O rock brasileiro como metáfora da sociedade dos anos 1980 nas páginas da revista Chiclete com Banana.

Share Embed


Descrição do Produto

O rock brasileiro como metáfora da sociedade dos anos 1980 nas páginas da revista Chiclete com Banana.
Rodrigo Otávio dos Santos - UFPR


O presente artigo pretende vislumbrar algumas das metáforas mais recorrentes na revista Chiclete com Banana, o maior expoente dos quadrinhos udigrudi (corruptela do norte-americano underground) e que foi comercializada no Brasil entre os anos de 1985 e 1990, época que, como veremos, profundas transformações sociais, políticas e comportamentais ocorreram em solo brasileiro. Seu criador e principal artista era Angeli, que ficara famoso alguns anos antes graças ao seu trabalho de charges junto ao maior jornal do Brasil, a Folha de S. Paulo.
Angeli percebeu, então, que uma das maiores formas de contestação do povo brasileiro e, mais especificamente, o jovem brasileiro era a música rock. No momento aqui trabalhado o rock estava em grande ascensão, pouco depois do Rock in Rio mas ainda antes do fenômeno maior que foi a banda RPM.
Em muito momentos o rock era tratado pela revista Chiclete com Banana como expressão de contestação, que criava certa metáfora com a vida política e social do país na década de 1980.

Figura 1. New Look
Fonte: Angeli. Chiclete com Banana nº 1. São Paulo: Circo, 1985. p.34

Na figura acima, extraída da edição número 1, de 1985, percebemos o chiste de Angeli ao apresentar novos tipos de cabelos que fazem alusão ao cotidiano juvenil da década de 1980.
O artista já inicia sua piada ao mostrar o corte "Igreja", mostrando a dualidade da entidade religiosa, que ora é enraizada em suas tradições, conservadora e aliada das elites, ora é progressista, aliada dos mais pobres, e em sintonia com o pensamento jovem. A piada está na contradição entre estes lados antagônicos, que fazem do cabelo da personagem meio new wave/punk, meio reto e conservador.
O segundo quadrinho mostra a visão do artista para a já explicada coalizão Frente Liberal, ou seja, uma fachada de liberalismo e arrojamento sendo que em sua maior porção continua o reacionarismo e conservadorismo.
O terceiro quadrinho é um chiste completo em relação ao rock carioca. O "rock de bermudas" era visto por Angeli como descartável, graças às inúmeras bandas e artistas que não se firmaram no mercado. Apesar de Paralamas do Sucesso, Lulu Santos, Barão Vermelho e Kid Abelha terem conquistado certa perenidade, como informa Bryan (2004), inúmeras outras bandas tiveram seu fim prematuro. Gang 90, Blitz e Ritchie, por exemplo, foram forças meteóricas de vendagem, mas que mostraram não ter capacidade de permanecer no panteão dos artistas que venceram os anos 1980. A Blitz, como lembra Bryan (2004), acabou em fevereiro de 1986, ou seja, dois meses depois do lançamento desta piada. A Gang 90 havia acabado mesmo antes de Júlio Barroso morrer, em 1984 e Ritchie vinha de mais uma derrota nas vendagens de seu disco Circular, sendo taxado mais como artista brega do que como roqueiro. Principalmente graças à explosão de Ritchie e Blitz, que no lançamento da revista estavam em franco declínio, mas que haviam vendido milhares de cópias no Brasil inteiro, Angeli percebe as bandas cariocas como efêmeras.
O chiste continua com a menção da Rede Globo, que segundo Angeli estimulava a criação e execução das bandas no Rio de Janeiro. Quando o artista escreveu a piada já haviam sido veiculados os especiais Plunct Plact Zuum, Plunct Plact Zuum II, A Era dos Halley, Blitz contra o gênio do mal, o programa Armação Ilimitada era sucesso e as propagandas sobre o novo programa do rock nacional, Mixto Quente, já apareciam em inserções durante a programação da emissora. Todos estes especiais e mais as aparições das bandas em programas de auditório como Chacrinha ou Globo de Ouro aumentavam a relação entre as bandas cariocas e a emissora de Roberto Marinho.
Para finalizar, Angeli insere uma personagem vestindo um peruca, em clara provocação à idade dos músicos, mais velhos do que aparentariam nas telas da televisão. Além disso, o fato de inserir uma peruca para aparecer perante o público denota a tentativa de engodo por parte dos músicos, que enganam sua audiência em relação às suas vestimentas, idade e principalmente sua habilidade com os instrumentos. Angeli parece acreditar que as bandas cariocas são uma farsa total, capitaneada pela maior emissora de televisão do país com claro intuito de entreter. Com isso, criam-se canções efêmeras que só servem para determinado período consumidor sendo esquecíveis para a posteridade.
O quadrinho do meio retrata o sofrimento da Dívida Externa, eterno pesadelo na mente dos brasileiros, que precisam conviver com um arrocho salarial promovido pela expansão – e consequente dívida – promovida pelo governo militar. A Dívida era o principal tema nos noticiários de economia do período, haja vista que, como já vimos, o Plano Cruzado só seria lançado dois meses depois da publicação desta página quadrinística. O brasileiro, como aponta Leitão (2011), vivia e respirava sob a sombra de ser devedor do FMI. Além disso, a carga tributária e a inflação derivada também da necessidade do governo impor um programa de austeridade a fim gerar recursos para pagamento da dívida afetava diretamente a mente dos brasileiros trabalhadores. E consequentemente todo o restante da população, inclusive os jovens.
O quadrinho que representa o rock paulista retrata um punk da periferia, com seu cabelo raspado, típico de quem foi para a cadeia, como Angeli deixa claro nas frases ao lado da caricatura. O rock paulista, de acordo com Alexandre (2002), diferente do carioca, contava com a soturnez típica de uma metrópole cinzenta, sinistra e super povoada mostra outras características, que o aproximam mais do punk contestador do que da new wave libertária. O próprio desenho da personagem, nervosa, tensa e pouco amistosa representa uma grande faceta do rock paulista, facilmente identificável tanto em bandas roqueiras como Titãs e Ira! quanto em bandas punk como Inocentes ou Garotos Podres.
Ao mesmo tempo, nesta página, Angeli ignora a maior das bandas paulistas do momento, o Ultraje a Rigor. Conforme Alexandre (2002), o conjunto vendia mais discos a cada dia, tornando-se fenômeno de vendas e de popularidade. Entretanto, a banda pouco tem a ver com o estereótipo montado no quadrinho, uma vez que sua maior característica é o humor, a alegria e a contestação política por meio da ironia e do sarcasmo. Quando ignora a banda de Roger Moreira, Angeli parece estar apontando sua crítica às bandas underground, que sofriam mais com a verve paulista em suas canções. Devemos aqui lembrar que no período tanto os Titãs quando o Ira! ainda não haviam ganhado status de grandes e populares bandas nacionais. E os punks Inocentes e Garotos Podres sequer chegaram a ter este status em algum momento de suas carreiras.
A marginalidade está clara na visão do artista em relação às bandas de seu Estado. Angeli parece entender o rock paulista como marginal, tanto em relação às vendas, quanto em relação às bandas cariocas e a Rede Globo, quanto em relação à polícia e a própria Lei. A visão do punk como delinquente, como já apresentado aqui, é novamente reforçada. O estereótipo do punk marginal idealizado em Bob Cuspe aqui também é utilizado como referencia às bandas paulistas, ainda que este estereótipo, mesmo no trabalho de Angeli, mudaria aos poucos ao longo do tempo.
A ironia com o PDS remonta aos problemas já apresentados pelo partido apoiador dos militares após a volta da democracia. Com a saída de Sarney do partido e sua migração para o PMDB, a agremiação ficou fraca, sem representações políticas no Senado e no Congresso nas eleições de 82 e mais ainda a de 86, o que acabou por, de certa forma, liquidar eleitoralmente o partido. Os poucos fios mostrados por Angeli representam os poucos representantes políticos que ainda constavam no partido no final de 1985, ao mesmo tempo que mostram a debandada geral de um partido político fortemente associado com o governo ditatorial que precedeu o democrático.
O outro quadro mostra o penteado Dona Solange. A Solange aqui representada era a censora oficial da república no momento da criação da tira de Angeli, Dona Solange Hernandez, que, como já vimos, já havia sido ironizada em Sessão da Tarde, de Léo Jaime. A censora no final de 1985, de acordo com Skidmore (1988) já não tinha quase poder algum, mas ficou marcada como figura reacionária, principalmente pelos jovens consumidores da Chiclete com Banana, que se divertem lendo o texto onde Angeli diz que esta personalidade teve que "abaixar o topete", ou seja, teve que diminuir sua arrogância e sua intransigência. Além disso, os leitores já sabiam que mesmo que não constitucionalmente, a censura já estava com seus dias mais do que contados.
O penteado Nova República é uma crítica à instabilidade política do nosso país na virada para o regime democrático. A enorme gama de políticos, ideias, ideais, facções e ideologias fica explicitado na presença de diversos tipos de cabelo na cabeça uma pessoa apenas. A representação gráfica de Angeli fomenta e endossa o que anteriormente dissemos a respeito da profusão de partidos políticos e seus representantes nesta nova fase da vida política brasileira. A crítica também fica evidente quando se percebe que não é possível, em apenas uma cabeça, ter tantos e tão distintos penteados. A confusão provocada pela tentativa de encaixar todas estas facetas em um única Estado é o que faz rir, ao mesmo tempo que faz o jovem refletir.
Os constantes desvios de dinheiro do INAMPS também foram abordados por Angeli, que fez chiste mostrando o "rombo" trilionário causado pelas fraudes envolvendo hospitais de todo o Brasil ao longo do ano de 1985 e denunciado pela revista Veja em 13 de março daquele ano, com a reportagem INAMPS – uma rede de intrigas.
A última das críticas é a única não relacionada ao contexto puramente nacional. O terror nuclear era uma constante ameaça pairando nas cabeças dos indivíduos de qualquer nacionalidade. A Guerra Fria, explicada por Arbex (1997) já deixava clara a nefasta perspectiva da extinção humana por meio da guerra nuclear entre EUA e URSS, superpotências do período. Este constante medo era discutido, analisado e criticado em todos os meios humanos, principalmente nas artes, como já vimos em relação ao rock nacional, que por diversas vezes demonstrou tal preocupação, como nos casos das canções Charme de artista e Apocalipse não, da Blitz, Barrados no Baile, de Eduardo Dusek ou Guerra Nuclear dos Inocentes. Lembrando que estas canções já haviam sido lançadas e eram muito ouvidas no período. Mais adiante outros artistas, como Engenheiros do Hawaii, Ultraje a Rigor, Paralamas do Sucesso e Plebe Rude também mostraram esta preocupação em relação à guerra nuclear.
Mas a utilização do rock nacional como metáfora já se inicia na contra-capa da edição numero 1 da publicação, em tira de página cheia. A reprodução abaixo mostra diversos supostos grupos musicais de rock:



Figura 2 - Hit Hit Hurra
Fonte: Angeli. Chiclete com Banana nº 1. São Paulo: Circo, 1985. p.2

O primeiro deles, Partido de Oposição, traçam um paralelo entre a política nacional do período e os artistas de rock que de alguma forma deixam suas raízes agressivas com o passar dos anos, tal como o ícone Roberto Carlos, que no início trazia aos seus fãs um rock calcado nos movimentos contraculturais em ebulição na Inglaterra e nos EUA nos anos 60, e posteriormente passou a fazer canções que versavam apenas sobre o amor ou questões religiosas, tendo o instrumental mudado e praticamente abolido as guitarras distorcidas em prol de instrumentos e arranjos mais palatáveis e suaves. A crítica também passa pelas bandas do período, como Barão Vermelho ou Camisa de Vênus, que como indicado no quadrinho, suavizou um pouco seu repertório. O Barão Vermelho estava, de acordo com Bryan (2004), em 1982, com seu primeiro álbum, com músicas como Billy Negão ou Rock 'n geral. No ano seguinte, o segundo álbum já estava mais diluído, tanto que só fez sucesso depois do aval de nomes clássicos da MPB, como Caetano Veloso e Ney Matogrosso. Além disso, o álbum possuía canções como Manhã sem Sonho e Blues do Iniciante já analisadas previamente e que mostravam uma banda muito mais próxima à pasteurização musical necessária para uma audiência maciça de FM.
Outra banda que também suavizou seu instrumental foi o Camisa de Vênus. Seu primeiro disco mostra uma banda violenta o suficiente para zombar de um estupro seguido de morte em Bete Morreu ou do suicídio de um jovem desesperançoso em Pronto pro suicídio. No segundo álbum, mesmo mantendo-se punk, a banda dilui um pouco sua acidez, e consolida seu maior sucesso comercial, Eu não matei Joana D'arc, além de uma canção de amor, Rostos e aeroportos, com instrumental calmo e letra mais próxima às canções típicas de FM do que as do punk sarcástico que caracteriza a banda.
No segundo quadrinho temos a banda Cheque sem fundo, em um chiste com a profissão do bancário, que lida com enormes montantes de dinheiro diariamente porém recebem um salario baixo. O quadrinho faz alusão à antiga marchinha de carnaval Me dá um dinheiro aí, o que distoa um pouco da proposta rock da página como um todo. Ainda assim, a piada se completa com a dicotomia entre quem mexe com muito dinheiro todos os dias mas não o leva para casa. Além disso, a inflação consumia o dinheiro dos trabalhadores assalariados, o que fazia com que nominalmente o montante de dinheiro aumentasse na mão daqueles que o movimentavam, mas diminuía seu poder de compra, gerando angústias e, naturalmente, expressões artísticas que mostravam esta faceta da sociedade brasileira, como o quadrinho aqui apresentado ou canções já analisadas, como as satíricas Mim quer tocar e Deus me dê grana. Do ponto de vista puramente iconográfico, é interessante a predileção de Angeli por desenhar bancários como homens de bigode, cabelos bem aparados, vestidos de terno e aparentando meia-idade. Este parecia ser o estereótipo do bancário na visão do jovem, que também imaginava assim o funcionário público da década de 1980: desesperançoso, sem perspectivas e cordato.
No quadrinho seguinte, vemos a banda Escândalo Financeiro, representando os roubos feitos por organizações criminosas que povoavam as grandes redes financeiras do período. A alta do dólar, a inflação e os crimes financeiros praticados por militares de alta patente já apontados por Skidmore (1988) preenchiam regularmente as primeiras páginas dos jornais a partir de 1982 e só aumentavam. Além disso, em 1985 um grande escândalo financeiro nomeado Coroa-Brastel pela imprensa explicava como os ex-ministros Delfim Netto e Ernane Galvêas haviam desviado grande soma de dinheiro público por volta de 1981. O escândalo foi tão marcante que chegou a ser inserido nominalmente na canção Alvorada Voraz da banda RPM, além de o nome de Delfim Netto constar na canção Nome aos bois, da banda Titãs, lançada alguns anos depois. Os escândalos financeiros aparecem também em outras canções, como O reggae, da Legião Urbana, que diz assistia o jornal da TV / e aprendi a roubar pra vencer, ou na canção Prisioneiro, da banda Ultraje a Rigor, já anteriormente analisada neste trabalho, e que possui os versos Com tanta gente roubando ninguém vai me pegar / Sigo tranquilo no meio ninguém vai me dedar / Vivo bem com o tráfico e com a corrupção / Se o negócio sujar é só tomar um avião.
No texto de Angeli, fica explícita a noção de roubo quando o artista escreve "faz um som altamente dançável. Marcou, dançou!". Importante salientar que na década de 1980 o verbo "dançar" era utilizado como gíria para designar uma perda, uma consequência ruim. E o verbo "marcar" ali era utilizado pelos jovens para designar um vacilo, um descuido. Ou seja, se a pessoa descuidar do seu dinheiro, a banda vai rouba-lo.
No quarto quadrinho, temos a banda Casa de detenção, iconograficamente marcado pelo desenho de indivíduos armados com armas brancas, vestidos com camisas onde está marcado o símbolo da prisão e com aparência raivosa. No texto, Angeli insere a informação que a banda é oriunda de antigos detentos da prisão de segurança máxima do Carandiru, na cidade de São Paulo, na época a maior casa de detenção da América Latina. No período compreendido por esta tese a prisão teve diversas rebeliões, ainda que nenhuma delas tivesse resultado tão desastroso como o massacre de 111 presos ocorrido em 1992. Mesmo assim, as notícias de rebeliões no presídio eram constantes na mídia brasileira na década de 1980. Ecos dessas rebeliões e sua repercussão da mídia e na percepção juvenil podem ser percebidos em canções como as da banda Titãs Estado violência, com as frases Homem em silêncio / Homem na prisão / Homem no escuro / Futuro da nação / Estado Violência e Desordem, que versa Os presos fogem do presídio / Imagens na televisão ou ainda na canção da banda paulista Inocentes Pânico em SP, que em sua letra narra o momento de uma rebelião na cidade de São Paulo: Chamaram os bombeiros / Chamaram o exército / Chamaram a Polícia Militar / Todos armados / Até os dentes / Todos prontos para atirar / havia o que / Pânico em SP.
O quinto quadro mostra a banda Aviso prévio, em claro chiste aos desempregados do período, já que, como dissemos apoiados em Skidmore (1988), o desemprego aumentou 15% nas áreas urbanas em 1983, chegando a níveis alarmantes na indústria. E este número aumentou ainda mais de acordo com Serra (1984). Uma das piadas de Angeli é o fato de a banda ser um conjunto vocal, já que não possuem dinheiro para comprar instrumentos. Outra piada é o fato dessa banda se apresentar na fila da sopa comunitária, doada por pessoas ou entidades para pobres moradores de rua sem capacidade financeira para alimentação.
O nível de desemprego no período era tão alarmante que diversas bandas criaram músicas que falam diretamente sobre o tema, como os Titãs e a canção Desordem, que fala Às filas de desempregados / Que tudo tem que virar óleo / Pra por na máquina do Estado. Outra canção que lida diretamente com o desemprego de seu protagonista é Gritos na Multidão, da banda Ira!, que diz Estou desempregado / Estou desgovernado / A fome me faz mal / Estou passando mal. A cômica canção Tic tic nervoso, cujo compacto foi comercializado com capa feita por Angeli também reflete o desemprego do período, dizendo: Perdi o meu emprego / que já era mixaria.
O desemprego também refletia em determinadas canções que não abordavam o tema diretamente, mas que implicitamente abordavam a falta de ocupação dos indivíduos, caso das canção já analisada Até quando esperar, da Plebe Rude, que mostra a pobreza oriunda da falta de emprego, ou Alagados, dos Paralamas do Sucesso, que também revela a pobreza.
O sexto quadrinho mostra a banda A luta continua, cujos integrantes são todos Luiz Inácio Lula da Silva. A piada de Angeli reflete a forma como o sindicalista que viraria presidente do país era influente na vida política do Brasil. Lula, de acordo com Pillagallo (2006) era influente sindicalista da região do ABC, como evidencia a piada, e um dos mentores das greves existentes sobretudo a partir de 1979. A imagem existente no quadrinho evidencia primariamente uma caricatura do sindicalista, repetida quatro vezes, ainda que em tamanhos diferentes, com boina lembrando a icônica imagem de Che Guevara fotografada por Alberto Díaz em 5 de março de 1960. Importante salientar que a boina existente no desenho parece ter a função de atrelar visualmente Lula a Guevara, sendo um signo do comunismo, da revolução empreendida na América Latina. Luis Inácio da Silva nunca usou boina em seus discursos ou aparições públicas. Outra questão a ser apontada no desenho são os instrumentos musicais da banda, todos chaves de boca, importante acessório que remete à indústria mecânica onde Lula trabalhava e procurava os direitos dos empregados.
O próximo quadrinho mostra a truculência das tropas de choque nas polícias militares. O desenho mostra homens armados de cassetetes e escudos, com rosto pouco amigável, e em posição de defesa pronta para o ataque. No texto, Angeli relembra casos anedóticos de dois artistas de heavy metal e ícones juvenis, Ozzy Osbourne, que comeu um morcego vivo acreditando ser um boneco de borracha da produção de seu espetáculo, e a banda estadunidense Kiss, que segundo boatos esmagava pintinhos com suas gigantescas botas de plataforma durante suas apresentações. Angeli diz claramente que as tropas de choque das polícias espancam cidadãos em praça pública. Neste sentido, pode-se perceber que no final de 1985, quando a revista chegou às bancas, a censura não mais existia de fato, do contrário a crítica não seria tão explícita. Percebe-se também que a juventude incomodava-se com a falta de segurança não apenas oriunda dos marginais, mas também oriunda da entidade que deveria protege-la.
E crítica à violência da polícia são inúmeras no rock brasileiro da década de 1980. Podemos citar a forma bem humorada dos Paralamas do Sucesso na canção Patrulha noturna, que coloca um policial como um ineficiente servidor da lei, que prefere pegar garotos de moto ao invés de prender reais bandidos. A canção Batalhões de estranhos, da banda Camisa de Vênus também mostra a truculência da polícia, que chegam arrebentando e arrasando as pessoas e manifestantes. A canção inclusive deixa claro uma espécie de toque de recolher promovido pela polícia, já que os policiais patrulham com intensidade os quatros cantos da cidade / Proíbem qualquer mudança, zelando pela segurança / (...) / Eles vem e vão com a forca de quem arrasa / Eles vem e vão mas nós ficamos em casa. A polícia como força de coerção também aparece na canção Brasília, da banda Plebe Rude. Segundo a letra analisada, a polícia é preocupação constante da juventude brasileira, já que ela está lá para manter a ordem a qualquer custo. E em uma sociedade cujo passado militarizado estava tão recente, este medo tornou-se palpável em diversas manifestações artísticas.
A banda RPM expressou sua preocupação com a polícia na canção Alvorada voraz, onde dizem Fardas e força / Forjam as armações / (...) / Juram que não / Torturam ninguém / Agem assim / Pro seu próprio bem, deixando clara a impunidade percebida pela população em relação às forças da lei e da ordem.
Outra canção que denuncia a truculência e a falta de ineficiência das forças policiais é a canção Polícia, da banda Titãs, que diz de forma clara que a sociedade não está mais aguentando o comportamento dos policiais e pede para que não haja mais polícia nas ruas. Ainda que motivada pela prisão de membros da banda pela polícia federal, a canção não deixa de responder à alguns anseios da população jovem do país.
O último quadrinho mostra a banda Cola de Sapateiro. Na metade dos anos 1980 existia uma epidemia de jovens e indigentes que cheiravam cola de sapateiro para se drogar, anestesiando o corpo das mazelas sociais existentes. Estes indivíduos perdiam o contato com a realidade, ficavam eufóricos e viciados em curto espaço de tempo. Esta droga, por ser muito barata e ser adquirida de forma simples na década de 1980, era muito associada à mendicância, e diversas referências a ela foram cantadas em canções como Revoluções por minuto, da banda RPM, que diz explicitamente aqui na esquina cheiram cola, fazendo alusão às condições sub-humanas vividas por uma parcela da população. Mais explícita ainda é a forma como a banda Engenheiros do Hawaii colocam a cena de um mendigo infantil usando a droga: Criança pequena / Cheirando cola / Beijando a sola / Dos sapatos.
A associação com o crime também está posto no texto impresso por Angeli, que fala que a banda de cheiradores de cola assaltam as pessoas durante as apresentações. Além disso, ressaltando ainda mais o caráter juvenil das pessoas associadas à droga, o artista diz que a banda foi formada do reformatório para jovens delinquentes da Febem, em São Paulo. E que seu maior sucesso é Mamãe eu quero, neste caso uma alusão à infância corrompida dos usuários.
Do ponto de vista imagético, a banda é representada por cinco integrantes, todos apresentando um saco de papel ou plástico no nariz, lembrando ao leitor que cola de sapateiro é uma droga inalável. Além disso, o último dos integrantes da banda tem sua camisa remendada, e todos estão descalços, representando visualmente a pobreza. Para ressaltar a marginalidade, apenas um dos participantes possui cabelo. Os demais estão com eles raspados, em outra alusão à Febem, cuja primeira providência ao prender um menor infrator era raspar seus cabelos. Os olhos recheados de circunferências são uma forma de Angeli mostrar o estado de torpor e alucinação presentes nos usuários desse tipo de droga.
Com tais exemplos, podemos perceber a influência da música rock na sociedade brasileira, bem como nas entrelinhas do pensamento jovem no país. Angeli soube como poucos canalizar a influência do rock para criticar toda a sociedade brasileira, utilizando-se de duas grandes forças midiáticas – o rock e os quadrinhos – para dar ao jovem outras linhas de pensamento, outras formas de atacar a sociedade e criticar os erros por ela cometidos.



BIBLIOGRAFIA

ALEXANDRE, Ricardo. Dias de Luta. São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2002.

ARBEX, Jr. José. A Guerra Fria. São Paulo: Moderna, 1997.

BRYAN, Guilherme. Quem tem um sonho não dança: Cultura Jovem brasileira dos anos 80. Rio e Janeiro: Record, 2004.

LEITÃO, Miriam. A Saga Brasileira. Rio de Janeiro: Record, 2010.

PILAGALLO, Oscar. A história do Brasil no século XX : (1980/2000). São Paulo: Publifolha, 2006.

SERRA, José. A crise econômica e o flagelo do desemprego. In: Revista de economia política vol. 4 nº 4, outubro-dezembro 1984. Disponível em acesso em 28/09/2013.

SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988 (a).


Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.