O ritual de máscaras Apapaatai e sua relação com a questão da alteridade na Amazônia indígena

June 2, 2017 | Autor: Marlon Cardozo | Categoria: Filosofía Política, Antropología, Perspectivismo Amerindio
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O RITUAL DE MÁSCARAS APAPAATAI E SUA RELAÇÃO COM A QUESTÃO DA ALTERIDADE NA AMAZÔNIA INDÍGENA

MARLON B. CARDOZO

Trabalho escrito para o curso "Ritual, Imagem e Política na Amazônia indígena", realizado por Oiara Bonilla e Joana Miller no segundo semestre letivo de 2015 na Universidade Federal Fluminense / Niterói

Na tentativa de elaborar um ensaio sobre a relação entre ritual e alteridade, pretendo também incluir nesse ensaio o tema da relação entre ritual e política na Amazônia indígena. Para tanto, farei uma breve descrição de um ritual do povo Wauja1 relatado no livro “Apapaatai – rituais de máscaras no Alto Xingu” (Barcelos Neto, 2008). O ritual de máscaras ao qual o título se refere está associado ao processo de adoecimento de uma pessoa, adoecimento este que mobilizaria, simultaneamente, diversos elementos espirituais, sociais, culturais e políticos. Este complexo (mas não indecifrável) processo tem um potencial considerável de evocar ao mesmo tempo os temas da relação entre ritual e alteridade e o tema da relação entre ritual e política na Amazônia indígena. Para tornar a descrição desse processo um tanto compreensível para estas poucas páginas, utilizarei referências teóricas que articulam diversos debates sobre a necessidade de se recorrer às concepções e cosmologias ameríndias no momento de discutir e analisar as estruturas sociais das sociedades indígenas sul-americanas, e sobre como, recorrendo a estas concepções e cosmologias, é possível tirar conclusões fecundas no que se refere às noções de sociedade, de guerra, de pessoa e de corpo nas sociedades indígenas da América do Sul. O livro de Barcelos Neto é um estudo etnográfico sobre as relações sociais que os Wauja estabelecem com os espíritos apapaatai. Mas que espécies de espíritos seriam estes apapaatai para os Wauja? Não se pode chegar a nenhuma conclusão, mesmo parcial, se não levarmos em conta o ritual e a cosmologia Wauja envolvida na mobilização junto a estes apapaatai e na socialidade que estes mantém com esse povo. Essa necessidade de trabalhar com os conceitos que são, antes, as próprias palavras faladas pelo povo Wauja, foi percebida pelo autor, que cita constantemente as palavras da língua maipure2 em seu trabalho. A defesa da necessidade de se trabalhar com os conceitos próprios das sociedades primitivas, interiores a elas, tanto no que se refere às línguas nativas como às suas cosmologias, parece ser o mote do texto “A Construção da Pessoa nas Sociedades Indígenas Brasileiras” (Seeger, da Matta, & Viveiros de Castro, 1978). Nele, os autores elaboram uma espécie de ‘denúncia’ (acompanhada das teses que eles defendem a partir das questões levantadas) aos antropólogos que, ao estudarem as sociedades indígenas sul-americanas, insistiam excessivamente em aplicar conceitos provenientes de estudos anteriores, sobre outras sociedades primitivas demasiado distantes das sociedades ameríndias, como as da Melanésia, do sudeste asiático e da África. A discussão que se desenvolve nesse texto também será uma referência

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As terras onde vive o povo Wauja localizam-se na Alto Xingu, no estado do Mato Grosso, Brasil. Língua da família arawak falada pelos Wauja.

para a descrição do que se passa no processo de adoecimento de uma pessoa Wauja e também no processo ritualístico empreendido por seus parentes e pelos outros membros da tribo. A pessoa em estado de adoecimento é chamada de kamãi: “o morto”. Embora a pessoa adoecida não esteja completamente morta, no sentido estrito do termo, essa denominação do doente como morto leva, segundo Barcelos Neto, à noção de que a alma do doente está, pelo menos parcialmente, fora de seu corpo: ela estaria em companhia dos apapaatai que raptaram sua(s) alma(s). Isso fica claro a partir do modo como os Wauja se referem à condição do xamã em transe, no momento em que ele está envolvido em seu “diálogo cósmico” com os espíritos apapaatai: “ele morreu pouquinho”. Esse xamã é chamado de yakapá, e é uma três categorias de pessoas humanas que o kamãi “mobiliza em torno de si, de modo direto e imediato, e independentemente da sua idade e da importância de seu status social”.3 A outra categoria é a akatupaitsapai: “aquele que cuida do doente, sendo em geral um parente consanguíneo coresidente, e normalmente é quem contrata o yakapá para o doente” (pág. 163). A distinção entre as categorias de pessoas humanas e não-humanas é essencial para a compreensão do processo de cura do doente e do aspectos rituais que se desenrolam simultaneamente. Pretendo esclarecer essa distinção mais adiante. A única categoria de pessoa não-humana que o doente mobilizaria em torno de si é a dos apapaatai, que o deixaram doente porque o transformaram em kamãi: morto. O xamã yakapá seria entre os Wauja um “doente permanente”, ou se pode dizer, como afirma o autor que ele deve “suportar a dor” de sê-lo. Isso se deve ao fato de que o xamã se diferencia de um não-xamã por conta do yalawo que ele possui. Yalawo seria uma substância que contém “potência xamânica”, e seria também a “roupa” sobrenatural do xamã. Ao mesmo tempo, a yalawo revela uma condição corporal muito própria ao yakapá (condição essa que está associada com o fato deste ter de suportar muita dor), como descreve Barcelos Neto: “A yalawo está distribuída pelo corpo do yakapá: em volta dos olhos (“para ele ver apapaatai”; “para ele virar olho e ver o que a gente não vê”), nas palmas das mãos (...), nas pernas (“para ele correr” em busca da alma do doente) e no estômago (“onde ele guarda a yalawo principal”).” (Barcelos Neto, 2008) p. 164

Essa condição corporal da yalawo para o yakapá, condição esta que ao mesmo tempo relaciona-se com a condição espiritual que atravessa tal xamã (ele vê os espíritos apapaatai, que nem todos veriam; ele busca almas; etc), revela um aspecto fundamental das sociedades indígenas sul-americanas que é bastante defendido em “A Construção da Pessoa...”. Segundo os autores desse texto, seria preciso destacar que “a grande maioria das sociedades tribais do continente (sul-americano) privilegia uma reflexão sobre a corporalidade na elaboração de suas cosmologias. Mais importante ainda, porém, é o fato de que as etnografias (...)4 necessitam recorrer a estas ideologias da corporalidade para dar conta

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(Barcelos Neto, 2008), página 163 Para não romper o sentido da frase, resolvi ocultar o que a passagem diz. A passagem se refere a “etnografias mencionadas” no mesmo parágrafo onde a passagem se encontra. Estas seriam etnografias recentes (ao momento em que o texto foi escrito – 1978) sobre grupos indígenas brasileiros (Jê, Tukano, Xinguanos, Tupi, etc). O texto diz que tais etnografias precisaram deter-se nas “ideologias nativas” a respeito da corporalidade: “teorias de concepção, teoria de doenças, papel dos fluidos corporais no simbolismo geral da sociedade, proibições alimentares, ornamentação corporal”. (Seeger, da Matta, & Viveiros de Castro, 1978) página 3 4

dos princípios da estrutura social dos grupos: tudo se passa como se os conceitos que a Antropologia importa de outras sociedades – linhagem, aliança, grupos corporados – não fossem suficientes para explicar a organização das sociedades (indígenas) brasileiras”.5 A necessidade da recorrer às tais “ideologias da corporalidade” é defendida pelos autores pela razão de que no ano de 1978 estes constatavam que tais “ideologias nativas” eram desacreditadas por antropólogos africanistas ou de outras partes do mundo, e que, diante desse descrédito, estes chamavam os antropólogos sulamericanistas de idealistas. Estes, rebatiam: “(...) se somos idealistas, é apenas porque os ameríndios que estudamos são também idealistas no que diz respeito à ordenação de suas sociedades. Devemos encarar este fato e sustentá-lo”.6 A questão que se coloca aqui é a seguinte: como superar os “vícios inerentes a explicações reducionistas e hiperdeterministas” que constam nos estudos sobre os ameríndios? Através do esforço de pensar a noção de pessoa nessas sociedades. Para os autores, o conceito de pessoa tem variadas concepções teóricas dentro da Antropologia. A distinção destacada no texto fica entre a tradição da “Antropologia Social desde Malinowski, (que) tendeu sobretudo a analisar a personalidade social, isto é, a pessoa como agregado de papéis sociais, estruturalmente prescritos”; e a tradição de Mauss, manifestada também por outros antropólogos posteriores a ele, que consideraria “as noções de pessoa enquanto categorias de pensamento nativas – explícitas ou implícitas-: enquanto, portanto, construções culturalmente variáveis”.7 O que os autores irão constatar a partir daí é que por baixo da primeira concepção assume-se um “nódulo fixo”, que seria nada mais que “o Indivíduo, em sua concepção ocidental moderna”. O que levaria, segundo os autores, a diversas polarizações envolvendo desde a de Indivíduo/Sociedade, até a inúmeras outras, que, no limite, levariam à dicotomização da estrutura social em termos de social/individual, normativo/espontâneo, jurídico/sentimental, e assim por diante. “Ao nível das concepções da pessoa”, dizem os autores, “essa tendência vai assumir um indivíduo dividido, dual – um pouco segundo a velha dualidade durkheimiana entre corpo e alma, indivíduo e sociedade”.8 Pierre Clastres, em “Arqueologia da Violência: a guerra nas sociedades primitivas” (Clastres, 2011), rejeitaria com vigor (como é característico de seu estilo de escrita e de argumentação) essa noção de que a sociedade primitiva é dividida por essas dicotomias. Nesse texto que é um trabalho de antropologia política, e que discute o lugar da guerra nas sociedades primitivas (inclusive, e sobretudo, as da América do Sul, já que Clastres era um antropólogo sulamericanista), assim diz o autor: “Ela (a sociedade primitiva) busca conservar seu próprio ser, quer perseverar em seu ser. Mas que ser é esse? É um ser não dividido: o corpo social é homogêneo, a comunidade é um Nós.”9 Essa defesa da indivisibilidade da sociedade primitiva, em que Clastres marca bastante o pronome Nós10, marca menos um remetimento obsessivo e identitário da sociedade primitiva

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(Seeger, da Matta, & Viveiros de Castro, 1978) página 3 Citação dos autores extraída de um texto da antropóloga Joanna Overing Kaplan. 7 (Seeger, da Matta, & Viveiros de Castro, 1978) página 5 8 (Seeger, da Matta, & Viveiros de Castro, 1978) página 6 9 (Clastres, 2011) página 246 10 A expressão a que Clastres se refere em várias passagens do texto para definir a unidade política das sociedades primitivas é a de um Nós indiviso. Ele define-a também como uma totalidade una. 6

para e sobre si mesma, do que o reconhecimento que um determinado grupo tem de si mesmo como uma posição particular, como uma perspectiva específica em relação a outra(s) perspectiva(s), outro(s) grupo(s), outra(s) comunidade(s), outro(s) ser(es), etc. Para os autores de “A Construção da Pessoa...”, foi a tradição que insiste no Indivíduo dual/fixo, que eles identificaram na Antropologia Social, que gerou muitos dos conceitos que, à época em que as sociedades indígenas sul-americanas começaram a ser estudadas mais a fundo, não cabiam nessas realidades. Pois seria a partir da insistência em aplicar esses conceitos às estruturas sociais ameríndias que surgiria a dicotomia entre as “ideias nativas” e “o que realmente acontece” – “isto é, as ideias do antropólogo”11: assim constatam. Donde voltamos à questão do suposto “idealismo” dos etnólogos americanistas – e a do idealismo dos ameríndios, portanto, se levarmos a sério a afirmação de Joanna Overing. Overing, no mesmo trabalho citado, lembra que “seja na África ou na América do Sul, estaremos sempre, de uma forma ou de outra, em algum nível, tratando com conceitualizações que nossos informantes impõem sobre o universo” – conceitualizações que são as cosmologias nativas, antes de tudo. E se os estudos de ecologia cultural12, que tentaram superar a dificuldade de aplicar os conceitos antigos nas realidades ameríndias colocando a sociedade como parte da Natureza, para os “idealistas”, a Natureza seria “uma região dentro de uma cosmologia socialmente mantida e organizada”. E é aqui que a questão da corporalidade encontra a questão da noção de pessoa como categoria de pensamento nativa.13 A construção da pessoa para os ameríndios passa por uma intervenção do corpo social sobre o corpo físico, como demonstram os rituais de iniciação de alguns povos que, só pra citar um tipo desse ritual, podem envolver escarificações profundas na pele. Os autores defendem que o que é característica básica das sociedades indígenas sul-americanas são as noções ligadas à corporalidade e à construção da pessoa, simultaneamente, embora os limites de um e do outro não sejam os mesmos. Ao invés de um “idealismo”, pensar as ideias nativas como “princípios de organização social”. Ao invés de pensar os “símbolos” como dados simples que os nativos falam “da boca pra fora”, pensá-los como princípios “que operam e informam a práxis”. Ao invés de pensar o corpo ameríndio como “simples suporte de identidades e papéis sociais”, pensar o corpo ameríndio como “instrumento, atividade, que articula significações sociais e cosmológicas”. Os autores defendem então que o corpo, como “matriz de símbolos”, ocuparia uma “posição organizadora central” nas sociedades indígenas brasileiras. Sabendo que os nativos operam socialmente de formas substancialmente diferentes da socialidade dos civilizados (principalmente no que diz respeito ao corpo, como foi demonstrado), e que suas cosmologias particulares têm bastante a nos dizer, como poderíamos pensar a indivisibilidade que

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(Seeger, da Matta, & Viveiros de Castro, 1978) página 7 Os estudos de ecologia cultural procuraram “dar conta de fenômenos como autoridade política, guerra, organização cerimonial, tabus alimentares, etc., em termos de respostas adaptativas a dadas condições da relação tecnologia/ambiente (...)”. Ibidem. p. 7 Percebo que a ecologia cultural parece ser, pela descrição dos autores de “A Construção da Pessoa...” uma espécie de “materialismo” radicalizado, mas que, no fim das contas, só faria levar à radicalização mesmo o idealismo da civilização ocidental e a noção de pessoa afim a esta realidade, e não a da realidade ameríndia. 13 E é aqui que a tradição que teria começado com Mauss também se encontra. Bons encontros... 12

Clastres marca nas comunidades primitivas? Eu já havia dito mais acima que essa indivisibilidade devese, em grande parte, ao reconhecimento dos grupos como pertencentes a um Nós indiviso, ou seja, a uma posição específica, a uma perspectiva autônoma, a uma “totalidade uma”. Baseado nas cosmologias ameríndias, Viveiros de Castro, o mesmo que defendia em 1978, ao lado de Roberto da Matta e Anthony Seeger, a necessidade de levá-las a sério, em 2002, em seu texto “Xamanismo e Sacrifício” (Viveiros de Castro, 2002), já defende uma espécie de ‘doutrina’ teórica baseada nessas cosmologias: o perspectivismo ameríndio, que seria “a concepção segundo a qual as diferentes subjetividades que povoam o universo são dotadas de pontos de vista radicalmente distintos (...). Tal concepção, extremamente difundida nas culturas ameríndias, sustenta que a visão que os humanos têm de si mesmos é diferente daquela que os animais têm dos humanos, e que a visão que os animais têm de si mesmos é diferente da visão que os humanos têm deles. (...) Essa ‘doutrina’ perspectivista, cujos fundamentos se encontram na mitologia – na ideia de que o fundo originário comum à humanidade e à animalidade é a humanidade (e não, como para nós, a animalidade) -, está pressuposta em muitas dimensões da práxis indígena, mas vem ao primeiro plano no contexto do xamanismo.” (Viveiros de Castro, 2002) páginas 467-468.

Se for acertado aproximar a indivisibilidade de uma sociedade primitiva específica a uma posição que ela ocupa, seja enquanto grupo autônomo, seja enquanto perspectiva particular, o perspectivismo ameríndio explica fecundamente essa relação sem apelar para a assimilação das sociedades primitivas à nossa, civilizada. Mas voltemos agora ao yakapá e sua função no processo de cura do kamãi. O xamã yakapá foi contratado pelo akatupaitsapai para “rastrear” as frações de alma do doente que teriam sido raptadas por espíritos apapaatai específicos. Depois de rastrear as frações perdidas da alma do doente primeiramente através do corpo, através dos sonhos do kamãi (e do histórico alimentar deste, em alguns casos) e depois através de um transe narcótico provocado por tabaco, onde o “rastreamento” se ‘conclui’ e o xamã descobre quais apapaatai estão “matando o doente”, estes apapaatai são revelados ao akatupaitsapai, que pagará o yakapá posteriormente pelo serviço realizado. O akatupaitsapai deverá então oferecer comida cozida às pessoas da tribo que devem “trazer apapaatai”. Essas são a terceira categoria de pessoas humanas que o doente mobiliza: os kawoká-mona. Estes tem o dever de “trazer apapaatai”, ritual que atua em três frentes: a primeira “é a familiarização dos apapaatai”. Pois a única condição em que os “humanos podem ter uma experiência não-patogênica/letal com esses seres é quando eles são “rebaixados” a uma natureza –mona”.14 O sufixo –mona funcionaria como um “corporificador de substância”. E a função dos kaowká-mona no processo de cura do doente é a de trazer os apapaatai, que têm uma existência invisível, espiritual, para uma existência corporal. E para fazê-lo, os kawokámona usam diversos ornamentos e se valem de diversas performances musicais e artísticas na visita ao doente, visita curta onde estes dirigem frases de conforto ao doente, tratando-o através de vocativos como “avô/avó” ou “filho/filha”, dependendo da idade do kamãi. Os apapaatai anunciam então ao doente que não mais farão mal a este e que o mesmo recobrará sua saúde. A oferta de comida cozida também é um vetor que denota uma relação de parentesco junto aos apapaatai, trazidos pelos kawoká14

(Barcelos Neto, 2008) página 175

mona. E é aqui que atua a segunda frente do ritual de “trazer apapaatai”: “o reconhecimento dos apapaatai visitantes como personagens rituais potenciais” – o que também seria o reconhecimento dos apapaatai enquanto um grupo Outro, uma comunidade Outra de seres, que consequentemente teriam outra perspectiva (por exemplo, veriam a si mesmos como humanos e os Wauja como não-humanos). A terceira frente seria “a reintegração da(s) alma(s) do doente ao seu corpo”.15 A questão da corporalidade retorna aqui, porém, completamente carregada com as operações cosmológicas incluídas no processo de cura do kamãi. Em algumas delas, como no ritual de “trazer apapaatai”, é possível constatar que não apenas o xamã yakapá se relaciona com esses espíritos mas os kawoká-mona também. Isso configura um tipo particular de extensão, em variados graus, da condição xamânica a todos os membros da tribo. E aqui uso o conceito de xamanismo da maneira como Viveiros de Castro o define em seu texto “Xamanismo e Sacrifício” (Viveiros de Castro, 2002): “O xamanismo pode ser definido como a capacidade manifestada por certos humanos de cruzar as barreiras corporais e adotar a perspectiva de subjetividades não-humanas. Sendo capazes de ver os não-humanos como estes se veem (como humanos), os xamãs ocupam o papel de interlocutores ativos no diálogo cósmico. Eles são como diplomatas que tomam a seu cargo as relações interespécies, operando em uma arena cosmopolítica onde se defrontam as diferentes categorias socionaturais.” (Página 168)

Poderíamos nos perguntar: porque esse “diálogo cósmico” geralmente é feito por membros muito restritos nos grupos tribais ameríndios (o “diálogo cósmico” com os apapaatai que confere ao yakapá, por exemplo, é muito mais profundo e ‘exclusivo’ do que aquele que se dá no caso dos kawoká-mona)? Isso se dá precisamente por conta daquele Nós indiviso marcado por Clastres, que exatamente por sua diferenciação em relação a um Outro, a um Estrangeiro, não poderia perder sua indivisibilidade, sua autonomia – sua perspectiva em relação à desse Estrangeiro. Clastres define muito bem essa relação em uma passagem de seu artigo: “(...) a posição do Si de cada uma delas (das comunidades primitivas) implica a oposição, a hostilidade às outras; o estado de guerra é tão permanente quanto a capacidade das comunidades primitivas de afirmar sua autonomia umas em relação às outras. (...) A permanência da sociedade primitiva passa pela permanência do estado de guerra, a aplicação da política interna (manter intacto o Nós indiviso e autônomo) passa pela aplicação da política externa (concluir alianças para fazer a guerra): a guerra está no centro do ser social primitivo, é ela que constitui o verdadeiro motor da vida social.” (Clastres, 2011) página 246

E numa outra passagem do mesmo texto, Clastres estabelece a relação que esse “estado de guerra permanente” tem com as operações de aliança: “(...) para todo grupo local, todos os Outros são Estrangeiros: a figura do Estrangeiro confirma, para todo grupo dado, a convicção de sua identidade como Nós autônomo. Vale dizer que o estado de guerra é permanente, pois com os estrangeiros se tem apenas uma relação de hostilidade, manifesta efetivamente ou não numa guerra real. (...) o Estrangeiro é então o Inimigo, o qual engendra por sua vez a figura do Aliado. O estado de guerra é permanente, mas nem por isso os selvagens estão o tempo todo guerreando.” (Clastres, 2011) Página 245

Donde a afirmação que Clastres faz em relação às sociedades ameríndias: “enquanto houver guerra, há autonomia”. A troca seria, segundo Clastres, um efeito tático da guerra. E não seria precisamente isso que se passa no caso dos apapaatai? Por conta do “estado de guerra permanente” em que o grupo Wauja estaria colocado em relação aos espíritos apapaatai, enquanto seres de uma perspectiva Outra, seria

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(Barcelos Neto, 2008) página 171

necessário, no caso de uma intromissão desse “Estrangeiro” (como é o caso do adoecimento de alguém, em que este passa a ter parte de sua alma “raptada” pelos apapaatai), seria preciso torná-lo aliado. E é isso que é feito no ritual de máscaras: alguns dos espíritos apapaatai que raptaram uma fração da alma do kamãi são tornados algo como parentes do adoecido – aliados. Como, porém, a aliança não se faz com todos os apapaatai, mas apenas com alguns deles por vez, trata-se de uma aliança tática. Clastres poderia complementar mais uma vez essa reflexão: “(...) o fato da guerra determina o ser da troca. O problema constante da comunidade primitiva não é: com quem iremos fazer trocas? Mas, como poderemos manter nossa independência? O ponto de vista dos selvagens sobre a troca é simples: é um mal necessário: já que é preciso ter aliados, é melhor que sejam cunhados.” (Clastres, 2011) Página 244

Depois de tudo o que foi dito nesse trabalho, fica claro como a relação entre ritual e alteridade nas sociedades ameríndias pode ser muito mais simbiótica do que se pensa, pois o ritual de máscaras envolve uma considerável “dissolução/inversão das auto-identidades” dos sujeitos envolvidos, e principalmente no que se refere à posição da comunidade Wauja em relação à ‘comunidade’ dos espíritos apapaatai enquanto uma entidade que pode ser definida como socialmente e cosmologicamente Outra. E a relação entre ritual e política nesse povo acaba mostrando-se muito mais próxima do que parece. Pois a relação que o doente kamãi e os espíritos apapaatai têm um com o outro num primeiro momento é uma relação que aparentemente tem caráter apenas espiritual. A relação que resulta num segundo momento, durante e após o ritual de máscaras, mostra-se como uma relação espiritual que, simultaneamente, pode transmutar-se em outras relações políticas, sociais e cosmológicas.

Referência bibliográfica

CLASTRES, Pierre. “Arqueologia da Violência: a guerra nas sociedades primitivas”. In: “Arqueologia da Violência – pesquisas de antropologia política”. São Paulo, Editora Cosac Naify, 2011 SEEGER, A., DA MATTA, R. & VIVEIROS DE CASTRO, E.B. (1978). “A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras” – Versão PDF VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B., “Xamanismo e Sacrifício”. In: “A Inconstância da Alma Selvagem e outros ensaios de antropologia”. São Paulo, Editora Cosac Naify, 2002 BARCELOS NETO, Aristóteles. “Cap.4 – A Terapêutica Ritual”. In: “Apapaatai: ritual de máscaras no Alto Xingu”. São Paulo, EDUSP, 2008.

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