O rosto na arte – breve estudo filosófico

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O rosto na arte – breve estudo filosófico Cristina Valéria Flausino1

Os Amantes, de Rene Magritte (1898-1967), é a tela que abre a galeria de imagens desta pesquisa, cujo objetivo é promover uma leitura das imagens do rosto na contemporaneidade. Como indicador do desejo de desvelar o rosto e descortinar horizontes, dentro do nosso projeto de doutoramento, o casal sintetiza, nesse limiar do projeto, uma busca de compreensão do rosto que Gilles Deleuze e Félix Guattari (1996) definiram como um sistema muro branco-buraco negro, no qual se opera um processo de rostificação, por meio da constituição de subjetividades pautadas pelas lógicas políticas e de poder que se instauram no raiar da modernidade. As imagens desta pesquisa provêm da arte, a leitura do sentido que produzem, da filosofia.

Figura 1 - OS AMANTES, 1928.

Trata-se de um rosto que não se define por raça, gênero ou idade, mas cujo modelo dominante é do europeu, branco, cristão, heterossexual, formatado durante um longo processo de facialização, de características culturais, como aborda Sloterdijk (2011) em Esferas I. Um rosto do qual, na nossa perspectiva, se desconhece uma face “original”, em virtude da sua reprodução massiva em capas de revistas, nos closes 1

Trabalho final da disciplina ARTE COMO FORMA DE PENSAMENTO, da prof. Dra. Carmem Sylvia Guimarães Aranha. Agosto de 2016.

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cinematográficos, que se modifica a cada nova personagem de novela. É o rosto da reprodutibilidade, da qual nos fala Walter Benjamin (2013) e que na experiência da imersão em mundos virtuais se torna superfície constituída de pontos gráficos, situação imaginada por Vilém Flusser (2008). Por um certo viés, buscamos problematizar esse processo de midiatização do rosto, que na perspectiva das teorias da comunicação, ocorre em face dos movimentos globalizantes e do desenvolvimento das relações sociais em contextos culturais dominados pela comunicação mediada. O rosto aqui é pensado em simbiose com a técnica, um rosto tecnológico, o qual se reconhece apenas pelos processos de facialização históricos e culturais. As cabeças envoltas de Magritte têm o sentido de aguçar nossa curiosidade em levantar os véus em busca do mistério que encerram. Tal qual os fantasmas que fascinavam o pintor e que foram eternalizados na sua pintura, esse rosto talvez seja incapturável, nunca possa ser desvelado, posto que jamais deveria ter construído – à semelhança de si mesmo ou do olhar que o fita. Como para Emmanuel Levinás, ainda que possamos ser elementos de uma mesma intercorporeidade, esse rosto simboliza uma alteridade que não posso alcançar, tampouco pode ser considerado uma variação ou projeção de mim. É um rosto que me deixa sem palavras, incapturável pela ciência, não faz parte de um sistema, “é um transcendente” (Levinas, 1954, p. 51 in Marcondes Filho, 2011, p. 19). Neste sentido, é um rosto se exprime sem conceitos, não possui conteúdo. Na linguagem de Levinas, ele está fora dos meus poderes, é intraduzível, jamais poderá ser englobado, apossado, compreendido (...) o rosto do outro é proximidade que não é sígnica, não remete a nenhum tema, mas que se apresenta apenas rastro de si mesmo, algo que me importuna, que não se iguala a mim (Marcondes Filho, 2011, p. 20).

Por outro lado, ao acobertar o rosto, asfixiá-lo com os véus, os Amantes também podem ser entendidos como uma negação de uma geografia onde se exprimem forças e afetos, como pensa o filósofo português José Gil (1997, p. 170). Como em Deleuze e Guattari, esse autor também pensa o rosto como fronteira capaz de externar aquele eu

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que habita nosso interior, que constrói sua subjetivação quando o olhar do outro rebate em si. Assim que se tornam “assustadoramente” reais aos olhos da mente2. À arte talvez caiba, nesta breve contextualização, o papel de desvelar esse rosto, ou como preferem Deleuze e Guattari, desconstruí-lo para que possa ser atravessado de devires, multiplicado, não como representação que remete a um único referente, mas para que ganhe fluidez frente aos enrijecimentos das significações, possa libertar-se dos véus que o encobrem, a fim de dar lugar “ao assignificante, ao assubjetivo, a traços de rostidade que escapam da organização do rosto” (Machado, 2009, p. 230). O Rosto de Munch No despertar do sono da razão, o rosto ganha a expressão de uma existência não racional. O expressionismo é um movimento de intensas emoções, revelam pessimismo, melancolia. Edvard Munch (1863-1944) talvez tenha dado o grito inicial. Na obra mais divulgada do artista, de 1893, O Grito surge de um corpo sinuoso e deformado, onde se veem duas mãos que apertam as faces e tapam os ouvidos, em expressão de medo, angústia, desilusão; o grito sai de uma boca em elipse, assim como olhos e nariz são apenas pontos escuros na tela. Menezes (1993), ao comparar as pinceladas de Munch à filosofia de Nietzsche, acredita que esse grito vem das profundezas do homem, quer dissolver as dicotomias existentes entre ele e as coisas. Para Munch, diz o autor, o mundo sente, o mundo grita, o mundo vibra em nós. Não parece mais haver a primazia do eu em relação ao mundo. Em um mundo que é constante movimento, processo interminável, onde as coisas sempre são em relação a o homem ao ser parte do mundo e não sujeito dele, por ser mundo e só ser no mundo, é percebido por Munch como em eterno devir (Menezes, 1993, p. 82).

Segundo Menezes, os temas que causaram dor ao artista – ciúmes, doença, solidão e morte – também foram usados para materializar os fantasmas que lhe apavoravam a existência. Como se vê na série Ciúme3, composta por pinturas e xilogravuras, esses sentimentos irão se manifestar acompanhados de um rosto, sempre o mesmo, que nos olha de modo perturbador, pintados ao longo de 40 anos. Com um

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In http://www.renemagritte.org/the-lovers-1.jsp. Acesso em 21 de julho 2016. Sem indicação de autoria. 3 Para uma galeria de imagens referentes ao tema Ciúme, de Edvard Munch, sugerimos ver: http://goo.gl/A7mWx5. Acesso em 27 julho 2016 ou ainda http://www.edvardmunch.org/.

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olhar sujeito a muitas interrogações, o Rosto (Menezes opta por grafá-lo com maiúscula), ainda que assuma feições diversas, nunca perderá suas características.

Figura 2- O CIÚME, 1895

Retraído, introspectivo, assustado, olhando como se visse algo pela primeira vez, Munch coloca o Rosto sempre em primeiro plano, em meio a uma massa escura, diz o autor, com um olhar fixo para fora da tela, enquanto um casal ao fundo estará entretido entre si, enamorado e indiferente ao que se passa ao seu redor. Nas primeiras telas, a mulher aparecerá nua, colhendo maças, como Eva no paraíso. O homem, sempre de costas, em todas as pinturas estará a cortejá-la. A cada novo estudo o Rosto assumirá um novo formato, será matizado com tons diferentes, terá um novo corte de cabelo, as expressões serão suavizadas, ora está mais largo, ora mais encovado, à esquerda ou à direita, mas ainda que Munch recrie o rosto, ele estará quase sempre “desterritorializado” dentro do jogo de planos criado pelo pintor (p. 84). Deslocado para um lugar indefinido, o Rosto é flutuante e, mesmo quando surge mais próximo do casal, como unido a eles, mantém uma expressão de fúria, produzida pelo ciúme e que irrompe, diz Menezes, dos olhos vermelhos que saltam na tela.

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Em 1907, o casal de enamorados ressurgirá, agora no interior de uma sala, em pé na soleira de uma porta, onde se entrelaça num beijo profundo. “Pela primeira vez não é o Rosto que sempre apareceu, pois tem feições muito mais sumárias e esboçadas”, escreve Menezes (p. 86). Segundo ele, nesta versão, a sedução se transforma em ato físico e o Rosto aparece no mesmo espaço físico que o casal. “Mas, a densidade sensitiva do ciúme, que deveria reforçar-se, ao contrário, aparece esmaecida. As cores quebram a profundidade emotiva, a tensão, a depressão e o retraimento, ressaltando por outro lado, o entusiasmo do casal, um contraste ao isolamento do Rosto” (idem).

Figura 3 - O CIÚME, 1907

Figura 4- O CIUME, 1907

No último óleo, quase 40 anos depois do primeiro, Munch retomará o tema e o Rosto ganhará um corpo (da cintura para cima, em azul) ainda que suas faces continuem pálidas como sempre estiveram. O cenário desaparece, surgem borrões de cores em tons escuros e as três figuras ocupam a tela por inteiro, mas é por pouco tempo que Munch dará ao Rosto a oportunidade de estar no mesmo plano do casal. Para Menezes, a leveza dessa última obra se contrapõe à profundidade depressiva de 1895 “e não se pode negar que tudo mudou”. Ao voltar repetidas vezes ao mesmo tema, diz o pesquisador, podemos ver que o mundo para Munch é multiplicidade de ocorrências, não como uma lei ou escrita determinada, nem como um arranjo dotado de vontade e organização própria. O mundo é pluralidade de sentidos, as realidades são criadas a cada nova interpretação, somente o rosto é sempre o

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mesmo, como se se apercebesse de que esse não pode ser mutável. Ao contrário, o rosto é inquietação, interrogação, surpresa, se incorpora à cena, mas é imutável.

Figura 5- O CIUME, 1935

Munch influenciou Picasso, artista que levaria a arte à expressão de um novo rosto, redesenhado sob as intensas mudanças que se operaram no início de século XX e que seriam determinantes para uma nova percepção do homem moderno. Com seu traço inconfundível, o cubismo e suas influências primitivistas darão ao rosto uma figuração reveladora de que as formas de representação já não podem mais expressar o rosto de modo fidedigno. Metamorfoses da alma humana No verão de 1906, Pablo Picasso (1881-1973) se aproxima de George Braque e juntos iniciam uma parceria que irá resultar num dos mais importantes movimentos da arte moderna, o cubismo, “uma linguagem baseada na fragmentação do espaço pictórico em planos determinados pela simultaneidade de pontos de vista”4. As paisagens se tornam monocromáticas; os cinzas, ocres e pretos dominam também os retratos, cujos traços são angulosos, pontiagudos, perdem a profundidade ou a

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Pablo Picasso. Acervo MAC/USP – Roteiros de Visita. http://www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/roteiro/pdf/37.pdf. Acesso em 25 de julho de 2016.

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perspectiva. Destruição da harmonia, decomposição da realidade, multifacetada nos seus tons cromáticos. Por outro lado, Pablo Picasso também já percebia o esgotamento da tradição artística europeia e iria buscar nas máscaras ritualísticas das culturas ibero-americana e africana, inspiração para criar novas formas de representação da figura humana. Pouco depois, os dois veios se reúnem: o esforço da simplificação ganha corpo com o contato com as artes da África Negra e do Pacífico Sul. Mais ou menos nesse momento, Picasso dará início ao processo de criação do quadro As Demoiselles d’Avignon (1907), que teria ocupado cerca de 16 cadernos com esboços.

Figura 6- LAS DEMOISELLES D'AVIGNON, 1907

Possivelmente o primeiro exemplar do cubismo, o quadro apresenta cinco mulheres nuas cujos rostos fazem uma radical ruptura com a composição tradicional: Picasso compõe suas figuras em pequenas partes, como quem junta cacos estilhaçados. As mulheres comprimem-se num mesmo espaço, mas como observa o crítico de arte Leo Steinberg, no seu artigo de 1972, The Philosophical Bordel, elas são “terrivelmente individuais” 5. No lugar dos rostos, Picasso pinta as máscaras africanas que o teriam influenciado. “Máscaras de horror”, diz o texto da Revista Piauí 6, no centenário da obra.

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Steinberg, L. (1988). The Philosophical Brothel http://www.jstor.org/stable/778974. Acesso em 25 de julho de 2016. 6 http://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-centenario-das-senhoritas/ Acesso em 26 de julho de 2016.

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Muito além de prenúncio à abstração cubista que está por eclodir, Steinberg acredita que o quadro de Picasso descortina uma vista assombrosa da psique humana e, em especial, da natureza ambígua da vida sexual 7; as senhoritas são femininas e masculinas, graciosas e monstruosas, “imagem dialética, síntese compositiva de contrários que não se anulam nunca: o ibérico e o africano, para começar, mas também a figuração e a abstração, primitivismo e cubismo, graça e horror, clássico e moderno” (Piauí, 2008, s/n).

Figura 7- REPRODUÇÃO E DETALHE DAS SENHORITAS DE PICASSO

Uma dialética que – talvez até tardiamente – é retrato do homem moderno. O cubismo reflete a desconstrução do sujeito que se esboça em campos diversos do conhecimento e se manifesta na arte. Esse movimento ganharia força no surrealismo, sob influência de Freud, Marx, Nietzsche. Nunca mais o sujeito seria o mesmo; sua psique é confusa, conturbada e misteriosa; ele é dominado capitais maiores que a dele e os seus deuses estão todos mortos. Em nossa pesquisa, esse fenômeno associa-se ainda ao acirramento das relações com a técnica, que jogam o homem para a periferia dos acontecimentos, o que iria despertar as profundas reflexões dos pensadores de Frankfurt. Na sua nova condição, o rosto já não pode ser representado apenas na perfeição da sua aparência; a translúcida camada que o reveste foi para sempre removida, exceto pelas emergentes técnicas de reprodução da imagem, como no cinema e na fotografia, que agora encantam o mundo.

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Em alguns esboços, uma ou duas figuras eram masculinas; há diversas versões para o nome do quadro, uma das mais aceitas diz que o nome foi dado por um amigo e faz referência a uma rua de Barcelona, onde existia um bordel.

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Um exemplar desse novo rosto (abaixo) pertencente ao acervo do MAC/USP. Segundo os autores do catálogo de visita ao museu, as figuras de faces duplicadas ou ambíguas pintadas por Picasso se tornarão mais frequentes a partir da segunda metade da década de 1920. Além de uma visão simultânea das muitas partes que compõem o rosto humano, Picasso passa a expressar o desejo de examinar os rostos “como num jogo expositivo de suas possibilidades psicológicas e expressivas” (nota 4), o que ele obtém por meio de interpenetrações e oposições de planos.

Figura 8 - FIGURA, 1945

O jogo de imagens, a superposição de múltiplas visões da face invoca a pluralidade da alma humana. Figuras segue a tradição do retrato, na qual o rosto ocupa o espaço central e se destaca em primeiro plano. Porém, apresenta pouca modulação dos volumes, o traço é de grossas linhas pretas, e chama atenção um acentuado contraste, obtido pelas cores cubistas. Como se fossem dois rostos que se fundem em um só, complementares, eles se entreolham, estão de frente e ao mesmo tempo de perfil. Fazem alusão ao masculino e ao feminino, Yin e Yang, ao que contém e ao que está contido. O rosto já não é uma única peça, monobloco, é fusão, quebra-cabeças.

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A leitura da obra torna-se mais complexa na medida em que se compreende que o esquematismo das faces não é apenas uma depuração ou afastamento das formas naturalistas, mas recriações de Picasso, com referências à história da arte. Figuras é uma construção artística reveladora da experimentação cubista, que faz o devido reconhecimento das tradições como fonte e origem do conhecimento pictórico. No entanto, para compreender a operação engendrada por Picasso em suas metamorfoses da forma humana, é preciso ... considerar que a morfologia deste artista é, de certo modo, uma síntese entre a vanguarda e a tradição, reflete o conflito do homem moderno que tende a se fragmentar, mas quer reencontrar sua unicidade em um novo equilíbrio possível de suas alteridades (nota 4).

Figura 9- O BEIJO, 1969 e RETRATO DE MULHER.

Neste beijo, o melancólico azul faz fundo para um beijo sem paixão, sem força, sem sangue, sem carne, escreve a filósofa Larissa Couto8. Para ela, O beijo cubista de Picasso traduz a experiência da geometria na emoção. “Tudo é pensado, é preciso estar disposto a ver de modo diferente, estar ciente do que acontece. A vida está sem vivacidade, sem amor, sem sentimentos, sem fruição”. Já em Retrato de Mulher, o rosto rígido e impessoal é uma superfície lisa, esbranquiçada, um olho é um buraco negro, enquanto o outro se esboça sobre o muro. Está a todo vapor a máquina abstrata da rostificação. Máscaras e retratos Há entre os dois uma longa associação. “A máscara facial requer uma atenção especial”, diz Belting (2007, p. 44). Em Antropologia da Imagem, o autor nos diz que a

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O Beijo Cubista. Larissa Couto. Disponível em http://lounge.obviousmag.org/transfigurar/2012/05/obeijo-cubista.html. Acesso em 01 ago 2016.

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máscara tem uma relação mutante com o rosto, não podendo reduzir-se às ideias de ocultamento ou revelação. A finalidade de uma máscara seria e de criar um rosto para cumprir um papel social. Ao estilizar o rosto natural, as máscaras fazem uma “correspondência à codificação plasmada por ela” (p. 47). Esculpidas para serem utilizadas em rituais sociais ou religiosas, o crítico Ola Balogun (1977), lembra que toda vez que a arte africana foi utilizada como exemplar de técnicas de representação das formas (como o fizeram os cubistas), executou-se também uma separação entre as formas e todo o corpo de crenças que torna tais formas admissíveis num dado contexto social. Como consequência, o resultado foi uma arte abstrata e intelectual, “desprovida, ao fim e ao cabo, da vitalidade e da continuidade que caracterizam a escultura africana tradicional” 9 (s/n). Segundo Balogun, não se pode isolar a máscara do seu meio, “tal como o fazemos ao isolar a madona da igreja”, diz ele. A máscara não é um ídolo, nem sequer a imagem da própria pessoa ou de um deus, mas sim uma representação ou uma expressão esculpida”. Quando Picasso “substitui” o rosto por máscaras, segundo as teorias de Belting (e aqui ele se apoia em George Bataille), as máscaras estariam fazendo a representação de rostos vistos sem máscaras, mas, de acordo com sua função na cultura africana, esses novos rostos estão fora do seu contexto.

Figura 10-NOIRE ET BLANCHE, 1926

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Ola Balogun - Formas e Expressões na Arte Africana. Disponível em http://afrologia.blogspot.com.br/2008/03/formas-e-expresses-na-arte-africana.html. Acesso em 01 agosto 2016. (Texto original publicado em Introdução à Cultura Africana, Lisboa, Edições 70. 1977).

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Neste ponto talvez encontremos algumas das origens da profunda cisão entre imagens de culto e imagens midiáticas, tão bem representada pela antológica fotografia de Man Ray (1890-1976). A conhecida modelo de Montparnesse, Alice Prin, simboliza nesta imagem o rosto ocidental construído pela Modernidade, com sua alvura e beleza e que, num momento de descanso ou de esgotamento de si mesmo, se “despe” da sua primitividade; passa do negro para o branco, do primitivo para o moderno, da selvageria do inconsciente para a racionalidade da consciência. Por outro lado, a foto de Man Ray exibe um rosto que, se feita certa analogia, utiliza-se das máscaras como meio para construir sua identidade social e se comunicar com o mundo à sua volta. Capazes de fixar no rosto uma imagem única e determinante, as máscaras teriam, sim, o poder de minimizar a mímica viva do rosto, assim, o que se torna visível não é o rosto que possuímos, mas aquele que foi transformado em imagem e que como tal pode ser lido simbolicamente. “As máscaras podem então ser lidas como os retratos na Modernidade, estreitamente ligados à questão da imagem que projetam” (Belting, 2007, p. 48-49) e que irão ganhar suprema relevância no mundo da técnica e das relações mediadas pelas tecnologias da comunicação. Rosto modelado sobre o muro branco. Subjetividade plasmada pela máscara. O devir de Bacon O pensamento de Gilles Deleuze encontrou expressão na pintura de Francis Bacon, artista cuja obra exerceu grande fascínio sobre o filósofo. O corpo construído socialmente e a máquina da rostificação levam o filósofo a defender (e aqui ele se apoia em Artaud) que o rosto deve ser “destruído, desfeito, desorganizado, para dar lugar ao assignificante, ao assubjetivo, a traços de rostidade que escapam da organização do rosto” (Machado, 2013, p. 230). Impressiona o filósofo o despojamento da função figurativa, o rompimento com os laços da representação; quando faz retratos ou mesmo animais e paisagens, a pintura de Francis Bacon é descrita como “devir”: enlaçamento de duas sensações, encontro entre dois reinos, conexão entre heterogêneos; semelhanças que são indiscerníveis, zonas de indistinção, de indeterminação, uma desterritorialização conjugada” (idem).

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Bacon não distingue o rosto, pinta o que Deleuze chama de corpo sem-órgão, faz surgir traços animais na cabeça da figura humana. Com a obra de Bacon, Deleuze nos permite aprofundar a ideia de que a arte é captura de forças e não reprodução ou invenção de formas, assim como o corpo é carne, intensidade, sensação (idem, p. 233 – 234). Para Deleuze, Bacon produz sensações de diferentes ordens ou níveis, que mudam de um lugar a outro, como no movimento, e quando duas sensações diferentes se acoplam, produzem ressonância, que provém das sensações sobrepostas, dos entrelaçamentos. Há, portanto, uma relação importante entre a sensação e as forças. As artes têm como objetivo captar, capturar forças. A música deve tornar sonoras forças insonoras. A literatura, tornar dizíveis forças indivisíveis. A pintura, tornar visíveis forças invisíveis (Machado, p. 238).

Figura 11- RETRATO DE HENRIETTA MORAES, 1943

Isolamento, deformação, dissipação, acoplamento, separação, forças do tempo. Como Cézanne, que deu potência vital à sensação visual, Deleuze vê na pintura de Francis Bacon a coexistência de movimentos (Idem, 239). Bacon de fato não pinta um rosto, ele pinta cabeças, e as cabeças fazem parte do corpo, esse que abriga todas as sensações, corpo fenomenológico. O destino do homem é, para Deleuze, desfazer o rosto e as rostificações e tornar-se imperceptível 10. Nas pinturas de Bacon, esse espaço

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Figura e Corpo http://avafilosofia.blogspot.com.br/2010/09/para-refletir-sobre-processocriativo.html. Acesso em 01/08/2016.

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que chamamos de rosto, sofre uma “agitação”, aparece descarnado, ele trava uma luta contra os traços da rostidade, suas linhas são de fuga.

Figura 12- TRÊS ESTUDOS PARA AUTORRETRATO, 1980

O terceiro rosto Em Esferas I, o filósofo alemão Peter faz uma extensa defesa de um processo de facialização que dominou o ocidente pelo menos desde os césares do antigo Egito, quando se cunhava a face dos soberanos nas moedas correntes. Enquanto Deleuze considera que o modelo se instaura a partir do Cristo – o texto a que temos feito referência se chama Ano Zero – Rostidade, Sloterdijk defende que a facialização percorreu um longo caminho, desde quando nossos ancestrais deixaram a vida nômade e o reconhecimento do rosto foi-se tornando necessário à formação das primeiras comunidades humanas. Para ele, esse entreolhar-se constituiu-se desde sempre num jogo bipolar interfacial, no qual o filósofo tece sua longa tese sobre a vida em esferas. Na pintura de Giotto (1266-1337), quando Ana e Joaquim se reencontram nas portas douradas de Jerusalém, se abraçam e se beijam ternamente, cúmplices do segredo que carregam, “seus rostos formam um círculo comum de felicidade; flutuam numa esfera bipolar de íntima aceitação mútua, fundada numa esperança de matizes diferentes para cada um e em um projeto comum de futuro pleno e satisfeito” (2011, p. 142). Para o autor, Giotto consegue, com o beijo dos futuros pais de Maria, que se reconheçam mutuamente como vasos comunicantes de tarefas e destinos comuns. 14

Figura 13 - ANA E JOAQUIM NAS PORTAS DOURADAS DE JERUSALÉM

A união do rosto de Ana e Joaquim faz surgir um terceiro rosto, supostamente daquele que viria a ser o filho de Maria. Neste encontro, produz-se um inquietante jogo: a alusão de uma nova vida que começa a agitar-se no corpo de Ana antecipa as noções de visível e invisível que serão vistas em Velázquez, na leitura de Foucault sobre As Meninas. Para Sloterdijk não se trata apenas de uma narrativa teológica, mas de um rosto que reclama o privilégio do seu lugar, que quer tornar-se visível dentro do espaço interfacial. Neste ponto, o autor encontra-se com Levinas: o rosto do outro é uma incógnita que nos mantém despertos (idem, p. 144). Para Sloterdijk, muito antes de se imporem os axiomas da abstração individualista, os filósofos-psicólogos, desde a tenra Modernidade, já sabiam que o espaço interpessoal está saturado de energias que, concorrendo simbiótica, erótica e mimeticamente, desmentem radicalmente a ilusão da autonomia do sujeito. “La ley fundamental de la intersubjetividad, tal como se concibió em la época premoderna, es la de la fascinación del ser humano por outro ser humano” (idem, 197). No entanto, em algum momento (o qual essa pesquisadora não sabe precisar) teria ocorrido um desligamento esférico, o jogo bipolar interfacial é rompido, o sujeito é individualizado e, no lugar das esferas de conformação íntima, no qual coabitam amorosamente muitos rostos, surgiram as bolhas, os invólucros impermeáveis, as máscaras. Para o filósofo, a autonomia do sujeito é uma sublime ficção, um sonho de 15

dominação sobre si mesmo, motivado pelo pensamento, desde tempos remotos, de que o sábio não se deixa penetrar, posto que se reconhece a si mesmo e não necessita de nenhum “olhar soberano”. Não em vão, diz Sloterdijk, o novo espaço característico do mundo midiático é uma interface que já não designa o espaço de encontro entre rostos, mas um ponto de contato entre um rosto e um não-rosto ou entre dois não rostos (idem, 179). Disso deriva, prossegue o autor, em novos procedimentos da estética facial nas artes plásticas. Retratos, muito além da expressão de “algo mais”, irão se converter em próteses póshumanas. Ele usa expressões da língua francesa para falar dessa passagem do portrait para o détrait: um rosto “depreciado”. Porém, diferente de Deleuze que vê nos quadros de Francis Bacon uma vitalidade, linhas de fuga contra os processos de subjetivação da Modernidade, Sloterdijk fala de uma deformação do rosto na pós-modernidade que produz uma desesperança “sin lágrimas”, como nas imagens de Irene Andessner: o rosto tornou-se frio, nada expressa.

Figura 14- CYBERSPACE, 1988

Especializada em autorretratos, a austríaca Irene Andessner (1954) reproduz nessa sequência (instantâneos de um vídeo) um androide inspirado no filme Blade Runner. Ela é uma espécie de cobaia para o trabalho de manipulação, que se baseia na ideia de seres humanos “manufaturados”, inteligentes, fortes, bonitos. Faz uma correspondência ao desenvolvimento da tecnologia computacional, motivado pelas fantasias das pesquisas genéticas. Ela se alimenta por um chip, tem um software que

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controla o corpo, de fato, um grande hardware. Ela é uma conquista da engenharia, nascida nas telas de um monitor, animada por 3D, design orgânico. Mas, o que estaria Andessner também querendo com esse desejo de mutabilidade dos seres humanos reais? Fundirem-se às máquinas para, enfim, conseguir a invencibilidade contra as forças da existência?

Rosto-síntese A mulher-robô de Andessner é a síntese dessa leitura, com seu rosto simbiotizado com a técnica, em duplo sentido – é imagem técnica e expressa na imagem as relações com a técnica. Recorte cultural das nossas percepções acerca do rosto na contemporaneidade, a imagem converge para o tema central desta investigação cujas origens residem na observação de um fenômeno que se opera sobre as mulheres na nossa época, sistematicamente submetidas a procedimentos estético-cirúrgicos, na eterna busca de beleza e manutenção da juventude. O rosto paralisado dos procedimentos que tentam barrar o tempo. Mas, não só isso. Se baseia ainda numa ideia, de caráter filosófico como tentamos demonstrar, de que o rosto – esse portal pelo qual nós nos reconhecemos e somos reconhecidos – em face das técnicas de reprodução da imagem, anteriores até a fotografia, tornou-se um objeto do próprio homem, irreconhecível a si próprio. Das telas dos grandes artistas da história da arte para a fotografia e outras formas de reprodução da imagem, as imagens dos rostos saltam dos canvas para as telas dos smartphones. Nunca se retratou tanto. Desde o surgimento do espelho, fenômeno mais ou menos recente na história da humanidade, nunca o ser humano olhou tanto para si mesmo, são os narcisos que buscam desesperadamente seus reflexos, mas a imagem é sempre a mesma, e ela se repica, e se repica porque é preciso continuar clicando, buscando a imagem perfeita, como o fizeram os grandes nomes da arte da representação. Os novos retratos são as novas bolhas de Sloterdijk, os muros brancos de Deleuze. Estão todos em busca de uma paisagem, uma paisagem tecnológica. Só a arte, com as suas linhas de fuga, para nos salvar dessa infinita repetição.

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Referências Bibliográficas

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