O RISO DE DEUS E O RISO DO HOMEM NA FICÇÃO DE G. T. DIDIAL

July 14, 2017 | Autor: Ana Salgueiro | Categoria: Religion and Modernity, Cape Verde, Philosophy of laughter, Cape Verdean Literature
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JoLIE 2:2 (2009)

O RISO DE DEUS E O RISO DO HOMEM NA FICÇÃO DE G. T. DIDIAL Ana Salgueiro Rodrigues University of Madeira, Portugal

Abstract When Umberto Eco, in his novel The Name of the Rose, sets out the discussion on laugther through the dialogue between Jorge and Guillermo, he represents an endless, ontological debate which has been developed since old times, both by Church Scholars and other thinkers: theologists, anthropologists, philosophers and also literary scholars. The main questions are: would be laugther a human (and only human) property or would it be also extensive to God? Could ambiguity of laugther be compatible to the Divine perfection or is the deforming effect of laugther more suitable to Devil’s attributes? Would be laugther a foolish and frivoulous perversion or would it be an example of wise and superior rationality? Could it be a constructive language between Man and God(s) or would it be the irruption of laugther (in Man or in God) a traumatic incident which will condemn this complex relationship to crisis? Could we consider laugther as an exilic language? These are but some of the issues developed by the Cape Verdean author G.T. Didial. His ontological fiction is characterized by a subversive nature. Laugther (by God, Man and Devil) is also there. Sometimes exhibiting a clamorous laugther, others presenting a more selfcontained and silent laugther, Didial’s fiction (Contos de Macaronésia and O Estado Impenitente da Fragilidade) never looks for a humoristic effect. Quite on the contrary, it looks for the anxiety of grotesque. Key words: Laugther; Cape Verdian Literature; God and Man; Exilic language; G.T. Didial.

O riso nasce como esta espuma. Assinala, no exterior da vida social, as revoltas [...]. Desenha instantaneamente a forma movente desses abalos. E é também ele uma espuma à base de sal. Como a espuma, crepita. É alegria. O filósofo que o recolhe para o provar descobrirá de resto nele, algumas vezes, para uma pequena quantidade de matéria, uma certa dose de amargura. (Bergson 1991: 125) The search for comic is not directed simply at the experience of the comic; the object of laughter is not merely the enjoyment of laughter. (Collins Swabey 1961:247)

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Apresentar uma comunicação sobre o riso na ficção do autor cabo-verdiano G.T. Didial, numa conferência internacional sobre o humor, começa, desde logo, por exigir alguns esclarecimentos prévios. Não só porque se trata de um autor que, provavelmente, a audiência desconhecerá, mas também porque, à primeira vista, o humor e o riso parecem ser realidades completamente arredadas da sua ficção. Por isso, optámos por estruturar o nosso trabalho em dois pontos. Um primeiro, mais breve, em que apresentamos algumas informações relativas à obra de G.T. Didial, por nos parecem determinantes para o entendimento da leitura que dela aqui propomos; um segundo, mais extenso, em que desenvolvemos a temática do riso, procurando demonstrar que na ficção de Didial: 1) a percepção cómica do real se configura como um exílio/asilo, num contexto em que o Homem, ao olhar para o seu mundo, descobre nele o caos irresolúvel da pós-modernidade; 2) o riso interior, silencioso, ambíguo e irónico de Deus e do Homem é, acima de tudo, uma linguagem fracturante, que adensa o exílio cósmico em que se situam ambas as entidades; 3) o riso surge como uma linguagem possível (muito semelhante à linguagem do silêncio), quando a palavra deixou de ser possível entre interlocutores em ruptura.

I. A Ficção de G.T. Didial G.T. Didial é um dos três pseudo-heterónimos do escritor cabo-verdiano João Manuel Varela (Mindelo, 1937-2007), cuja obra literária se desdobra em três macrotextos pseudo-heteronímicos, nomeadamente: a poesia de João Vário, a obra poética de Timóteo Tio Tiofe e a ficção de G.T. Didial1. Assumindo-se, desde muito cedo, como herdeiro de Pessoa ou Kierkegaard (Vário 1961), João Varela, um pouco à semelhança destes dois autores europeus, promoverá um complexo diálogo entre as suas três personae literárias, com o propósito declarado de indagar a complexa densidade ontológica do Homem crioulo2. Assim, remonta à década de 1950 e ao período em que Varela ainda estudava em Coimbra, a génese do projecto poético de João Vário, que viria a ser desenvolvido nos doze livros de Exemplos, produzidos ao longo de mais de 30 anos (Vário 2000). Recorrendo a três línguas distintas (o português, o francês e o 1 Para além de escritor, Varela foi também médico e um conceituado investigador científico na área de estudos do cérebro e da etnomedecina, tendo vivido e trabalhado largos anos na Europa: primeiro em Portugal (Coimbra, onde iniciou a sua licenciatura em Medicina e a sua actividade literária, no final da década de 1950; Lisboa, onde terminou a sua graduação em 1964); depois na Bélgica, principalmente em Antuérpia, em cuja universidade exerceu a sua actividade de investigação, durante mais de 30 anos. Em 1998, regressou definitivamente a Cabo Verde, depois de ter trabalhado também em várias instituições académicas em Lovaina, Paris, Amesterdão, Estrasburgo, Luanda e outras cidades do mundo. Já no Mindelo (Ilha de São Vicente, Cabo Verde), foi professor de Citologia e Fisiologia Celular no ISECMar e dirigiu a revista Anais (1999-2001), da Academia de Estudos de Culturas Comparadas. A sua obra literária, desenvolvida em paralelo com a actividade científica, fica marcada por um muito abrangente e ecléctico cosmopolitismo. 2 Acerca do conceito de pseudo-heteronímia em João Varela e dos propósitos inerentes à criação pseudo-heteronímica deste autor, ver: Varela, 1992; Vário, s.d.; e Rodrigues 2003:10-19.

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inglês), esta poesia metafísica e universalista dá voz à figura do cabo-verdiano cosmopolita e cidadão do mundo3. Por seu lado, os dois Livros de Notcha assinados por Timóteo Tio Tiofe, ambos escritos em Português e com publicação posterior à independência de Cabo Verde, apresentam o homem crioulo em busca de uma inscrição no universo africano, ainda que, à semelhança do que se verifica na poesia de Vário e na ficção de Didial, também aí o leitor se depare com uma poética onde predomina o tom filosofante e um permanente diálogo intertextual com inúmeros textos da cultura ocidental, características que, inequivocamente, colocam Tiofe numa tradição literária de herança europeia (Tiofe 2001)4. É neste contexto pseudo-heteronímico que se insere e deve ser lida, em nosso entender, a ficção de G.T. Didial, constituída por um romance, O Estado Impenitente da Fragilidade (1989), e dois volumes de Contos de Macaronésia (1992 e 1999). Trata-se de uma escrita densa, complexa e bastante inovadora no contexto dos sistemas literários cabo-verdiano e lusófono. Isto, não só pela adopção de um estilo neo-barroco, saturado de inúmeras referências (explícitas e implícitas) quer à literatura cabo-verdiana e ocidental, quer a autores fundamentais da filosofia clássica e contemporânea, mas também pelo carácter marcadamente filosofante do seu discurso, desenvolvendo questões de teor ontológico e metafísico, como sejam, por exemplo: as origens míticas do arquipélago crioulo; a essência do Homem insular; a omnipotência divina; a relação do Homem crioulo com o sobrenatural judaico-cristão ou pagão; a diferença entre o bem e o mal; a busca da Verdade; Quando confrontada com a poesia de Vário e Tiofe, a ficção de Didial não se particulariza nem ao nível do estilo, que é basicamente o mesmo, nem ao nível das temáticas, uma vez que este pseudo-heterónimo parece fazer a síntese daquilo que em Vário é universalizante e em Tiofe é local. O factor distintivo de Didial reside no facto de toda a sua ficção se estruturar a partir de duas referências toponímicas axiais, dotadas de uma pregnância mítica: Macaronésia e Micadinaia. Macaronésia surge, neste autor, como um topónimo ficcional gerado sob a influência do discurso geográfico e do mito da Atlântida, sendo que o seu referente corresponderá ambiguamente às fronteiras do arquipélago de Cabo Verde5. Por seu lado, Micadinaia é a capital de Macaronésia, cujas coordenadas geográficas, culturais e históricas facultadas pelos textos levam o leitor a identificá-la, também ambiguamente, com a cidade do Mindelo. 3 Dos doze livros de Exemplos, encontram-se inéditos três: European Example; American Example; e Exemplo Cheio. Quanto aos restantes Exemplos, eles foram publicados isoladamente, antes de surgir a versão conjunta de 2000: Exemplo Geral, Coimbra, 1966; Exemplo Relativo, Antuérpia, 1968; Exemplo Dúbio, Coimbra, 1975; Exemplo Próprio, Antuérpia, 1980; Exemplo Precário, Coimbra, 1981; Exemplo Maior, Antuérpia, 1985; Exemple Restreint, Anvers, 1989; Exemple Irréversible, Anvers, 1989; e Exemplo Coevo, Praia, 1998. Aguarda-se, para breve, a edição em Portugal, pela Assírio e Alvim, da poesia de João Vário. 4 Acresce aos dois Livros de Notcha publicados, conjuntamente, em 2001, um terceiro que permanece inédito. 5 A propósito do conceito geográfico de Macaronésia cf. Ribeiro, 1954.

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Convém aqui, desde já, salientar que, ao actualizar o mito da Atlântida, fazendo coincidir a sua geografia, origens míticas e percurso histórico com o arquipélago de Cabo Verde, Didial revela, implicitamente, não só o propósito de conferir um carácter filosofante e mitológico à sua ficção, mas ainda a intencionalidade de desenvolver duas questões, fundamentais no mito platónico: a relação conflituosa entre homens e divindades; e a disputa de poder e valor civilizacional entre a Atlântida e Atenas, ou seja, uma outra forma de dizer Cabo Verde e Europa6.

II. O RISO NA FICÇÃO DE DIDIAL Quanto ao tema que aqui nos trouxe (o riso), podemos começar por dizer que, embora, a ficção deste autor cabo-verdiano não possa ser considerada cómica ou humorística - ou seja, não tenha como resultado imediato, o desencadear do riso nem por isso ele deixa de irromper pontualmente no interior dos seus textos. Trata-se de um riso quase sempre dissimulado, interior, silencioso, irónico, que mais se adivinha do que se ouve e que o próprio Geuzim, personagem e narrador de todos os contos de Didial, classifica como “humor seco” ou “humor da tona da língua”(“Grilização”, CMI,60)7. Um riso que geralmente não se faz acompanhar sequer de “nenhum sorriso”, ou de uma qualquer visível manifestação fisiológica e o qual, mesmo quando se exterioriza, mantém o seu carácter enigmático e insinuante. Como ocorre, por exemplo, com o sorriso de Daglô, personagem do conto que lhe toma o nome de empréstimo, e o qual, perante as questões colocadas pelo narrador-personagem, “Não respondeu; limitou-se a sorrir, um sorriso sabido” (“Daglô”, CMI,102). Dado o seu carácter ambíguo, este riso permite várias e paradoxais leituras, como encontramos, por exemplo, num vendedor de melões da Ilha do Sal, que Geuzim retrata como um homem “esfarrapado, desnutrido”, capaz de o fitar “com um brilho nos olhos que parecia a um tempo humilde e zombeteiro”, e que dizia: “a vida me tem tratado muito mal. E só com Deus tenho contas a fazer [...] Só com Deus” (“Semelhantemente”, CMII,101)8. Curiosamente, este riso sabido não é

6 O mito da Atlântida é desenvolvido por Platão em Crítias e Timeu (1970). A propósito da actualização do mito atlante na literatura cabo-verdiana ver: Carvalho, 2004; e Rodrigues, 2006. 7 Por questões de simplificação de notas, passaremos a usar abreviaturas, quando, no corpo do nosso texto, citarmos algum dos três livros de Didial. Assim, EIF corresponde ao romance O Estado Impentente da Fragilidade (1989); CMI, ao primeiro volume da colectânea Contos de Macaronésia (1992); e CMII, ao segundo volume de Contos de Macaronésia (1999). 8 Embora não tenhamos oportunidade para desenvolver, aqui, a análise da dimensão metaficcional do riso existente também na ficção de Didial, gostaríamos de salientar que, ao recorrer frequentemente à ironia e à paródia no seu discurso, o narrador adopta um riso idêntico ao das suas personagens. Este riso narrativo toma, muitas vezes, como objecto risível, obras canónicas e, por isso, consideradas “sagradas” no sistema literário cabo-verdiano e ocidental. Esta estratégia de, ambiguamente, “rir” daquilo que Didial consideraria fragilidades de obras consagradas parece-nos evidenciar uma irreverente intencionalidade de ruptura com esse cânone, mas, simultaneamente,

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experienciado apenas pelo Homem. Ele estende-se ao Diabo, que várias vezes surge com o seu misterioso sorriso “escarninho” (“A face da semelhança”, CMI,106) e, mais inesperadamente, manifesta-se também em Deus. Este último revela, assim, um perturbador retrato, que desfigura por completo a imagem canónica que a tradição judaico-cristã geralmente apresenta do criador. Uma imagem ainda mais desconcertante, se tivermos em atenção que este Deus que ri, quando confrontado com qualquer herético comportamento humano, assume o perfil tenebroso, punitivo e inexorável do Deus do Antigo Testamento. Como ocorre no conto “As inscrições”, onde se ouvem ainda as míticas e violentas palavras de Deus, testemunhadas por um antigo escriba, que as cita numa crónica: Ah Macaronésia, Macaronésia, pois que te perdeste de mim e decidiste andar por maus trilhos e más veredas, adorar coisas perecíveis, teu castigo não será pequeno nem breve [...] Muito esperei pelo teu arrependimento e pela tua mudança [...] Quiseste provocar a minha exasperação, porque não solicitaste o meu perdão ou a minha ternura [...] asseguro-te, não retirarei tão cedo a mão que deixei cair sobre ti. A tua punição será longa. “As inscrições”, CMI, 13-14.

Didial subvertendo, deste modo, a imagem canónica de Deus, assume, uma vez mais, a poética de transgreção que caracteriza a sua obra. Esta tendência transgressiva tanto se manifesta ao nível da expressão (cf. recurso à paródia, à ironia e à recriação genológica, entre outros mecanismos), como ao nível do conteúdo, neste último caso bem evidente, se tivermos em consideração o facto dos seus textos, reiteradamente, questionarem os paradigmas institucionalizados quer pelo cânone literário, e pela moral, quer ainda pela ciência e pela racionalidade. A questão que se coloca, então, é a de saber como se explica, na economia da obra de Didial, o facto desse mesmo Deus, sério, implacável e inflexível, também rir, chegando mesmo a aceitar uma aliança com o Diabo, apenas para que este domine o “ateísmo irritante, arrogante” do Dr. Lima, o médico que, em Micadinaia, insistia em desmontar a crença cristã (“A face da semelhança”, CMI,106). Ou seja, procurar saber o que, ao nível diegético, terá determinado que a fronteira entre Homem, Deus e Diabo se tenha diluído; e o que terá feito com que entre Homem, Deus e Diabo tenha surgido uma tão flagrante “face da semelhança” (CMI,111). A resposta encontra-se, desde logo, no primeiro conto do volume I de Contos de Macaronésia, que, embora não tenha sido o primeiro texto que João Varela publicou sob a assinatura de G. T. Didial, funciona como um verdadeiro incipit do macrotexto deste pseudo-heterónimo9. Não será por acaso que ele é

denuncia a incapacidade do autor se libertar definitivamente dessa herança. Também a este nível, a adopção do riso parece estar intimamente relacionada com a condição exílica. 9 O primeiro texto publicado por Didial foi uma versão ligeiramente diferente do conto “A hemiplegia” (CMII, 13-42) saída na revista África, Literatura, Arte e Cultura em Fevereiro de 1986 (Didial, 1986).

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estrategicamente publicado em primeiro lugar e com o significativo título “Conto nº 1. As inscrições”. “As inscrições” é, na verdade, o único texto de Didial, em que se verifica a actualização efectiva do mito Atlante/Macaronésio, a par de outros mitos, cujos mitemas aí se fundem: mitos do Antigo Testamento que apresentam a imagem de um Deus inexorável e castigador; mitos do ciclo edipiano, que nos oferecem os tão conhecidos arquétipos da subversão humana contra interditos sociais e religiosos10. O processo de reescrita mitológica operado por Didial forja, então, novos arquétipos que, depois, iremos encontrar actualizados quer nos contos, quer no romance do autor. E, como sempre acontece no mito, aquilo que essa actualização mitológica operada por Didial inscreve em “As inscrições”, servirá de explicação/justificação para aquilo que, depois, encontraremos nesses seus outros textos (Durand n.d.). No primeiro conto, o narrador cita e comenta três inscrições lapidares encontradas, ficcionalmente, nas ilhas11. Estes textos inscritos na rocha seriam fragmentos de crónicas ancestrais que davam conta da origem mítica do arquipélago, mostrando que, à semelhança do que sucedera na Atlântida de Platão, também teria havido, no arquipélago macaronésio, um tempo em que o Homem teria rompido a sua aliança com os deuses. Recusando viver uma falsa Idade de Ouro, que lhe impunha, como tributo, a submissão à vontade divina, o Homem insular, afrontando hereticamente o poder repressivo da Providência, ter-se-ia oposto a todos os interditos ditados pelo divino, decidindo fazer-se senhor do seu destino e do seu mundo, ainda que, para isso, tivesse entrado em conflito aberto com Deus. Desde logo se compreende a violência do choque, se tivermos em consideração os heróis míticos aqui actualizados: de um lado, o Deus inflexível e tenebroso do Antigo Testamento; do outro, os heréticos Atlantes e as subversivas personagens do ciclo edipiano. Suportando corajosamente todos os castigos e provações a que a transcendência o sujeita (imersão de parte significativa do território macaronésio; guerras; secas; pragas; erupções vulcânicas; fomes; experiências traumáticas e marginalizadoras no exílio da terra longe ...), o Homem macaronésio inaugura uma nova era insular, que claramente se distingue do tempo da ilusória felicidade, da “abundância”, da “beleza” e da “fartura”, que a precedeu (“As inscrições”,CMI,1314). Trata-se de um novo tempo que, embora caótico e subversivo, é profundamente humano, porque foi recriado à imagem e semelhança do Homem, contra os desígnios de Deus, e porque é o testemunho da libertação humana do jugo divino. 10

Neste conto, Édipo surge como o herói sem nome, responsável pela libertação de Micadinaia do poder absoluto da grande ilha, morrendo misteriosa e subitamente cego; os irmãos adversários Macero e Micanor actualizam, por sua vez, os arquétipos de Polinices e Etéocles, filhos do herói tebano. 11 Note-se, aqui, o jogo ficcional em torno da realidade empírica cabo-verdiana. Neste caso, trata-se das famosas e misteriosas “Rotcha Scribida” (Ilha de S. Nicolau) e “Pedra do Letreiro” (Ilha de Santo Antão).

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Apesar de todas as punições e calamidades lançadas sobre Macaronésia, Deus não consegue atingir o seu propósito: reinstaurar a sua ordem e valores no arquipélago, subordinando, uma vez mais, o Homem insular ao seu poder. Muito pelo contrário, o Deus de Didial é uma figura incapaz de controlar a vertigem caótica e libertina da humanidade insular, recusando-se, porém, a aceitar essa evidência. Por um lado, não reconhece que a nova ordem instaurada por deliberação humana fez eclipsar, irremediavelmente, a Idade dos Deuses, dando lugar à nova Idade dos Homens. Por outro lado, não percebe que, como lembra Geuzim, “nunca se regressa definitivamente a parte nenhuma. Seria preciso nascer de novo” (“Conto nº7, Tal é Reiquiavique”, CMI,87). Deus configura-se, assim, como um ser incapaz de compreender ou aceitar que, in illo tempore, a criatura por ele gerada descobriu uma face oculta e negra do criador, ao desvendar a prepotência leviana, a crueldade distante e até a irresponsabilidade com que Deus geria quer o seu estatuto divino, quer o destino humano. Altivo e distante perante o sofrimento e a angústia dos Homens que ansiavam por respostas e por um sentido para a vida, o Deus macaronésio manipulava o Homem, como se este fosse uma marioneta e assistia ao desenrolar da vida humana com o distanciamento e gozo que lhe mereceria uma comédia. E por trás das suas deliberações cruéis, sem sentido e em tudo semelhantes àquela que, no romance O Estado Impenitente da Fragilidade, Deus imporá ao pai de Juga, para que mate o seu filho único12, é possível também advinhar o riso. Um riso divino que antecede o riso do Homem, mas em tudo a ele idêntico, e que se configura como uma silenciosa, mas violenta gargalhada interior, sarcástica e sádica que ecoa camufladamente, por exemplo, nas terríveis palavras de Deus lançadas contra o Homem Macaronésio. Diz Deus com um riso implícito, no conto “As inscrições”: Enviarei contra ti pragas de lagartas e de gafanhotos, aves de mau agoiro e de bico voracíssimo que destruirão os teus cereais de pragana, devorarão os teus grãos antes de os arrecadares nos teus celeiros, atiçarei os teus vulcões e o fogo das suas erupções incendiarão teus currais e os teus aldeamentos, seguindo-se extensas secas e grandes fomes. E se estes males não te tornarem temente ao teu deus, lançarei sobre ti fortes ventos que depredarão teus solos (...) haverá enxuradas e quebradas e só no fundo do mar que banha as tuas costas poderás recuperar o que cobriu os teus solos. “As inscrições”, CMI, 13.

Foi essa riso cruel e oculto de Deus que o Homem macaronésio prescrutou, no tempo mítico evocado nas crónicas lapidares de “As inscrições”, no momento que antecedeu a fractura recriadora do universo insular. E foi esse riso que o fez entender que a suposta magnanimidade, omnipresença e omnipotência de Deus têm limites. Deus não é absolutamente bom; Deus não está presente, quando o Homem dele mais necessita; Deus não pode, em absoluto, dominar o Homem e o seu 12

O romance de Didial apresenta-se como uma evidente actualização do mito bíblico de Abraão e Isaac.

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destino, se este não o permitir e se se rebelar contra Ele. Os escribas da antiguidade inscreveram esta revelação nas rochas insulares para que os macaronésios não o esquecessem e, por isso, na contemporaneidade, Geuzim, o novo narrador-cronista, fazendo-se émulo daqueles, afirma, uma vez mais, a necessidade do Homem se afastar de Deus: Nenhuma paz é ganha sem inquietação derramada. Quando se diz isto aos deuses, eles sorriem com uma ponta de perversidade. Sim, eles não nos vêm [sic] como filhos dignos. Agamenon não se enganava: é preciso afastar essa raiz da fonte do mundo! “No zoo de Antuérpia”, CMI, 35.

Por isso, também o Homem ri de Deus (ou, melhor, contra Deus), apresentando-se, irónica e subversivamente, como imagem especular do seu criador. Henri Bergson afirma que a rigidez e o automatismo de comportamentos são potencialmente risíveis (1991). Compreende-se, assim, que Deus ria do Homem, quando o manipula ou pensa que manipula como uma marioneta; e que, por outro lado, o Homem, depois de assumir a sua nova faceta herética, ria também de Deus, ao verificar que este, reiteradamente, insiste num comportamento mecânico, anacrónico e desajustado à nova ordem cósmica. Por seu lado, Peter Berger demonstra que a experiência do cómico é, antes de mais, uma forma alternativa de olhar a realidade, quando o sujeito perceptivo, surpreendentemente, é confrontado com uma imagem divergente/subvertida daquela que esperava/desejava (1997:11). Evocando Aristóteles, para quem o ridículo seria uma espécie de feio,ou seja, uma espécie de deformação da ordem e do belo, que, no entanto, é contemplada sem causar dor, Peter Berger defende ainda que o sujeito, quando confrontado com essa imagem incongruente (com esse “mundo às avessas”), sente a vertigem de uma potencial ameaça à ordem do seu próprio mundo (Berger 1997:18). Descobre, assim, que as coisas podem não ser o que parecem e que outras ordens distintas da sua podem também existir e vir desordenar o seu mundo (1997:34-35) Então, torna-se imperioso isolar essa imagem invasora e perigosa; afastá-la do mundo do sujeito. Suspendendo a sua relação com o universo quotidiano que se vê ameaçado, esse sujeito transfere a imagem hostil (e transfere-se com ela), para uma outra dimensão, que se institui como um universo à parte, equivalente, por exemplo, ao mundo do sonho, das brincadeiras infantis ou até do Carnaval. Ainda segundo Berger, a percepção cómica do real provoca, assim, um efeito extático (ek-stasis, colocar fora), levando o sujeito que ri a emigrar para uma dimensão do mundo, alternativa àquela que é a da sua realidade quotidiana, conseguindo, deste modo, proteger esta última da ameaça do caos. Nesta medida, rir surge como a experiência de um momento de interlúdio, como uma espécie de asilo, capaz de apaziguar a dor e o medo provocados por imagens ameaçadoras, por vezes mesmo aterradoras (Berger 1997). Consideramos, por tudo isto, que em Didial, o riso (de Deus e do Homem), dotado do mesmo carácter sinuoso e fracturante, se insinua ambiguamente como uma linguagem auto-exilante: enquanto linguagem, manifesta o desejo de

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comunicar com um interlocutor; mas ao utilizarem essa linguagem como forma de fractura e auto-exílio, homens e deuses manifestam, paradoxalmente, o desejo de estabelecer uma ruptura comunicante com o seu interlocutor. Incapazes de dialogar um como outro, depois da guerra que se instalou no seio da sua anterior aliança, na ficção de Didial, ao Homem e a Deus apenas restam as corrosivas linguagens do silêncio e do riso13. Ao não dizerem claramente o que se esconde por trás da ambiguidade desse riso e desse silêncio, Homem e Deus inviabilizam um efectivo entendimento e reencontro cósmico, tornando-se cada vez mais indecifráveis um para o outro e adensando a distância e violência que separa a fracção do universo em que cada um deles se auto-exilou. Porém, se o riso é essa linguagem fracturante e auto-exilante, a experiência cómica não deixa de ser vivida como o asilo possível, encontrado por deuses e homens, quando a vivência solitária no seu fragmento de mundo se torna insustentável. Se ao rirem um do outro (e não para o outro ou com o outro: note-se a diferença), o Homem e Deus assumem uma atitude ofensiva, de ruptura, contudo, não podemos esquecer que esse riso é ainda uma linguagem e que o estarmanifestamente-contra é uma outra forma de estar-com. Nessa medida, o mesmo riso fracturante é ainda e paradoxalmente um elo de ligação entre Homem e Deus, a última ponte que os liga. Como lembra Eva Hoffman, o exílio não é apenas uma situação social, mas, acima de tudo, uma experiência interior, vivida por aqueles que sofrem a angústia de ver destruídos os laços de pertença a uma comunidade (1999:39-41). Em trânsito permanente entre vários espaços/tempos que lhe servem de referência, mas aos quais não se sente pertencer em absoluto, ao exilado, como bem viu Edward Said, apenas resta criar mundos alternativos, onde possa habitar virtualmente (1999: 114). Ou seja, encontrar asilos, mesmo que provisórios, para o seu exílio. Assim, na ficção de Didial, homens e deuses vivem efectivamente uma situação de auto-exílio cósmico, pois, arruinada a aliança que lhes permitia conviver harmoniosamente numa espécie de Paraíso original, e insistindo voluntariamente em habitar fragmentos distintos do universo, não deixam, porém de ser abalados pela memória dessas origens perdidas. A imagem desse passado funciona, assim, como uma âncora-aprisionadora que inibe homens e deuses de se integrar plenamente nos seus respectivos novos mundos à parte. Transitando entre a memória do passado perdido (que o Homem rejeita e que Deus quer reinstaurar) e a evidência da realidade presente (que Deus quer ignorar e que o Homem quer assegurar para sempre), eles sofrem a angústia fracturante do exilado. E a percepção cómica do mundo, por momentos, surge como asilo apaziguador, permitindo-lhe, simultaneamente, estar com e estar contra o outro, estar dentro e estar fora dos seus dois universos de referência.

13 À medida que o riso se instala como linguagem entre Homem e Deus, assiste-se também a um crescente silêncio entre as duas personagens. Gradualmente, a palavra de Deus deixa de chegar ao Homem e quando chega é por mediação de figuras como o Diabo.

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Tomando as palavras de Lélia Parreira Duarte, podemos, então, concluir que também em Didial, quando homens e deuses riem, eles não buscam apenas o prazer cómico. Mais do que isso, ao optarem por uma percepção cómica do mundo, o qual, de alguma forma, os violenta, deuses e homens procuram escapar ao estilhaçamento e à morte; procuram encontrar ainda algum sentido para as incongruências da vida, num mundo que é, inequivocamente, o da contemporaneidade (Duarte 2002:13). Compreende-se, assim, que a representação desse tipo de riso na obra do autor cabo-verdiano não promova, junto do leitor, um efeito cómico, mas antes o terror, perante a evidência do caos da realidade e de uma quase total ausência de esperança na felicidade e paz. O riso de Deus e dos Homens representado na ficção de Didial é um riso desconcertante e perturbador, como o grotesco sorriso de Grila, personagem de um dos contos: E sorriu com os seus três lábios, um sorriso que incomoda: o lábio superior desdobra-se, isto é, levanta-se, debruça-se para o lado do nariz deixando escapar do seu ventre desnudado um segundo lábio, assimétrico, inédito, recém-nascido, parido, então inesperadamente, feito de mucosa vermelhíssima, que desce para as gengivas, aproximando-se dos dentes descobertos, enquanto o lábio inferior corre sobre o rebordo, o começo da mandíbula. “Grilização”, CMI, 60.

Na ficção de G.T. Didial, rir, em última análise, é uma forma possível de sobreviver, quando a percepção das limitações de um ser (humano ou divino) se torna insustentável; quando se descobre, para citarmos o título do romance de Didial, o “Estado Impenitente da Fragilidade” que existe no ser. E, à semelhança do que acontecia nas Grandes Dionisíacas, também na obra deste pseudoheterónimo de Varela, o cómico convive com o trágico, não para anular ou negar as emoções trágicas, não para evitar o grotesco, mas antes para tornar essas presenças obsidiantes mais suportáveis, encontrando uma forma alternativa e menos dolorosa de conviver com o feio, com o horror que existe no mundo contemporâneo.

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O riso de deus e o riso do homem na ficção de G.T. Didial

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