O resto é paisagem

June 9, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: Pintura, Desenho, Artistas portuguesas
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O resto é paisagem1 Emília Ferreira 1. Da paisagem Antiga na história da arte Oriental, a paisagem autonomizou-se, no Ocidente, na Holanda do século XVII, com a invenção de uma natureza melhorada, que não só “criou” o género pictórico como tomou o referente como mote de encantamento e não apenas lugar de trabalho e escravidão. O fascínio que passou a exercer teve depois diversificados tratamentos, que do desejo naturalista cedo se prendeu a uma vontade de unificação com o visível. Dos pintores de Barbizon aos impressionistas, e ainda por outras épocas e geografias, essa atenção estendeu-se até à ameaça da paisagem. Às suas feridas. Passou assim das montanhas e florestas, às neblinas, linhas férreas, chaminés fumegantes, até à nova representação urbana. Momentos do dia e da noite, pormenores da folhagem ou da crista das ondas, oscilando a definição e o brilho sob a luz variável, extensões de terra a perder de vista, indomável e mística natureza mãe. Panoramas de campo ou vistas urbanas, ruas e esplanadas, cafés, teatros, jardins. Até rostos. Tudo ficou registado. Num vasto leque entre o elogio e a crítica. Entre o endeusamento e o desprazer do sublime. Ou o gosto e desgosto dos dias. Podemos, portanto, dizer que a paisagem revelou o mundo, tornou-o sujeito de pensamento, e despiu o visível do seu grau zero, da invisibilidade que impede a nomeação. E se, durante alguns séculos, ela foi registada pelos pintores de modos muito próximos com a realidade exterior da sua representação, com o advento da abstracção ela foi enfim trabalhada sensivelmente, esteticamente, como se se movesse sem estabelecer distinção entre si e o mundo. Crescentemente subjectivado, o olhar sobre a paisagem desligou-se do real.

1 . Texto para o catálogo da exposição Paisagem 1. Desenho e Pintura de Sofia Areal. Palácio da Galeria, Tavira, 2005

2. Desta paisagem concreta Durante a II Guerra, este tema tornou-se objecto de investigação para uma escola particular, localizada numa pequena povoação da costa da Cornualha: St. Ives. Aí, artistas como Naum Gabo, Barbara Hepworth e Ben Nicholson operaram uma fusão dos elementos do visível com o plano do sensível. Movimento, cor, luz, estrutura linear foram analisados e sintetizados nas paisagens. Se, depois dos flamengos, várias escolas o ensaiaram, em St. Ives essa abordagem tomou uma face mais assertiva. Se mencionámos esta escola inglesa, foi porque no plano plástico existem relações próximas entre a sua produção e as paisagens de Sofia Areal. Porém, também aqui o tempo já exerceu uma outra viragem. A pintora regressou ao atelier. Não pinta do natural. Por vezes toma notas. Há desenhos, esboços, indicações. São memorandos. O resto fica na pele, na memória. E é depois, no silêncio do seu mundo visual, que são recuperadas as linhas com que a realidade se unifica. Há ainda outros dados a considerar. A nossa distanciação dos espaços do verde (do campo, da natureza) faz com que a paisagem hoje vivida como íntima seja a urbana e não a rural, a natural (ainda que este adjectivo seja exagerado ou mesmo inadequado, dado o grau de artificialização que há séculos se vem imprimindo no suporte "planetário"). A representação tem, portanto, lógicas consequências de afastamento do real, sendo sustentada por um processo estético de que os autores são, compreensivelmente, o sujeito. Além disso, na tentativa de recompor a imagem após o turbilhão do desordenamento urbano e da aniquilação da natureza (aquilo a que já foi chamado "o fim da paisagem" 2), esta pintura, em especial quando é feita à margem de um referente imediato e imediatamente perceptível, tende a recuperar a alma da paisagem enquanto exercício pictórico. Ou seja: é dentro da própria tradição artística que investiga as razões plásticas que a enformam.

2 Sobre este assunto ver, por exemplo: Bardet, Maurice, La fin du paysage. Paris: Éditions Anthropos, 1972.

Recebe e transforma, assim, uma herança que vem da análise do visível e a mistura com as suas próprias emoções, memórias. Numa palavra, com um património pessoal. 3. Desta paisagem abstracta Uns escrevem. Alguns desenham. Outros pintam. São gramáticas da razão e dos sentidos. Mais ou menos organizado o pensamento, mais ou menos soltas as emoções, assim os discursos se edificam. Porém, como sabemos — embora por vezes prefiramos ignorar —, a recuperação da memória é um acto cujo absoluto rigor nos escapa. E, deste modo, é consciente de tal facto que Sofia Areal desenha e pinta. Porque o mundo não tem uma face única, mas diversas — inconstantes, perturbadoras, frementes. Que buscam o equilíbrio. Eterno sonho, mais antigo que a paisagem. Como se sabe no Oriente. Como se sabia na Grécia. Como o Ocidente tanto tempo tentou esquecer. Eis uma pintora que se salva e nos salva por saber que o mundo é cheio de contrastes. Que nada é perfeito. E que, mortal e inquieto, desassossegado e poderoso, ele é também frágil. E, como lembrou Yourcenar, único. Razão mais do que suficiente para acarinhar as lembranças, as reviver no processo da pintura. O natural de Sofia é o seu ser naturalmente inteiro. Também quando rememora. Voltamos a St. Ives. Tinha a cor, para Ben Nicholson, uma realidade e uma qualidade potencialmente abstractizante, que acentua a sua tradição estética oposta à estrutura lógica e definidora do desenho. Idêntico processo se verifica em Sofia Areal. Como há muito se sabe, entre o desenho e a pintura, aquele é tido como mais cerebral e esta como mais sensível. Matérica, calorosa, ela nega na sua essência de mancha, de cor, de aparência, a essência da definição, da captura do mundo pela sua razoável síntese. Mas o que verdadeiramente importa é que aqui constatamos que o desenho beneficia da cor, tornando-se mais claro e definido quando ela o ilumina. Não são já dois modos meramente opostos, mas um processo único, animado pelo diálogo das diferenças.

4. Algumas linhas para nos cosermos a esta paisagem Os suportes para tais exercícios de reconstrução são, regra geral, para esta artista, o papel e a tela. Também nesta exposição. Catorze são os trabalhos que aqui se apresentam. Oito de pintura, seis de desenho. Coincidentes no método, divergentes no suporte. De resto, em ambos se encontra a matéria da cor, espessa e texturada, brilhante e sensorial. Transparente ou opaca. Afundando o pincel em tão generosa quantidade que dele a tinta cai sobre a paisagem, edificando-a também com a admissão de elementos acidentais. Em ambos ainda, a contenção da linha, disciplinadora. Em ambos também, a linha que tende para a metamorfose, aspirando a mancha, ou esta que se limita no espaço, confinando-se a uma tentadora definição. Jogo de contrastes, olhar próximo (por vezes tão próximo do mundo que parece quase podermos entrar por uma destas janelas), é a luz que aqui modela as composições. É a luz que quase poderia cegar — como nas manhãs meridionais de estio intenso, tão bem conhecidas no Garb —, que quase poderia não ter definição, não fosse a disciplina do olhar, não fossem as linhas que a contêm, compreendem e esclarecem. Longe de um cenário urbano, pesado e infeliz, longe do fim da paisagem e dos anúncios apocalípticos, estas obras acolhem-nos em atmosferas que remetem para manhãs luminosas da infância, com céus azuis e transparentes, em jogo com verdes, amarelos e intensos vermelhos. Por elmo, as manhãs de oiro e de carmim. Tempos frescos, novos em folha. Como se nos soprasse ao ouvido o recorrente verso homérico, que lembra que quando surge a que cedo desponta, a Aurora dos róseos dedos tudo está pronto a ser atravessado de branco, da pura luz que se desdobra — mesmo quando se junta ao negro matricial. São abertas janelas sobre o dia ou a noite. Rasgadas como se sobrevoássemos a paisagem, mas tão perto que tudo se desfaz em linhas, manchas de cor. O verde — pouco usado na pintura dos últimos anos do

século XX 3 — marca presença nestas obras, operando em nós um regresso ao natural por via cromática, mais do que pelo reconhecimento dos referentes. Plasticamente, compreendemos que é a relação (o contraste) das cores entre si que as dá mutuamente a ver. Atravessadas como corpos de luz, elas explicam-se, dividem o espaço em complexos equilíbrios, onde a sobreposição das formas geométricas concretas cria jogos de profundidade e tangibilidade da imagem. De tão perto, algumas destas formas e cores quase nos agarram. Quase nos integram. Por isso, nos sentimos habitar estas paisagens que mais não são do que apresentação física de um imaginário, para usar uma expressão

emprestada

de

Augustin

Berque

4,

um

ponto

de

vista

exclusivamente subjectivo. Tão subjectivo que pode também ser nosso. A nossa paisagem. A nossa casa. Como se adivinha, o título deste texto é propositadamente irónico. Tem ampla razão a Filosofia quando sustenta que só existe aquilo que é nomeado. Nomear é re-conhecer. Ver pela primeira vez. O “resto” não é, pois, apenas paisagem. Porque ela já não é o fundo cenográfico que se limita a emoldurar o tema principal, o assunto mais importante. Como também já deixou de ser o campo que nos oprime com o trabalho pesado. Mesmo que agora seja o nosso medo sobre um futuro incerto, com campos e mares envenenados e falta de água potável. O resto (que é tudo), é a paisagem que constitui a folga do olhar, o seu encantamento. Mas também a sua consciência. De tudo o mais, não o resto, mas o que fica, o que permanece para tecer a nossa alma e garantir a continuação, é enfim, a paisagem por inteiro, a amorosa queda, apreensão e mergulho no visível, que a pintura nos dá. Almada, 8 de Janeiro de 2005.

3 Sobre este assunto ver Roseblum, Robert, "The Whithering Greenbelt: Aspects of Landscape in Twentieth-Century Painting” in AA. — Denatured Visions: Landscape and culture in the twenthieth century. Edited by Stuart Wrede and William Howard Adams. NY: MoMA, 1994. (p. 33). 4 Berque, Augustin, Les Raisons du Paysage. Paris: Hazan, 1995. (p. 161).

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