosfera de “desabafo” não raramente ocorre nas reuniões, com as mulheres relatando a falta de apoio que sentem na busca pelo parto que querem. A busca de informações sobre gravidez e parto não se restringe às reuniões semanais. Há indicações de leituras – o grupo conta com uma pequena biblioteca para empréstimos – e outros materiais são compartilhados pela internet. De acordo com a disponibilidade e o interesse de cada mulher/casal, haverá um aprofundamento diferente nas questões relacionadas à gravidez e ao parto. Os encontros seguem normalmente, sob um mesmo formato, até que uma das participantes atinja a marca das 38 semanas. Ou seja, até que uma participante passe a estar a termo e possa entrar em trabalho de parto a qualquer momento. A partir desse dia, na                                                                                                                 18

www.institutonomades.blogspot.com. O grupo é uma das ações que compõem o Programa Boa Hora, e é facilitado por doulas.

 

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ocasião da reunião seguinte, o grupo vivencia o chamado “ritual de boas-vindas ao bebê”. Nele, a mulher grávida, ou o casal, assumem posição de destaque no grupo - cujos participantes já estão sentados em círculo - e leem, ou simplesmente relatam, seu plano de parto. O plano de parto é um documento no qual a mulher estabelece suas preferências para o momento do trabalho de parto, parto e pós-parto (incluindo os primeiros cuidados com o bebê). O local do parto, as características deste ambiente, os acompanhantes e profissionais que estarão presentes, os alimentos que ela gostaria de ingerir e as intervenções que não devem ser feitas rotineiramente são informações que devem estar presente no texto. O plano pode ter um caráter mais pragmático, sendo essencialmente uma lista de procedimentos a serem evitados ou realizados, mas pode também assumir um caráter poético, que dá vazão a expectativas, anseios e alegrias referentes à chegada do bebê. A redação desse documento é bastante incentivada pelas facilitadoras do grupo Boa Hora, justamente por exigir que a mulher assuma concretamente aquilo que no movimento é frequentemente chamado de protagonismo. Em outras palavras, a escrita do plano de parto demanda a tomada de decisões conscientes e informadas e, por isso, coloca a mulher em posição de agência e de responsável pelas suas escolhas. Fiz um plano de parto, que foi importantíssimo acho que nos dois partos, porque nele eu pude conseguir me organizar (...) Quem eram as pessoas que eu queria que tivessem junto, quem eu não gostaria, o que a profissional, no caso a médica faria, o que a doula faria (...) Eu me senti muito segura fazendo o meu plano de parto. Sabendo quem estaria, quem não estaria, o que é que eu não gostaria (...) Então pra mim foi importante”. (Luiza19)

Seguindo nesse raciocínio, o parto humanizado não se refere necessariamente a um tipo de parto, mas ao tipo de assistência prestada, que, segundo os ditames do modelo humanizado, deve possibilitar a livre expressão do protagonismo feminino. Assim, a mulher passa a ser a agente principal nas tomadas de decisões e os profissionais restringem-se a acompanhar a evolução do trabalho de parto, lançando mão de intervenções somente quando necessário. O parto natural passa a representar, assim, o tipo de parto em que esse protagonismo poderá ser exercido de maneira ideal. Em outras palavras, na visão do movimento de humanização, é na vivência estritamente fisiológica que a mulher encontra a possibilidade de expressar integralmente o seu protagonismo. No entanto, não se faz presente a ideia de rechaçar tecnologias médicas                                                                                                                 19  Os nomes das participantes foram trocados para preservar seu anonimato.    

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a qualquer custo. Pelo contrário, as intervenções são referenciadas no grupo Boa Hora como ferramentas importantes diante de intercorrências e partos distócicos20. Nesse sentido, falar em parto humanizado no grupo Boa Hora significa essencialmente falar em condutas seguras, no protagonismo feminino e na dimensão psicológica, social e cultural da parturição. Compartilhar com o grupo o plano de parto é um ritual vivido pela mulher/casal gestante. Outro deles acontece alguns meses após o parto e trata-se justamente do relato oral da experiência do parto. Os encontros de relatos de parto do grupo Boa Hora são realizados sempre que um certo número de mulheres pariram e podem voltar ao grupo para compartilhar suas experiências. Realizam-se, em média, cinco relatos por encontro, todos eles feitos pelas mulheres, e também por seus companheiros. Os encontros de relatos de parto acontecem fora do ambiente usual do grupo Boa Hora. O local escolhido é a casa de uma das facilitadoras. Considerando que o grupo Boa Hora tem uma clara orientação pró-humanização, poderíamos questionar a espontaneidade dos relatos, uma vez que quase todos os participantes almejam o parto humanizado e que a própria atmosfera e ambientação do grupo poderia inibir mulheres e casais que não tenham alcançado a meta do parto natural ou que tenham sido submetidos a cesarianas por indicações duvidosas, digamos assim. O seguinte trecho expressa a evidência desse viés. Clara, ao relatar o seu parto, sente-se encabulada por propagar o que seria uma imagem positiva da analgesia: Eu sentia essa vontade de fazer força muito grande, e tem um desconforto associado (...) E eu já dizendo graças a Deus, né, que a anestesista tinha chegado. E sentei lá e fiquei naquela posição que todo mundo vê nos filmes (...), que é com as costas bem curvadas pra ela poder fazer a analgesia. Só que eu já tava com muita dor. A contração uma atrás da outra, então eu não conseguia ficar nessa posição. E a enfermeira me pegava e me curvava, e dizia "Juli, só mais um pouquinho", e eu não conseguia. Finalmente, levei umas sete furadas nas costas pra poder ela conseguir pegar o acesso (...) E aí pronto, quando ela conseguiu fazer(...) Fiquei muito feliz, infelizmente eu tenho que contar. (...) Eu ainda sentada na mesa, de repente tudo mudou. Por isso que eu digo, eu num sei se eu devia tá contando isso aqui... (Clara)

No entanto, o relato de parto ainda é a ferramenta que mais se aproxima da elaboração da experiência do parto. Feita por quem a vivenciou mais intensamente, a mulher, ele proporciona muitas possibilidades analíticas sobre as representações e significações das intervenções obstétricas para as mulheres. Além disso, os relatos são                                                                                                                 20

 

Dificuldades encontradas na evolução de um trabalho de parto.

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espontâneos na medida em que não são direcionados – as mulheres podem falar à vontade, respeitando apenas limitações de tempo, quando necessário, mas escolhendo os pontos que quiserem ressaltar. Assim, justifica-se o seu uso neste trabalho. Após o relato, os demais participantes ficam à vontade para fazerem questionamentos e comentários. Ao relatar o seu parto, a mulher volta-se à sua experiência e revive aquele evento, criticando-o e comentando-o. As palavras que ela usa, os momentos que referencia, sua visão sobre o passado montam um mosaico, tecendo uma memória que é sua, mas que se estende à memória do grupo. Pode-se afirmar que existe uma estrutura comum aos relatos de parto, fazendo com que os mesmos se apresentem como um gênero textual: na maioria das vezes os relatos seguem a ordem cronológica dos acontecimentos, ainda que o caráter de improvisação da fala por vezes faça a autora retomar um momento anterior ou antecipar um acontecimento posterior. Ainda que a mulher elabore previamente um rascunho mental do que deseja contar, não raro ela envereda por caminhos não planejados, ressaltando ou ocultando alguns pontos da história, interagindo com a plateia que escuta, relacionando com experiências contadas anteriormente pelo grupo. Em suma, os encontros de relatos de parto têm um papel importante na disseminação de informações sobre parto e sobre diferentes tipos de atendimento. Ouvindo as experiências de outras mulheres, a grávida reflete sobre as suas escolhas, aprende o significado de termos técnicos, conhece informações que a fazem questionar as rotinas conduzidas por seus médicos. No entanto, a função dos relatos vai além da troca de informações, na medida em que tem um papel nos processos identitários. Esse compartilhar experiências dos relatos relaciona-se com o conceito de “narrativas do eu”, onde o crescente papel da (re)organização reflexiva das narrativas biográficas atuam na construção das identidades subjetivas ou de auto-identidades (GIDDENS, 2002). LENDO RELATOS De acordo com a visão humanizadora, o excessivo uso da tecnologia não cumpre, em sua totalidade, com a promessa de minimizar os riscos presentes no ato de parir. Ao contrário, alguns riscos são exacerbados com o uso indiscriminado da cesárea como via principal de parto. Para o movimento de humanização, seria preciso recuperar o caráter do parto como evento social complexo que envolve as dimensões biológica, psíquica, social e cultural, a fim de minimizar os riscos da prática hegemônica.

 

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A noção de risco pode ser compreendida, portanto, como uma construção cultural datada e fluida, que dependerá, na situação da gravidez e parto, não apenas daquilo que está disseminado no senso comum, mas também da conveniência para a equipe que atenderá o parto, dos sentidos que a gestante e sua família atribuem à gravidez, ao nascimento e ao saber profissional. Os trechos abaixo ilustram tais assertivas. Durante a gravidez, muitas vezes senti que gostaria de ter a coragem de minha prima e receber Carlos em nossa casa. Mas de fato não tenho e preferi parir numa maternidade. ...por muitas vezes durante a gravidez tinha que repetir para as pessoas que eu não estava doente, estava gestante e não era gestação de risco. (Sofia)

Em alguns casos, o diagnóstico de uma situação de risco para o bebê é a chave para “aceitação”, por parte da mulher, de intervenções que não haviam sido planejadas, ou que, claramente, não estavam em seu plano de parto: Chega a obstetra, faz o toque, escuta o meu menino. “Colo ainda grosso, um centímetro de dilatação, contração ainda de 40 em 40 minutos, pouco líquido... vamos ao coração do garoto. Acima do normal, e baixando muito quando vem a contração.” Nesse momento, minhas vontades foram embora, prevaleceu o fato dos batimentos cardíacos. “Vamos Dra. G., vamos à sala de cesárea. (...) Meu conhecimento não me permitiu dizer se ainda tinha como esperar. Mas o medo que me invadiu de que meu bebê tivesse correndo risco, me fez ter a coragem de enfrentar a cirurgia da cesariana. (Sofia)

Não raro, no momento do relato as mulheres já têm uma visão diferente sobre o real risco que elas e seus bebês corriam no momento do parto (em algum momento “cai a ficha”, diz-se). Dessa forma, percebe-se a noção de risco como polissêmica e como estratégia de poder que tanto pode justificar o controle exercido sobre o corpo da mulher e do transcurso da gestação e do parto, quanto servir de base para os questionamentos em relação ao modelo hegemônico de acompanhamento à gravidez. Neste sentido, algumas vertentes do movimento de humanização do parto recorrem à Medicina Baseada em Evidências e às recomendações da Organização Mundial de Saúde para adotar uma determinada noção de risco e questionar todas as outras, incentivando a busca ativa das mulheres por informações e suas possibilidades de escolhas. …quando nós engravidamos a primeira coisa foi entrar na internet e começar a procurar tudo sobre parto, até que, através de uma amiga, eu soube sobre o parto humanizado e me apaixonei. Eu disse: "É isso que eu quero." (...) Acabamos optando então por ser um parto no hospital, ser um parto na água, não ter nenhuma intervenção, ter uma doula… (Luiza)

 

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Apoiado nas evidências científicas e baseado no respeito aos direitos reprodutivos da mulher, o projeto de humanização da assistência ao parto propõe um modelo centrado na experiência feminina e vê o parto como algo fisiológico21, criticando uma série de práticas corriqueiras utilizadas dentro do paradigma biomédico. Nesse cenário, a comunicação clara com a equipe que acompanha o pré-natal, bem como a escolha e o estabelecimento da confiança em tais profissionais são fatores muito valorizados, na medida em que são experienciados como elementos fundamentais para a conquista do parto almejado. Trata-se de uma espécie de garantia que as mulheres têm de que não passarão por intervenções desnecessárias e de que terão o acompanhamento responsável e competente. …já tinha combinado com a médica que nós íamos trancar o quarto e ela ia falar que não tinha dado tempo. Porque nos procedimentos do hospital eu tinha que ir pra sala de parto, e era o que eu não queria. Planejei o parto da Sílvia de ser na água. E quando nós chegamos, já montamos a piscina, enchemos tudo, e em pouco tempo que encheu a piscina, eu entrei, já fui quase entrando em período de expulsão.

Diante da posição de agência na tomada de decisões que é estimulada pelo grupo, a conquista da confiança no profissional que irá atender a mulher no parto é redimensionada. Ela passa pela escuta de suas necessidades e desejos, pelo esclarecimento de dúvidas e concordância quanto a suas escolhas. Ou seja, trata-se da valorização de uma atenção individualizada que se contrapõe à ideia de acompanhamento em série, como numa linha de montagem. A coisa começou a ficar meio arisca quando eu levei umas perguntas para ela. Perguntas do tipo: Como eu vou saber que entrei em trabalho de parto? Como é o tampão? Quais são as condições que levam a uma cesárea sem chance de ser normal? Entre outras perguntas, das quais senti muita resistência da obstetra em serem respondidas. Felizmente ou infelizmente isso fez com que eu criasse uma barreira com ela e me impulsionou a estudar mais sobre o parto ativo e sobre as condições para ser melhor uma cesárea. (Sofia)

Em muitos momentos dos relatos, vimos que existe uma espécie de “negociação” prévia com os profissionais com relação às intervenções que irão ou não ser feitas, seja com a mulher, seja com o bebê: consegui conversar com a neonatologista sobre os procedimentos a serem feitos com o bebê e consegui que ela não fizesse o colírio. (Não tinha razão de ser pois eu não tinha tido nenhum infecção grave na vagina ou urinária) e que ela deixasse prescrito a proibição de comida artificial para o nenê. (Sofia)

                                                                                                                21

Em contraposição à visão da biomedicina do parto como patológico, mas ressaltando que o ato de parir é extremamente simbólico e possui variações culturais imensas.

 

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É certo de que esse aspecto da necessidade de se conversar com os profissionais antes do momento do parto é bastante enfatizado pelas facilitadoras. Por um lado, pelas características de um trabalho de parto e a posição de fragilidade na qual a parturiente se encontra para fazer valer suas escolhas. Por outro lado, porque é claro que ter o parto que se deseja não é tarefa fácil, é algo pelo qual se precisa lutar: tive um parto natural... Na verdade ele teve algumas intervenções, mas eu considero que foi um parto bem diferente do que seria se a gente não tivesse lutado tanto por ele. (...) quem quer um parto natural tem que nadar contra a corrente tanto na questão da família, quanto das pessoas no geral, dos profissionais, das instituições... Você realmente tem que se empoderar, tem que ler, estudar e ter esses espaços de troca pra você se fortalecer. (Clara)

Por conseguinte, dentro desta perspectiva de humanização do parto, de acompanhamento individualizado, de respeito aos direitos sexuais e reprodutivos e de valorização do chamado protagonismo da mulher, a maternidade é vista como uma escolha consciente e programada e não como algo ao qual a mulher está destinada, pois não é algo que a define, mas que se constitui como parte integrante na construção de sua identidade. É assim que o Dossiê de Humanização do Parto também define a maternidade, como “[v]oluntária, prazerosa, segura e socialmente amparada – esta é a maternidade defendida pelas feministas brasileiras envolvidas com a humanização do parto”. Lucila Scavone (2001), contestando todo determinismo biológico, refere o feminismo centrado na mulher como sujeito e a maternidade como não sendo irremediavelmente seu destino, mas sim uma construção social. Para Michelle Rosaldo (1995), questões biológicas como a reprodução têm grande importância na vida das mulheres, mas não justificam a existência de hierarquias sexuais. A autora afirma ainda que mesmo fatos universais não são redutíveis à biologia. Aquilo que chamamos de “natural” deve ser compreendido em termos sociais, como um resultado de arranjos institucionais, passíveis de modificações, que podem ser enfrentados e alterados através de uma luta política. CONSIDERAÇOES FINAIS Na medida em que a biomedicina se colocou como um conhecimento universalizante e normatizador, desvalorizou outros tipos de saberes relativos à cura e ao  

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manejo da saúde. No entanto, suas práticas nem sempre são baseadas em evidências científicas e sim, em concepções hierarquizadas e altamente permeadas por preconcepções. Dentro desse paradigma modernizador ocidental, a cesariana foi se encaixando como uma alternativa rentável e racionalizada, na medida em que quase todas as variáveis relacionadas ao nascimento puderam ser controladas e mesmo agendadas. O manejo do tempo torna-se previsível. Fundamenta-se então o modelo biomédico de assistência ao parto, pautado na medicalização e na padronização da experiência. Pelo viés da teoria feminista, argumenta-se que a consolidação do saber médico relativo ao corpo feminino colabora para a formação de relações de dominação de gênero, em que a mulher é vista como sujeito passivo. Esse sujeito feminino ativo seria, justamente, a retomada da agência, entrando em cena questões como autoreflexividade e escolhas informadas. As informações discutidas acima mostram que a humanização do parto no Brasil caminha às margens das políticas nacionais de saúde. Não é um tipo de parto que ocorre a partir da escolha feita pela gestante durante seu pré-natal; tampouco é o padrão de assistência disponível em nosso sistema de saúde, seja ele público ou privado. Em geral, a parturiente que pensa em dispor de profissionais humanizados durante o seu parto deve primeiro munir-se de informações, tanto aquelas sobre o parto em si quanto as relativas ao funcionamento do cenário obstétrico brasileiro. Grupos de apoio ao parto ativo, existentes em vários estados do país, são portas de entrada importantes a esse universo. O presente artigo não tem a intenção de ser conclusivo, mas sim de lançar reflexões sobre a condução atualmente corriqueira do processo de gestar e parir na nossa sociedade. Nela, as intervenções parecem se constituir em grandes representações da medicalização, tecnocratização, esquadrinhamento dos corpos, desvalorização da mulher e dos eventos naturais. Enfim, as intervenções durante a gravidez, trabalho de parto e parto, realizadas de maneira irrefletida e mecanizada, ilustram a busca de controle, medição, racionalização e domínio sobre aspectos considerados desorganizadores e primitivos. Trata-se da tentativa de transformação de uma experiência individual, que mescla questões fisiológicas, psicológicas e culturais, em um evento homogeneizado e universalizado dentro da perspectiva de condução e assistência pautada na noção de risco e assepsia, que desconsidera as particularidades e desejos de cada parturiente. O movimento de humanização do parto e do nascimento, ao questionar o modelo hegemônico de atendimento e propor outras formas de vivenciar a gravidez e o parto, lança

 

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uma revisão de valores relacionados à mulher e à reprodução tidos como inferiores. Nesse sentido, ele pode ser considerado um modo de enfrentamento dos padrões instituídos e uma ferramenta de questionamento e reivindicação quanto aos direitos sexuais e reprodutivos e, portanto, de exercício de cidadania (RODRIGUES; QUADROS, 2011). Tendo em vista que os direitos sexuais se referem à garantia de vivência da sexualidade para além de normas e padrões impostos e que os direitos reprodutivos dizem respeito à liberdade de escolha de quando, quantos e como ter filhos (ÁVILA, 2003), defende-se nesse texto que o acompanhamento do pré-natal e do parto seja analisado sob a ótica dos direitos sexuais e reprodutivos. É com respeito a tais diretrizes que se pode pregar a vivência livre da sexualidade, sem que ela esteja atrelada à reprodução, e o acesso a informações atualizadas e a uma assistência sem coerção como elementos fundamentais para dar suporte às decisões de cada mulher/família sobre o modo como quer e/ou pode vivenciar o parto. Nessa perspectiva, pode-se falar também em direitos humanos, na medida em que com isso busca-se garantir o respeito à dignidade do indivíduo, seja ele a mulher, o recém-nascido e os outros familiares envolvidos. Assim, a participação em grupos de apoio ao parto e nascimento humanizados configura-se como uma das alternativas de acesso a informações sobre a condução da gravidez e do parto, as possibilidades de intervenção, a necessidade de sua ocorrência ou não, e, por conseguinte, como respaldo para que as mulheres critiquem e decidam sobre o tipo de acompanhamento ao qual querem se submeter ou se co-responsabilizar.

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