O RESGATE DA MEMÓRIA E DA ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS ANÁLISE DO PAPEL DA ESCOLA E DAS FAMÍLIAS

July 27, 2017 | Autor: F. Nunes Dos Santos | Categoria: Narrative, Leitura, Educação, Memoria
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O RESGATE DA MEMÓRIA E DA ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS: ANÁLISE DO PAPEL DA ESCOLA E DAS FAMÍLIAS 1 Fernanda Nunes dos Santos 2 Mas as evocações se turvam na fantasia. A memória não está livre da imaginação. Renato Janine Ribeiro

Contar histórias A narrativa faz parte da história da humanidade. As histórias sobreviveram ao tempo por meio da oralidade, elas ficaram na memória. Com o passar do tempo foram registradas por diferentes pesquisadores e escritores. Luís Da Câmara Cascudo foi um dos grandes pesquisadores dos contos e lendas brasileiras, sua obra revela o verdadeiro Brasil, pois em suas próprias palavras Cascudo diz: “O Conto popular revela informação histórica, etnográfica, sociológica, jurídica, social. É um documento vivo, denunciando costumes, ideias, mentalidades, decisões e julgamentos” (CASCUDO. Prefácio in: ___, 2004, p. 12). Em tempos onde a oralidade foi perdida para a escrita da imprensa, nada pode ser melhor do que registrar nossa história para que ela não morra em si, mas que reviva a cada leitura. Contar histórias, lendas e contos, não é apenas reproduzir o que ouvimos, mas também é revelar a história, as tradições e o modo de vida de um povo, é não deixar morrer a oralidade mesmo tendo que fazê-la sobreviver na escrita do papel para que algum dia, alguém possa reanimar e enfim lhe dar vida e voz. Contando sua própria história e a do mundo, o homem vem se utilizando da narrativa como um recurso vital e fundamental. Sem ela a sociabilidade e mesmo a consciência de quem somos não seria possível. O conto é uma memória da comunidade, em que encontramos lugares diferentes de olhar e ler o mundo ao praticarmos a arte da convivência. (BEDRAN, Bia 2012, p.25)

Em um tempo onde as escolas não eram para todos, em um tempo onde os livros eram raros, aqueles que não sabiam ler contavam histórias que de tanto ouvir ficaram gravadas na memória. Era na reprodução que se aprendia os contos, os ditados populares, receitas e provérbios. Tudo isso circundava as famílias, desde as mais humildes até os casarões, em que 1

Este texto apresenta fragmentos de uma pesquisa de Trabalho de Conclusão de Curso, do curso de especialização em Ética, valores e cidadania na escola, realizada em 2013 pela Universidade de São Paulo. 2 Especialista em Ética, valores e cidadania na escola; Universidade de São Paulo; São Paulo, SP. E-mail: [email protected]

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escravas e amas cuidavam das crianças e lhe contavam histórias que haviam aprendido com seus pais e avós. O contar histórias está muito ligado à narrativa e à memória, as pessoas narram da maneira como lembram. Assim a história vai sendo tecida, e não é só o narrador que é sujeito da história, o ouvinte também é, porque ele é participante. Esse ouvinte se apropria de tal forma da história, que depois ele mesmo se torna um narrador/contador, assim como nos diz Bia Bedran (2012, p.52) “Lia e ouvia ler. Alguém sempre contava para quem não lia. Alguém também cantava, pois os romances eram histórias que se cantavam”. Narrativa e memória Dentro da mitologia grega temos a deusa Mnemosyne que é a personificação da memória, ela era considerada a memória do mundo, e o ciclo da vida. Farias faz a seguinte observação a respeito da Mnemosyne... [...] na Grécia Antiga [...] tanto os poetas como os adivinhos eram seres capazes de decidir em função da memória, pois tinham uma vidência além do presente, podendo assim desenterrar aquilo que de mais profundo encontrar-se-ia no passado. [...] Eis a verdade tocada pela memória, que não guardava o sentido de ser a recapitulação de uma história pessoal, e muito menos a reprodução de uma história coletiva trata-se de um mergulho no tempo original, ou seja, numa espécie de começo absoluto, a origem de tudo. Essa era a função de Mnemosyne: estar presente na origem. (FARIAS, 2011, p. 15)

A memória nos faz recordar daquilo que ouvimos e vivemos, das situações, dos lugares, dos objetos e até mesmo do cheiro que podem nos fazer relembrar. E por meio da memória o educar ganha seu espaço. Segundo Carruthers (2006), na Idade Média a memorização era uma estrutura basilar estabelecida na infância. Ela também diz que “O verdadeiro poder da memória jaz na lembrança ou memória, que era analisada como forma de investigação, a invenção e recriação do conhecimento [...] (CARRUTHERS, 2006, p. 17)”. Memorizar estava relacionado com a ideia de transformar a memória em bibliotecas. As histórias e os contos populares são a nossa primeira lembrança, quase que o nosso primeiro falar. Quem nunca ouviu uma criança que conhece poucas palavras, tentar contar uma história? Ela pode se atrapalhar toda e contar a narrativa pela metade, mas isso só acontece porque ela teve o contato direto com a história que alguém lhe contou repetidas vezes até que ela pôde se apropriar do conto e narrar sozinha. Essa experiência é vital para a sua formação intelectual que a tornará uma futura leitora letrada. Para todos nós é o primeiro leite intelectual. Os primeiros heróis, as primeiras cismas, os primeiros sonhos, os movimentos de solidariedade,

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amor, ódio, compaixão vêm com as histórias fabulosas ouvidas na infância. [...]. (CASCUDO. Prefácio in: ___, 2004, p. 12)

Resgatar a memória de contos ouvidos na infância e lembrar-se dos sentimentos causados; de sonhar em ser a Cinderela e encontrar o Príncipe Encantado, de derrotar a bruxa malvada, de morar em um castelo e viver feliz para sempre, de caminhar por florestas encantadas, de ser uma fada, são imaginações que rodeiam e que norteiam o ser criança. São memórias para a vida inteira. Ler os livros é propor um mundo de imaginação para a criança, é familiarizá-la com as palavras e com o mundo. Contar uma história exige presença do narrador e do ouvinte como diz Bosi (1994). A narrativa não se faz um sem o outro, é preciso que aquele que narra utilize de todos os artifícios possíveis para conquistar a atenção daquele que ouve. Se for preciso, usar um lençol para transformar na capa do rei, usar um guarda-chuva como casa e assim por diante. É preciso usar a imaginação para transformar a história e fazer com que ela se torne viva dentro da fantasia da nossa alma. O narrador está presente ao lado do ouvinte. Suas mãos, experimentadas no trabalho, fazem gestos que sustentam a história, que dão asas aos fatos principiados pela sua voz. Tira segredos e lições que estavam dentro das coisas, faz uma sopa deliciosa das pedras do chão, como no conto da Carochinha. A arte de narrar é uma relação alma, olho e mão: assim transforma o narrador sua matéria, a vida humana. (BOSI, 1994, p. 90)

O papel da escola e da família Dentro da narrativa existe o papel da família e da escola, ambas desenvolvem uma ação importante para a criança: da família, vem a lembrança das primeiras histórias contadas e das canções de ninar que fazem parte da memória. Na escola, tem a atuação do professor que lê para os alunos e assim busca desenvolver o hábito da leitura para que a criança torne-se não apenas alfabetizada, mas também letrada. Porém, é na família que a criança terá as suas primeiras memórias e reproduzirá aquilo que ouviu, cantará as músicas e contará os contos populares que fazem parte da infância. Para que a primeira memória se desenvolva é preciso que a criança tenha ouvido, para que então possa recontar, se a criança não ouvir as canções de ninar e as histórias que devem fazer parte do repertório infantil, dificilmente ela poderá se expressar por meio do contar e recontar histórias, e assim não exercerá a difícil tarefa de narrar e de contar experiências. Para Benjamin (2012), o contar as experiências refletem no papel de um narrador, porque ele não fala de si mesmo, ou simplesmente se traduz como um contador de histórias, o narrador é uma pessoa que fala do mundo, que fala das suas vivências e de suas experiências que adquiri com o passar do tempo, um papel importante como narrador.

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A criança que ouve histórias cotidianamente desperta em si a curiosidade e a imaginação criadora e ao mesmo tempo tem a chance de dialogar com a cultura que a cerca e, portanto, de exercer sua cidadania. O encontro de seu imaginário com o mundo dos personagens tão diversificados pertencentes aos contos, sejam eles tradicionais ou contemporâneos, é fator de grande enriquecimento psicossocial. (BEDRAN. Bia 2012, p.25)

O encantamento causado pelos contos é fator enriquecedor para o desenvolvimento da fala e da escrita, porque antes de aprender a ler, o aluno já havia se tornado uma criança letrada por ter contato direto com os livros e por ouvir histórias narradas por seus pais, irmãos, etc. Nesse fator podemos elencar que é de vital importância que os pais ofereçam a oportunidade do contato com os livros, e na falta desses, que a escola exerça o seu papel e propicie oportunidades para o desencadeamento do mundo letrado, a fim de que os alunos tenham contato direto e constante com os livros, tendo assim o enriquecimento psicossocial. Ouvir histórias durante a infância leva o indivíduo não somente a descobrir novos mundos e novas fronteiras, mas também lhe proporciona sentimentos que serão carregados dentro de si durante a sua vida inteira, algo que ele próprio poderá um dia proporcionar aos seus filhos, criando assim um círculo virtuoso. Referências BEDRAN, Bia. A arte de contar histórias: narrativas orais e processos criativos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. BENJAMIN, W. O narrador. In.____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 8ª ed. São Paulo: Brasilienses, 2012. p. 129-140. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: Lembrança de velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. CARRUTHERS. Mary. Uma arte medieval para a invenção e para a memória: a importância do lugar. Remate De Males. Campinas, v. 26, n. 1, 2006. CASCUDO, Luís Da Câmara. Prefácio. In.____. Contos Tradicionais do Brasil. 13ª ed. São Paulo: Global, 2004. p. 11-23. FARIAS, F. R. (Org.) Apontamentos em memória social. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011.

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