O resgate do arquivo da Venerável Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Mariana

May 30, 2017 | Autor: N. Casagrande Sal... | Categoria: Arquivo, Manuscritos, Patrimonio Documental, Ordem Terceira Franciscana, Minas Colonial
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O resgate do arquivo da Venerável Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Mariana NATALIA CASAGRANDE SALVADOR*1

A Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Mariana foi criada em 1758, em decorrência da requisição de irmãos residentes em Mariana que eram adeptos da congênere de Vila Rica. Ao longo dos anos a Ordem cresceu e seu prestígio em meio à sociedade era digno de uma Ordem Terceira Franciscana2. Como toda Ordem Terceira, a administração deste sodalício era de responsabilidade dos homens leigos associados à ele, os chamados irmãos terceiros. A mesa administrativa era hierarquicamente composta por selecionados indivíduos desta sociedade colonial. A composição da mesa administrativa se dava por meio de eleições anuais. Além destas, reuniões ordinárias eram realizadas mensalmente para discussão e decisão das principais questões da Ordem. As reuniões eram rigorosamente relatadas no Livro de Termos. Acontecimentos ou ocorrências fora das reuniões eram registrados em outros livros, tal como a aceitação de novos irmãos, no Livro de Entradas, os gastos e rendimentos, no Livro de Receitas e Despesas, etc.

* Universidade Estadual de Campinas, Mestre em História da Arte, apoio CNPq. 2 O presente artigo é resultante de minha experiência com a fonte primária produzida pela da Ordem Terceira de São Francisco de Assis e consiste na descrição dos eventos que sucederam o meu primeiro contato com a documentação, por esse motivo, será escrita na sua maior parte em primeira pessoa, como um relato de caso.

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Figura 1- Capa do Livro de Termos Fonte: Acervo da autora, 2012.

O cauteloso registro mantido pelos irmãos de Mariana ao longo dos anos garantiu a produção de um farto material para pesquisa e investigação, não apenas desta Ordem Terceira mas da sociedade colonial e das particularidades que a permeavam. A Produção dos documentos da Ordem Terceira Uma vez criada a Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Mariana, foram imediatamente escritos os Estatutos para “o bom regimem que nella se deve praticar”3. Baseado nas regras franciscanas, os irmãos Francisco Soares Bernardes e Miguel Teixeira Guimarães redigiram a série de normas que deveria ao longo dos anos reger esta associação4. Na secção dedicada às responsabilidades do cargo de secretário se define que ele “seja obrigado a escrever todos os despachos que se derem em Meza, os termos, E acentos, que se fizerem nos livros, E suas declarações [...] e será nullo, E de nenhum vigor, tudo o que por elle não for escrito [...]”5. Ou seja, o secretário deveria deixar por escrito todas as discussões e decisões tomadas pela Mesa Administrativa para validar tais deliberações. Com isso fica evidente a valiosa fonte que temos em mãos, registro de todas as decisões tomadas pelos irmãos terceiros de São Francisco de Assis de Mariana. 3

ESTATUTOS, Introdução. Cf. SALVADOR, 2015, pp.21-25. 5 ESTATUTOS, Cap.4º parágrafo 1º. 4

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O Armazenamento Os documentos produzidos ao longo da história da Ordem Terceira, ao que tudo indica, permaneceram dentro da Capela, muito próximo de onde eram produzidos. Constata-se que as reuniões aconteciam no consistório6. Mais de duzentos e cinquenta anos depois de sua produção, os documentos ainda se encontravam num armário na parte anterior à Capela-mor. A permanência da documentação no mesmo local garantiu a manutenção de grande parte do fundo unido7. Felizmente a igreja não sofreu nenhum sinistro desde a sua construção e com isso os documentos resistiram até os dias de hoje. Apesar de terem sido armazenados em um armário fechado e portanto recebendo pouca luminosidade ao longo dos anos, os documentos ainda assim tiveram sua integridade física comprometida como resultado de ataques de insetos xilófagos que resultaram em grandes falhas em suas folhas. Além disso, percebemos folhas faltando em alguns documentos, podendo indicar má intenção de pesquisadores ou curiosos precedentes (quiçá foram levados, além de algumas folhas, livros inteiros pois nota-se a falta de registros de vários anos dos séculos XIX e XX que, se produzidos conforme estabelecido nas normas da Ordem, não se encontram junto com esse fundo). Além disso, temos a declaração do extravio de alguns documentos, conforme declarado pelo pesquisador Cônego Raimundo Trindade: Dessa entrega falem por mim os têrmos que irei transcrever, não sem precedê-los da seguinte advertência: o arquivo de São Francisco está em têrmos de se perder. Dois Livros que consultei em 1926, e reli dez anos mais tarde, já não encontrei, em 1943, o de Registro de Patentes e Provisões e o Copiador da Ordem. Não é demais, portanto, que se acautelem aqui da ruína iminente cópias das cousas mais interessantes e que constam de vários cadernos do meu arquivo particular. (TRINDADE, 1943: 66)

“Sala localizada geralmente na parte posterior das igrejas, no piso superior, acima da sacristia, onde se reuniam os religiosos.” (AVILA et al., 1996: p.33). No nosso caso, como não havia um segundo andar na Capela da Ordem Terceira o Consistório consistia numa parte posterior do edifício aonde há ainda hoje uma grande mesa, para reuniões. 7 O livro de despesas (1758-1842) e alguns documentos avulsos foram transferidos para o arquivo Casa do Pilar/Anexo III do Museu da Inconfidência em Ouro Preto, supostamente pelo Cônego Raimundo Trindade em meados do século XX. 6

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A precariedade dos documentos foi notada por outros pesquisadores depois disso, Maria Regina Emery Quites, por exemplo, escreve que: “[...] consultamos o documento original que está bastante atacado por insetos com as informações mais perdidas ainda. Este Livro se encontra na Ordem Terceira de Mariana e necessita uma restauração urgente.” (QUITES, 2006:149 – nota de rodapé). Constatamos a notável fragilidade destes preciosos documentos pela facilidade com que se tem acesso à eles, sem nenhum controle de quem utiliza esse material e sem nenhuma supervisão durante o seu manuseio. Um simples pedido justificado me permitiu entrar nas partes mais restritas da capela e manusear todos os documentos da Ordem. Qualquer pessoa mal-intencionada poderia pegar uma série de folhas avulsas e colocar dentro de uma pasta para levar embora, ou mesmo colocar um livro inteiro dentro da mochila e sair de lá com parte da história da Ordem Terceira de São Francisco de Assis. Neste meu primeiro encontro com a documentação, fui responsável por guardar os documentos de volta no armário, sozinha, sem qualquer tipo de conferência ou verificação. Isso me preocupou bastante, mas não me atormentou mais do que a visão das larvas se alimentando e andando livremente pelas folhas dos documentos. Segue abaixo uma imagem tirada neste dia, de um documento nem tão antigo quanto outros, mas bastante atacado pelos insetos.

Figura 2 - Documento de 1967 com danos aparentes causados pelos insetos Fonte: Acervo da autora, 2012.

Intervenção

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Entrei imediatamente em contato com Cássio Vinício Salles, responsável pelo Arquivo da Casa Setecentista (AHCS)/ Escritório Técnico II IPHAN/Mariana, que providenciou os trâmites necessários para a transferência de todos documentos da Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Mariana para o AHCS, para melhor cuidado e armazenamento. A transferência foi confirmada e registrada em documento oficial. Em questão de dias os documentos foram levados para o AHCS aonde foram catalogados e preparados para desinfestação, higienização e armazenamento. Primeiramente, através da análise de cada livro ou série de avulsos, fizemos uma listagem dos conteúdos e datação dos documentos, para registro do Arquivo8. Após a catalogação, separouse o material para início da desinfestação por meio de congelamento9 (luvas, máscaras, saco plástico reforçado, cadarço de algodão, aspirador de pó - para criar o ambiente de vácuo dentro do saco). O processo consiste no duplo ensacamento à vácuo dos documentos e sua manutenção em freezer horizontal (usado exclusivamente para esse fim) numa temperatura de -20º por um período de 15 a 30 dias.

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A listagem completa se encontra em tabela anexa ao final do texto. O método de congelamento foi o escolhido por sua aplicabilidade imediata. É um processo simples que não exige muitos recursos, espaço ou pessoas para sua realização. 9

Fonte: Acervo da autora, 2012.

Figura 3 – Sucção de todo ar de dentro do primeiro saco com os documentos. Fonte: Acervo da autora, 2012.

Figura 4 – Vedação do primeiro saco com os documentos no vácuo. Fonte: Acervo da autora, 2012.

Figura 5 – Colocação em um segundo saco.

Figura 6 – Primeiro conjunto de documentos ensacados à vácuo para o congelamento Fonte: Acervo da autora, 2012.

Figura 7 - Colocação no freezer para congelamento. Fonte: Acervo da autora, 2012.

Tal procedimento resulta na total aniquilação dos insetos xilófagos, garantindo com isso a interrupção dos danos causados pelos ditos insetos. Após o congelamento, ainda dentro dos sacos, os documentos passaram por um período de aclimatização. Então eles foram desensacados e começou-se o processo de higienização mecânica com trincha, para retirada dos insetos e larvas mortos, além da poeira e sujidades que estivessem na documentação10. Trabalharam nesta etapa o já citado responsável pelo arquivo Cássio V. Salles e dois estagiários do AHCS (Pedro Henrique Montebello Pereira Martins e Maria Isabel Reis Nascimento, ambos alunos do curso de história da Universidade Federal de Ouro Preto). Após o término da higienização, foram confeccionadas caixas para acondicionamento dos documentos. Feitas com papel cartão triplex de gramatura 280g/m² de tamanho personalizado para cada documento, esses receptáculos servem como proteção contra a entrada de luz, que é nociva ao papel. Todo o processo durou algumas semanas, após as quais o material se tornou disponível no AHCS para consulta no local, em horário determinado sob a supervisão atenta dos funcionários do arquivo. Os documentos como fonte histórica A partir da liberação para consulta eu frequentei o AHCS e analisei este acervo no intuito de desenvolver minha pesquisa de mestrado. Me interessei particularmente pelo Livro de Termos onde pode ser constatada a importância destes documentos e a riqueza dos registros, que servem como fontes para diversas pesquisas. Gustavo Barbosa afirma em sua tese que: “[o livro de termos] É um documento valioso para o entendimento dos sentidos que a agremiação assumia no contexto social e político local, e do modo como se relacionava com outras instâncias de poder – o bispado, os regulares e a Coroa.” (BARBOSA, 2015:19). O pesquisador escreve também que: [...]o Livro de Termos permite ao pesquisador aproximar-se da forma como temas importantes dos seus Estatutos eram administrados na prática. É possível ainda perceber as possíveis contendas da instituição com outros órgãos do poder: o bispado, a Câmara,os religiosos regulares e outras irmandades e Ordens Terceiras.

Questões da política e administração da Ordem são apenas algumas das possibilidades. Diversos enfoques podem guiar a análise e interpretação dos termos que compõem esse 10

Como uma medida extra, o Livro de Termos foi parcialmente entrefolhado com papel alcalino.

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documento, com temáticas que abrangem de história da arte à história social, da paleografia e ortografia da época às estratégias de exposição e posicionamento da Ordem perante o planejamento das festividades e comemorações religiosas, dentre muitos outros temas. Certamente, esta documentação (que data de 1758 à segunda metade do século XX), agora conservada, servirá de fonte para muitas pesquisas vindouras, graças à intervenção do atencioso Cássio V. Salles e sua equipe na Casa Setecentista. Destinação final A documentação, porém, não permaneceu no AHCS. Embora este tenha assumido toda responsabilidade e custo de desinfestar, higienizar e armazenar a documentação, questões burocráticas exigiram que o fundo fosse transferido no primeiro semestre de 2016 para o Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana/Cúria, onde deve ficar permanentemente. Como os documentos foram bem tratados e acondicionados, não sofrerão mais com os insetos e, se tiverem um bom manuseio por parte dos usuários, durarão ainda muitos anos. Esperamos que as próximas gerações cuidem desses documentos e tratem deles com essa mesma dedicação e cuidado, para que continuem servindo como fonte para muitas outras histórias. Pois, conforme as palavras do Cônego Raimundo Trindade esses documentos consistem “daqueles que se não podem perder sem prejuízo irremediável para a história da igreja de que se trata, um dos mais famosos monumentos de que se ensoberbece, não só a velha cidade episcopal, senão todo o Estado de Minas.”11

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TRINDADE, 1943, p.66.

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Fontes: ESTATUTOS MUNICIPAIS DA ORDEM TERCEIRA DO SERAFIM HUMANO GLORIOSO PATRIARCHA SÃO FRANCISCO DA CIDADE DE MARIANA. Que por comum consentimento de toda a ordem se mandarão fazer aprovados e corrigidos pelo M. R. O; Ex Custódio Frei Ignácio da Graça, ministro provincial da nossa Província do Rio de Janeiro no ano de 1765. Cópia transcrita por Maria das Dôres Moraes Almeida. Mariana: Arquivo Histórico da Casa Setecentista, 1957. RELATÓRIO da conservação em benefício dos documentos históricos da Venerável Ordem Terceira de São Francisco de Assis (V.O.T.S.F.A). Cássio Vinício Salles. Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana, Mariana, MG, 2012.

Referências Bibliográficas: ÁVILA, Affonso, GONTIJO, João Marcos, MACHADO, Reinaldo Guedes. Barroco Mineiro; Glossário de Arquitetura e Ornamentação. 3ª. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro. Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1996. 232p. (Coleção Mineiriana) BARBOSA, Gustavo Henrique. Poderes locais, devoção e hierarquias sociais: a Ordem Terceira de São Francisco de Mariana no século XVIII. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFMG, Belo Horizonte, 2015. QUITES, Maria Regina Emery. Imagens de Vestir: revisão de conceitos através de estudo comparativo entre as Ordens Terceiras Franciscanas no Brasil. Tese (Doutorado em História) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, Campinas, 2006. SALVADOR, Natalia Casagrande. Venerável Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Mariana: A construção de sua capela, os irmãos terceiros e as representações iconográficas. Dissertação (Mestrado em História da Arte) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, Campinas, 2015. TRINDADE, Raimundo (Cônego) “A igreja de São Francisco de Assis de Mariana” Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº7. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1943

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Anexo – Tabela de documentos resgatados e tratados Documento LIVRO DE ENTRADA E PROFISSÃO TOMO I

Datação

Condição

1758- 1823

Em bom estado de conservação.

LIVRO DE TERMOS

1758-1870

LIVRO DE ENTRADA DE IRMÃOS

1758

LIVRO DE RECIBOS

1788

LIVRO DE IRMÃOS DOCUMENTOS AVULSOS LIVRO DE INVENTÁRIO LIVRO DE RECEITA E DESPESAS MISSAL DE FUNTÓRUM LIVRO DE RECEITA E DESPESAS MISSAL LIVRO DE RECEITA E DESPESAS DOS IRMÃOS LIVRO DE RECEITA E DESPESAS

1823-1868 1825-1867 1822-187? 1848 1855 1868 1896

Em mau estado de conservação, com seu início bastante comprometido devido ao ataque de pragas. Em bom estado de conservação. Em mau estado de conservação, com seu início comprometido devido ao ataque de pragas. Em bom estado de conservação. Em bom estado de conservação. Em bom estado de conservação. Em bom estado de conservação. Incompleto. Em bom estado de conservação. Em bom estado de conservação.

1899-1900

Em bom estado de conservação.

1931-1933

MISSAL

s/d

LIVRO DE TOMBO LIVRO DE ATAS CADERNO DE COMPRAS DOCUMENTOS AVULSOS ATAS DE REUNIÃO LIVRO DE RECEITA E DESPESAS

Século XX s/d Século XX Século XX 1961 1962

Em bom estado de conservação. Em bom estado de conservação. Faltando as seguintes folhas: 47, 48, 57 e 58. Em bom estado de conservação. Em bom estado de conservação. Em bom estado de conservação. Em bom estado de conservação. Em bom estado de conservação. Em bom estado de conservação.

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