O rosto do enigma

June 13, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: Etnografía, Pintura
Share Embed


Descrição do Produto

O rosto do enigma ou o gosto pelo enigma O Imaginário transmontano na obra de João Vieira1 Emília Ferreira

1. Primeiras linhas: a teia

Em 1984, uma exposição de João Vieira, na Galeria Arte Quadrum, em Lisboa, mostrava pela primeira vez uma série de Caretos, pinturas em que começara a trabalhar dois anos antes e que figuravam máscaras inspiradas nas usadas pelos rapazes de Trás-os-Montes, nos rituais de fim de Inverno. Na inauguração, houve também uma performance (registada num filme que passou a integrar a exposição), na qual o artista usava também a máscara, captando a persona, personificando a festa. Na exposição, as representações pictóricas de sua autoria, ou seja, as máscaras em duas dimensões, revisitavam – tal como a sua performance – e recriavam a tradição, retomando-a com o mesmo interesse, ironia e apetência festiva que sempre se manifestou na sua obra. Foi a primeira vez que João Vieira usou os caretos como inspiração. Mas não foi a última. Mas comecemos pelo princípio. João Vieira nasceu em Trás-os-Montes, mais precisamente em Vidago, em 1934. Veio cedo para Lisboa e cedo partiu para outras geografias – Paris, Londres – para estudar e trabalhar. Mas regressou sempre a Trás-osMontes. Sempre que a vida lhe correu mal e sempre que ela lhe correu bem. A esse território por trás do Marão, onde mandam os que lá estão, foi ele buscar não apenas as forças telúricas que são a imagem de marca dessa portentosa geografia como também o seu fascínio por uma tradição dinâmica, congregadora de várias expressões narrativas. Como o próprio deixou claro, em 1988, em entrevista a Jorge Fallorca, a originalidade que ele buscava vinha do aprofundado conhecimento da sua origem. Depois de estudos de Pintura na ESBAL (1951-53), integra o Grupo do Gelo, com José Escada, René Bertholo, Hélder Macedo e Herberto Hélder, entre outros, desenvolvendo

1

Texto publicado em Revista “Monumentos”, nº 32: Bragança, Dezembro de 2011, p. 112-115.

desde logo, no encontro com a poesia, as suas primeiras experiências “letristas”. A desilusão com o ensino das Belas Artes levá-lo-á a Trás-os-Montes, a um temporário abandono da pintura e à decisão de um retiro do país que o conduz a Paris, em 1957. Em 1959, já reconciliado com o acto criativo, expõe pela primeira vez na Galeria Diário de Notícias. Nesse mesmo ano, é-lhe atribuída a bolsa de estudos da Fundação Calouste Gulbenkian, que apoiará, em parte (e até 1961), a prossecução da sua estada parisiense. Entretanto, iniciara já colaboração com Arpad Szènes, bem como com René Bertholo e Lourdes Castro, com os quais funda o grupo KWY, cuja revista terá publicação entre 1958-64. Em 1962-63 encontra-se em Lisboa, trabalhando como docente na Escola António Arroio. Mas cedo volta a partir. Ainda em 1963, em Paris, aprofunda as ligações com a poesia e com o gestualismo, nutrido no convívio do grupo El Paso, de que fazem parte artistas como António Saura. Começa também estudos de teatro. Londres, aonde chega em 1964, proporcionar-lhe-á um amplo contacto com o meio artístico britânico, o alargamento da sua experiência docente – leccionando no Maidstone College of Art –, e a prossecução dos seus estudos teatrais. Essa experiência fará com que, no regresso a Portugal, dois anos mais tarde, comece desde logo a trabalhar em cenografia e encenação: estreia-se com a peça D. Quixote, de Y. Jamiaque, encenada por Carlos Avillez, no Teatro Experimental de Cascais. Essa criação valer-lhe-á, em 1968, o Prémio do Ciclo de Teatro Latino, Barcelona. Em 1973, encontra-se de novo em Londres, regressando apenas a Portugal no 25 de Abril de 1974. Então, retomará a docência, desta vez no IADE, na Sociedade Nacional de Belas Artes (Cursos de Formação Artística), e no Conservatório Nacional (Cenografia).

2. O cruzar das linhas: a trama

A sua transversalidade de interesses, que o levou, plasticamente, da história da arte à cultura popular de raiz pagã, como foi o caso da obra desenvolvida em torno dos caretos, e a sua apetência experimentalista, sustentada em contínuas pesquisas teóricas e prática

(nomeadamente de materiais2) e numa vasta cultura literária (João Vieira sempre foi um grande leitor) permitiu-lhe uma diversidade de exercícios plásticos e culturais pioneiros, nomeadamente no campo da performance (iniciando esta prática em 1970) e da instalação e nasce de uma memória fiadora de ficções. Das estórias da mãe, às criações literárias, até às portas abertas à narrativa através da pintura, João Vieira deixou sempre claro que era um mesmo fio que tudo unia. Na verdade, este é um autor que bem ilustra a interrogação com que Tim Ingold nos convida para a leitura do seu ensaio Lines: a Brief History. “What do walking, weaving, observing, singing, storytelling, drawing and writing have in common? The answer is that they all proceed along lines of one kind or another.”3 Com efeito, João Vieira sempre gostou de unir as linhas das diferentes narrativas. Ele próprio contador de estórias, revisitador de lugares (pictóricos, narrativos, musicais, teatrais, conviviais) ele sempre procurou que o exercício gnoseológico da sua abordagem ao mundo fosse, igualmente, um convite que abraçasse os demais. Por isso mesmo, ao longo de mais de cinquenta anos de carreira, João Vieira manteve sempre intacta a capacidade de transmutar a tradição em novas propostas. Fê-lo com a escrita – usando a palavra, a caligrafia, como pretexto pictórico – como também com a herança da pintura, como ainda com o legado popular dos rituais de passagem da sua terra. Se, em termos formais, o desenho parece unificar a obra, podemos também dizer que foi sempre o gosto da festa que o norteou, cosendo, com uma linha única e irreverente, todas as formas artísticas que praticou. Creio não ser exagero nem inverdade afirmar que João Vieira tinha, mais do que o gosto da festa, a apetência pela sua vivência ritual. Gostava do convívio com os amigos, acolhia os novos com enorme generosidade e tinha o prazer da troca, da partilha. O teatro que, como vimos, cedo entrou nas suas malhas de interesses, cruzou-se, na sua obra, com a

2

No início dos anos 70, João Vieira trabalhou como designer na fábrica de espumas Flexipol. O conhecimento desse material proporcionou-lhe o ensejo de o integrar nas suas obras. À espuma juntar-seiam ainda acrílicos, poliuretanos e tintas de automóveis, contribuindo para a criação de peças de dimensões, formas e usos inusitados, como letras que se vestem ou fragmentos de corpos que se mimetizam e se multiplicam, criando texturas, de que são exemplo as suas conhecidas mamografias. 3

O que é que andar, tecer, observar, cantar, contar estórias, desenhar e escrever têm em comum? A resposta é que todas estas acções procedem de algum modo linearmente. In INGOLD, Tom – Lines: a Brief History. Primeira edição. London and new York: Routledge, 2007, p. 1.

performance (que definia como uma forma de teatro de artista4), dilatando-a mais tarde a uma prática musical que registou em alguns concertos, em que interpretou um significativo repertório de boleros. A linha unificadora de toda a sua obra parece, por isso, ser essa narrativa essencial, diria mesmo re-ligiosa, num sentido etimológico, de re-ligação de todos os aspectos da vida – ou dos seus vários fascínios: a escrita, a música, o teatro, o espectáculo total de uma obra completa que tudo evoca, tudo mistura, tudo renova.

3. Os Caretos ou a narrativa como identidade

Em 2006, numa exposição no Museu Abade de Baçal, o artista voltava aos caretos. Entre a exposição de Lisboa e a de Bragança tinham passado mais de vinte anos e ao longo desse tempo muito se havia alterado na percepção desses signos da cultura popular. Além do trabalho inicial e fundador de Benjamim Pereira sobre as máscaras portuguesas 5, publicado em 1973, além da abertura em 1976 do Museu Nacional de Etnologia no qual o artista vira a significativa colecção de máscaras, havia ainda a contar as várias e posteriores incursões de antropólogos no território transmontano para estudar os fenómenos culturais nos quais as máscaras se integravam. Se inicialmente, e apesar do seu interesse pelo cubismo, as máscaras não chegaram a João Vieira pela via erudita da pintura, mas pela via popular, ritual, do uso 6, pode-se também afirmar que a sua apropriação erudita, por parte do artista, transmutando-as em pintura, teve a sua quota-parte de responsabilidade na atenção que estas mereceram, entretanto,

4

In LAPA, Sofia — «Caretos II. Conversando com João Vieira» in Instituto Português de Museus / Divisão de Divulgação e Formação, Maria Amélia Fernandes com o apoio de Michelle Nobre Dias e Nuno Fradique, — João Vieira. Caretos II. Bragança: Instituto Português de Museus, 2006, p.15. 5

Trata-se de PEREIRA, Benjamim – Máscaras portuguesas. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, Museu de Etnologia do Ultramar, 1973. 6 Na já referida entrevista conduzida por Sofia Lapa, João Vieira refere que o interesse pelos caretos lhe surge inicialmente em passeio pelo país, com o seu amigo Vítor Bandeira, “que era um explorador. E que contribuiu muito para a colecção de arte africana do Museu de Etnologia. Eu conheci-o antes de [19]74 e nessa altura comecei a interessar-me muito pelas coisas de que ele me falava, as coisas de etnografia e de etnologia. Foi aí que tudo começou. Foi com essas conversas. / Depois disso, conheci as máscaras portuguesas. E quando foi o congresso da AICA, em que o tema era a “Arte africana e arte europeia do século XX”, eu naturalmente pensei muito nessas coisas todas.”. In LAPA, Sofia, op. cit., p. 14.

por parte dos media, revalorizando mediaticamente um património que chegou a estar ameaçado pela desertificação e pelo preconceito em relação à ruralidade7. O pensamento criativo do autor pode não ter tido exactamente esse programa de revivificação da cultura em termos mais latos, mas teve seguramente uma apetência integradora, pessoal. É precisamente este o aspecto mais curioso da relação de João Vieira com essas máscaras tradicionalmente usadas pelos rapazes — e agora também já por raparigas — nas festas que anunciam o final do Inverno e o renascer das forças vitais: o facto de elas terem agido como elemento congregador da sua identidade. Em 2006, ele reiteraria essa ideia, revelando um pouco mais sobre o contacto essencial com os caretos, enquanto elementos narrativos e experiência da festa “foi como se começasse a estruturar o meu pensamento.”8 Com efeito, essa herança pagã, da terra, valor de uma ancestralidade feita de celebração, de ligação radical, integra-se na gramática, só aparentemente difusa, e na pluralidade de experiências, de media e referentes formais a que o artista nos habituou. Se, na sua obra, encontramos como aspecto estrutural a experimentação e a linguagem unificadora do fragmento, assumido como desenho, gesto, resíduo, e metamorfoseandose, sempre em novos sinais, os caretos sumarizam essa voz, ao reunirem num só objecto teatro, pintura e escultura. Simultaneamente artes plásticas e performativas, nó de uma identidade profunda, que assume o traço e o ritual como um bater do coração, eles são a força primeva e íntima da natureza, sob o manto do Inverno ou da morte, afirmando a arte como parte integrante da vida,, como símbolo do seu renascimento, da sua capacidade de renovação, recontando — re-habitando — as velhas estórias. É esta uma das vias para se ler o seu gosto pelos caretos, como pelos símbolos em geral, aí incluída a pintura, reclamando dela a sua face mais iminente e a sua teia mais obscura (veja-se a sua investigação dos painéis de S. Vicente, a sua recuperação do bestiário, do rinoceronte do Dürer e de tantos mais) que reanalisa e recria em múltiplas séries. Retomando memórias de infância, roubando (conceito que retirara de Francisco de 7

Sobre este assunto ver, por exemplo, a entrevista dada pela antropóloga Paula Godinho, do Instituto de Estudos de Literatura Tradicional, da Universidade Nova de Lisboa, em http://www.cafeportugal.net/pages/noticias_artigo.aspx?id=3091 [site consultado a 10 de Agosto de 2011], que remete não apenas para os estudos em curso como também para o interesse que tais manifestações culturais têm despertado na imprensa nos últimos anos. 8 In LAPA, Sofia, op. cit., p. 14.

Hollanda e que considerava delicioso) de Nuno Gonçalves e Grão Vasco, pintores com cuja obra privara quando muito jovem nas visitas aos museus, renovaria incessantemente os pretextos para reinventar as suas histórias. Trazer os caretos para um território que não lhes era familiar, quer em termos plásticos quer em termos performativos, mostrá-los a um público não iniciado, foi claramente metamorfosear e expandir a sua área de acção. Muito mais do que chamar a atenção para uma tradição ameaçada pela desertificação, foi, tal como com Nuno Gonçalves ou Grão Vasco, a acção de repegar na iconografia para a recriar, actualizando-a, refazendo-a com uma linguagem actual — tornando-a contemporânea. Falando a propósito dos caretos, diria o artista, ainda em 1988, na já mencionada entrevista a Jorge Fallorca: “Deixei de me preocupar tanto com as questões etnográficas. Todas as pesquisas que tenho feito têm andado à volta duma procura de originalidade. Do que está na minha origem, que me toca profundamente, faz parte do meu passado.”9 Na essência, como assim se percebe, tudo se congregou sempre em torno das histórias (essa espécie de eixo do mundo), vindo elas também de um passado em que a mãe lhe tecia narrativas. “O meu interesse em etnografia está relacionado com histórias que a minha mãe me contava. São pessoas, paisagens que eu conheço. A história dos Caretos, da máscara da Torre de D. Chama, estava relacionada com memórias e com a situação actual da minha vida privada. Se associo esses fantasmas, então aí é o meu campo de acção, é aí que tenho de intervir para tentar perceber o que me obceca.”10 Não é, com efeito, de somenos também o seu papel de renomeação dos caretos, ou seja, da reutilização e tomada de uma tradição para a voltar a convidar para a ribalta, introduzindo-a numa dupla tradição (pictórica e urbana, central) a que ela é inicialmente alheia. João Vieira fez com ela uma afirmação identitária e integrou-a na chamada grande arte. Representando-os geralmente isolados, como tema central da composição, eles surgem ocasionalmente agrupados, como painel de retrato colectivo, friso [veja-se Caretos, 1984], exibindo os mesmos traços largos e rápidos da sua pintura, e a inspiração que buscava nos mestres do passado, rasgando por vezes o vazio por onde eventuais olhos espreitaram ou tornando outras vezes opacas essas máscaras. 9

In FALLORCA, Jorge, “A História de João Vieira, Pintor”, in Europeu, 5 de Dezembro de 1988, p. 1617. 10 Idem, p. 16.

Ao longo dos anos, a sua revisitação do tema compreendeu também a inovação técnica. Além do humor, do duplo sentido, da multiplicação de sentidos, incluindo o sentido do jogo, a atenção aos novos materiais renovou os caretos dos meados da última década. E foi assim que a uma gramática cromaticamente marcada pelas presenças fortes dos vermelhos, negros, amarelos e azuis, se juntaram os painéis lenticulares que conferiam aos caretos um inesperado movimento, uma animação que lhes devolvia o enigma a que o hábito de nos confrontarmos com o silêncio e a fixidez da pintura nos poderia ter feito perder.

Para terminar, relembraria aqui que o que provavelmente melhor definirá o trabalho de João Vieira será o constante prazer da descoberta. Creio poder ser sido nesse sentido que, como há anos notou Hélder Macedo, a sua arte organiza alfabetos11, ao tecer e reorganizar visualmente as informações da superfície e da estrutura do mundo. Eis o processo, seja com a pintura como com os objectos. E assim João Vieira manteve, durante mais de cinquenta anos, intacta a sua capacidade de sedução. Como disse José Gil, “não há cristalização na arte de João Vieira. É uma arte que não crê no que diz, crê no que é. Irónica e séria, trágica e frívola, superficial e profunda, inefável e presente — todos estes pólos coabitam, mas são arrastados por um movimento maior que não se pensa, que apenas se vive num acto de alegria vital e inexprimida. Por detrás do que se mostra, o que se esconde, o que se perde — a afirmação de uma densidade trágica que troça de si própria num traço elegante, num gesto gratuito e inacabado.”12 Eu não diria melhor.

11

Cf. MACEDO, Hélder — “Quadros por letras”. In João Vieira: as Imagens da Escrita. Lisboa: MNAA, 1988, p. 9. 12 In GIL, José — “João Vieira”. In João Vieira: 25 anos de trabalho. 1959-1984. Lisboa: & Etc., 1985, p. 5.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.