O saber compartilhado nas águas do feminino profundo (TCC de Especialização em Jogos Cooperativos, 2012)

May 18, 2017 | Autor: L. Salvo Guarani ... | Categoria: Cooperação, Meio Ambiente, Derecho de Aguas, Sagrado Feminino
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CENTRO UNIVERSITÁRIO MONTE SERRAT

Neusa Helena Rocha Barbosa Liliana Vignoli de Salvo Souza

O SABER COMPARTILHADO NAS ÁGUAS DO FEMININO PROFUNDO

Brasília 2012

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Neusa Helena Rocha Barbosa Liliana Vignoli de Salvo Souza

O SABER COMPARTILHADO NAS ÁGUAS DO FEMININO PROFUNDO

Trabalho

de

Conclusão

de

Curso

apresentado ao Centro Universitário Monte Serrat

como

exigência

parcial

para

a

obtenção do Título de Especialista em Jogos Cooperativos

Orientadora: Vera Catalão Co-orientadora: Alexandra Reschke

Brasília 2012

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B238s

Barbosa, Neusa Helena Rocha, 1961-. O Saber compartilhado nas águas do feminino, Neusa Helena Barbosa e Liliana Vignoli de S. Souza – Brasília: [s.n.], 2012. 109 f. (total de folhas): il.color; 30cm. Trabalho de Conclusão de Curso (Pós-Graduação) - Centro Universitário Monte Serrat, Ano. 2012 Curso: Jogos Cooperativos Orientadora: Profa. Dra. Vera Catalão 1. Água. 2. Feminino Profundo 3. Cooperação. I. Catalão, Vera. II. O saber compartilhado nas águas do feminino.

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NEUSA HELENA ROCHA BARBOSA LILIANA VIGNOLI DE SALVO SOUZA

O SABER COMPARTILHADO NAS ÁGUAS DO FEMININO PROFUNDO Trabalho

de

Conclusão

de

Curso

apresentado ao Centro Universitário Monte Serrat

como

exigência

parcial

para

a

obtenção do Título Especialista em Jogos Cooperativos.

Orientadora: Vera Catalão Co-orientadora: Alexandra Reschke

BANCA EXAMINADORA: ______________________________________________________________ Nome do examinador: Vera Catalão Titulação: Phd em Ciências da Educação Instituição: Universidade Paris VIII _______________________________________________________________ Nome do examinador: Alexandra Reschke Titulação: Especialista em Investigação Apreciativa, Democracia e Cultura Participatica, em Biologia Cultural e em Jogos Cooperativos. Instituição: Weaterhead University, Unindus e UNIMONT. Local: Centro Universitário Monte Serrat – UNIMONTE

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DEDICATÓRIA A todas as mulheres que cultivam o feminino, em especial àquelas que estiveram conosco na vivência do círculo de diálogo proposto para a execução desse Trabalho de Conclusão do Curso. Às águas que passam pelo Córrego do Urubu, juntam-se a outras águas do cerrado e seguem seu fluxo até chegar ao mar. Aos todos aqueles, homens e mulheres, que dedicam a sua vida à causa socioambiental por entenderem que somos unos com a natureza.

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AGRADECIMENTOS Aos nossos maridos, companheiros de jornada que nos inspiram a valorizar o masculino e o feminino em nós. Às nossas crias, sejam filhas, filho ou projetos de vida que geramos e vemos crescer como frutos de nossas vidas. À nossa querida orientadora, Vera Catalão, que com a sua sabedoria e amor pelas águas nos inspirou e continua a nos inspirar a agir percebendo a água como uma matriz ecopedagógica. Aos amigos Alexandra Reschke e Ricardo Burg que se colocaram à disposição para nos coorientar, mesmo diante das atribuições e responsabilidades assumidas em outras esferas de suas vidas. À amiga e protegida Elisa Sette que, invertendo os papéis, exerceu a função de anjo, cedendo a sua casa para a realização da roda de diálogo com as 13 mulheres. Aos focalizadores e focalizadoras da Pós-Graduação em Jogos Cooperativos que também nos inspiraram durante toda a formação e foram referências nesse trabalho. Ao grupo de mulheres que nos deu a oportunidade de aprender sobre a relação entre a água, o feminino profundo e a cooperação, e poder expressar isso neste TCC. Às nossas ancestrais, fontes da nossa vida e saber, a nossa eterna gratidão.

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A VIDA Há tantas definições da vida Bonitas, tristes, expressivas, inexpressivas Alguns já definiram a vida como um mar Um mar revolto, encapelado De ondas violentas De naufrágios e tempestades Um mar tempestuoso. Outros definiram a vida: um rio O rio é minha definição da vida O rio imenso, farto, Com suas corredeiras, sobretudo E sobretudo com seus remansos. Porque todo o rio tem a sua veia corrente O seu veio de corredeiras e tem o seus remansos E toda corredeira lança tudo para o remanso O remanso aproxima-se da margem. Da corredeira ao remanso, uma eternidade Do remanso à margem, um pulo. A ânsia dos moços que vão pela correnteza A compreensão, a filosofia dos velhos lançados no remanso E passados para as margens. Eu fiz a travessia da minha vida, do rio da minha vida.

Cora Coralina

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RESUMO O trabalho busca entender as relações singulares entre o feminino profundo, a água, as questões ambientais e a cooperação. Como a cooperação pode ser utilizada para fomentar uma conversação sobre o feminino, a água e o meio ambiente e criar uma comunidade de aprendizagem?

O que o feminino, a água, o meio ambiente e a

cooperação têm em comum? O estudo tem por objetivo investigar a relação entre os temas a partir do olhar de um grupo de treze mulheres e identificar como a cooperação colaborou com a construção coletiva de um texto que realizou a interconexão entre as temáticas, gerando novas reflexões e aprendizados. Nessa perspectiva, a cooperação deve ser vivida para que se supere a lógica competitiva e exploratória da natureza que se baseia numa visão patriarcal, antropocêntrica e predatória. Para se conhecer o que pensavam as mulheres sobre o assunto, realizou-se uma vivência que tinha como objetivo estabelecer relações entre a vida das mulheres e o percurso de um rio, contação de história e a construção coletiva de um texto. A partir das atividades cooperativas e dialógicas realizadas, percebeu-se que a sabedoria coletiva do grupo foi impulsionada, propiciando novas aprendizagens. O resultado da pesquisa demonstrou a vinculação entre o princípio feminino, a água e a cooperação.

Palavras-chaves: Cooperação, água, círculo de aprendizagem e feminino.

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ABSTRACT The work seeks to understand the unique relations between the inner female, the water, the environmental issues and cooperation. How cooperation can be used to foster a conversation about the female, water and the environment and create a learning community? What the female, the water, the environment and cooperation have in common? The study aims to investigate the relationship between the themes from the look of a group of thirteen women and identify how the cooperation has collaborated with the collective construction of a text that held the interconnection between the thematic, generating new reflections and learnings. With this in mind, cooperation must be lived in order to overcome the competitive logic and exploratory nature which is based on a patriarchal anthropocentric vision, and predatory. To know what they thought women on the subject, an experience which had as its goal to establish relationships between women's lives and the course of a river, storytelling history and collective construction of a text. From cooperative activities and dialogical performed, it was realized that the collective wisdom of the group was driven, providing new learning. The result of the research demonstrated the link between the feminine principle, the water and the cooperation.

Keywords: cooperation, water, learning circle, female.

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LISTA DE IMAGENS

Imagem 1-Fotografia Neusa.................................................................................... Imagem 2- Fotografia Lila........................................................................................ Imagem 3- Convite para a participação na vivência................................................. Imagem 4 - Desenhando o rio da vida....................................................................... Imagem 5- Desenhando o rio da vida....................................................................... Imagem 6 - Cachoeira e o desenho da micro bacia do córrego do Urubu................ Imagem 7- Produção em dupla................................................................................. Imagem 8- Produção em quarteto............................................................................. Imagem 9 – Construção do texto coletivo................................................................. Imagem 10- Construção do desenho coletivo........................................................... Imagem 11- Desenho finalizado............................................................................... Imagem 12- Desenho de Margarida......................................................................... Imagem 13- Representação de Camila..................................................................... Imagem 14- Representação de Renata..................................................................... Imagem 15- Representação de Clara........................................................................ Imagem 16- Representação de Amália..................................................................... Imagem 17- Representação de Joana....................................................................... Imagem-18- Desenho coletivo..................................................................................

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SUMÁRIO Memorial........................................................................................................... Introdução.........................................................................................................

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CAPÍTULO IQUAL O LEITO DO RIO POR ONDE CORREM AS NOSSAS ÁGUAS?............................................................................................................ 19 1.1. Epistemologia da cooperação...................................................................... 1.2 A questão Ambiental, a água, o feminino e suas inter- relações............. 1.2.1 A questão Ambiental, uma questão primordial.................................... 1.2.2 Água, o primeiro fundamento.............................................................. 1.2.3- Redescobrindo o caminho do feminino profundo a partir do curso de nossa própria história.........................................................................................

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CAPÍTULO-II- QUAL O CAMINHO DAS ÁGUAS....................................... 1.2. No fluxo das águas, conferindo a rota: o relato da oficina........................................................................................................... 2. O início.................................................................................................... 3. Oficina Rio da Vida................................................................................ 4. História da La Lhorona........................................................................... 5. Almoço.................................................................................................... 6. Texto colaborativo................................................................................... 7. A expressão artística do texto feita de forma coletiva............................

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CAPÍTULO III- ENCONTRO DAS ÁGUAS: Interpretações existenciais do percurso vivido..................................................................................................... 75 3.1 Primeiro momento: Rio da Vida e Contação de História............................. 3.1.1 Sobre o feminino..................................................................................... 3.1.2 As Águas................................................................................................ 3.1.3 Sobre a Cooperação................................................................................ 3.2 Segundo Momento: Análise do texto coletivo.............................................. 3.2.1 Afinal o que o grupo entende por feminino profundo?.......................... 3.2.2 Qual o olhar sobre a água?..................................................................... 3.2.3. Qual o valor da cooperação?................................................................. 3.2.4. A Arte fala por si só............................................................................... REFLEXÕES FINAIS......................................................................................... REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................

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MEMORIAL QUEM SOMOS NÓS? QUAL A NOSSA PRAIA?

Imagem 1- foto Neusa

Na linha matrilinear sou filha de Neide, neta de Neusa e bisneta de Dona Maroca. Todas nordestinas e experimentadas na lida diária. Tenho o nome de minha avó e acho que herdei muito mais que o seu nome, herdei sua perseverança, seu senso de justiça e sua capacidade de se impor nesse mundo. Sou a terceira de cinco filhas e, como filha do meio, tive um duplo desafio. O de me afirmar como mulher, quando o desejo dos pais era que eu chegasse como homem, e de me fazer notar sendo a filha do meio num grupo de mulheres que chegaram com muito pouco tempo de diferença. Nessa jornada nasci como filha de pai. Assim como a deusa Atena que sai armada da cabeça do pai, me fiz a sua filha predileta. Guerreira e amiga de guerreiros. Amante da leitura e querendo ser sábia, quem sabe um dia?... Mas, no meio do caminho deparei-me com as deusas Deméter (maternidade) e Afrodite (amor). Nesses encontros vi o quanto precisava aprender. Eu venho de um lugar cercado de dunas brancas, onde as águas do mar são mornas e a brisa tem o cheiro da maresia. Venho dos verdes mares bravios e sei que, de alguma forma, pareço-me com ele. É disso que me constituo. Adoro o mar e tudo o que o compõe. Apesar de ter nascido em terras áridas, sempre estive perto das águas salgadas. Até que cheguei ao berço das águas doces e frias, no cerrado. Hoje moro em Brasília e quando olho para o céu me lembro da vastidão do mar.

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Hoje, com a metade do caminho percorrido, estou namorando as águas doces, os rios e cachoeiras que correm pare desaguar no mar. Hoje, já não sou tão bravia e penso nos remansos e praias de águas mais tranquilas. Hoje, passando pelo cessar da capacidade de conceber filhos, estou na fase de conceber ideias e criar projetos que colaborem para a transição de um mundo sustentável. Hoje, olhando para as crias adultas, duas mulheres e um homem, sinto-me feliz com o resultado. Ainda sou inquieta e não quero deixar-me ficar como águas paradas, quero continuar fluindo, produzindo, criando, e nunca perdendo o viço da vida como a minha pele externa. Por isso, busco perguntas e não respostas. Por isso, não parei de ler e estudar sobre um tema que me encanta: o feminino profundo. Por isso, vou ao encontro de grupos e pessoas que tenham essa energia e querem fazer transformações com leveza e alegria. Por isso, facilito processos, grupos e trabalho com educação ambiental. Por isso, fiz a pós graduação em jogos cooperativos. Nesse lugar encontrei pessoas buscadoras, parecidas comigo, entre elas Lila, que assim como eu, vem das águas salgadas. Nos identificamos nos valores, ideias e forma de ver o mundo e nesse encontro de almas resolvemos fazer esse trabalho juntas. No começo fiquei receosa, pois essa é uma experiência inédita para mim. Eu conheço o meu ritmo e temperamento e sei que somos diferentes, mas é não é que deu certo? Houve uma sintonia e tudo fluiu como tinha que ser. Confesso que foi muito bom compartilhar da sua companhia, do seu olhar, opiniões e a sua experiência sobre os temas. Exercitamos a colaboração e crescemos como mulheres, aprendemos com as águas, refletimos sobre as questões ambientais e o feminino profundo e percebemos que tudo está imbricado com a cooperação. E assim co-operamos, co-inspiramos e co-participamos desse trabalho desde a sua nascente até a sua foz.

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Imagem 2 - Lila

Eu sou Liliana, também sou Lila. Já nasci em cooperação, gêmea de um irmão chamado Fernando Eduardo, Duda. Nasci no Rio de Janeiro. Sou filha de Lillian e neta de Lillian, na linhagem materna. Da minha mãe herdei a alegria e o gosto pelo que é belo. Da minha avó, o lado místico, o interesse espiritual. Também sou neta de Altair, minha avó paterna. Dela herdei os cabelos crespos, cheios, descontrolados. E como morava em Minas Gerais e eu a visitava criança, nas férias, devo a ela a oportunidade de viver a roça, a fazenda, sentir o cheiro do gado, andar de cavalo, beber leite de vaca quentinho no curral... Lila, meu apelido de criança, diz muito sobre mim. Em sânscrito Lila quer dizer "jogo cósmico", “brincadeira divina”. Significa jogar o jogo da vida e do karma conscientemente. Como se a criação fosse uma diversão do Divino, para seu regozijo. Quem sabe? Somos quatro irmãos e eu. Portanto, fui criada no meio dos homens - pai, padrasto, irmãos, amigo dos irmãos - mergulhada no universo masculino. O estudo do universo feminino é um aprendizado relativamente recente. Fiquei mais conectada com o círculo de mulheres no ano passado, quando ajudei a organizar o evento e a publicação “A Voz das Avós no fluir das águas”. Ali, na força da sabedoria ancestral, comecei a entender melhor o lugar do feminino no mundo de hoje e a urgência da sua recolocação. Expresso aqui minha gratidão pelo aprendizado. Reconheço e admiro muitas mulheres. Quando criança, minha tia Lucia e minhas quatro primas me apresentaram uma dinâmica criativa que eu não conhecia, e que tinha o

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universo feminino como referência principal. Considero que iniciei meu aprendizado sobre a complexidade do feminino com elas. Tenho grande amor pelas mulheres que amam e reverenciam o feminino. Recebi muita inspiração e aprendi muito com essa 'raça' de mulheres. Hoje também me sinto uma mulher que ama e honra o feminino. Tanto que casei com um homem lindo. Capricorniano, mas muito feminino. Que acolhe, que cuida, que compartilha, que não aprisiona. Posso dizer, como a Neusinha, que sou um ser das águas. Nasci na beira-mar e meu sonho de consumo continua sendo o mar. Amo a praia, a areia, o sol, o horizonte, as ondas que batem na areia, a água salgada, o cheiro do mar, o som das ondas, OMMM, o som da unidade. Para mim, essa é a primeira experiência de transcendência. Posso ficar horas contemplando o mar, admirando o movimento das ondas e a imensidão do horizonte. Quando o vejo, entendo um pouco mais da dimensão humana e da dimensão da vida. A minha coroa na Umbanda diz que sou filha de Oxum menina, Oxum do Olho D'agua. Talvez por isso, também amo as águas doces dos rios e das cachoeiras. Sou daquelas pessoas que entra em qualquer aguinha rasa que vê, mas também nas águas profundas. Conheci rios de águas brancas, como o rio Purus e o Amazonas, de águas negras, como o Crôa e o rio Negro, de águas claras, como o Tapajós. Andei muito. Uma porção de mim é viajante e andarilha. Adora a diversidade das paisagens e das culturas. Com 20 anos conheci os rios Acre e Purus, no Acre e no Amazonas, e o rio Araguaia, no Tocantins. Essas águas mudaram a minha direção. Tanto as populações tradicionais do Acre e Amazonas, no caso, a Vila Céu do Mapiá, quanto os povos indígenas, Karajá e Tapirapé, na Ilha do Bananal, influenciaram o curso do rio da minha vida. Depois que mergulhei naquelas águas, nunca mais fui a mesma. Como Heráclito disse há séculos, eu confirmei suas sábias palavras. Na minha trajetória profissional, conheci diversas populações tradicionais e muitos lugares nos confins do país. Sinto-me extremamente privilegiada por trabalhar com Povos Indígenas atualmente. Almejo colaborar para que os direitos indígenas sejam

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respeitados e que o Brasil compreenda a grande contribuição desses povos para o bemviver planetário. Também nado nas águas das conversações, da construção do diálogo, do trabalho com grupos, da educação, da cooperação e, claro, do feminino. Descobrir-me como focalizadora não foi tarefa fácil. Hoje reconheço que trago sensibilidade, intuição e capacidade de criar um campo de aliança e empatia, pois falo a partir do coração. Tenho fé no diálogo e na construção coletiva, na força dos grupos, no campo que se instala por meio da interação, da escuta sensível, da conversa aberta, sincera e construtiva. Trabalhar com a Neusinha nesse TCC foi uma benção. A Neusinha é admirável. Além de ser uma coordenadora de grupos espetacular, sua capacidade de produzir é absolutamente surpreendente. Ela é como as águas de uma cachoeira volumosa, potente, como as águas de Foz do Iguaçu. Não sei dizer de que tipo de águas sou, mas acho que fico mais para os remansos ou para os lagos... Temos ritmos diferentes e visão comum. A minha amiga, companheira de trabalho, me levou junto com ela nessas águas volumosas, com delicadeza, sem pressão, me ajudando a ficar muito entusiasmada com o que íamos construindo. A construção conjunta ensina muito. Respeitar o outro, o seu saber, o seu ritmo, a sua bagagem. Tivemos respeito e amor uma pela outra e por isso nossas águas fluíram e confluíram.

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INTRODUÇÃO Com a chegada do final da pós-graduação em Jogos Cooperativos, iniciamos um processo de reflexão sobre o Trabalho de Conclusão do Curso. O que e como fazê-lo? Fazer sozinha ou em dupla? Quem tinha identidade de ideias e empatia para um trabalho coletivo? Não é fácil produzir a várias mãos, mas é enriquecedor entrar num diálogo construtivo, trocar opiniões e produzir de forma harmoniosa e colaborativa. Com isso optamos pela produção compartilhada. Várias ideias, mas nenhuma tão forte quanto a possibilidade de trabalho com um grupo de mulheres que relacionasse os conteúdos do feminino profundo, da água e das questões ambientais com a cooperação. O feminino tem sido um campo de bastante discussão, assim como a água e as questões ambientais. O desafio veio em relacioná-los e entender a singularidade entre eles. Além de colocar em prática o que foi vivenciado no processo de aprendizagem da Pós-Graduação em Jogos Cooperativos. Vários questionamentos surgiram como indutores da pesquisa: Como a cooperação pode ser utilizada para fomentar uma conversação sobre o feminino, a água e o meio ambiente e criar uma comunidade de aprendizagem? O que o feminino, a água e o meio ambiente têm em comum com a cooperação? As atividades realizadas ajudariam a criar um campo de cooperação para a construção de um texto? Com a atração pelo tema e sua relação com nossas histórias de vida, além do desejo de trabalhar com círculos de aprendizagem, sentimo-nos impulsionadas a agir e entramos num processo de ebulição e reflexão. O que e como fazê-lo? Porém, tínhamos a clareza de que não queríamos realizar um encontro apenas para que fosse fonte de pesquisa, mas que também fosse fonte de sabedoria e transformação para todas as mulheres que dele participassem. Tivemos alguns encontros para sonhar, visualizar e planejar detalhadamente uma metodologia que atendesse ao objetivo de aplicar os jogos cooperativos e teorizar sobre o trabalho feito, ampliando, com isso, o nosso campo de reflexão sobre a cooperação e a sua relação com a temática escolhida. Como os jogos cooperativos poderiam contribuir para a construção coletiva de um texto sobre a temática envolvendo e interligando os três assuntos? Que proposta de oficina cumpriria tal intento? Entre tudo o que fora vivido e

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aprendido, como as atividades fundadas na metodologia da cooperação iriam inspirar o diálogo e a entrega? O trabalho ora apresentado tem a intenção de relatar a focalização de um diálogo grupal sobre a temática das águas, do feminino e do meio ambiente a partir da realização de uma oficina fundamentada nos Jogos Cooperativos. A oficina foi um espaço para o exercício da focalização de algumas práticas que fizeram sentido para o trabalho proposto. Existe relação de pertencimento singular entre a água, o feminino e a questão ambiental? Investigar essa relação a partir de um círculo de diálogo de mulheres foi o objetivo maior da nossa pesquisa. Nesse espaço de conversação buscamos identificar como a cooperação colaborou com a construção coletiva de um texto que tentou realizar a interconexão entre as temáticas, gerando novas reflexões e aprendizados. Para isso, dividimos o trabalho em três capítulos. O primeiro traz as bases teóricas do trabalho, buscando fundamentá-las nas concepções da Cooperação expressadas nos trabalhos de Fabio Brotto, Maturana, Paulo Freire, Claudio Naranjo, entre outros autores. Buscaremos também entender os temas Água, Feminino, Meio Ambiente e suas interrelações. Para isso, nos referenciamos nas obras de Fritjof Capra, Felix Guatarri, Leonardo Boff, Edgar Morin, Riane Eisler, Vera Catalão, entre outros pensadores. O segundo apresenta a metodologia utilizada e as atividades, descrevendo-as de forma detalhada, de modo que possam ser replicadas em outros contextos ou inspirar novas experiências de diálogo. No terceiro, analisamos os conteúdos que emergiram na oficina, a partir dos discursos orais e da produção literária e artística. Por fim, concluímos o trabalho observando se os objetivos propostos foram atingidos e quais os aprendizados adquiridos.

19 “Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando." Guimarães Rosa

CAPÍTULO I

QUAL O LEITO DO RIO POR ONDE CORREM AS NOSSAS ÁGUAS? Para interpretar a pesquisa realizada é importante que nos afastemos um pouco dos elementos e fenômenos estudados e busquemos os pressupostos teóricos referentes ao objeto da pesquisa. Olharemos para ele como se olha um leito de um rio, o local por onde correm as águas e de onde elas partem. Esse é o chão que nos conduz, as nossas bases. As bases teóricas de nosso trabalho foram calcadas a partir de autores que nos referenciaram nas temáticas escolhidas. Eles nos dão os fundamentos necessários para entendermos o tema de nossa pesquisa. Reconhecemos que existem várias concepções sobre um mesmo tema, mas fizemos uma opção teórica por autores que têm uma linha definida claramente pelo pensamento sistêmico, complexo e transformador, que questionam o modelo de desenvolvimento capitalista que não leva em conta a inteireza do ser e está calcado numa lógica predatória, exploradora, antropocêntrica e patriarcal nas relações de poder na sociedade. Esses autores nos inspiram para agir em prol de novas bases, novos paradigmas, em busca de relações justas entre os seres humanos e destes com todas as formas de vida. O primeiro tema a ser desenvolvido está relacionado ao fenômeno da cooperação. Nesse item refletiremos sobre a cooperação e sua importância para a construção de processos coletivos.

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1.1 A epistemologia da cooperação

Durante a oficina tentamos orientar todo o trabalho realizado para que a colaboração fosse um instrumento e um meio para se atingir a motivação principal. Na pós-graduação em Jogos Cooperativos aprendemos que, para haver cooperação, é importante o diálogo, as conversas abertas, a troca e um ambiente propício para que isso ocorra. Aprendemos ainda que existem posturas e atitudes que devem ser observadas para que o diálogo possa fluir. Essas atitudes são internas e externas. As atitudes internas referem-se à coragem para a troca; disponibilidade para deixar-se tocar pela fala do outro, refletir sobre suas posturas e conceitos e, com isso, passar pela possibilidade de desconstruí-los, saindo assim de uma zona de conforto cognitivo e colocar-se na presença. Além disso, o entendimento da importância do silêncio e da reflexão. As atitudes externas estão relacionadas à simplicidade, ao bom senso, evitando julgamentos e generalizações. Para isso, uma atitude curiosa e investigativa colabora para que a escuta seja sensível, respeitosa e atenta. Para exercitar o diálogo não é necessário à construção de consensos, mas entendêlo como uma via de mãos dupla, onde as atitudes externas e internas se complementam na relação com o outro. É para dentro e para fora. O diálogo facilita à cooperação, a construção coletiva, a visão de comunidade. Por isso, optamos por constituir uma roda de diálogos. Buscamos na metodologia freireana dos círculos de cultura ensinamentos importantes para a mediação de processos grupais. Paulo Freire (1969) acreditava na horizontalidade das relações entre pessoas livres e conscientes que estabelecem entre si um diálogo capaz de ampliar as visões de mundo de todos os envolvidos na relação. Essa era a tarefa principal dos círculos de cultura. Freire dizia que a educação era uma prática libertadora. Ele tinha um conceito de ser humano como um ser de relações. Dizia que sua abertura para o mundo é o que o faz ser o ente de relações que é, imerso na história e na cultura de seu tempo. Para o autor, a convivência autêntica vem pela cooperação que estabelece um vínculo amoroso e autentico entre as pessoas e uma consciência crítica do mundo em que se vive.

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Fábio Brotto, um dos criadores do Projeto Cooperação, e um dos mestres da pósgraduação em Jogos Cooperativos, compreende os jogos cooperativos como algo além da técnica, mais que um recurso ou ferramenta, e sim como “Estilo de Jogo”, uma “Filosofia de Vida”, uma “Pedagogia para VenSer”, ou seja, uma caminho para exercitar o Ser. (Entrevista Fábio Otuzi Brotto- Revista Educação, junho de 2003.) Em seu livro sobre jogos cooperativos, Brotto (2001) afirma que competição e colaboração são processos sociais e valores presentes não apenas no esporte, mas na própria vida e define cooperação “como um processo onde os objetivos são comuns, as ações são compartilhados e os resultados são benéficos para todos” (BROTTO, 2001. p. 27). Afirma ainda que cooperar ou competir são possibilidades de ser e de estar no mundo. A educação poderá nos levar para um ou outro caminho, mas o importante, diz ele, é que temos possibilidade de escolhas. A cooperação vai, portanto, em direção a um objetivo comum que é atingido por ações compartilhadas e conjuntas. Sem o outro, o objetivo não será atingido. Ela se constitui como um meio para chegar a onde se pretende. Brotto entende que a aprendizagem é sempre compartilhada e ocorre em situações dinâmicas de coeducação e na cooperação. O autor defende a tese de que é preciso integrar a cooperação no cotidiano das pessoas, reconhecendo-a como um estilo de vida, uma conduta ética importante e capaz de mudar a forma de ser e de agir no mundo, portanto um valor fundamental na educação. (BROTTO, 2001, p.04). O autor nos alerta para a importância de desmistificar a competitividade como o único caminho e compartilha da visão de Orlick (1989):

(...) se nossa qualidade de vida futura, e talvez até a nossa sobrevivência, depender da cooperação, todos pereceremos se estivermos aptos a cooperar, a ajudar uns aos outros, a sermos abertos e honestos, a nos preocuparmos com os outros, com nossas gerações futuras (...) devemos nos afastar da competição cruel e começarmos a enfatizar a cooperação e a preocupação com os outros. (BROTTO, 2001, aput, Orlick, 1989, p.182)

Quando falamos de cooperação costumamos nos reportar ao seu oposto para justificar a importância do que estamos falamos, e compararmos os valores e atitudes que

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estão por trás de nossos entendimentos e ações. Portanto, entendemos a cooperação como o oposto da competição e um valor fundamental para construção do ser humano. Atualmente, o pensamento de Humberto Maturana parece ser um dos mais significativos na epistemologia da cooperação. Para este biólogo chileno, o conhecimento e linguagem estão imbricados e se constroem na relação, por isso são constituídos de emoção. Maturana (2004) criou uma teoria que considera que o fenômeno biológico de nossa experiência, enquanto ser humano surge com a constituição da linguagem e da cognição como atividades de interações e não como propriedades intrínsecas do humano. Para ele, linguagem e cognição são entrelaçadas, estão presentes em todas as nossas atividades e só surgiram pela capacidade de amar. O autor afirma que o conhecimento é inerente ao ato de viver. Ele nos diz que “viver é conhecer e conhecer é viver” (1995). A Biologia do Conhecer e a Biologia do Amor são nomes dado ao conjunto de ideias de Humberto Maturana, inicialmente conhecido como teoria da autopoiese. Essa teoria é uma explicação do viver como um constante vir-a-ser dos seres vivos no domínio de sua existência e que só pode ocorrer pela cooperação entre os sistemas vivos e na relação entre eles, fazendo com que haja uma adaptação, e assim, existe a conservação da vida. Para Maturana, esse fenômeno é chamado de acoplamento estrutural. Para Maturana a competição não é e nem pode ser sadia, porque se constitui na negação do outro.

A competição sadia não existe. A competição é um fenômeno cultural e humano, e não constitutivo do biológico. Como fenômeno humano, a competição se constitui na negação do outro. Observem as emoções envolvidas nas competições esportivas. Nelas não existe a convivência sadia, porque a vitória de um surge da derrota do outro. O mais grave é que, sob o discurso que valoriza a competição como um bem social, não se vê a emoção que constitui a práxis do competir, que é a que constitui as ações que negam o outro. (MATURANA, 2009, p. 13)

Maturana nos diz que a nossa espécie é definida pelo modo como vivemos e como interagimos com o meio.

Penso que o que define uma espécie é seu modo de vida, uma configuração de relações variáveis entre organismo e meio, que começa com a concepção do

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organismo e termina com sua morte, e que se conserva, geração após geração, como um fenótipo ontogênico, como um modo de viver em um meio, e não como uma configuração genética particular. Assim, a mudança evolutiva se produz quando se constitui uma nova linhagem ao mudar o modo de vida que se conserva numa sucessão reprodutiva. Por isso, na medida em que a mudança evolutiva se dá através da conservação de novos fenótipos ontogênicos, o central no fenômeno evolutivo está na mudança do modo de vida, e em sua conservação na constituição de uma linhagem de organismos congruentes com sua circunstância, e não em desacordo com ela. (MATURANA, 2009, p. 20 e 21)

Para Maturana (2009) a competição é um fenômeno cultural e não biológico. Ele afirma que os outros seres vivos não competem, mas vivem com outros em congruência recíproca, sem negação e isso se dá para conservar sua autopoiese e sua correspondência com um meio. As células são formadas pela reação química que se refaz na sua auto reprodução, por si só. Isso é a autopoiese. Todas as células que existem são feitas mais ou menos das mesmas moléculas, o que as diferencia são as relações estabelecidas. A vida está sempre se modificando e só por isso é estável. Ele nos diz que:

Se dois animais se encontram diante de um alimento e apenas um deles o come, isso não é competição. Não é, porque não é essencial, para o que acontece com o que come, que o outro não coma. No âmbito humano, ao contrário, a competição se constitui culturalmente, quando o outro não obter o que um obtém é fundamental como modo de relação. A vitória é um fenômeno cultural que se constitui na derrota do outro. A competição se ganha com o fracasso do outro, e se constitui quando é culturalmente desejável que isso ocorra. No âmbito biológico não-humano, esse fenômeno não se dá. A história evolutiva dos seres vivos não envolve competição. (MATURANA, 2009, p.21)

A biologia não nos define e não nos determina, mas nos coloca limites ao especificar a rede de interações moleculares que nos formam. A vida é um fenômeno muito maior que nós, que vem antes, passa por nós e segue. Somos natureza e pertencemos à vida. Esse é o desafio da espécie humana - recuperar o sentimento de pertencimento. Supõe-se que nossa história começa há aproximadamente 14 bilhões de anos resultante de uma grande explosão atômica apelidada de big-bang. Daí formou-se as estrelas e dentro delas surgiram todos os elementos físico-químicos. Ao explodirem, formaram os corpos celestes, entre eles, a Terra. Há sete bilhões de anos surge o universo

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e a formação da Terra se deu a cinco bilhões de anos, com a explosão de uma supernova cujas moléculas foram atraídas pelo sol. O potássio que temos no corpo, por exemplo, é o mesmo dessa época. Há 3,5 bilhões de anos surgiram os elementos químicos que ficaram na água e essas moléculas se juntaram e formaram uma vida que começou a pulsar expandindo e contraindo. Esse é o movimento vital. Há um bilhão de anos, as células começaram a viver juntas e só assim foi possível o surgimento dos seres pluricelulares. Nos últimos 700 milhões de anos apareceram todas as espécies vivas que se conhece. Existem trilhões de células no corpo humano que se comunicam através de neurotransmissores. Elas se comunicam para cuidar do corpo. A vida é um jogo do “ganha–ganha” e só é possível através da cooperação em rede de forma orgânica para ter a consciência do todo. Cooperar para quê? Onde? Com quê? Essas são questões do campo da ética. Às vezes cooperar é não cooperar. Depende do que está em jogo. A ética incide mais no como, do que no o quê. Ela reflete e repensa a moral, a motivação. Trabalha com o resultado da ação. O que é sobreviver? Na biologia é continuar vivo, multiplicar-se, incluindo às dificuldades e as superando. Todos os seres vivos são fortes e estão adaptados, pois essa compatibilidade entre os organismos e o meio foi ditada pela evolução. Para Maturana, essa congruência só é possível por causa do acoplamento estrutural, cujas modificações recorrentes entre diversas estruturas se dão pelo acoplamento que ocorre na relação, na convivência com o meio e com os outros. Adaptação biológica é diferente de submissão e enquadramento. Sobrevivência é manter a autopoiese, conservando a adaptação. Nós somos seres do aprendizado, temos possibilidades de escolhas, temos espiritualidade, imanência, por isso somos seres de consciência, de linguagem, e é isso que nos faz humanos segundo Maturana. Maturana define a nossa biologia como uma biologia do Amor. Ele nos diz que todos são responsáveis no grupo autopoiético. A qualidade dos nossos atos depende das pessoas, enquanto que os efeitos causados por eles ajudam a qualificá-los de sentidos. Desta forma, o contexto torna-se importante. Tudo o que destrói o fenômeno social destrói a biologia que nos constitui.

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O amar compreende toda a dinâmica das relações que originaram o ser humano no desenvolvimento de sua linhagem. Para Maturana (2009), o amor como aspecto de convivência é um fenômeno biológico e o define como respeito ao outro como legítimo outro na convivência, na relação. Para ele, o amor é a emoção fundante das relações sociais.

O central na convivência humana é o amor, as ações que constituem o outro como um legítimo outro na realização do ser social que tanto vive na aceitação e respeito por si mesmo quanto na aceitação e respeito pelo outro. A biologia do amor se encarrega de que isso ocorra como um processo normal se se vive nela. (MATURANA, 2009, p.32)

Maturana e Verden-Zoller (1995, p.84) afirmam que os seres humanos são filhos do amor e dependem dele por toda a vida, pois na sua corporalidade e na aceitação mútua, quando em convivência, a biologia do amor sempre está em ação. Mércia Sacramento, ao escrever sobre Humberto Maturana e sua biologia do amor, afirma que:

O ser humano, de acordo com Maturana, insiste em encontrar razões para justificar a sua conduta civilizada ou racional, mas esquece ou desconhece que o homem, na verdade, é um ser que faz da linguagem e da emoção uma rede de conversações. É um ser emocional e racional, vivendo uma cultura na qual a emoção e a razão se entrelaçam de maneira inseparável. (SACRAMENTO, 2002, p.5)

Aprendemos uns com os outros. Nessa lógica, a educação deve recuperar a harmonia que não destrói, não explora, não abusa e nem domina. É importante respeitar a si mesmo, aos outros e à natureza que é base de sustentação da vida. Quando se cria um ambiente de cooperação, de emoções positivas no relacionamento entre as pessoas, ocorrerá uma melhor aprendizagem, pois a relação foi estabelecida com base na biologia do amar.

A convivência social se funda e se constitui na aceitação, no respeito e na confiança mútuos, criando assim um mundo comum. E nessa aceitação, nesse respeito e nessa confiança mútuos é que se constitui a liberdade social. Isto é assim porque a constituição biológica humana é a de um ser que vive no

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cooperar e no compartir, de modo que a perda da convivência social traz consigo a enfermidade e o sofrimento. (MATURANA, 2009, p.97)

Por fim, quando as emoções são positivas, o aprendizado ocorre de forma prazerosa e tudo flui mais facilmente, pois se consolida a relação entre razão e emoção. Dessa forma, adotar o discurso da biologia do amar significa abandonar o discurso da luta, da guerra, da competição e incorporar a cooperação como um valor fundamental nas ações humanas. Paulo Freire (1996) nos ensina que a beleza da vida está nas relações, no diálogo e na compreensão que somos seres incompletos, históricos e o conhecimento depende da nossa intervenção no mundo, ele sempre se renova na superação do velho que antes foi novo. Desta forma, precisamos estar sempre abertos ao diálogo como nos ensina Freire:

(...) Seria impossível saber-se inacabado e não se abrir ao mundo e aos outros a procura de explicação, de respostas às múltiplas perguntas. O fechamento ao mundo e aos outros se torna transgressão ao impulso natural da incompletude. O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com o seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade como inconclusão, impermanente movimento na história. (FREIRE, 1996, p. 136)

Ao abrirmo-nos ao mundo, como nos orienta Freire, nos deparamos com questões cujas respostas nos levam a reflexão sobre a nossa própria história e de como vemos e nos situamos neste mesmo mundo. A ética cooperativa nos coloca a questão da coexistência e por isso não podemos deixar de perguntar: Que existência é essa? O que ocorre no mundo em que existimos? Qual o atual contexto? Sempre foi assim? Qual o lugar do humano? Por que as relações de dominação, o patriarcado e a exploração da natureza que esgota e polui suas fontes de vida? Porque poluímos nossas águas e desvalorizamos o feminino profundo em homens e mulheres?

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1.2 A Questão Ambiental, a Água, o Feminino e suas Inter-relações “Quer vivamos no sul, no norte, no leste ou no oeste somos todos membros de uma única raça humana e temos as mesmas preocupações e necessidades”. Dalai Lama

1.2.1 - A Questão Ambiental, uma questão primordial

É preciso um olhar crítico, mais apurado, para desvelar com clareza as respostas para questões tão inquietantes, que revelam o quanto estamos enrolados nas tramas de uma realidade caótica. Perdemos a referência e nos defrontamos com um mundo diverso plural onde há mundos dentro do mundo. Diversos níveis de realidade. Vivemos numa realidade onde a ideologia do consumo, a obsolescência planejada e a descartabilidade formam o tripé de modelo de produção que visa o lucro em detrimento dos valores sociais e transforma tudo em coisas, inclusive as pessoas. Um mundo onde há uma propagação da violência pela mídia, gerando insegurança e medo. Chegamos ao século XXI rodeados pelo fantasma da extinção das espécies, da degradação ambiental e da finitude das fontes naturais e mesmo assim continuamos consumindo os “recursos” da natureza (florestas, fauna, flora, água, solo...) em larga escala, sem levarmos em conta as graves ameaças previstas pelas mudanças socioambientais globais, entre elas as mudanças climáticas agravadas pela ação humana no planeta. Estamos diante do mais grave problema: a insustentabilidade da vida. Nas palavras de Vera Catalão: Diante da finitude dos ecossistemas da Terra, da qualidade de vida humana possível em um planeta degradado e em nome do futuro de outras gerações, a consciência ecológica na luta pela preservação da natureza surge como um novo cultural que diz respeito a todos os habitantes do planeta. A cultura universal que emerge do processo de globalização é uma cultura de agonia e de temor diante da incerteza da integridade humana e planetária nas próximas décadas. (...). (CATALÃO, 2009, p.243)

Maturana aboliria o uso do termo recursos natural e nos faz um alerta:

28 Quero um mundo no qual seja abolida a expressão “recurso natural”, no qual reconheçamos que todo processo natural é cíclico e que, se interrompermos seu ciclo, se acaba. Na história da humanidade, os povos que não viram isso se destruíram no esgotamento de seus chamados recursos naturais. O progresso não está na contínua complicação ou mudança tecnológica, mas na compreensão do mundo natural, que permite recuperar a harmonia e a beleza da existência nele, com base no seu conhecimento e no respeito por ele. (MATURANA, 2009, p.35)

Os problemas ambientais são problemas éticos, frutos de nossa ação sobre a natureza. Esses problemas se dão em todos os campos das ações humanas causando a sensação de liquefação e criando um vazio de sentidos, o que gera uma grande ambiguidade e angústia. Dependendo de como sejam equacionados os problemas referentes à ação humana sobre o desenvolvimento, poderá se definir o destino dos seres humanos, dos ecossistemas e de toda a biodiversidade da Terra. Será que de fato vivemos uma crise ambiental? Bastam alguns poucos exemplos para nos deixar impactados: uma espécie desaparece a cada 20 minutos; existem 400 usinas nucleares no planeta e os últimos acidentes nucleares provaram que não temos competência para contê-los. Temos um modelo de desenvolvimento que além de promover um enorme fosso entre ricos e pobres, ameaça a diversidade biológica e cultural quando em nome do crescimento econômico, promove a degradação de territórios naturais e com isso compromete a forma de vida da comunidade que ali habita. Como um exemplo, entre outros, podemos citar a construção de usinas hidrelétricas em territórios indígenas. Aqui no Brasil, Belo Monte, no Estado do Pará é o exemplo mais atual. E o que estará por trás dessa situação? Poderíamos dizer que são os valores gerados pela sociedade centrada no capital: individualismo, consumismo, competição, acúmulo de riquezas nas mãos de muitos poucos, alienação, ganância, exploração, mercantilização das relações, ignorância, o poder centrado na dominação e a lógica de que tudo deve girar em torno do progresso e do desenvolvimento. Esse progresso ainda não leva em conta que os recursos são finitos e isso gera uma expectativa de futuro incerto ou no mínimo indefinido. Na nossa sociedade moderna, a competição e a concorrência sustentam uma lógica de mercado onde só os mais fortes triunfam, os fracos servem de mão de obra

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excedente para um mercado que desvaloriza o trabalho humano. Ou são absorvidos ou tendem a desaparecer no fosso da imensa desigualdade social gerado pela enorme pobreza de um lado e a grande riqueza de outro. Leonardo Boff (2012), nos fala de quatro ecologias (ambiental, política e social, mental e integral) e ao escrever sobre a ecologia política e social, apresenta alguns dados para demonstrar a desigualdade e a injustiça social: - 20% da população mundial detêm 80% da riqueza da Terra. - As três pessoas mais ricas do mundo possuem ativos superiores a toda riqueza de 48 países mais pobres, onde vivem 600 milhões de pessoas. - 254 pessoas sozinhas acumulam mais riqueza que 2,8 bilhões de pessoas, o que equivale a 45% da humanidade. - 800 milhões de pessoas passam fome e 2,5 bilhões vivem abaixo da linha da pobreza. - 15 milhões de pessoas morrem antes de completar cinco anos. O autor também nos dá alguns dados que revelam a injustiça ambiental cometida pelos humanos contra a própria natureza. São eles: - Os humanos já ocupam 83% do planeta. - Com o processo de devastação, desaparecem 300 espécies por ano. - Cresce o aquecimento global que poderá causar degelo e aumento das águas nos oceanos. - A Terra já ultrapassou 25% a sua capacidade de regeneração. Esses dados nos mostram uma lógica perversa, que é estabelecida por um modelo de desenvolvimento injusto, desigual e insustentável, e que vai de encontro à lógica da natureza, onde a convivência e a cooperação são fundamentais para a manutenção da vida e da sobrevivência do todo. Estamos encharcados por valores que alimentam o sistema de dominação que precisa de excluídos e fracassados para continuar funcionando. Sabemos que a exclusão gera violência que vem por meio de emoções como raiva, tristeza, medo, fracasso, depressão etc. Com isso, a violência torna-se estrutural nesta cultura. Existe uma falta de garantia material para a nossa sobrevivência, gerando muitas incertezas e inseguranças.

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Vivemos num mundo do desemprego, da intolerância, do individualismo, da fragmentação destrutiva, da insustentabilidade em todos os sentidos. Esses problemas são multidisciplinares, transversais, transnacionais e planetários, fruto do modelo de desenvolvimento centrado no lucro e no acúmulo de capital. É um tempo onde os laços estão frágeis, tudo se torna descartável, gerando uma crise ambiental, emocional e de valores. Ao olharmos para essa crise, sentimos a necessidade de pensar no lugar onde ela ocorre e definir com mais clareza esse campo que chamamos de meio ambiente. Concordamos com Leonardo Boff quando ele diz que somos natureza, pertencemos ao meio ambiente, não podemos separar humanidade e natureza e devemos cuidar e preservar toda a comunidade de vida.

Meio ambiente, em primeiro lugar, não é algo que está fora de nós e que não nos diz respeito. Pertencemos ao meio ambiente, pois, nos alimentamos com produtos da natureza: respiramos ar e bebemos água, que ocupa 70% do nosso organismo. Corre em nosso corpo e em nosso sangue: ferro, nitrogênio, magnésio, fósforo e outros elementos físico-químicos que formam também todos os seres do universo. Basta ocorrer uma mudança de clima, ou haver excesso de poluentes no ar, ou pesticidas nos alimentos para nos sentirmos afetados em nossa saúde. Estamos dentro do meio ambiente e formamos com os demais seres da comunidade terrenal, o ambiente inteiro. (BOFF, 2012, p.11)

Para Guattari (1990), filósofo e psicanalista francês, o que está em questão é a forma com que vivemos sobre o nosso planeta. Por isso nos fala em três ecologias: a primeira ligada ao meio ambiente, a segunda, às relações sociais e a terceira, à subjetividade humana. Haverá saída para essa crise? Para Guattari não há saída individual, localizada e que considere apenas um aspecto da questão.

Não haverá verdadeira resposta à crise ecológica a não ser em escala planetária e com a condição de que se opere uma autêntica revolução política, social e cultural reorientando os objetivos da produção de bens materiais e imateriais. Essa revolução deverá concernir, portanto, não só as relações de forças visíveis em grande escala, mas também aos domínios moleculares de sensibilidade, de inteligência e de desejo. (...). (GUATTARI, 1990, p.9)

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Os educadores ambientais brasileiros ao se prepararem para a II Jornada Internacional de Educação Ambiental na Rio+20 escreveram um documento que foi submetido à consulta pública, reafirmando a adesão aos princípios e valores expressos em documentos planetários como o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global, a Carta da Terra, a Carta das Responsabilidades Humanas, a Declaração do Rio, entre outras. E nele expressam a indignação:

É inadmissível que ainda tenhamos guerras, gastos com armas, um bilhão de famintos e miseráveis, falta de água potável e saneamento para imensas parcelas da humanidade. É inadmissível a violação dos Direitos Humanos (diversidade de gênero, etnia, geracional, condição social e geográfica), a perda da diversidade de espécies, culturas, línguas e genética, o lucro mesquinho, a violência urbana e todas as formas de discriminação e projetos de poder opressivos. (VIEZZER, 2011)

Todos esses documentos reforçam a importância da atuação no campo intitulado socioambiental. Isabel Carvalho (2004) chama de campo ambiental um amplo conjunto de práticas sociais voltadas para os diferentes aspectos da relação entre sociedade e ambiente. A autora pensa o meio ambiente não como sinônimo de natureza intocada, mas como um campo de interação entre sociedade, cultura e a base biológica dos processos vitais no qual ocorrem relações dinâmicas que os modificam. Tal perspectiva considera o meio ambiente um espaço relacional e nos diz que a presença humana, longe de ser percebida como extemporânea, intrusa e desagregadora (câncer do planeta), aparece como um agente que pertence à teia de relações da vida social, natural e cultural e interage com ela. (CARVALHO, 2004, p. 37). Apesar de concordarmos com a autora de que a relação dos humanos com a natureza nem sempre é predatória e existir um campo socioambiental formado por sujeitos ecológicos que buscam a sustentabilidade, reforçamos a ideia que a crise ambiental que se vive hoje é causada pela ação humana, tem uma dimensão planetária e é multifacetada (ética, política, econômica, social, cultural, étnica...). Com isso, os desafios são também multifacetados. Daí a importância da consciência ecológica, humanista, ética, espiritual e em todas as dimensões para que seja possível uma resposta à crise ambiental que coloca em risco toda biosfera e a sobrevivência da vida.

32 A Carta da Terra1 documento elaborado em 1997, diz que:

Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. A escolha é nossa: ou formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e da diversidade da vida.

Afirma ainda que:

A humanidade é parte de um vasto universo em evolução. A Terra, nosso lar, é viva como uma comunidade de vida incomparável. As forças da natureza fazem da existência uma aventura exigente e incerta, mas a Terra providenciou as condições essenciais para a evolução da vida. A capacidade de recuperação da comunidade de vida e o bem-estar da humanidade dependem da preservação de uma biosfera saudável com todos seus sistemas ecológicos, uma rica variedade de plantas e animais, solos férteis, águas puras e ar limpo. O meio ambiente global com seus recursos finitos é uma preocupação comum de todos os povos. A proteção da vitalidade, diversidade e beleza da Terra é um dever sagrado.

Sabermos da gravidade da situação e muitas vezes nos indignamos com a destruição da natureza, porém, ainda temos atitudes contraditórias. Por exemplo, a mídia nos vende a violência e nós a compramos. Somos contra o desmatamento, mas consumimos os produtos por ele gerados, poluímos as nossas águas internas e externas e educamos os nossos filhos para perpetuarem uma visão machista e antropocêntrica do mundo. Por isso, a problemática ambiental engloba dimensões objetivas e subjetivas. A alienação não nos permite ousar e descortinar essa cortina de fumaça. O que estamos cultivando? O que precisa ser feito para mudar essa situação? Qual o caminho de saída da crise? É preciso inicialmente tomar consciência da dimensão dos problemas ambientais e agirmos em busca da sustentabilidade. Se estamos ligados à teia de vida e

1 O site da Carta da Terra afirma que ela é uma declaração de princípios éticos fundamentais para a construção, no século 21, de uma sociedade global justa, sustentável e pacífica. Busca inspirar todos os povos a um novo sentido de interdependência global e responsabilidade compartilhada voltada para o bemestar de toda a família humana, da grande comunidade da vida e das futuras gerações. É uma visão de esperança e um chamado à ação. ( http://www.cartadaterrabrasil.org/prt/what_is.html)

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somos dependentes e interdependentes na natureza, precisamos mudar o rumo dos processos humanos que a destroem. Boff nos diz que para isso é preciso superar vários obstáculos e o primeiro deles é o da ignorância e falta de consciência sobre as ações humanas no meio ambiente.

O primeiro obstáculo é a inconsciência e a ignorância acerca dos estragos que estamos fazendo na natureza e na mãe Terra. Na nossa arrogância não queremos saber das ameaças que pesam sobre o sistema da vida. Imaginamos a Terra e o meio ambiente como coisa exterior a nós. Na nossa visão reducionista, participada pela ciência moderna, não percebemos o todo, apenas as partes. Vemos os vários seres, mas sem o seu habitat e sem as interdependências que todos eles entretêm entre si. (BOFF, 2012, p.22)

O autor afirma que precisamos ampliar e enriquecer o nosso olhar para com a Terra. Diz que ela é mais que uma composição geográfica de terras baixas e altas, vegetação, oceanos, lagos e rios e que, vista de fora, não há diferença entre Terra e humanidade, é uma única realidade. Nós somos Terra. Somos Terra que sente, que pensa, que ama, que cuida e venera. Por isso homem vem de húmus que significa terra fértil. Portanto, a vida não está apenas sobre a Terra ou ocupa partes dela, a biosfera. A própria Terra, como todo, é um superorganismo vivo e se comporta como tal. Foi à conclusão que chegaram dois grandes cientistas nos anos 1970: o inglês médico e biólogo James Lovelock, e a micro bióloga Lynn Margulis. (...). (BOFF, 2012, p.12)

Se somos uma única realidade, podemos reler a citação acima a partir da reflexão de que na Terra a água abrange aproximadamente, 70% da superfície e 70% do nosso corpo também é constituído de água. Há quem diga que por esta razão nosso planeta Terra deveria chamar-se planeta Água. Desta forma podemos dizer, parafraseando Boff: Nós somos Água. Somos Água que sente, que pensa, que ama, que cuida e venera. Na mitologia grega, o nome da mãe de todos os deuses é Reia, que significa terra ou fluxo, e fluxo é próprio do líquido. Portanto, em grande parte, a vida está nas águas ou ocupa parte dela. A própria água, como um todo, é um superorganismo vivo e se comporta como tal.

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1.2.2

Água, o primeiro fundamento

É consenso de que a crise ambiental exige novas posturas em relação a esse bem precioso, a água. A água não é inesgotável e sofre profundamente com as causas e efeitos da crise ambiental. Aliás, ela está no centro dessa crise e é afetada drasticamente com a poluição, com o aquecimento global, com o desmatamento, etc. Não há nenhum aspecto da questão ambiental que esteja desvinculado da água. A água é fonte de vida e sem ela nada poderia existir. Tem características muito peculiares, pois é degradável, reciclável e ainda se renova. Porém as ações humanas tem colocado em jogo o cuidado com a quantidade e com a qualidade da água existente. A situação ainda não se tornou insustentável pela própria característica desse elemento que se renova pelo ciclo hidrológico. Contudo, essa vantagem já está sofrendo efeitos por conta da intervenção humana na natureza. Os índices de poluição dos corpos de água, dos lençóis freáticos, dos mares e de todo ecossistema aquático são detectados e tidos como alarmantes. A água é uma necessidade básica, sem ela não teríamos alimentos, saúde e as condições necessárias para a existência da vida e de toda a sua biodiversidade. Chistofidis ao escrever sobre a crise provocada pela escassez da água cita dados do WWF (2000) e diz que:

(...) por volta do ano de 2025, cerca de 3 bilhões de pessoas (1,1 bilhão na África) estarão vivendo com tal escassez de recursos hídricos (disponibilidade menor que 1.700m3 /hab/ano), que ficarão assim incapacitados de produzir seus próprios alimentos e de exercer qualquer outra atividade produtiva. (CHISTOFIDIS, 2006, p. 96)

No Brasil, a Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei n o 9.433, de 08 de janeiro de 1997) considera a água como um bem de domínio público, dotado de valor econômico e reconhece-a como um recurso natural limitado. Também orienta que a gestão desse bem deve ser descentralizada, com responsabilidade compartilhada entre o poder público, os usuários e as comunidades. Especialistas afirmam que a água poderá ser o vetor de confrontos entre nações, motivados pela escassez desse recurso vital. Portanto, a gestão das águas é uma questão

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central no mundo contemporâneo para se obter um equilíbrio no seu gerenciamento e garantir esses direito em quantidade e qualidade para todas as espécies vivas, não só a humana. Mas, para isso, se faz necessário não apenas uma mudança qualitativa na gestão da água, mas na visão de mundo e de comportamento do ser humano, que não se percebe parte da natureza, tem uma visão antropocêntrica que desconsidera os direitos ambientais, os direitos da própria Terra, os direitos da Água. Quando os astronautas avistaram à Terra do espaço sideral, deslumbraram-se com a fantástica visão de uma grande e bela esfera praticamente toda azul. O azul dos oceanos, que constituem 70 % do planeta. Os continentes compõe o restante. Assim, se quase dois terços do planeta são cobertos pelas águas, como dissemos antes, a Terra é, fundamentalmente, um Planeta Água. A transmissão dessas imagens trouxe à humanidade uma percepção nova: nos demos conta de que os recursos de que dispomos para perpetuar a vida são finitos. Sabe-se que a vida na Terra originou-se nas águas, nos mares primordiais. E que os corpos de todos os seres vivos são constituídos basicamente desse elemento vital. Tales de Mileto, considerado o primeiro filósofo grego, já afirmava ser a água a substância fundamental da vida. Sem água, nosso planeta seria um grande vazio de vida. Com relação à espécie humana, como vimos cerca de 70% nosso corpo é composto de água. Talvez por isso a água nos pareça tão familiar e tão íntima. Até para falarmos do processo de degradação da água usamos palavras associadas ao nosso próprio corpo como esterilização do órgão gerador de água, aborto e adoecimento do corpo de água. Somos água e gostamos de senti-la, de ouvir o quebrar das ondas do mar, de vê-la fluindo entre as pedras nos rios e córregos. Nosso bem estar no planeta está intrinsecamente relacionado à existência de água e, principalmente, de água pura. Vera Catalão (2006) nos orientou com o trabalho realizado no circulo de diálogos com mulheres, na metodologia da oficina o rio da vida que será detalhada no capítulo seguinte. Nessa oficina as mulheres refizeram o curso de sua vida através da comparação com rio, criando o seu próprio rio. Catalão, usa a água como uma matriz ecopedagógica, como um elemento inspirador para a transdisciplinaridade. A autora também demonstra em seus estudos como a água tem qualidades sensíveis, fazendo relação desse elemento vital com diversas características simbólicas, entre elas, o fluir do tempo, a relação com o

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arquétipo da morte, e como isso se revela na mitologia que traz imagens fortes do inconsciente coletivo, como define Carl Jung. Porém, a autora nos alerta de que o que está fora está dentro e que estamos poluindo não apenas as águas externas, mas também as nossas águas internas, e que apesar da vivermos um tempo de extrema aceleração, sem pausas e pousos, os nossos rios sofrem pelo oposto:

(...) os nossos rios fluem cada vez mais lentamente esmagados pela “gravidade” da poluição de nossas águas. Também dentro de nós as águas correm pesadas- os problemas da circulação planetária mostram sua réplica nas disfunções de circulação que afetam a saúde do homem contemporâneo. (...). Diante do tempo cíclico da vida, nosso projeto civilizador construiu uma grande barragem buscando retificar seu curso cósmico. Fora e dentro de nós agoniza o tempo sinuoso do rio. (CATALÃO, 2006, p.83)

Entre as muitas qualidades da água, Catalão (2006) destaca a sua capacidade de infiltrar-se, de revestir as superfícies e preencher espaços, além de moldá-los. Dá forma sem tê-la, e é forte por sua humildade e não resistência. Por sua fluidez ela tem a capacidade de dissolver a dureza e transformar pedras em areia. Diz o ditado popular: Água mole em pedra dura tanto bate até que fura. A persistência, a paciência também são características relacionadas à água. A autora ressalta que, por suas características, a água está presente nas histórias mitológicas, nos símbolos e rituais religiosos, na poesia, na música como metáfora de ligação, de criação, nascimento e morte, da alma humana, pois está gravada em nossas memórias.

Memória primordial da vida impressa no corpo e na alma, a água simbólica é como uma lembrança permanente do cordão umbilical rompido e sob permanente promessa de retorno. Na psique humana, ela lembra o útero materno, aquático pouso do embrião e espaço noturno e sonoro do feto. (op. cit. p. 85)

As águas fluem, tem ritmo e memória. Esse ritmo, nos diz Catalão, está presente em toda natureza, nas seivas das árvores, nos rios, lagos e mares, na circulação sanguínea dos animais e em todo o pulsar da vida. Ela grava em suas moléculas informações. E

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além de tudo isso, está impregnada de significados, tem sonoridade própria e por sua presença na nossa boca nos ajuda a nos constituir como humanos através da linguagem. Catalão (2006), concordando como o filósofo Bachelard, traz ainda a dimensão poética da água: (...) para Bachelard, ela tem um corpo, uma alma e uma voz. A palavra da água é uma realidade poética direta que cascatas, regatos e rios sonorizam com perfeição. Em Brasília, outubro de 2011, ocorreu um encontro chamado 'Voz das Avós no fluir das águas', que reuniu um grupo de avós internacionais e brasileiras, detentoras de conhecimentos tradicionais, com o propósito de partilhar saberes, celebrar a paz e a sustentabilidade das relações humanas e dele resultou uma publicação. Em seu prefácio podemos ler: (…) A água, no fluir de seu ciclo, percorre toda a terra e todos os corpos, desde o início dos tempos, nos conectando a todos que vieram antes de nós. A água integra o território, que é o lugar onde a identidade e a cultura de um povo se constituem e se sustentam. E nesse fluir das águas os rios abrem-se, naturalmente, para outros rios: ocorre o encontro de águas que se integram e criam percursos comuns. (Voz das avós no fluir das águas: X Encontro do Conselho Internacional das 13 Avós Nativas, 2012, p. 5)

Esse encontro inspirou-nos muitas reflexões, entre os quais a inter-relação entre a água e o feminino. Reconhecemos que muitos povos tradicionais relacionam as águas com o feminino e consideram-na o leite materno da Terra2. (...) Nós, seres humanos, somos “bebês da água”, porque nossa vida começa na água, na placenta das nossas mães. A água, portanto, está ligada ao feminino e ao sagrado ventre materno. (…) A água é o leite materno da Terra, estando a alegria, o bem-estar e o prazer intrinsecamente ligados à esse elemento. (Voz das avós no fluir das águas: X Encontro do Conselho Internacional das 13 Avós Nativas, 2012, p. 64)

A avó Bernardette Rebienot, natural do Gabão, África, durante a abertura do evento, ao falar sobre seus sonhos nos disse: 2- Declaração da Água, 2011. Publicação do Evento a Voz das Avós no Fluir das Águas, BrasíliaDF.

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(…) Meu segundo desejo é que a humanidade coloque o feminino no centro do mundo. Isso poderá prover o equilíbrio necessário para a reconciliação. As mulheres são amigas da água, pois a preservam dentro do seu próprio corpo, para poder dar vida a outros de nós. Na terra de onde venho, as mulheres ocupam um lugar muito importante (Rebienot, 2012)

As águas internas, a concepção, o nascimento, o feminino são relações permeadas por segredos. Como explicitou a parteira Suely Carvalho, fundadora da ONG Cais do Porto: “Nós viemos da água. O ventre materno é sagrado porque todo ser humano passou pelo ventre de uma mulher. Portanto, todas as pessoas devem respeitar isso. A mulher precisa respeitar o seu próprio ventre”. Relações simbólicas entre a água e a saúde também se revelaram para as pessoas presentes, na fala da avó indígena Agustinha Pereira, que afirmou sobre a tradição do seu povo Guarani: “quando a criança nasce, dão água para ela. Se dão a água para ela, não fica doente, e se fica doente, sempre é curada com água”. A Avó Rita Pikta, do Alaska, também relacionou a água com a medicina sagrada e disse que: “todos sabem que a água limpa. Tudo na mãe terra tem uma medicina. Os animais, as plantas são uma medicina. O que nutre essas medicinas é a água. Nutre a medicina dos animais, das plantas, das pessoas e sem ela nada cresce. (...)”. Segundo a analista junguiana Clarisse Estés, no sudoeste dos Estados Unidos, nas regiões hispânicas, existe uma simbologia na qual os grandes volumes de água representam o lugar de origem da vida. Nesse lugar, o rio é visto como a grande mãe:

Ele é considerado a mãe, La Madre Grande, a Grande Mulher, cujas águas não só correm nas valas e leitos do rio, mas que se derramam de dentro do corpo das próprias mulheres quando seus filhos nascem. (ESTÉS, 1997, p. 380)

Concordamos com a autora quando diz que o rio simboliza uma das formas de generosidade feminina quando ele está vivo e flui, gerando e alimentando vidas. Um rio em sua corredeira desperta paixões, é excitante, e faz a vida entrar em ebulição. Seus remansos geram tranquilidade e serenidade. No entanto, quando suas águas estão paradas, poluídas, causam exatamente o oposto, geram estagnação, doenças e morte. Se trouxermos isso para o âmbito pessoal, quando paramos de criar e nos sentimos inúteis, a

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nossa autoestima é desvalorizada e cai, e nos sentimos estagnadas, sem brilho, sem energia, e isso equivale a jogar veneno no rio. Estés fala de um feminino profundo como um aspecto de nós que ela chama de a Mulher Selvagem. Essa mulher é considerada pela autora como Rio Abajo Rio, o rio por baixo do rio e diz que quando ela corre dentro de nós, nós corremos também. Quando ela fica parada nós paramos também e adoecemos como águas estagnadas, por isso temos que cuidar para que nossas águas corram límpidas e protegidas de poluições e outras causas de estagnação e morte.

1.2.3- Redescobrindo o caminho do feminino profundo a partir do curso de nossa própria história

A socióloga Riane Eisler (2007), em seus estudos sobre a sociedade humana, leva em conta toda a história humana, bem como toda a humanidade feminina e masculina. A autora criou uma teoria chamada de Transformação Cultural que identifica o poder de cooperação, parceria e colaboração com o cálice, símbolo do feminino e a espada, símbolo do masculino, como o poder da guerra, da destruição e da dominação. Para ela existem dois modelos básicos de sociedade:

(...). O primeiro que chamo de modelo dominador, é aquele comumente denominado patriarcado ou matriarcado: a metade da humanidade classificada como superior à outra metade. O segundo, no qual as relações sociais são baseadas num princípio de conexão ao invés de escalonamento, pode ser bem mais descrito como modelo de parceria. Nesse modelo a diversidade (a começar pela diferença fundamental de nossa espécie: masculino e feminino) não equivale à inferioridade nem a superioridade. (EISLER, 2007. P.30)

Essa teoria propõe que na nossa evolução cultural tivemos um momento inicial que apontava para uma organização social de parceria, mas depois houve uma mudança de orientação para o modelo de dominação. Esse modelo de parceria e convivência foi

40 chamado por Eisler e outros teóricos como Gimbutas3 e Maturana de matrístico, pois o termo matriarcal continuaria a demonstrar supremacia de um gênero sobre outro. Nesta cultura inicial, pré-patriarcal, as qualidades femininas orientavam para uma visão de mundo sistêmica, acolhedora, na qual ambos os gêneros, apesar dos conflitos, eram considerados fortes. Numa sociedade onde predomina o poder do patriarcado, os homens que não estão em conformidade com essa concepção são considerados afeminados, fracos e desprovidos de valores e as mulheres são oprimidas, descriminadas e desvalorizadas. Esse problema não está no masculino enquanto sexo, mas na supervalorização do poder, da hierarquia, da força, enfim, da espada. Augusto de Franco (2001), no texto Sociedades de Dominação e Sociedades de Parceria faz referência a Eisler e Gimbutas para questionar a violência como inata ao ser humano e afirma que a ciência não nos obriga a pensar que essa é uma verdade para todos os tipos de ordem social.

(...) existia um outro tipo de sociedade. Uma sociedade na qual os seres humanos viviam em regime social de parceria, em relativa harmonia entre si e com a natureza. Para uma parte de tais pesquisadores foi a cultura patriarcal de algumas hordas seminômades de guerreiros (indo-europeus) que destruiu uma cultura uniforme e pacífica que se estendia por toda a Europa antiga, durante vinte mil anos, do paleolítico ao neolítico (Gimbutas,1977;1980; 1981; 1991 e Eisler, 1987 apud FRANCO, 2001)

Retornamos ao pensamento de Maturana que diz que a agressão não é a emoção fundamental que define o humano, mas o amor, a coexistência na aceitação do outro como um legítimo outro na convivência. Reforça sua convicção de que não é a luta o modelo básico de relação humana, mas a colaboração. Para ele, a luta e a competição tem início com o patriarcado.

Falamos de competição e luta criando um viver em competição e luta, e não só entre nós, mas também com o meio natural que nos possibilita. Assim, dizem que nós, os humanos devemos lutar e vencer as forças naturais para sobreviver, 3- Arqueóloga, que descobriu, em 1974 sítios arqueológicos com esculturas neolíticas da Europa que demonstravam que as figuras e símbolos femininos tinham centralidade naquele período histórico.

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como se isso tenha sido e seja a forma normal do viver. Mas não é assim. A história da humanidade na guerra, na dominação que subjuga, e na apropriação que exclui e nega o outro, se origina com o patriarcado. Na Europa, que é nossa fonte cultural, antes do patriarcado se vivia na harmonia com a natureza, no gozo da congruência com o mundo natural, na maravilha de sua beleza — não na luta com ela. (MATURANA, 2009, p.34)

Para Cláudio Naranjo, médico, psiquiatra e educador chileno, a cura dos males do mundo envolve ir além do patriarcado e resgatar o princípio matrístico da vida. Segundo Naranjo, foi a condição patriarcal da sociedade quem determinou que as tendências agressivas e competitivas do homem se expressassem, mais do que a ternura e a cooperação, associadas à maternidade e ao feminino (NARANJO, 2006, p.106). Segundo o autor (op.cit, p.79) o poder do feminino não se expressou como um domínio das mulheres, mas do poder dos grupos, da primazia das relações, do espirito comunitário e do cuidado. E assim, quando se instaurou, a cerca de cinco mil anos, o domínio masculino, o predomínio dos valores guerreiros e da competição prevaleceram sobre os valores amorosos e da cooperação. Para Naranjo está claro que o mal estar da sociedade contemporânea está relacionado com esse desequilíbrio. Sabemos que o ser humano caminha na Terra há muito mais que 100 mil anos. Se pensarmos que os Sumérios viveram a quatro mil anos a.C. e que podemos acrescentar mais dois mil anos como margem de folga, não podemos deixar de nos questionar: o que fizemos com os aproximados 92 mil anos restantes? Como podemos desprezar essa quantidade de tempo? Na era Paleolítica vivíamos em tribos e a cooperação era fundamental para a manutenção da vida. Não está se falando de gentileza, mas de cooperação como um mecanismo de sobrevivência da espécie humana. Nesse período éramos nômades e a posse atrapalhava a sobrevivência, o poder era rotatório, transitório e o líder era o mais habilidoso. Essa ideia de que o homem das cavernas era violento, opressor de mulheres, dominador, pode ser considerado um mito, pois havia poucos humanos no planeta e, por isso, o apoio de uns aos outros era fundamental para a sobrevivência. Nos períodos mais propícios, chegávamos a 30 mil, nos tempos mais difíceis, éramos mais ou menos 10 mil pessoas no mundo. Se compararmos com a atual população, esse número é insignificante.

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Os achados arqueológicos revelam que as pinturas rupestres tinham um padrão, um estilo que durou 25 mil anos e eram feitas em alturas, nas profundezas das cavernas que serviam de lugar de encontros e celebrações. Da mesma forma que as pinturas, foram encontradas também estatuetas femininas na Europa pré-histórica. Segundo Eisler (2007), elas podem significar representação de deidades femininas e de como eram identificadas com o poder de gerar, sustentar e retirar a vida. Com isso, pressupõe-se que havia um culto a Grande Deusa Mãe, pelo fato de a vida emergir do corpo de uma mulher, e sugerem que havia um reconhecimento de pertencimento de que humanos e meio ambiente eram unos e, portanto, havia uma sacralidade e respeito à natureza. Eisler (2007) busca uma explicação no argumento de que há evidências da divinização da fêmea porque a natureza biológica da mulher está ligada ao parto e a sustentação dos filhos pela maternidade. Para a autora, existia uma associação muito forte do principio feminino com as águas.

A associação do princípio feminino com as águas primevas é também em tema recorrente. Por exemplo, na cerâmica decorada da Europa Antiga, o simbolismo da água – muitas vezes associado ao ovo primevo – é uma figura frequente. Nesse caso a Grande Deusa, por vezes na forma de Deusa pássaro ou serpente, reina sobre a força vivificante da água. (...) Sua imagem á também associada a vasilhames para água, (...) Como a Deusa NUT, ela é a unidade fluida das águas celestiais primordiais. Mais tarde, como a Deusa cretense Ariadne (a muito sagrada) e a Deusa Grega Afrodite, ela surge do mar. (EISLER, 2007, p. 64)

A autora ressalta que na cosmovisão dos povos dessa época, a religião e a vida estavam totalmente imbricadas. Alguns autores, segundo Eisler, tendem a reforçar que se a sociedade não foi patriarcal, foi matriarcal, tendo sempre um gênero dominando o outro, como uma norma de conduta humana. Porém, a autora reforça que as evidências comprovam que essa tese não tem consistência. O fato de a mulher exercer um papel central não significa que os homens eram subservientes. Tanto homens como mulheres eram filhos da Deusa Mãe e o poder era exercido em parceria e compartilhamento, e que, portanto, a organização social não pode ser denominada de matriarcal. No Neolítico, há dez mil anos atrás, o clima da Terra melhorou e a população humana cresceu. Foi nesse período que surgiu a agricultura e a instituição do trabalho diário. Os humanos deixaram de ser nômades e se fixaram na terra. Com isso, surge a

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posse e com ela, os muros e a proteção, enfim, a lógica separacionista. Essa lógica está registrada e internalizada no nosso próprio corpo, que também separou corpo, mente, emoção, espírito. Com a propriedade privada, se funda a ideia de inimigos e, com isso o patriarcado, que tem no machismo apenas uma de suas expressões. Surgem às cidades, as Polis e a convivência entre os diferentes. A diversidade causa um aparente caos e para organizá-lo surge à centralização do poder e as regras. Há aproximadamente cinco mil anos atrás, aparece o poder central, a estratificação social e a separação do ser humano e natureza. A cerca de sete mil anos atrás se iniciou um padrão desintegrador das velhas culturas neolíticas. Para Eisler, existem evidências de invasões, destruições e catástrofes naturais que provocaram uma destruição em grande escala, tanto no plano físico como no plano cultural das sociedades que adoravam a Deusa. Isso se deu, segundo a autora, no quinto milênio antes de Cristo e somente dois mil anos depois surgiram as civilizações do Egito e da Suméria. Essas invasões foram promovidas pelos chamados povos indo-europeus que trouxeram consigo os seus deuses e seus preceitos morais fundados na autoridade, na hierarquia, no masculino e no patriarcado. As relações que antes eram de cooperação passam a ser de competição e o poder compartilhado passa a ser centralizado. Maturana, (2004), pensa que a história da humanidade segue a trajetória do emocionar e que as ideias, símbolos e valores são elementos que orientam a nossa vida. Por isso, diz que precisamos olhar para a história através do emocionar humano. Para ele, o emocionar e a linguagem estão entrelaçados e sustenta que a cultura é uma rede de conversações. Desta forma, afirma que as mudanças culturais ocorrem quando se modificam as conversações. Ele nos diz que:

A humanidade começou a mais ou menos três milhões de anos com a conservação – geração após geração – de um modo de viver em conversações que envolviam a colaboração dos sexos na vida cotidiana, (...). Nossa biologia atual é o presente dessa história. (...) Desse modo, a maior parte do humano deve ter transcorrido na colaboração dos sexos, não na divisão do trabalho que vivemos hoje em nossa cultura patriarcal (...) que nega a colaboração. (MATURANA, 2004. P. 18 e 19).

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Em outras palavras, Maturana nos diz que, por meio do emocionar, da apropriação, da subjugação e da dominação, o patriarcado criou o espaço psíquico que tornou possível a destruição da colaboração e da vida matrística, instituindo a servidão e a escravidão na nova cultura patriarcal. E qual é esse modo de viver? Qual a diferença entre o matrístico e o patriarcal? A cultura patriarcal valoriza a guerra, a competição, a luta, o crescimento, a apropriação dos recursos naturais, a racionalidade, o pensamento linear, o controle e a dominação. Nessa cultura vivemos controlando e utilizando o mundo natural como um recurso a ser explorado, fazemos isso com a natureza, com as outras pessoas e até conosco mesmos. Falamos sempre que precisamos controlar nossas ações e emoções, por exemplo. Na cultura matrística, o viver está centrado na sensualidade do cotidiano e as atividades levam em consideração o respeito mútuo, inclusão, colaboração compreensão, cuidado, e a emoção básica que fundamenta o social é o amor. Muraro, (2000), escreve um trabalho intitulado textos da fogueira para falar da relação de poder do masculino sobre o feminino que nasce pela manipulação do sagrado que justifica a violência dita e legitimada por Deus. Nessa lógica, a sexualidade é considerada pecado e, por isso mesmo, a mulher foi considerada perigosa. Muraro tenta desmistificar a cara satânica da sexualidade para justificar o poder dominação de um gênero sobre outro. Afirma também que a caça às bruxas teve uma pano de fundo econômico, pois com a ida dos homens para as cruzadas que duraram quatro séculos, as mulheres tornaram-se donas de terra e assumiram o poder cultural. A caça as bruxas começa com o retorno das cruzadas. Na inquisição, diz a autora, 85% das pessoas queimadas foram mulheres. É um número monumental. Havia cidades que tinha 800 mulheres e, num dia só perderam 789, como a cidade de Trier, na Baviera, por exemplo, (op. cit, p.39). Nessa mesma obra, a autora nos fala do livro da inquisição chamado de O Martelo das Feiticeiras e diz que o resumo do seu conteúdo extenso pode ser: A mulher é cúmplice de Satanás, porque ela cometeu o pecado original. E por isso o satanás a ensinou a ter orgasmo e se revoltarem contra o homem sendo independentes. Desta forma, a autora interpreta que, nesse manual, a definição de bruxa é: mulher orgástica e independente.

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As bruxas eram culpadas de tudo: chuvas de granizo, inundações, pestes sobre os homens, outros animais e sobre as plantações, sobre as infertilidades das mulheres, sobre o aborto, enfim sobre tudo. E porque essa “loucura” vingou? Qual a lógica? Para Muraro (2000), foi justamente nessa época que surgiu a noção de pátria, não como mãe, mas como pai e, as condições para o surgimento de um tipo de mulher:

(...) As mulheres já não trabalhavam mais fora, elas voltavam em massa para casa. Nasce então a figura da dona de casa, da mulher santa, da mãezinha dedicada. (...). Começa a formar-se a no século XVIII a família nuclear como é constituída hoje. Ela se solidifica, pois com o fim da caça às bruxas. E principalmente aparece a mulher inorgástica e histérica (que somos nós!) que Freud estudou no fim do século XIX. E nasce também como consequência disso tudo o amor dissociado do corpo. (...). (op. cit, p. 41).

Com isso veio o mundo industrial, o progresso, a comunicação de massas e o poder passa das oligarquias rurais para a burguesia industrial. Criam-se as condições para chegarmos à sociedade de consumo como a conhecemos hoje. Porém, surge também a emergência do feminino que teve que lutar para ser reconhecido e ocupar um espaço nessa sociedade. As mulheres orgásticas e independentes começam a retornar no século XX com o feminismo. Com a revolução industrial, surge também a destruição da natureza que hoje chega a níveis alarmantes, colocando em jogo as condições de vida na Terra. Chegamos numa encruzilhada com uma crise paradigmática sem precedentes. Boff, (2000), afirma que vivemos uma crise de paradigma que afeta o masculino e, consequentemente, a visão patriarcal que, para ele, radicalizou o antropocentrismo: a dominação total da natureza pelo ser humano, que se sente acima das outras formas de vida e apartados da natureza, o que gera subordinação e violência. Pelo fato de ser baseado na violência sobre a natureza, sobre as classes, sobre os países mais fracos, esse paradigma de desenvolvimento terminou, nos dias atuais, ameaçando o equilíbrio físico-químico do planeta Terra, destruindo florestas, contaminando a atmosfera e as águas, envenenando o solo e o subsolo; numa palavra gerando má qualidade de vida para os seres humanos e para toda a biosfera. (op. cit. P 100)

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Com isso, Boff ressalta a emergência do novo paradigma chamado por ele de religação que virá com o resgate do princípio feminino. Essa é para o autor a grande tarefa civilizacional e a mais urgente. Ele chama a atenção para o fato de que o princípio masculino/ feminino é diferente de gênero, de sexo biológico. E afirma que é necessário ultrapassar a visão excludente e entender a sexualidade num outro nível:

Precisamos ultrapassar essa visão excludente e entender a sexualidade num nível ontológico, não como algo que o ser humano tem, mas como algo que ele é. O masculino não diz respeito somente ao homem, mas também a mulher. O feminino não ganha corpo apenas na mulher, mas também no homem. Esse feminino representa o princípio da vida, de criatividade, de receptividade, de enternecimento, de interioridade e de espiritualidade no homem e na mulher. Portanto trata-se de um princípio seminal que encontra na constituição da realidade humana. (op. cit. P. 105)

O resgate do princípio feminino é um desafio à cultura machista. Por pensar na economia da vida e na sua sustentabilidade, ele não leva em conta o desenvolvimento somente no plano econômico e social. A cultura patriarcal ainda hoje é extremamente preponderante e por isso a dificuldade em superá-la; porém já se percebe que há sinais de desintegração e novas conversações que poderão colaborar com a mudança de paradigma preconizada por Boff, que entende a atual crise como civilizatória.

O homem-varão é chamado a revisitar sua anima e, junto com o animus, construir uma história de integração, de panrelacionalidade e de sinergia. Não se definirá mais pela condição sexual (casado, solteiro, divorciado, heterossexual, homossexual, bissexual etc), mas pelas características da personalidade, feminina/masculina, solidária, cooperativa, antiautoritária e aberta a novas sínteses. (op.cit, p. 11)

Capra (1982), em seu estudo sobre o ponto de mutação faz uso de uma estrutura desenvolvida no I Ching que se baseia na ideia de uma contínua flutuação entre dois polos arquetípicos que sustentam o ritmo de todo o universo. São eles o yin e o yang, chamado pelos filósofos chineses de Tao. Capra nos explica que o Tao tem uma natureza cíclica incessante entre o fluxo e a mudança e são polos de opostos que fazem parte de um único todo e a ordem natural é um equilíbrio dinâmico entre eles. Não existe um bom e o outro não. O que é mal é o desequilíbrio entre eles.

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O yin é associado ao feminino, o yang ao masculino e todos nós, homens e mulheres, temos as duas polaridades. Capra usa essa estrutura conceitual para ressaltar valores e atitudes culturais. O autor faz as seguintes associações: Yin: feminino, contrátil, conservador, receptivo, cooperativo, intuitivo e sintético. Yang: masculino, expansivo, exigente, agressivo, competitivo, racional e analítico. A partir dessas associações Capra nos diz que:

Se atentarmos para essa lista de opostos, é fácil ver que a nossa sociedade tem favorecido sistematicamente o Yang em detrimento do Yin - o conhecimento racional prevalece sobre a sabedoria intuitiva, a ciência sobre a religião, a competição sobre a cooperação, a exploração de recursos naturais em vez da conservação, e assim por diante. Essa ênfase, sustentada pelo sistema patriarcal e encorajada pelo predomínio da cultura sensualista durante os três últimos séculos, acarretou um profundo desequilíbrio cultural que está na própria raiz da nossa atual crise – um desequilíbrio em nossos pensamentos e sentimentos, em nossos valores e atitudes e em nossas estruturas sociais e políticas. (op.cit. p. 37)

Esse pensamento divide corpo e mente, razão e emoção, corpo e espírito e cria outras polaridades que se refletem no social; homens e mulheres; negros e brancos; ricos e pobres, etc. Além disso, fundamenta a lógica de exploração da natureza pelos diferentes campos de interesse econômico e político. Capra nos mostra que as mulheres foram identificadas com a natureza e por isso sofreram as mesmas consequências:

A exploração da natureza tem andado de mãos dadas com a das mulheres, que têm sido identificadas com a natureza ao longo dos tempos. Desde as mais remotas épocas, a natureza – e especialmente a terra – tem sido vista como nutriente e benévola mãe, mas também como uma fêmea selvagem e incontrolável. (...) Sob o patriarcado a imagem benigna da natureza converteuse numa imagem de passividade, ao passo que a visão da natureza como selvagem e perigosa deu origem à ideia de que ela tinha que ser dominada pelo homem. Ao mesmo tempo, as mulheres foram retratadas como passivas e subservientes ao homem. (op. cit.p. 58)

É essa revolução que Leonardo Boff (1999) aponta em seu livro Saber Cuidar. Ele nos fala da necessidade de construirmos uma sociedade fundada na ética do cuidado que substituirá a competição pela colaboração, pela cooperação e nos chama a resgatar o

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altruísmo que uma mãe tem em relação ao filho recém-nascido: ou ela cuida ou ele não sobreviverá. Boff afirma que esse altruísmo está sendo exigido num plano maior para que haja a sobrevivência de nossa espécie e do futuro da vida no planeta. Ou cuidamos de nós mesmos, uns dos outros, e da natureza, ou apressaremos a nossa destruição. Concordando com o pensamento de Boff, podemos dizer que o feminino nos permite recepcionar, cuidar e reverenciar o sagrado através da não separação entre o corpo, a mente e o espírito. Desta forma o feminino profundo, contribui para o despertar do nosso senso de responsabilidade e cuidado para com a nossa Mãe Terra, ouvindo a vontade sagrada de nossa alma e de nosso corpo, orientados pela fluidez de nossas águas, pela cooperação, pela biologia do amor, experimentando-nos unos com a natureza que é fonte de toda a criação. Com esse olhar sobre o feminino, optamos por uma metodologia capaz de integrar corpo, mente e espírito e buscasse, através da colaboração e do compartilhamento de saberes, a relação entre as questões ambientais, a água, o feminino profundo e a cooperação. Essa metodologia será melhor detalhada no próximo capítulo.

49 “Viajar não é um passeio incerto para quem sabe olhar e leva o itinerário consigo”. Amos Bronson Alcott

CAPÍTULO II O CAMINHO DAS ÁGUAS

Nesse capítulo abordaremos a metodologia utilizada no trabalho. Partimos do pressuposto que o conhecimento acontece na relação, por isso ele é complexo e transdisciplinar, possibilitando a interconexão dos saberes através de uma aprendizagem que ocorre de forma circular. Edgar Morin (2004), ao escrever sobre a ética, coloca que o conhecimento complexo conduz a uma ética da solidariedade e da não coerção e pode colaborar com o autoconhecimento. Ele nos diz que o pensamento complexo:

Comporta a necessidade de autoconhecimento pela integração do observador na sua observação, pelo retorno a si para objetivar-se, compreender-se e corrigir-se, o que constitui, ao mesmo tempo, um princípio de pensamento e uma necessidade ética. (...) O pensamento complexo conduz também para a ética da responsabilidade (reconhecimento do sujeito relativamente autônomo) e da solidariedade (pensamento que religa). (MORIN 2004, p. 65)

A transdisciplinaridade implica numa postura sensível para as informações provenientes do diálogo estabelecido, pois reconhece os diferentes níveis que compõem o ser humano e como eles repercutem entre si. Por isso, a necessidade de um olhar aberto e integrador, sem perder o respeito, o rigor e a inclusão. Daí o nosso reconhecimento aos três pilares da transdisciplinaridade: a complexidade, a lógica do terceiro incluído e os níveis de realidade.

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Maria Mello, Vitória Barros e Américo Sommermam, (2002), coordenadores do CETRANS4 nos dizem que:

O olhar transdisciplinar nos remete a um todo significativo que emerge de um diálogo constante entre as partes e o todo, e os três pilares da transdisciplinaridade permite que a transdisciplinaridade também encontre um lugar na pesquisa e na aplicação. (MELLO, BARROS e SOMMERMAM, 2002, p. 10 e 11)

Desta forma a pesquisa foi aqui utilizada como um ato reflexivo e de interpretação das respostas às questões propostas e ao diálogo estabelecido durante os trabalhos, e por isso ela se situa no campo qualitativo da investigação. Queríamos estabelecer uma interação com as mulheres de forma dialógica no sentido de fazer emergir o que pensavam e sentiam durante o encontro. Entendemos a dialógica como Morin (2004), como lógicas que se alimentam e se complementam, sem perder suas características que podem ser concorrentes ou até antagônicas. Elas não precisam se fundir em uma única síntese, suprimindo as diferenças de qualquer natureza (econômica, política, sociológica, o psicológica, afetiva, ou até mitológica), pois podem coexistir sem excluir-se necessariamente, por isso é complexa. Segundo Morin (2004), complexus significa “o que foi tecido junto” em um contexto que inclui as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si. Paulo Freire (1969) propõe uma aprendizagem integral, libertadora que rompe com a fragmentação e requer uma tomada de posição frente aos problemas vivenciados em um determinado contexto. Para o autor, essa concepção promove a horizontalidade na relação, a valorização das culturas locais. O autor propõe uma práxis que se compromete com a emancipação de homens e mulheres através de círculos de aprendizagem que ele chamou de "círculos de cultura", cujo objetivo não era centralmente a alfabetização, mas contribuir para que as pessoas assumissem sua dignidade enquanto seres humanos e se

4- Centro De Educação Transdisciplinar da Escola do Futuro da USP.

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percebessem detentores de sua história e de sua cultura. Dessa forma concebe educação como reflexão sobre a realidade. A metodologia dos círculos de aprendizagem é, portanto, fundamentada no pensamento Freireano. O circulo é espaço-tempo de socialização, de problematização e caracteriza-se como lócus privilegiado de comunicação – discussão, embasadas no diálogo firmado a partir da fala e da escuta. A fala fundamentada nas experiências refletidas das pessoas. A escuta orientada pela vontade de apreender com a fala do outro que, ao problematizá-la, problematiza-se, gerando assim a ampliação do olhar sobre o mundo e a aprendizagem coletiva. E que é o diálogo para Paulo Freire?

É uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica e gera criticidade (Jaspers). Nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso, só o diálogo comunica. E quando os dois polos do diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com fé um no outro, se fazem críticos na busca de algo. Instala-se, então, uma relação de simpatia entre ambos. Só aí há comunicação (FREIRE, 1969, p. 107).

Nesse contexto, a formação de um círculo de aprendizagem propiciou uma vivência democrática do pensamento das mulheres, de suas experiências, suas linguagens e modo de encarar a vida em uma dinâmica que valorizou ações comuns, construídas coletivamente. Ao buscar compreender o que pensam as mulheres sobre as relações estabelecidas entre a questão ambiental, água, o feminino e a cooperação, nos percebemos muito envolvidas emocionalmente e afetivamente, não apenas com os temas, mas também com as atividades e as participantes. O nosso olhar não foi um olhar distante, privilegiado e neutro, mas, apesar de estarmos envolvidas com a pesquisa, nos colocamos na postura de focalizadoras que se transformam à medida que geram transformações. Sabíamos que esse tema era caro para nós duas, que víamos de histórias de vida com envolvimentos com a temática, mas tínhamos clareza do nosso papel e, portanto não induzimos o grupo para essa ou aquela postura, mas nos colocamos numa terceira posição, a medida que facilitávamos o processo, observávamos, registrávamos tudo sem que nos misturássemos no grupo. Contudo buscamos ter sensibilidade para que o próprio grupo se sentisse à

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vontade e criasse as condições necessárias para a discussão fluir, as pessoas se situassem e explicitassem os seus pontos de vista. Sabíamos também que as questões propostas nos diversos momentos nos atingiriam como mulheres e pessoas engajadas com as causas socioambientais, no entanto buscamos propiciar um ambiente de colaboração para que as participantes fizessem as relações das temáticas com as suas essências mais profundas. Estávamos juntas e separadas das mulheres. Na clareza de nossos papeis como pesquisadoras, evitamos qualquer juízo de valor, mas não nos separamos do objeto de nossa pesquisa. Humberto Maurana e Francisco Varela (1995), no livro A Árvore do Conhecimento, expõem que existe uma base biológica para o conhecimento. E que o cérebro não é apenas um sistema que processa informações, mas em sua organização interage com a realidade modificando-a a luz de experiências vividas. Desta forma podemos inferir que não existe dicotomia entre sujeito e objeto, razão e emoção e que a subjetividade faz parte da investigação metodológica. Com isso, ficamos tranquilas para seguir com o trabalho. A pesquisa nesse trabalho foi realizada de forma processual, sistemática e se deu através da abordagem qualitativa, fazendo uso de uma vivência com um grupo de treze mulheres com o objetivo de construir um texto coletivo sobre a temática em questão. Para isso, a observação participante se constituiu como uma importante fonte de informação. Assumimos que a observação foi participante5 porque à medida que focalizávamos os trabalhos, esclarecíamos dúvidas, e também estávamos compondo o círculo de mulheres. Todo o trabalho foi registrado cuidadosamente, na busca de detalhes significativos. Além disso, utilizamos a gravação de áudio, fotografias e a própria escrita das mulheres. Buscamos não apenas o conteúdo expresso, mas tentamos captar as interações ocorridas. À medida que respondiam as questões e o diálogo fluía na interação entre participantes, anotávamos o que mais nos chamava atenção e recolhíamos as tarjetas com

5- Esse termo ‘observação participante’ foi aqui introduzido a partir de diálogos com Ricardo Burg e da leitura de sua dissertação de mestrado onde esse termo é utilizado como um aspecto metodológico.

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anotações e todo o registro produzido. Também buscamos registros fotográficos para ver o que as imagens nos revelariam. Desta forma a metodologia fundamentou-se na Análise de Conteúdo. Laura Franco (2008) nos diz que o ponto de partida da Análise de Conteúdo é a mensagem, seja ela verbal (oral ou escrita), gestual, silenciosa, figurativa, documental ou diretamente provocada é a mensagem (FRANCO, 2008, p. 12). A autora também nos indica que devemos observar o significado e o sentido dos conteúdos trabalhados. Ela afirma:

O significado de um objeto pode ser absorvido, compreendido e generalizado a partir de suas características definidoras e pelo seu corpus de significação. Já o sentido implica a atribuição de um significado pessoal e objetivado que se concretiza na prática social e que se manifesta a partir das Representações Sociais, cognitivas, subjetivas, valorativas e emocionais, necessariamente contextualizadas. (FRANCO, 2008. p. 13)

Ao rever todo o material buscamos captar as respostas mergulhando nos depoimentos, bem como na análise do texto coletivo, observando que ele foi um processo reinterativo que sofreu várias reconstruções com base nos diálogos e consensos. Para analisar os conteúdos elegemos as categorias: cooperação, meio ambiente, água, feminino e as conexões estabelecidas entre estes conceitos. Roque Moraes, ao escrever sobre análise textual nos diz que:

(...) Esta pode ser entendida como um processo de desconstrução, seguida de reconstrução, de um conjunto de materiais linguísticos e discursivos, produzindo-se a partir disso, novos entendimentos sobre os fenômenos e discursos investigados. (MORAES, 2007, p. 87)

Ao interpretarmos o corpus de nosso trabalho produzido no ambiente de colaboração da roda de diálogo com as mulheres (palavras, frases, textos e discursos orais), marcamo-lo com a subjetividade de nossas escolhas e interpretações, pois temos a consciência de que não há como não se influenciar com a multiplicidade de vozes e ao ouvi-las e ler o material produzidos, o fazemos a partir dos referenciais teóricos

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apresentados no capítulo I. Assim assumimos que a leitura feita não está descomprometida do nosso olhar, contudo realizamos uma leitura rigorosa e profunda de todo o material produzido com o objetivo de descrevê-lo e interpretá-lo no sentido de atingir uma compreensão do que pensam as mulheres envolvidas sobre a relação entre as categorias escolhidas: a água, o feminino e a questão ambiental, que é o próprio objeto de nossa investigação. As nossas opções valorizaram determinados aspectos em detrimentos de outros e esse diálogo se estabeleceu entre nós duas, autoras do trabalho. Com a riqueza do discurso oral e como as mulheres derivaram para relatos de suas próprias vidas, houve uma ampliação daquilo a que nos propusemos inicialmente. Em nenhum momento pretendíamos transformar a roda de diálogo em algum processo terapêutico, mas foi inevitável que ali ocorressem revelações secretas de situações vividas pelas mulheres, que marcaram suas vidas e querendo ou não, o espaço também foi um espaço de cura. Como o recorte feito se deu a partir do que era significativo e pertinente para os objetivos e questões propostas pela pesquisa, as categorias já estavam definidas a priori e, por isso mesmo, não traremos categorias emergentes que se manifestaram no grupo. Evidentemente não podemos abarcar toda a riqueza e diversidade de elementos que surgiram, contudo se uma questão foi considerada muito relevante para o grupo a indicaremos. Ao planejarmos a roda de diálogos, reconhecemos que traçamos um percurso com uma determinada direção. Que direção foi essa? Optamos por um caminho simbólico, relacionando o curso de um rio à trajetória de vida, como nos inspirou Cora Coralina. Esse recorte metodológico fez emergir relatos pessoais imbricados com as questões ligadas à crise ambiental e de valores sobre o feminino. Escolhemos também contar uma história para ajudar a estabelecer as pontes que entendíamos como fundamentais para interligação das temáticas propostas e isso de alguma forma induziu o processo para as questões estabelecidas. Sabemos que as metáforas e as imagens simbólicas são recursos utilizados há milhares de anos pela humanidade para recompor a realidade. Parábolas, lendas, histórias e mitos foram e continuam sendo utilizados para transmitir ideias e valores. Funcionam

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também como fonte de insigths e revelação da nossa condição humana. A história escolhida trouxe a dimensão subjetiva, fazendo a ponte do pessoal, do cotidiano, com a crise ambiental contemporânea. O pesquisador Joson Elias, no livro A Casa da Lua, escreve outro forte argumento que subsidiou nossa opção de aprofundar o trabalho através de uma história: Quando ouvimos histórias, o verdadeiro impacto pode não ser sentido durante dias, pois histórias funcionam como cápsulas de ação gradual retardada em que a sabedoria vai se infiltrando em pequenas doses, dando-nos tempo para nos ajustarmos e nos adaptarmos. Os ‘remédios’ histórias são fortes e de efeito muito duradouros. (ELIAS, 1998. p.49)

Clarisse Estés, psicanalista Junguiana e contadora de história, na contra capa do livro: O Dom da História nos diz que:

Histórias que instruem, renovam e curam proporcionam alimentação vital para a psique, que não pode ser obtida de nenhuma outra maneira, histórias revelam, repetidamente, a aptidão peculiar e preciosa que os humanos possuem para obter êxito nas tarefas mais árduas. Elas fornecem todas as instruções essenciais que precisamos para ter uma vida útil, necessária e irrestrita. Um a vida significativa, uma vida que vale a pena ser lembrada. (ESTÉS, 1998)

A escolha da metodologia da construção do texto foi baseada na aula/experiência focalizada pela professora Eliane Fausto no módulo - Cooperação e Educação, intitulada semente. Essa metodologia será melhor detalhada durante a descrição da atividade. Ela parte de palavras, depois frases com as palavras e a partir daí segue com interações entre as participantes até se chegar ao texto final. Esse texto se expressará também através de um desenho artístico. Todo o processo passou por conversações para a construção coletiva do mesmo. Juanita Brown, uma das fundadoras da metodologia do Word Café e membro da Sociedade para Aprendizagem Organizacional afirma que os processos conversacionais trabalham com memórias vivas que ativam uma inteligência coletiva, que só ocorre no diálogo grupal a partir de duas crenças fundamentais constituintes do universo humano:

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(...) Primeiro, nós, humanos, queremos conversar em conjunto a respeito das coisas que são importantes para nós. Segundo, a medida que conversamos em conjunto nos tornamos capazes de acessar uma sabedoria maior que se encontra apenas no coletivo. (BROW, 2007, p.14)

2.1 No fluxo das águas, conferindo a rota: o relato da oficina

“Como um rio, que nasce de outros, saber seguir, junto com outros sendo e noutros se prolongando e construir o encontro com as águas grandes do oceano sem fim. Mudar em movimento, mas sem deixar de ser o mesmo ser que muda. Como um rio”. Thiago de Mello

Foi difícil escolher entre o que dispúnhamos no cardápio. A tarefa era optar entre o que nos tocou mais profundamente na Pós-Graduação em Jogos Cooperativos, e que também tinha afinidade com o tema de reflexão que nos propúnhamos. Decidimos por uma roda de diálogos, de conversas, de partilhas, em um ambiente propício para tal atividade. O critério para a escolha das mulheres foi aleatório, porém estariam em nosso campo de relações, terem idades variadas, serem envolvidas com o tema e disposição para vivenciar o trabalho completo, isto é, todos os momentos o que equivaleria a doze horas de encontro. Queríamos observar como se daria as relações interpessoais, qual a qualidade das falas e da escuta, como se colocariam no círculo e de que forma a colaboração seria um valor vivenciado por todas. Com esse espírito convidamos um grupo de mulheres para participar do encontro planejado. Inicialmente, pensamos em realizar três encontros de quatro horas cada um. Em virtude da agenda cheia de todas as convidadas, optamos por reduzir para um dia só, mantendo a densidade da proposta inicial.

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Imagem 3- Convite para a participação na vivência

A vivência teve como público participante um grupo de 13 mulheres que aceitaram o convite de forma voluntária. Dessas treze, 100% responderam a um questionário que continha dados pessoais. Quatro mulheres (33,3%) possuíam idade entre 27 e 30 anos. Uma possuía a idade entre 30 e 40 anos (8,3%). Duas (16,6%) estavam na faixa dos quarenta, tinham respectivamente 43 e 48 anos. Cinco (41,6%) delas se encontravam entre 52 a 58 anos e uma delas tinha 60 anos. De todas, sete (53,8%) eram mães, três (25%) avós e apenas uma (8,3%), a mais velha já era bisavó. Quanto à profissão ou ocupação o grupo foi composto por: uma Estudante e terapêutica de florais, uma focalizadora de danças circulares, uma assistente social e consultora ambiental, duas biólogas, três educadoras, uma jardineira agroflorestal e realizadora audiovisual uma funcionária pública, doula e instrutora de yoga, uma arte-educadora ambiental, uma terapeuta e educadora e uma dona de casa. Cada detalhe da oficina foi pensado com carinho, desde a ambientação do espaço ao alimento servido. Preparamos tanto o espaço físico, externo, quanto o nosso espaço pessoal e interno. No físico, cuidamos das condições de limpeza, organização e infraestrutura. No espaço pessoal, a preparação se deu não apenas no plano mental, mas

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também no campo sutil e energético levando em conta a respiração, o equilíbrio, a energização dos chacras6 e a presença (aqui e agora). Inspiradas nos ensinamentos da Lydia Rebouças e da Paula Falcão, professoras da pós-graduação em Jogos Cooperativos, planejamos o encontro observando os quatro planos de manifestação do ser: espiritual, mental, emocional e físico. Esses planos funcionam como filtros de representação pessoal e grupal: Plano espiritual: valores, metas de vida, questionamentos, intuição, criatividade, consciência grupal, ideais, entre outros. Plano mental: pensamentos, imaginação, raciocínio, conhecimentos, ideias, entre outros. Plano emocional: sentimentos reações, atitudes, ideologias, padrões de comportamento, relações interpessoais, contágio emocional, etc. Plano físico: habilidades, movimentos, linguagem corporal, energia do grupo, as condições do local etc. Esses quatro planos podem ser relacionados à tipologia Junguiana: intuição, pensamento, sentimento e sensação, que por sua vez podem ser relacionados aos quatro elementos da natureza: fogo, ar, água e terra. Por isso, colocamos no centro da nossa roda elementos representativos dos quatro elementos seguindo as seguintes relações: Espiritual ← → intuição ← → fogo; Mental ← → pensamento ← → ar; Emocional ← →sentimento← → água e Físico ← → sensação ← → terra. Além disso, percebemos o grupo como sistema e por isso nos sintonizamos com a inteligência dos sistemas, invocando, de forma consciente a energia do chamado DEVA7

6- Chakra é a denominação sânscrita dada aos centros de força existentes dentro do corpo e nos corpos espirituais do ser humano que distribuem a energia (prana) através de canais (nadis) que nutre órgãos e sistemas. 7- Não possui forma física, é considerado o espírito de um sistema, uma espécie de proteção ao campo do grupo.

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do grupo para que o nosso trabalho fluísse bem. Dessa forma solicitamos a permissão, pedimos e confiamos no bom andamento dos trabalhos. Assim, o trabalho foi realizado no dia 8 de julho de 2012, a lua estava minguante, e o sol caloroso. As mulheres foram chegando aos poucos e iniciamos os trabalhos às 9h e 30 minutos com a presença das treze participantes. Finalizamos a oficina às 19hs com o círculo completo e as mulheres felizes e renovadas como pudemos constatar nos depoimentos finais. A oficina contemplou cinco etapas distintas. A primeira etapa foi de conhecimento do grupo: “Quem somos nós? De onde viemos?” A segunda etapa aprofundou a histórias de vida e estabeleceu relações das histórias pessoais com as água de um rio, desde a sua nascente à foz. A terceira trouxe a temática do feminino e de como está a nossa força criativa através de uma história, La Lhorona, do livro Mulheres que Correm com Lobos, da Clarisse P. Estés. A quarta etapa, após o almoço, foi realizada por meio de uma breve visita do grupo às margens de pequeno córrego, o Urubu, que corre bem próximo ao local onde foi realizada a oficina. O quinto momento contemplou à construção coletiva de um texto e de um desenho, e pretendeu integrar as dimensões anteriores e buscar as interrelações entre as temáticas das águas, do feminino e do meio ambiente por meio do processo de cooperação. As vivencias buscaram criar um campo sensível para que fosse possível emergir as percepções sobre cooperação, água, feminino e meio ambiente, e depois, possibilitar a construção de um texto e de um desenho coletivo sobre essas reflexões.

a) Início

No primeiro momento da oficina, iniciamos com o acolhimento: chamamos as mulheres para compor a roda e demos boas-vindas para o grupo. O centro da sala foi decorado com objetos representativos dos quatro elementos da vida. Abrimos o círculo solicitando ao grupo que fizesse uma respiração profunda, com o objetivo de sentir o corpo e trazer consciência para o tempo e o espaço presente. Fizemos uma breve apresentação dos objetivos da oficina e da nossa proposta de TCC. A seguir, solicitamos a

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cada participante que se apresentasse falando seu nome, o nome de suas ancestrais e de seus descendentes. Desde o início estabeleceu-se uma cumplicidade, respeito e harmonia no grupo. A emoção foi vivenciada fortemente ao pronunciar a linhagem matrilinear: Sou fulana de tal, filha de fulana de tal, neta de tais mulheres e mãe de tais pessoas. Algumas mulheres trouxeram a presença de filhos abortados e isso abriu um canal de revelações, intimidades e segredos femininos. Muitas mulheres8 presentes não se conheciam e mesmo assim sentiram-se à vontade para falar de suas cicatrizes relacionadas à maternidade. É interessante destacar que estávamos apenas nos apresentando e o grupo já estava instalado, ligado a sentimentos de pertencimento, solidariedade e respeito. Logo após esse momento, partimos para a primeira atividade:

b) Oficina - Rio da Vida Escolhemos começar nosso trabalho em grupo com a atividade do Rio da Vida9. Essa atividade tinha alguns objetivos: estabelecer a relação entre as histórias de vida dos participantes, tendo a água como uma metáfora da vida; criar um círculo de diálogo, intimidade e aprendizagem; propiciar o exercício de uma escuta sensível e atenta; por fim, perceber a afinidade das mulheres a partir de suas experiências.

Descrição da Oficina

A ideia central da atividade foi olhar e pensar a vida como um curso d'água, com o propósito de religar-se à nascente (a nossa origem, a nossa ancestralidade), abrir-se ao

8- Os nomes usados são fictícios para preservar e resguardar a identidade das mulheres participantes da oficina.

9- Oficina Inspirada na Oficina Rio da Vida, da professora Vera Catalão, vivenciada no evento A

Voz das Avós no fluir das águas, realizada em Brasília, em outubro de 2011.

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fluxo da vida e projetar a foz (os sonhos futuros). As perguntas feitas às mulheres foram: Onde me situo no rio da vida, de onde vim, o que já fiz, o que estou fazendo e o que ainda penso em fazer? “A intenção dessa atividade é ligar as histórias de vida e a trajetória dos rios, permitindo uma nova percepção sobre a história de vida de cada pessoa, seguindo o fluir das suas águas, para descobrir o sentido do seu próprio curso, da sua própria história”. (CATALÃO, 2011, depoimento).

Assim, as mulheres sentaram-se ao redor do traçado de um grande rio, feito em um papel com cerca de 4 metros de comprimento, com seus remansos e meandros, corredeiras, canyons e vales. Em seguida, as participantes foram convidadas a desenhar ou pintar o que desejassem para se formar uma bacia hidrográfica que representasse o “rio da sua vida”, da nascente até a sua foz. Algumas transitaram pelo desenho, outras desenharam num único espaço, algumas ficaram em silêncio, outras conversaram baixinho, riram e trocaram ideias. Houve momento de profundo silêncio onde só se ouvia uma música com sons de água ao fundo.

imagem 4 –desenhando o rio

imagem 5- desenhando o rio

Ao final do desenho, cada participante falou sobre os sentimentos que emergiram e o significado da sua intervenção sobre o desenho do rio da vida. Solicitamos que falassem utilizando a primeira pessoa do singular, com o intuito de exercitar a autoria dos sentimentos, ideias e posições, trazendo para si a responsabilidade de colocar-se por inteira, sem subterfúgios. Porém essa solicitação não foi cumprida na integra. Ao observarmos as mulheres, percebemos que o desenho foi uma expressão espontânea e que as mulheres não racionalizaram tudo o que expressaram no papel. No

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momento da fala, os significados foram emergindo. Foi por meio da linguagem oral e da escuta que se processou racionalmente o que foi simbolizado no desenho, construindo-se um entendimento sobre o vivido. Também vieram à tona conteúdos que estavam imersos. Compreendemos que houve um reconhecimento do que foi e do que é mais significativo na vida de cada uma das mulheres. Um processo de dar-se conta criativo e curador como observamos nas falas abaixo descritas:  Eu sou Heloisa. Sou filha de Maria Gil e neta de Catarina e Humbelina e eu venho de uma linhagem de mulheres que não tiveram mães. Que as Mães, fora eu, ou morreram no parto ou com crianças muito pequenininhas.  Sou Leonora. Meu papai está passando um momento muito difícil no hospital, minha mãe Clemência, meu pai Francisco. Descendentes: minha filha Amanda, meus filhinhos abortados, meu neto Gabriel, meu neto Caio, e meu bisneto Bernardo. Minha vó Henriqueta, meu avô Marcelino. Meu avô João e minha vó Laudir.

c) História da La Lhorona Para aprofundar as reflexões feitas a partir do desenho do “Rio da Vida” decidimos pela contação de uma história. Escolhemos uma história identificada com a temática do feminino e das águas, que nos ajudou a navegar nas águas subterrâneas turbulentas do aqui e do agora: La Lhorona. La Lhorona10 foi escolhida com o intuito de ampliar as reflexões do grupo sobre o feminino profundo, as águas e a questão ambiental. A história relaciona a força criadora feminina com um rio subterrâneo da nossa psique, exatamente como um rio natural com seus estuários e afluentes. O tema da história é a destruição do 'feminino fecundo', a contaminação da beleza selvagem, seja no mundo interior, seja no mundo exterior.

(...). Uma mulher cuja vida criativa está definhando vivencia, como La Llorona, uma sensação de envenenamento, de deformação, um impulso para acabar com tudo. Em seguida, ela é levada a uma procura aparentemente 10- Essa história encontra-se no livro Mulheres que Correm com Lobos, de Clarisse Pinkola Estés, no décimo capítulo, intitulado: As Águas Claras: o sustento da vida criativa.

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interminável do seu processo criativo original, em meio aos destroços. (ESTÉS, 1997 p. 380).

No livro, Clarisse Estés traz duas versões da mesma história, uma versão tradicional e uma versão moderna, conectada com os tempos atuais. As histórias seguem em anexo. Com essa história, considerada “história de arrepiar”, tentamos trazer o simbólico para falar de uma poluição literal das águas externas e internas. Ela nos dá arrepios, pois sabemos serem verdadeiras as relações explicitadas e, como mulheres, sentimos que em algum momento de nossas vidas já passamos por situações assim. Como dizem que quem conta um conto aumenta um ponto, acabamos mesclando as duas versões, para 'atualizar' a história, de forma a atender nossos objetivos. Solicitamos ao grupo que a escutasse de olhos fechados, para que também exercitassem a visualização criativa.

Eis a versão da história La Lhorona contada na oficina: “Existia um lugar lindo, com um rio de águas cristalina onde vivia uma comunidade feliz e em harmonia com a natureza. Porém chegou um fidalgo vindo da Espanha para ali instalar uma fábrica. Com esse intuito, foi morar no lugar e usou o artifício de enamorar-se a uma bela donzela que ali vivia. Ela logo se apaixonou por ele e passaram a viver juntos, porém ele não se casou com ela, pois tinha uma noiva muito rica que o esperava nas terras estrangeiras. A jovem engravidou de gêmeos e nesse período a fábrica já instalada jogava veneno nas águas do rio. Sem dar-se conta do perigo, a jovem gestante bebeu da água do rio, como era o costume, e por esse motivo seus filhos nasceram defeituosos, tinham os dedos grudados e as mãos deformadas. O fidalgo, muito rico e poderoso resolveu abandonar a jovem mãe para casar-se com a noiva estrangeira que possuía muitos bens. Então, ele a rejeitou juntamente com seus filhos. A jovem mãe, desesperada e com o coração tomado pelo ódio e pela revolta, jogou os seus filhos nas águas sujas e poluídas do rio e logo se afogaram. Com esse ato sentiu um dor tão profunda que morreu. Ao chegar ao céu, São Pedro não a deixou

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entrar e disse-lhe que isso só aconteceria se ela resgatasse do fundo do rio os seus dois filhos. A partir daí, como alma penada, ela vaga pelo rio, enfiando os seus dedos longos de fantasma, arrastando-os na lama do rio a procura de seus dois filhos, que foram mortos por ela. Chorando de arrependimento e dor, ela chama pelas crianças, sem nunca tê-los encontrados, pois as águas estão muito escuras e poluídas. Dizem que até hoje, se andarmos nas beiras dos rios à noite poderemos ouvir os seus lamentos. E é por isso mesmo que as crianças não devem permanecer nos rios ou em suas margens à noite, pois ela pode confundi-los com seus filhos e levá-los para o céu. “É bom cuidar para não encontrá-la, pois ela é uma mulher ferida a procura de seus filhos perdidos.”

Após contarmos a história, fizemos ao grupo uma pergunta: Se pudéssemos analisar simbolicamente cada elemento da história com as nossas vidas, quais relações faríamos? As respostas retratam percepções variadas e serão explicitadas no capítulo III quando analisaremos os depoimentos das mulheres fazendo relação dessas falas com a questão central da pesquisa. Ao final da manhã, para concluir os três momentos de trabalho realizado na oficina: acolhimento; rio da vida; e contação e reflexões sobre a história, perguntamos as mulheres qual o aprendizado vivenciado. As respostas foram:  Deixa fluir e não represar. (Clara)  Eu aprendi sobre a fonte, aprendi também que é importante o que a gente bebe, se a água está envenenada - o que eu ponho pra dentro e o que eu ponho pra fora. (Amália)  Eu aprendi sobre a libertação, a criatividade. (Leonora)  Estou aprendendo que eu posso ser mais eu. (Érika)  Eu tô aprendendo a libertar a consciência a partir da entrega. (sic) (Margarida)  Que é constante o aprendizado, a importância de ouvir de acolher, de processar de expressar e abrir. Deixar fluir. (Joana)  Estou aprendendo como é bom compartilhar a vida, como é bom escutar e gratidão. (Cristina)  Eu estou reaprendendo a ser mulher. (Laís)

65  Estou aprendendo que o rio da vida vai nos levando ao encontro de pessoas certas, na hora certa. (Leonora)  Grata. (Renata)  Eu to aprendendo que eu posso compartilhar ouvir e falar. (sic) (Marcela)  Eu estou aprendendo como é importante, revelador, desabrochador estar num grupo de pessoas que alimentam tanto o meu espírito, como este. (Laura)  Eu tô aprendendo que a gente tá sempre aprendendo. (sic) (Camila)

d) Almoço

Almoçar juntas, relaxar, conversar informalmente também fez parte da metodologia como um espaço aberto, livre de objetivos específicos, mas muito significativo. O cardápio do almoço, todo orgânico, constituiu-se de arroz integral, lentilha, lasanha de berinjela com legumes, salada, suco natural e cafezinho, tudo preparado especialmente para esse momento, revelando o cuidado com esse tempo dedicado ao alimento do corpo físico. Observamos que as mulheres falavam de seus dons adormecidos, contavam fatos de suas vidas quando crianças e demonstravam estar à vontade umas com as outras, num ambiente agradável e prazeroso. Após o almoço dançamos uma ciranda para animar e trazer a presença e iniciarmos a segunda parte da jornada do dia. Depois de integradas e motivadas pela dança, nos deslocamos em silêncio até o Córrego do Urubu com a proposta de sentir o ambiente, observar os detalhes das formas e cores, sentir os aromas e a presença dos seres que ali habitam e fruir o contato com a natureza. Uma pequena trilha nos levou às águas correntes do córrego. Fizemos um círculo, pisando na areia do rio, e nos conectamos com as águas que ali corriam. Falamos palavras que nos conectaram com as energias de cura, a serem gravadas nos cristais da água, inspiradas na pesquisa de Masaru Emoto (2009) que fotografou os cristais de água e identificou que eles se modificam quando expostos a diferentes vibrações emitidas por palavras, músicas, pensamentos e níveis de poluição. Neste local, Érika e Marcela, moradoras da região, nos contaram a história do córrego. Como se constitui a microbacia, sua nascente e o caminho que faz até a foz, seu encontro

66 com o córrego Sagui, nas proximidades de onde estávamos reunidas.11. Leonora e Heloisa cantaram em homenagem as águas.

Imagem 6 - cachoeira e o desenho da micro bacia do córrego do Urubu

Retornando ao local da oficina, foi feito um relaxamento com uma visualização criativa. O objetivo desse momento foi o de registrar mais intimamente toda a experiência do contato direto com as águas, possibilitando um encontro mais profundo de nossas águas internas com as águas externas do rio. Sugerimos que as mulheres visualizassem um mergulho no córrego, sentissem as águas banhando seus corpos, se deixassem refrescar e relaxar.. Com essa sensação de conforto, solicitamos que ouvissem a resposta da questão central de nosso círculo de diálogo. Com essa sensação, passamos para momento seguinte: a escrita colaborativa do texto.

e) Texto colaborativo

A parte final da oficina tinha como objetivo a construção coletiva de texto que visasse responder a principal pergunta da pesquisa: Quais relações singulares existem entre o feminino profundo, a água e a questão ambiental e a cooperação? A metodologia também seguia um fluxo próprio: o primeiro momento - A fonte (nascente/palavras),

11-Ver mais detalhes no site Salve o Urubu: http://www.salve-o-urubu.blogspot.com.br/

67 depois o veio d’agua (início do fluxo/parágrafos); a seguir o riacho, afluente (fluir/textos em duplas); por fim, o rio (confluência/ único texto). Assim, inicialmente de forma individual, as mulheres foram convidadas a escreverem palavras soltas relacionadas com a pergunta da pesquisa. No segundo momento, já em dupla, foram convidadas a usarem essas palavras para criar um ou dois pequenos parágrafos que chegaram como veios d’agua, construídos a partir de palavras que se juntaram e se constituíram como ideias forças, visando formar pequenos textos. Depois, em grupos de quatro, as mulheres reuniram os pequenos textos feitos em duplas. Os parágrafos podem ser identificados com riachos, que são afluentes de um rio. Mais uma vez, nova mistura. E, no fluir das águas, chegaram ao encontro de um grande rio. Nessas águas confluentes se formou um único texto, como um rio que acolheu todas as águas de seus afluentes, dos riachos, veios d’água e nascentes. O resultado expresso abaixo demonstra a riqueza de ideias e pensamentos acerca da questão central. As palavras são como fonte de ideias. As reflexões que brotam nos pequenos trechos deram consistência para o fluir e confluir das ideias, e se transformar em textos construídos de forma colaborativa , em pequenos grupos de quatro.

1Palavras:

Parágrafo :

fonte; fluidez; nascente/foz; dialogo/não confronto; masculino/feminino; movimento; complementaridade; poluição; integração; transformação da realidade Faltar, trocar, estar entre as mulheres, em diálogo, devolve ou dá fluidez ao feminino estagnado. O masculino dá novo movimento ao feminino.

2Palavras: Parágrafo

Integração; receptividade; renascimento; entrega; memória; fluir; refletir a luz; conhecimento; paz; ser; abundancia Integrar toda a memória no fluir das águas do tempo gera novo conhecimento. A receptividade é uma chave do feminino que nos permite refletir a luz do todo e gera o renascimento da paz original. Se entregar no fluxo para ser plenamente ou ser a própria entrega significa realização.

3Palavras

feminino, ser rio, conexão, amplidão, mundo, nuvem, sonho, doce, salgada,

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Parágrafo

sentimento natureza, cooperação, mulher Somos água que flui, somos natureza que sonha. Natureza é todo que nos comporta. Natureza está dentro e fora de nós, doce e salgada, nuvem, rio sentimento. Pela água somos o mundo, somos o céu conexão, amplidão, cooperação. Somos mulheres.

4Palavras Parágrafo

Fluidez, represar, movimento, aprendizado, alteridade, cura, purificação, paradoxos, feminino, masculino, tempos, atitude, amorosidade. O movimento da vida nos leva muitas vezes para um profundo aprendizado. Um mergulho no rio da alma. O meu feminino bebe do masculino, um rio que deságua dentro de mim, despertando a mulher que sou. E o meu masculino também bebe da minha nascente. O coletivo se transforma muitas vezes numa forte cachoeira, que sem pasmaceira chega com atitude e poder de transformação, de cura, amorosidade.

5Palavras

Novo, liberdade, auto expressão, poder, respeito, natureza, intuição, ação.

Parágrafo

A liberdade para expressar a criatividade e intuição transforma em ação o respeito por todos os seres da natureza - poder de gerar o novo. O poder de gerar o novo pode vir da liberdade para expressar a criatividade e intuição transformando em ação o respeito por todos os seres da natureza.

6Palavras

Parágrafo

Plenitude, estar presente, essência, amor, comunhão, unidade, pureza, serenidade, sentimentos, força no eu superior, alegria, espontaneidade, conexão, autenticidade, entrega. As águas me levam a minha essência. Me envolvem em sentimentos de amor, Me sinto presente, conectada ao eu superior quando em comunhão com a natureza e com a energia feminina sagrada me entrego e deixo o fluxo do rio correr. Quanto mais e melhor eu me aprofundo nas minhas águas, mais enxergo a pureza de quem sou e a plenitude do ser.

7Palavras Parágrafo

8-

Compartilhar, relaxamento, união, congraçamento, encontro, gratidão, paz interior, re-conhecimento, reconexão fluidez. O compartilhar traz um relaxamento no encontro que leva à reconexão com a fluidez. O congraçamento e a união trazem um reconhecimento da paz interna, levando sentimento de gratidão. As águas do feminino profundo são as mesmas que correm no sangue dentro de mim, que voam nos ares que respiramos e que deságuam no mar.

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Palavras

Parágrafo

Cooperar, colaborar, coletivo, coordenar construir, comunidade, contribuir, começar, complementar, continuar confluir, fluir flutuar, água, ar, co habitar, ambiente, eco, casa, terra. Como um rio, água a cada momento, outra como um mar, todas as águas juntas. Ambiente masculino, casa, água feminino. Trans-formação, transporte, trans-cultural, trans-mutação.

9Feminino profundo: amor, receptáculo, vida, gratidão, criatividade, matriz geradora, sabedoria, sentimento. Água: memória, registro, fluir, pureza, purificação, veículo, vida. Questões ambientais: redes, comunidades de aprendizagem, consciência, compromisso, responsabilidade, simplicidade, destruição, reconstrução. Cooperação: caos, soluções, compartilhamento, reflexo, aprendizagem, construção. Parágrafo - A água como veículo tem potencial de transformação, tanto na dimensão interna, subjetiva, espiritual, quanto na dimensão física (moléculas da natureza). - A água enquanto veículo solvente universal faz um link com a comunicação. A fluência no entendimento entre o grupo. O sentimento de transdisciplinaridade para a construção de um saber coletivo. - No feminino profundo repousa uma sabedoria intrínseca de como lidar com a vida com a natureza. - A “mulher”, considerando-a como expressão do feminino, possui uma sabedoria do compartilhamento que facilita a comunicação. 10Palavras

Doação, entrega, resgate, crise, oportunidade, acolhimento, força, união, conexão. A crise no profundo, na água, nas questões ambientais e na Parágrafo cooperação é a oportunidade do resgate da força e da re-união desses elementos. Em conexão, a arte da doação, e da entrega. Restaurar a saúde do acolhedor planeta Terra. A crise vivenciada no feminino profundo, na água, nas questões ambientais e na cooperação é a oportunidade do resgate. 11Palavras

Palavras Parágrafo

Sensibilidade, nutrição, introspecção, beleza, fluidez, sentimentos, equilíbrio, relaxamento, criação, composição, água, natureza, passarinhos. A natureza com suas águas me ajuda a expressar sentimentos adormecidos e bem compreender a minha relação com a força ao meu redor. Em relaxamento às margens do rio eu percebo melhor a interdependência dos elementos e dos seres vivos em geral.

12Palavras

Vida, amor, unidade, cuidado, (inter) relacionamento, raízes, ancestralidade, elo, conexão, abundância, eu, outro, todos os seres.

70

13Palavras

Enraizar, respirar, virar broto, ar, brotar, água, florescer, sol, dar broto.

Parágrafo

Sentimento, percepção, - pertencimento, conceder, conceder, ceder com consentimento - consentimentocom sentimento Esquecimento Ir e voltar Assentamento Assento na minha poltrona

Em pequenos grupos, (dois de quatro e um de cinco) as mulheres construíram três pequenos textos usando os textos feitos anteriormente pelas duplas. Segue o resultado do trabalho realizado:

Texto 1 A natureza, o verde, suas águas nos conecta com a nossa essência feminina. Somos água que flui, somos natureza que sonha e cria. Um mergulho no rio da alma emerge a memória e sentimento adormecido pensando a mulher que somos. Pela força da criadora da natureza entramos em comunhão com a nossa essência, envolvidas no sentimento de amor e leveza. Enraizar, respirar, virar broto, brotar a água, florescer o sonho. Perceber a interdependência na teia universal da vida e viver na plenitude do ser.

Texto 2 Integrar as raízes de nossa ancestralidade, a nossas raízes profundas faz brotar o sentimento original, o amor e a paz. As águas do feminino profundo são as mesmas que fluem dentro de mim e da mãe Terra. O aspecto feminino se manifesta na receptividade, no cuidado, no acolhimento, doação e abundancia e nos permite refletir à luz do todo e fluir no mar da unidade. No rio da vida a crise é oportunidade. O conhecimento gerado nesse processo nos dá a consciência do eu e do outro se constitui o fundamento da cooperação entre todos os seres e se traduz em gratidão.

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Ao nos entregarmos nos fluxos dessas águas realizamos o próprio ser e consagramos a saúde da acolhedora mãe Terra

Texto 3 Água, como um rio a todo o momento é outra e flui como um mar, todas juntas agregam e transformam. Água no útero gera e mantém a vida em transformação, na formação de cada ser. O poder de transformar a realidade tem como fonte a integração do masculino e feminino. A criatividade a intuição feminina ganham movimento quando a fagulha masculina lhe dá força, cor e forma gerando ação e transformando o mundo. A predação e desconexão ser humano e natureza, ser humano/ ser humano, homem/mulher gerou relação de dominação e destruição que não sustentam a vida. No meio ambiente pode confluir masculino e feminino em complementaridade, favorecendo relações de colaboração.

Nos grupos, o diálogo se deu em torno das palavras (ideias forças) que ao serem espalhadas e depois reunidas de forma coletiva transformaram-se em um texto contemplando o olhar de todas. Desta forma realizou-se um mergulho com a leitura dos três textos construídos.

Imagem 7- produção em dupla

imagem 8- produção em quarteto

Para a realização de um mergulho mais profundo e depois nadar em águas mais claras o grupo se dividiu em dois. O 1ºgrupo transformou os textos em um desenho

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tentando fazer uma expressão artística que conseguisse refletir os três textos lidos. O 2º grupo lapidou o material escrito, transformando-os em um único texto e assim chegamos ao produto final.

Imagem 9 – construção do texto coletivo

imagem 10- construção do desenho coletivo

Texto final: a construção coletiva

Um mergulho no rio da alma emerge a memória e sentimentos adormecidos despertando a mulher que somos. Assim, integrar às raízes de nossa ancestralidade, a nossa memória profunda, faz brotar o sentimento original: O AMOR E A PAZ. Enraizar, respirar, virar broto. Brotar a água. Florescer o sol. Água, como um rio, a cada momento é outra e flui como num mar, todas juntas, agrega, transforma. Água no útero, gera e mantém a vida em transformação; na formação de cada ser. A água, metáfora do feminino profundo traz a sabedoria e a intuição da percepção da vida. A natureza, seu verde, suas águas nos conecta com a essência feminina. Somos água que flui. Somos natureza que sonha e cria. Pela força criadora da natureza entramos em comunhão com a nossa essência envolvida em sentimentos de amor e leveza. As águas do feminino profundo são as mesmas que fluem dentro de mim e da mãe Terra. O aspecto feminino se manifesta pela receptividade, o cuidado, o acolhimento, a doação e a abundância. E nos permite refletir a luz do todo e fluir ao mar da unidade.

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A água flui para a geração e nutrição da vida, podendo construir entendimento, espiritualidade, subjetividade, criatividade também no masculino. A criatividade e a intuição femininas ganham movimento quando a fagulha masculina lhe dá força, cor e forma, gerando ação e transformando o mundo. O poder de transformar a realidade tem como fonte a integração no meio ambiente, confluindo feminino e masculino em complementaridade, favorecendo relações de colaboração. A desconexão histórica ser humano/natureza, ser humano/ser humano, homem/mulher gerou relações de dominação e destruição que não sustenta a vida, porém no rio da vida há crise e oportunidade. O conhecimento gerado nesse processo nos dá a consciência do eu e do outro que constitui os fundamentos da cooperação entre todos os seres e se traduz em gratidão. Perceber a interdependência dos seres vivos na teia universal da vida é viver a plenitude do ser. Ao nos entregarmos no fluxo destas águas realizamos o próprio ser e consagramos a saúde da acolhedora mãe Terra.

f) A expressão artística do texto feita de forma coletiva

Imagem 11- desenho finalizado

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75 “Todo deserto contém um poço escondido, disse o Pequeno Príncipe.” Antoine de Sant Exupéry

CAPÍTULO III

ENCONTRO DAS ÁGUAS: Interpretações existenciais do percurso vivido

Nesse capítulo, analisamos os diversos materiais e de seus respectivos conteúdos elaborados durante os trabalhos de grupo, a saber: i) as falas gravadas das mulheres, que emergiram durante as duas vivências realizadas no turno da manhã, que envolveram a oficina do Rio da Vida e a contação da história da La Lhorona; ii) o texto e desenho construídos coletivamente no período da tarde. Com relação ao texto propriamente dito, enfatizamos o texto final, mas também trouxemos elementos dos textos elaborados nos pequenos grupos, como modo de complementação de ideias. A análise partiu de categorias definidas a priori, relacionadas à pergunta central da pesquisa: Quais relações singulares existem entre o feminino profundo, a água e a questão ambiental e a cooperação? Portanto, iniciamos por uma assertiva; de que existem, sim, relações singulares entre esses temas. Mas, o que significa 'relações singulares'? E que relações são essas? Essas perguntas também fazem parte do nosso universo de conversas significativas. Foram respondidas na medida em que mergulhamos nos significados e conteúdos abordados pelo grupo, e buscamos relacionar as ideias, muitas vezes de forma mais profunda do que a que inicialmente havíamos intuído. Assim, embora a pergunta inicialmente colocada ao grupo de mulheres tratasse da relação entre quatro categorias – feminino profundo, água, questão ambiental e cooperação - optamos por agrupar em três categorias de análise: feminino profundo, água e cooperação. A água, não obstante da sua dimensão física e sua importância no campo ambiental, adquiriu uma dimensão interna e subjetiva, relacionada com as águas do feminino profundo, que abrange também o que é intrínseco ao feminino biológico e ao feminino sagrado, ligando-se à concepção, à maternagem, ao sangue menstrual, às águas do útero, às águas que sustentam a vida, à força criativa. A questão ambiental foi inserida

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como um sub-elemento do tema água e vinculou-se a problemática ambiental contemporânea, à poluição e ao esgotamento dos recursos naturais, e à crise do atual modelo de desenvolvimento. Essas associações foram trabalhadas à luz dos depoimentos, desenhos e textos produzidos pelas mulheres que participaram da vivência, no círculo de diálogos. Iniciaremos a análise com os depoimentos feitos na primeira parte da vivência onde foi realizada a oficina o Rio da Vida e a análise da história contada. A seguir observaremos a categoria na produção textual e nos depoimentos finais. Só depois analisaremos o desenho que expressou os três textos que antecederam ao texto coletivo final.

3.1 Primeiro momento: Rio da Vida e contação da história

3.1.1 Sobre o Feminino

Quando iniciamos a proposta de colocar simbolicamente a trajetória de vida no curso de um rio, intuímos que as participantes relacionariam as características do rio como as suas condições de mulheres. Optamos por uma oficina com o recorte de gênero, apenas mulheres foram convidadas, pois achávamos que entre pares a fala fluiria sem constrangimentos e se criaria um clima de cumplicidade. Foi o que ocorreu. A dimensão biológica do feminino foi mencionada pelas mulheres como uma característica especial, que as distingue no mundo. Ser fêmea, numa sociedade ainda imersa em uma cultura que predomina a polaridade masculina é uma experiência singular. Como diz Koss (2000): (...) o fato de viver em um corpo de mulher significa estar sujeita a experiências determinadas biologicamente, como menstruação gravidez, amamentar, o ser penetrada, que levam a um modo próprio de perceber e compreender o mundo, que difere daquele que se origina das experiências recorrentes do viver em um corpo de homem. (KOSS, 2000, p. 14).

Durante a oficina, Rio da Vida, percebemos fortemente a dimensão corpórea de ser mulher. O depoimento de Laís foi marcado por esse aspecto do feminino como algo a

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ser assumido. Ela relata que vem de uma linhagem de mulheres fortes e que descobriu o prazer de menstruar: (…) Eu vim de uma linhagem de mulheres, de matriarcas. O matriarcado é bem presente na minha família, nas duas, por parte de mãe e de pai. E um dia, chegando do trabalho, cheguei em casa, fechei tudo, deitei no sofá e falei: “aí que delícia menstruar”! Foi onde eu contemplei, onde eu tenho a primeira lembrança da minha contemplação com a minha menstruação. Então, foi um marco, foi um novo momento na minha vida, onde abriu o Feminino (…) (depoimento de Laís)

A fala chama a atenção para o sangue menstrual. E também para a sua linhagem reconhecendo suas raízes, sua ancestralidade. Parece haver uma desconexão entre as o primeiro trecho (linhagem) e o segundo (menstruar). O que uma coisa tem a ver com a outra? Será que as mulheres de sua família não consideravam a menstruação como um poder do feminino? Muitas mulheres têm esse sentimento: que ser forte é negar esse feminino que se delicia em verter o seu sangue para a renovação do corpo. Quando ela reconhece esse prazer (“ai que delícia...”) se abre um canal de expressão do feminino que se revela e marca a sua vida. Outra fase importante na vida das mulheres foi lembrada por Renata, a menopausa, vinculando esta fase com o ressecamento das águas internas: (…) uma fase da minha vida, que tem certas turbulências não é... e ..como vocês disseram. Né? Eu acho que é um marco muito grande quando a gente começa a perder as águas, não é, como a menopausa, (...) tem um ressecamento interno (…). (Depoimento da Renata

Assim como Laís nos fala de um marco ao reconhecer a sua menstruação como prazerosa, Renata nos fala de outro marco, porém não demonstra prazer ao passar pela menopausa. Percebemos certo pesar ao reconhecer que essa fase vem com turbulências e que não é fácil enfrentá-la. Por isso, muitas mulheres optam por reposições hormonais e outras saídas encontradas pela medicina tradicional e alternativa, tentando minimizar os efeitos da diminuição dos hormônios, que causam o envelhecimento do corpo. Érica, a mais jovem do grupo, preocupa-se com seus ciclos menstruais que chama de luas e revela a sua busca do feminino através da maternidade. Ela nos diz que para se

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conhecer é necessário entender a sua condição mulher que acompanha o ciclo lunar, com suas fases. (…) eu tentei representar um útero, quero ser mãe e tem haver muito com essa busca do feminino, de me conhecer, de compreender os meus ciclos e minhas relações com a lua, com minhas luas. (Depoimento da Érica)

Ela desenhou um útero.

Esse espaço físico que acolhe, regula os ciclos

menstruais e tem a sua energia yang estabelecida pela força capaz de gerar e parir vidas. Esse fato se relaciona com o dom da concepção que foi também registrada na fala de Margarida: “O nascimento das minhas filhas trouxeram muita memória de quem sou eu e a minha confirmação”. Margarida confirma-se como mulher e mãe, ao despertar para a sua própria essência, o feminino. Ser mãe contribuiu para o despertar da responsabilidade que exige cuidado e capacidade de entendimento, condições de educar e garantir a sobrevivência de suas crias. Sentir-se a si mesma na medida em que se descobre como mãe foi à condição de Margarida para assumir a sua identidade como fonte de vida. O feminino carrega em si mesmo a potência geradora, a dimensão criativa da Vida. Ela é transcendente. Algo “intraduzível” que as mulheres expressam a partir de diversas experiências, mas, sobretudo, a partir da experiência da maternidade, do nascimento dos filhos: (…) eu fui mãe muito jovem e com necessidade imperiosa de ser mãe. Foi uma decisão, foi uma escolha querer ser mãe, nesse momento com 22 anos e queria ser mãe, e depois, muito tempo depois, fui descobrindo que essa era a minha cura porque eu venho de uma linhagem de mulheres que não tiveram mães... (Depoimento da Heloisa) (...) quando tive o meu primeiro filho, (…) eu fiquei assim (...) completamente estupefada, olhando para aquele ser porque... naquele momento eu tive muita certeza de que eu e o pai dele não tínhamos feito ele sozinho.(...) A gente não saberia fazer aquele serzinho que era a minha barriga e que virou um ser que estava ali respirando, dependente de mim, mas já um ser né? E, eu tive muita certeza ali de que (...) eu não sou dona daquele ser e que ele representa uma coisa muito maior, que eu que sou um canal, somente pra ele estar ali. (…). (Depoimento da Camila).

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Trouxeram ainda, a questão da vida abortada, de como se sentiram ao passar por essa experiência.

O momento que ficou marcante pra mim e que veio muito com a fala da Leonora foi essa questão dos filhos abortados... É que quando você falou eu pensei, poxa vida, porque eu também não trago os filhos abortados?Acho que é que eu tenho muita vergonha, mais aí, desde que você falou, eles vieram comigo. E...ai eu representei eles como galhos sequinhos que não....(respiração profunda, choro reprimido), que não floresceram. (Depoimento da Camila) … Bom, também fiz aborto, também tenho um sentimento em relação a isso... E ai, tive dois filhos que eu amo muito... (Depoimento da Marcela) (...) A Camila trouxe uma fala que me emociona muito que (choro...), porque antes da Marina que é minha pequena agora, teve um neném que não veio, que eu não deixei chegar. (...). (Depoimento Amália)

O aborto é um tema que vem carregado de vergonha. Primeiro ele é considerado um crime em nosso país, e segundo, um pecado pelas principais religiões monoteístas. As mulheres que se submetem a um aborto fazem desse fato um segredo profundo e muitas se auto punem, criando uma cicatriz no seu corpo e principalmente em sua alma. A revelação dessa prática vem carregada de emoção e muitas vezes com lágrimas. Estés, (1997) considera os segredos verdadeiros assassinos da alma feminina e diz que a maioria deles está vinculada ao código de moral da sociedade e da cultura onde vivem.

A maioria dos segredos das mulheres se relaciona à transgressão de algum código social ou moral do sistema de valores da pessoa, da religião ou da cultura. Alguns desses atos, acontecimentos e opções, especialmente aqueles relacionados à liberdade das mulheres em toda e qualquer seara, costuma ser denunciado como vergonhoso para as mulheres, mas não para os homens. (ESTÉS, 1997, p. 463)

Na fala das mulheres, as feridas são reveladas em total confiança e ao chorarem criam um campo de cura e limpeza, de cura da alma. Esse foi um dos momentos onde a emoção se fez presente e revelada ao explicarem o porquê dos desenhos no curso do rio. Nesses momentos a escuta foi respeitosa e sentiu-se que os corações se comoviam juntos

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e assim o circulo de diálogos fluía no respeito às histórias ali reveladas sobre nascimentos e gestações interrompidas. No diálogo sobre os elementos da História, La Lhorona, e suas relações com a vida das mulheres, percebemos uma reflexão sobre o feminino profundo que é criador, sensível e está ligado as emoções. Vejamos o que nos diz Leonora: Para mim veio acessar o arquétipo do masculino e do feminino que cada um traz dentro de nós e que as emoções, elas são conectadas com o princípio criador feminino e o outro (...) do controle, da autoridade, do poder é conectado como arquétipo masculino. E a gente foi educada nessa sociedade machista capitalista pra sufocar o nosso lado sensível, feminino e deixar que o nosso hemisfério esquerdo, conectado com o nosso masculino, ele nos dominasse (...). Então o que aconteceu? O nosso racional, o nosso masculino sufocando o nosso feminino, as nossas emoções, as nossas intuições, as nossas sensibilidades, fizeram com que eu, mas acho que cada um de nós, ficássemos poluídas internamente. Trabalho como esse né, o trabalho de resgate do feminino sagrado vem justamente pra gente desaluviar essas águas que foram poluídas e deixarem nossas emoções despertarem (...). Bom eu chorei hoje, em outros tempos passados eu chamais poderia chorar num grupo, mas para mim assim reunião entre mulheres é um espaço de segurança e a gente tem esse suporte pra dizer, tá eu sou uma mulher, feminina, eu sou sensível, eu sou emoção pelo menos, aqui, hoje.

Leonora ressalta o clima de confiança que se estabeleceu no grupo, E de fato, percebemos que um círculo de mulheres gera uma energia poderosa de cura. Como vimos, as mulheres falam de seus corpos com naturalidade e reconhecem no grupo um espaço seguro para relatar as suas experiências de vida. Elas sentem-se espelhadas e querem se ver com os olhos femininos. Cristina reforça a ideia de que é importante resgatar o nosso olhar, de mulheres e compartilhar. (…) A gente deve ser mulher a partir do olhar feminino e não do olhar masculino. O resgate do feminino deve ser através do nosso olhar, fazer rodas de mulheres, que é nossos ancestrais (...). Se reunir juntas, falar, compartilhar. (Depoimento de Cristina sobre a história La Lhorona)

Também estabeleceram relações entre os elementos da história e o processo criativo, vinculando a poluição interna com um processo de estagnação que não deixa fluir a criatividade. Quando não tem espaço de expressão, as águas internas das mulheres ficam poluídas, gerando frustração e doenças. Liberar as emoções, enfrentar as dores, faz

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parte do processo de cura do feminino. Ao comentar sobre a chegada de La Lhorona no céu, quando esta foi impedida de entrar e obrigada a voltar para resgatar as crias, Amália fez a seguinte reflexão: (…) quando chega ao céu ela tem resgatar, tem que voltar, tem que resgatar e isso é o nosso resgate também. A gente vai afogando nossas mágoas e a gente vai se afogando... assim... nas dores, né? A gente não quer entrar em contato. (…) Eu percebo assim de mim também. A gente poder chorar, poder falar (...). A gente não engulir a seco aquilo ali porque não é legal, não é bonito. (…) É um processo de cura também. Um processo de cura é você se limpar, limpar as suas águas sujas, não simplesmente colocar num canto (...). (sic) – Depoimento - Amália Para Lais e Érica, a história funcionou como um mapa que possui muitos símbolos e suscitou vários questionamentos e reflexões. Elas se colocaram no lugar da protagonista, indagando o que da história diz respeito a elas próprias: (...) Esses filhos, quem são esses filhos? (...) Onde ela se permitiu? Jogar o filho dela, aquela cria que ela teve, por um ato de amor e quando ele rejeitou, ela jogou fora? (...) Quando eu me encontro essa mulher em mim mesma? Quando eu vou lidar com as minhas feridas dos frutos que joguei no rio de uma rejeição alheia, de arquétipo ativo, digamos assim, porque o masculino é um arquétipo ativo. Então eu vi um mapa, um mapa bem interessante, um arquétipo assim de tantas mulheres. Eu sou muitas! Quem é essa dentro de mim? Quem são essas minhas crias? Quem é esse arquétipo ativo (...) onde eu fui me permitir jogar? (depoimento de Laís) (...). Eu comecei a me ver muito no lugar dessa mulher. Ter toda a minha trajetória, minhas buscas, meus estudos, minhas coisas e de repente, quando eu me vi (...) eu tava jogando todos esses filhos no rio. (…) Parei com essa coisa, mandei o fidalgo pra outro lugar (risos), mandei ele embora. Quem são esses meus frutos, quem são as minhas crianças? E quem sou eu? Onde está a Érika no meio dessa turvidez toda? (depoimento de Érika)

As questões levantadas por Érika são profundas e pulsam em todas nós. Não existem respostas prontas e acabadas. Cada mulher deve encontrá-las a partir de sua própria história de vida. O importante é não deixar que nossas águas sejam poluídas, fiquem turvas e estagnadas. É fundamental reconhecer as nossas crias e entender nosso valor, o que construímos no dia-a-dia e que nos constitui enquanto Ser. Tudo tem importância, as pequenas e as nossas grandes obras fazem parte de nós. Olhar as nossas águas nos convida a enfrentar o drama de La Lhorona e reconhecer que não somos completas, que temos nossos dramas pessoais e que precisamos resgatar e valorizar nossa criatividade, para que nossas águas possam fluir límpidas até a foz.

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3.1.2 As águas As mulheres do grupo identificaram facilmente suas vidas com o curso das águas. A vida como um rio que corre, com seus encontros e desencontros, com seus afluentes e lagos, com águas que ora são tranquilas, ora são turbulentas, ora estão claras, ora escuras, ora profundas, ora rasas. Perceberam as nossas águas internas como símbolos de emoções. A água foi o elemento central na vivencia. Permeou todo o trabalho e se fez presente tanto na forma simbólica quanto na forma física. Foi o elemento de mediação e o fio condutor de cada ação desenvolvida. Não por acaso essa categoria foi a mais citada e sentimos dificuldade para selecionar os depoimentos mais significativos. Vejamos o que nos dizem algumas mulheres ao falarem de seus desenhos na oficina do Rio da Vida.

(...) sinto uma conexão muito forte com as águas, sou muito das águas, todos os meus signos. Tenho o sol em peixes, ascendente em câncer, a lua em escorpião, todos os elementos da água, os 3 elementos dos signos da água. E, assim, o meu grande desafio mesmo é aterrar. Sou muito cíclica, muito no movimento da lua. E aí desenhei (...) água mais escura (...). Sinto muito espiritual, muito um ser das águas que vai lá dentro, assim, dos sentimentos, das emoções. (Cristina) (...) eu fiz essa estrela aqui que ela nasceu das águas do grande rio... que pra mim é a vida... eterna de todos e eu sou essa estrela aqui e to saindo dessas águas, da mãe natureza... sou das águas (…). (Margarida)

Imagem 12- desenho de Margarida

(...) “me percebo no mar desde a origem e só agora percebo que o mar é o receptáculo de todas as águas”. E é um pouco assim que eu me sinto (...) como se fosse receptáculo de todas as águas, só preciso tomar cuidado pra eu não me afogar, realmente eu recebo muito e às vezes eu fico meio aguada demais (risos) eu fico meio emocionada demais, eu me confundo nas águas dos outros (…) (Camila)

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Imagem 13- representação de Camila

(…) Tocar nas minhas próprias águas interiores. (…) Eu sou canceriana, sabe, então todo o meu desafio é aprender a lidar com as minhas emoções que, às vezes, como eu botei no desenho, elas vêm como ondas muito revoltas (…). Eu tenho a água como uma fonte de inspiração muito grande e o movimento das águas, a fluidez dela, e passar pelas pedras, buscar o caminho, a profundidade (...), às vezes aceitar que ela pode se embaralhar, mas, lá na frente, ela recupera o ritmo dela. (...) E o desafio é esse, o desafio da entrega. (…) Isso é um assassinato, né, a poluição da água. É um suicídio (...) porque nós somos água, sem água não podemos sobreviver. Realmente essas questões da despoluição das águas são muitas dimensões. (Joana) (…) Eu também sou muito ligada à água, meu ascendente é câncer, eu sou da Mata Atlântica, que tem água para tudo quanto é canto (...). Lena

Nos depoimentos acima, percebemos que a água é um elemento que está presente e vivo em suas vidas. Elas reconhecem essa proximidade entre as águas internas e externas e não fazem a separação. Se sentem água, se misturam com ela e a identificam com emoções profundas a sensibilidade e com a intuição. A intimidade com as águas foi revelada nas falas da maioria. Clara e Marcela relatam o quanto a água é importante e significativa em suas vidas, e revelam a necessidade de estar próximas. Clara traz a intensidade ao citar as palavras “muito” várias vezes e Marcela repete que “é muito significativa” como reforço desse sentimento. (…) Eu preciso da água, muito, muito, ela me dá força, assim, principalmente quando eu me sinto muito sem energia, muito sozinha até só de mim mesmo, sei lá, a água me aconchega, a água e a árvore (...). (Clara) (...) é muito significativo pra mim tá morando nesse lugar, perto da água. Eu acho que procurei muito tempo por esse lugar e eu digo que esse córrego foi um bônus pra mim. Eu não imaginava. Eu imaginava morar no mato... com outras pessoas...ai vim para aqui, do lado desse córrego, pra mim é muito significativo mesmo. (Marcela)

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Laís e Leonora reforçam a ideia de alternância, de ciclo entre morte e vida, encontros e desencontros, levar e trazer, ir e voltar. A água é por excelência um elemento de integração que transita entre as polaridades por sua característica de solver, de fluir, de misturar, de transmutar enfim.

Eu coloquei vários braços nesse rio (...) simbolizando os encontros e desencontros e como sair desse rio. (...), muito cedo o rio levou meu pai. Levou por separação e eu não tive mais contato. Então comecei trazendo essa simbologia do rio que leva e traz. (...). (Laís) (...) muito conectadas com essa alternância, com esse movimento das águas, (...), muito forte (choro), ora muito revoltas, ora fluentes, entendendo que a vida é esse eterno renovar, da nossa origem das águas (...) que num certo momento se despedem, sobem, vão lá pro céu, na forma de nuvem e depois retorna novamente na forma de chuva, (...), alimentando esse eterno ciclo e isso me traz, assim, aceitação e compreensão do momento que eu to vivendo, sabendo que tudo sempre foi eterno, que tudo será eterno, nessa constante troca, nesse constante movimento que nunca vai parar jamais. (Leonora)

Identificamos uma relação entre a fala das mulheres com o pensamento de CATALÃO e JACOBI, (2011) expressos no artigo: Água como Matriz Ecopedagógica: uma experiência significativa e sustentável. Os autores compreendem que:

(...) a água é um elemento de mediação entre as formas etéreas do ar e a densidade do elemento terra. (...) funciona como uma ponte de passagem entre os registros da natureza e da cultura e como traço de união subjetividade e objetividade, entre reflexão e manifestação. Dos movimentos da água desprende-se uma ecopedagogia que se constitui da fluidez dos ritmos e das alternâncias, da aceitação e inclusão das diferenças, da flexibilidade, da visão sistêmica, do pensamento reflexivo e do movimento contínuo que alterna permanência e mudança. (op. cit, p. 96).

Ao apontarem o que haviam desenhado, se davam conta da profundidade do que estavam expressando através dos desenhos como se colocassem uma luz e emergisse à consciência situações vividas que marcaram a sua história de vida como mulheres.

Eu achei ótima a ideia da ponte no rio. Ah, vocês viram aqui a pessoa prenha de ideias, que é a água dentro da água? (Renata)

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Imagem 14- representação de Renata

Então eu coloquei (...) aqui uma luzinha, como se eu tivesse nascendo, (...) e um ponto de interrogação, assim num saberia dizer o que vai ser de mim, nesse processo (...), nessa fluidez e também coloquei meus pés, como uma entrada, (...) no rio, pedindo licença (...) pra entrar sem saber como ia ser esse processo (...) de aprendizado nessa vida de ir fluindo, fluindo e aqui eu coloquei (...) um monte de interrogação no meu pé e um monte, lágrimas, lágrimas também entrando no meio do rio, assim (...). (Clara)

Imagem 15- representação de Clara

Eu comecei desenhando pedras e isso fala muito do meu presente (...). É um presente muito sólido, então eu to lidando novamente com a maternidade, a coisa de solo, de ser apoio, (...) Tem o rio, aqui eu sou referência de terra (...) de solo, por isso que ficou (...). Aqui, eu escureci as águas, por causa dessa emoção, por causa que ela é profunda em determinados momentos, vou mergulhar e (...). Essa imersão, esse desejo de imergir... (Amália)

Imagem 16- representação de Amália

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Até coloquei aqui uma rede que é a tradição lá (...) amazônica, que tem o rio Amazonas, o rio Purus, o rio Juruá, os vales ali, realmente eu bebi dessa fonte, sou muito grata e carrego isso dentro de mim e faz parte mesmo da minha existência. E ai, aqui tem um outro momento difícil que eu represento essa coisa escura aqui, lá em baixo, num mergulho, numa sombra, acho que foi um momento muito difícil na minha vida... (Joana)

Imagem 17- representação de Joana

Na escuta atenta, sensível, Heloisa se dá conta de que a sua relação física com a água precisa ser revista e agradece por isso. Aliás, as palavras: gratidão, agradecimento, grata, agradecida, foram bastante usada pelas mulheres em todos os momentos da oficina. Interessante perceber que elas estavam realmente agradecidas pelo momento e por todos os insights que estavam tendo por meio do diálogo, como também pela sintonia com o elemento água.

Nossa que engraçado, a minha relação com as águas é uma relação a ser mais desenvolvida. Eu não sou aquele tipo de pessoa que quando chega na beira do rio, na cachoeira, sente aquele ímpeto de pular. Não. Sou capaz só de olhar e tá bom! (risos) E acho isso muito estranho. Eu bebo muito pouca água, acho isso que minha saúde (...) meu corpo é que pede pra beber mais água e eu ainda não tô obedecendo direitinho aos pedidos do meu corpo. Acho que isso aqui, nessa oficina, seja talvez mais um passo nessa minha cura na relação com a água e agradeço por isso. (Heloisa) (…) Eu tenho uma profunda reverência, uma profunda amizade, um profundo amor pela água. A água é o meu elemento, é a água que me deu a vida. O meu dia, todo dia (…), eu acordo tomando um copo d’água e agradecendo, olhando para o sol e agradecendo pela água pura e cristalina. E me veio muito a inspiração de uma música, de imantar as águas com as palavras: “Essa água pura e cristalina é um presente de amor da mãe divina, agradeço, agradeço, por seu cuidado, amor e apreço”. (Leonora)

Alguns depoimentos vinculam a água à espiritualidade e os seus desafios nesse campo da subjetividade humana. A espiritualidade é aqui tida como uma abertura do ser

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para a dimensão divina, e pode ser considerada uma energia feminina que é fonte de amor e que nos faz responsáveis por toda expressão de vida, entendendo como Boff:

A espiritualidade, nesse caminho, faz-se pela contemplação reverente de todas as coisas. Pelo cuidar e acariciar; e não pelo agarrar e manipular. Trata-se de captar o nascimento de Deus em todas as coisas, pelos sentidos corporais, no som, nas cores, nas sensações produzidas por tudo o que envolve. Mas também pelos sentidos espirituais da intuição, da visão interior, do sentido de unidade e do repouso no movimento. (BOFF, 2000, p. 151)

Várias tradições espirituais têm na água uma simbologia muito presente, pois reconhecem que a água tem a ver com a vida em sua própria matriz, nascemos da água e dependemos dela para continuar vivos. A água está em tudo e tudo está em nós. Essa é a não dualidade, a união com tudo o que existe. Podemos perceber isso nas falas abaixo: Realmente esse rio se alimenta dos afluentes e se unem nessa ideia de que no sentido maior todos somos um. Né? Somos natureza, e somos um. Somos interdependes. E é essa consciência da interdependência de todas as coisas que dá as mulheres o sentimento de gratidão. (... ) a foz que é o objetivo maior, que é desde aqui o meu nascimento, que é o oceano, no sentido mesmo da iluminação. (...) da unidade. A parte conseguir ser realmente um com o universo. (…) O meu objetivo maior é esse mesmo (...) conseguir essa fluência e chegar nessa plenitude que eu vejo (...) do mar (...) do interior (...) do espírito (...). (Depoimentos de Joana) (...) no fim da minha existência que eu quero brilhar, eu quero que tenha bastante luz. Quero que eu tenha entendido também bastante coisa, e fiz um sol aqui na minha foz. (Depoimento Lena) (...) aqui eu representei a floresta que é muito significativa na minha vida. (...) eu vivi 23 anos na floresta, ai a linha de luz nunca mais se interrompeu, ficou sempre luminosa, então a floresta representa isso pra mim, (...) a iluminação da minha essência, assim eu ficar na minha essência para sempre, foi ali no meio da floresta com toda essa riqueza que ela tem... tudo tá nela, vida,as pessoas, os pássaros, a luz, muita luz. (...) Esse redimuinho aqui é agora. Eu botei esse branco, por cima que significa paz, que é como eu me sinto, totalmente pacificada, cheia de gente, de luz e entrando dentro do meu centro que é de onde eu espero que saia outro rio novo, que volte lá praquele rio grande,(...). (Margarida) (...) É uma questão da espiritualidade, (...) tem vindo uma música católica que tem vindo na minha cabeça. Eu não sou católica e é estranho isso que vem sempre, símbolos católicos pra mim, ou cristãos digamos, mas a música é católica que é aquela... “Se um dia o mar da vida quiser te afogar, segura na mão de Deus e vai...” (risos...). Eu acho que (...) essa dimensão da espiritualidade (...) segura na mão de Deus (...) eu acho... sei lá...faz sentido agora pra mim (...). (Renata)

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(...) no final eu coloquei uma luz ali, como se procurando encontrar a luz, nessa caminhada toda, e se possível ter, nem que fosse uma pequena luz, mas uma luz que possa ajudar nessa caminhada toda. (Clara)

A água traz também a problemática ligada à questão ambiental, ecológica, que é em si, uma questão central de espiritualidade. Marcelo Barros (2002), monge beneditino, escreveu um livro intitulado O Espírito vem pelas Águas e nele nos diz:

A comunhão com o universo deve levar-nos a uma atitude de profundo respeito para com a lógica da casa (ecologia), desde a ecologia interna, que é unidade profunda da pessoa, até a sentir que todas as coisas estão, de alguma forma, em continuidade com nosso próprio corpo. (BARROS, 2002 p. 15)

A espiritualidade é cósmica, traz a dimensão do todo, da imensidão do universo e Camila nos traz essa dimensão em seu depoimento:

(...). Eu fui mergulhadora, e a primeira vez que eu botei uma mascara e olhei pra dentro do mar, (...) me deu aquela sensação de Ohooo!!!, de outro mundo que a gente não tem menor ideia que ele existe, a gente não sabe da riqueza dele, é outro mundo, outro universo que está ali...e... dos mistérios e das belezas, enfim, é uma coisa também que fala dessa presença divina, porque tanta beleza ali? (...) Não precisava tanta beleza (risos). Se não era pra gente ver, pra que tanta beleza? Então, a coisa é muito maior que a gente! Também me deu muito essa dimensão da grandiosidade da vida (...), entrar em contato com o fundo do mar.

Ao refletir sobre a história La Lhorona as mulheres estabeleceram diversos vínculos com a realidade e também com suas vidas. A primeira delas manifesta uma visão social e política sobre o modelo de desenvolvimento econômico vigente e a crise ambiental que atravessamos: Para mim, o fidalgo é claramente a nossa sociedade capitalista, ligadas aos bens materiais (...). Desprezo mesmo pelos elementos da natureza. O rio que é a vida (...), matar um rio é uma coisa muito grave(...) pra mim é uma metáfora exata do que ta acontecendo no mundo hoje, em vários lugares do mundo”. (Depoimento de Laura – História La Lhorona)

As características das águas também foram consideradas e relacionadas a situações vividas:

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(...) a água tem essa característica, às vezes a turvidez está ali, mas ela precisa simplesmente parar, poder decantar e você conseguir ver ali aonde é que estão os seus filhos, né? Então, estou me vendo bem nesse momento de deixar a água quieta, as coisas que estavam ali obscurecendo decantar e eu realmente poder perceber minhas crias (...). ( Depoimento de Érica)

Heloisa conseguiu vislumbrar saída para despoluir o rio, que é o entendimento de que temos que observar o curso da natureza. Essa é a saída para que o fluxo da vida possa seguir. “(...) Vai lá observar a natureza, que a natureza, os seres vão despoluindo o ambiente mesmo, né? Só não despolui tudo de uma vez, porque a gente tá poluindo e a natureza não dá conta (...). E se tem uma fórmula de a gente conseguir fluir é a vida mesmo, é a vida em todas as suas dimensões, biológicas, emocionais, afetivas. A vida, ela é capaz de despoluir”. (Depoimento Heloisa)

As respostas já estão dadas, basta que tenhamos capacidade de escuta e de observação. Parafraseando o focalizador Edgar Gouveia, no módulo ‘Jogos Cooperativos no envolvimento comunitário’, no mundo tem toda a água e toda a sede que precisamos. Isso significa que há um sentimento de confiança que permeia nossos corações, como se intuitivamente soubéssemos que é a vida que sustenta a vida. As respostas estão na vida mesma. E a vida é, intrinsicamente, cooperação, interconexão e parceria.

3.1.3 Sobre a Cooperação

A cooperação é um valor fundamental e deve ser considerado para a evolução humana. Como vimos sem ela à vida não se estabeleceria no planeta. Ela também é fundante para que as relações humanas possam ocorrer de forma colaborativa. Maturana e Verden Zöller (2004) sustentam que o amor é que nos constitui biologicamente, embora estejamos imersos numa cultura que valoriza a competição, a guerra e o desamor. Dizem ainda que somos seres amorosos que vivemos na linguagem e é isso que nos faz humano. Essa é a biologia do amor. Estar junto, criar junto, compartilhar, dialogar, ouvir a outra pessoa foram características cooperativas claramente expressas nas falas do grupo que vivenciou um

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clima amoroso, pois, ocorreu um respeito ao outro como legítimo outro na relação, e essa é a definição de amor feita por Maturana. As mulheres reconheceram isso ao falar do prazer, da satisfação, da alegria em compartilhar: (…) Eu (...) adoro estar com as mulheres mais novas... e também com as minhas coleguinhas mais velhinhas. (…). Enfim, esse encontro é muito saudável para nós. (…) Eu gosto muito desse movimento das mulheres, fazer a roda, e cada vez mais isso está aumentando. Muito bom mesmo. (…) Juntas somos mais, né, em todos os sentidos. (Margarida) (...) eu terminei com esse grande coração que se derramam nessa água, nos oceanos, com esse meu propósito de exercitar o amor sempre...o amor em todas as coisas, o amor em cada momento, o amor em todos os atos pra eu conseguir me preencher sempre de muito amor...pra poder tá me relacionando com o resto, com os bichos, com as árvores, com as pessoas, com tudo se relacionando no amor, no amor.(Heloisa) (…) Tou muito grata de estar aqui, compartilhando. Estou aprendendo a compartilhar agora realmente, a falar e a ouvir, é quase uma novidade na minha vida (…). (Marcela) (…) Eu sou apaixonada por trabalhar com grupo (...). Parece que minha criatividade, meu poder de criar precisa se nutrir do coletivo, do grupo (…) (Clara) (…) Estar junto me faz perceber isso, assim, o quanto a gente tem poder, esse poder do feminino. Isso ecoa novamente. Foi muito bonito. Eu me senti na fala, presente na fala de várias pessoas aqui. (…). É tão bonito, assim, quando o outro fala e você: aí, tou ali também. (Amália) (…) É muito especial esse encontro, essa roda de mulheres. Ela retoma algo muito ancestral, muito nosso, com mulheres, essa reunião de troca de saberes. (…) (Cristina)

A água como um importante elemento no centro da questão ambiental foi bastante discutido e ficou claro que vivemos uma crise sem precedentes. Mas talvez seja justamente a crise no mundo atual que traga urgência e a oportunidade de reestabelecer o princípio do feminino nas relações, como dito nos depoimentos: (…) É um momento de: ou cura, ou transforma, ou se esvai. Sim, porque já é muita energia se esvaindo mesmo, muita água poluída, muita coisa difícil, assim, um tempo de muito desafio (…). Joana (…) O que a gente viveu aqui hoje me deu muito essa sensação da urgência da ação. E do encontro do feminino ser muito importante para a gente colocar esse feminino mesmo na roda, e a mão na massa, na terra. E esse cuidado com o

91 masculino e com a gente. E plantar e ser (…) ...como a gente planta o que a gente come. E botar em prática e ensinar para os nossos filhos (…). Camila (…) O fato é que a gente vive numa sociedade que é machista e se construiu historicamente a partir desse olhar que é machista. E que nós somos as duas coisas, nós temos o masculino em nós e isso nos faz agir, e sem o masculino o feminino não tem cor. É como dizia Paulo Freire, sem a gente o verde não tem cor e eu queria pontuar a importância desse equacionamento entre o masculino e o feminino, e do subjetivo e do coletivo. (Renata)

Em outro depoimento de Camila percebemos uma fala que relata um desequilíbrio psicossocial, causado pela desarmonia entre as forças masculinas e femininas pelo fato de estarmos vivendo em uma cultura cuja polaridade masculina foi exacerbada durante um longo período histórico e ainda se faz presente através do machismo e da discriminação da mulher, por isso ela nos diz que é importante cuidarmos para que, ao recuperar os valores femininos, não se cometa os mesmos desvios. (…) A gente tá vivendo como se agente tivesse pego o bastão de mulheres feridas, de um feminino muito ferido e que a gente tivesse então se colocado no mundo para mostrar pro masculino que a gente pode viver sem eles. E ai nós nos tornamos mulheres pintudas (…). Então, na verdade, é como se estivéssemos no outro extremo. Super pintudas (...) ferindo o masculino também e o feminino, então tudo isso é um processo pra gente poder, na verdade, acolher o masculino e o feminino, entender que nós não somos um sem o outro, e que a gente precisa do arquétipo dos dois lados. (Depoimento Cristina – História La Lhorona)

O depoimento de Joana nos mostra esse desejo de resgate do feminino para uma parceria entre homens e mulheres. Vejamos o que ela nos diz: (…) Me veio muito isso, de valorizar mesmo a complementaridade, que o feminino ele agrega né? A gente não está para competir, a gente está para somar, para trazer a sabedoria, para realmente dar um passo diferente, assim, na sabedoria de conseguir trazer isso e tocar, tocar os corações, né? (…) é tão bonito quando a gente vê um homem também que tem esse feminino forte, quando a gente vê uma pessoa, um ser humano, seja homem ou seja mulher, que tem esse equilíbrio, que tem essa delicadeza, que tem determinação, que tem isso junto (...). (Joana)

Joana nos diz que o feminino soma, agrega, traz sabedoria, pois ele toca os corações. Mas uma vez fazemos alusão ao sentimento capaz de tocar os corações, o amor. Ela nos fala da beleza do equilíbrio e de um feminino forte no homem. Jung chama esse

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feminino no homem de anima e o masculino na mulher de animus. Quando esses aspectos em nós estão inconscientes, projetamos o masculino apenas no homem e o feminino apenas na mulher, criando um desequilíbrio. Foi isso que ocorreu na nossa sociedade patriarcal, que recalcou o feminino e negou as suas qualidades. Às mulheres são negados o princípio masculino e os homens, o princípio feminino. Zweg organizou um estudo que discute a busca da feminilidade perdida e nele nos aponta a reciprocidade desses dois polos: (...) a relação entre esses dois elementos é recíproca: à medida que o Feminino de uma mulher é trazido à consciência e revelado, ele permite o crescimento do princípio Masculino mais forte que, por sua vez, dá sustentação a um Feminino definido com clareza. Cada um está bem sintonizado com o outro e a unidade da psique global da pessoa é determinada pela soberania de cada elemento.

A percepção das mulheres trata de dimensões que são, a um só tempo, individuais e coletivas, como também está explicito nos depoimentos abaixo, que foram ditos ao final da vivência: (…) é interessante o dia de hoje, que a gente está discutindo o feminino, a água, toda essa relação e me tocou também como a gente trata o masculino perante o feminino (…). E como a gente vai tratar para não criar outros problemas, outros preconceitos, se houve dominação, se não houve. Realmente romper esse paradigma (...) da complementaridade muito forte, me trouxe a ideia da complementaridade do ying e do yang. (…). (Joana)

A reconciliação do feminino com o masculino é também a reconciliação da humanidade com a sua própria natureza.

3.2 Segundo momento: Análise do texto coletivo

3.2.1 Afinal, o que o grupo realmente entende por feminino profundo?

Começamos tentando elucidar o que o grupo entende por feminino profundo. O texto produzido coletivamente inicia com a seguinte frase:

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Um mergulho no rio da alma emerge a memória e sentimentos adormecidos despertando a mulher que somos. Assim, integrar às raízes de nossa ancestralidade, a nossa memória profunda, faz brotar o sentimento original: O AMOR E A PAZ.

O amor e a paz são tidos como sentimentos originais e brotam a partir de um mergulho na alma. Ao falar de alma estamos falando de um campo da subjetividade, da espiritualidade e não do aspecto biológico de gênero. O Feminino como substantivo está presente na psique humana. Jung o denominou de arquétipo. Desta forma não se restringe apenas as mulheres e está presente também em ambos os sexos. Assim como o princípio masculino.

Podemos comparar as duas

polaridades com a imagem do yin e yang da filosofia taoista dos chineses. São, portanto, qualidades do ser humano. Que humano não deseja o amor e a paz? No fundo todas as pessoas desejam emoções benfazejas e buscam o equilíbrio e a felicidade. Mesmo que não saibam ou que nunca os encontrem. Acreditamos que o feminino possibilita essa abertura para o sentimento amoroso. E como ele se manifesta? No parágrafo três do texto podemos ler: O aspecto feminino se manifesta pela receptividade, o cuidado, o acolhimento, a doação e a abundância. E nos permite refletir a luz do todo e fluir ao mar da unidade.

A receptividade, o cuidado, o acolhimento, a doação e a abundância são características do feminino profundo capaz de estabelecer relações pautadas no amor e na paz. Talvez essas sejam as grandes tarefas civilizatórias para a valorização da vida. Os valores expressos no texto ultrapassam a uma visão excludente, discriminatória calcada na relação de discriminação e do poder de dominação que desumanizou homens e mulheres. A reflexão pautada pelo aspecto feminino orienta-se para a totalidade, para a inteireza, que transcende a polarização e as disputas entre os sexos. Essa visão traz um feminino que representa o princípio da vida, que é receptiva, generosa e abundante como a água. As mulheres reconhecem o feminino profundo como

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água que flui e aí precisamente, se expressa a relação singular entre o feminino e a água. Como está dito no texto coletivo: A água, metáfora do feminino profundo traz a sabedoria e a intuição da percepção da vida. A natureza, seu verde, suas águas nos conecta com a essência feminina. Somos água que flui. Somos natureza que sonha e cria. Pela força criadora da natureza entramos em comunhão com a nossa essência envolvida em sentimentos de amor e leveza.

E colocam ainda que: “As águas do feminino profundo são as mesmas que fluem

dentro de mim e da mãe Terra”. São as mesmas. São iguais. Desta forma seres humanos e natureza são unos e possuem a mesma essência envolvida em sentimento de amor. Esse é o enlace necessário para a compreensão e entendimento do ser humano onde o amor é um elemento primordial da nascente a foz, do “útero ao túmulo”. (MATURANA, 2004)

3.2.2 Qual o olhar sobre a Água?

No item anterior vimos que a água é tida como uma metáfora do feminino profundo. Porém nos interessa agora olhar o inverso: o que representa a água? Apesar da água está em quase todos os lugares, na terra, no subsolo, no ar, o rio e o mar são lócus privilegiado desse elemento, por isso elas a identificam como esses espaços. Vejamos: "Água, como um rio, a cada momento é outra e flui como num mar, todas juntas, agrega, transforma. Água no útero gera e mantém a vida em transformação; na formação de cada ser”. Nesse trecho foram expressas várias qualidades da água: de agregar, de transformar, de gerar e formar cada ser. Além disso, nos revela um olhar de encantamento para com ela, pois a vêm como elemento vivo capaz de criar e manter a vida e por isso nos inspira para as nossas capacidades criativas também no âmbito da sociedade e da cultura. Outra característica da água, identificada no texto, é a de fluir. A água flui, se movimenta, circula e essas características são vitais para o planeta, para a vida de todos os seres. As mulheres dizem que essas águas são as mesmas que fluem dentro e fora de seus corpos como vimos no item anterior: “As águas do feminino profundo são as

95 mesmas que fluem dentro de mim e da mãe Terra”. Mais uma vez percebemos uma semelhança do que escrevem as mulheres com o que escreve CATALÃO e JACOBI (2011). Os autores nos dizem que:

Os movimentos das águas ajudam a entender que toda a informação por ela transmitida depende do movimento, assim como os processos circulatórios das espécies vivas de todo o planeta. As imagens de satélites que mostram o trajeto das correntes marinhas evidenciam o papel do movimento na manutenção da vida planetária. Se esta circulação for rompida, todos os processos vitais estarão comprometidos. (CATALÃO e JACOBI, 2011). p. 97)

Água parada, estagnada é sinônimo de doenças e morte. Sabemos que é preciso fluidez. As mulheres trazem a água como elemento vital, tal qual o sangue que circula nos animais. Podemos comparar a água com o sangue da terra, e os rios como as suas veias. O sangue precisa circular em nossas veias como as águas do rio precisam fluir e correr para o mar. Tal como disse a avó Carmem Torres, anciã dos Arhuacos, povo indígena que vive na Serra Nevada, na Colômbia: (…) Assim cuida a Mãe Terra dos seus filhos. As sementes que saem dela são regadas pela água. Todos são os fluidos da mãe natureza, assim como o sangue flui no nosso corpo e nosso corpo colhe esse sangue, a terra também colhe a água e faz a comunicação na terra. Tudo recorre à água, como o sangue que corre no nosso corpo e assim se faz toda comunicação da natureza. É o útero materno, de onde nós nascemos nos alimentamos e de novo retornamos. (…) (depoimento de Carmem Torres12)

A sabedoria da avó colombiana associa a Terra ao útero materno. Em seu interior a água flui e alimenta a vida. Uma vida em constante formação e transformação. Assim se expressa a singularidade da relação entre a água, o feminino profundo e o meio ambiente, como propôs o texto coletivo. As águas também se movimentam através do seu ciclo hidrológico. Transmutamse em estados diversos: líquido, sólido e gasoso e por isso se reciclam. Essa é uma ótima

12- Palestra proferida durante o evento A Voz das Avós no fluir das águas, ocorrido em Brasília em outubro de 2012.

96 metáfora para a nossa condição humana. Vejamos outro trecho escrito pelas mulheres: “A água flui para a geração e nutrição da vida, podendo construir entendimento, espiritualidade, subjetividade, criatividade também no masculino”. Com a água podemos ter diversos aprendizados como o de nos adaptarmos, sermos flexíveis e não perder o objetivo maior. A água segue seu curso fielmente sem tentar remover obstáculos, simplesmente o contorna e segue fluindo sem hesitar. A água é sábia como nos diz o I Ching: Água vai fluindo, fluindo, incessantemente, e vai preenchendo as depressões que encontra pelo caminho. Não vacila ante nenhum perigo, não retrocede diante de nenhuma queda, e nada a faz perder sua natureza essencial. A água permanece fiel a si mesma em todas as circunstâncias. (O pequeno I Ching. p. 79)

Assim, a água com suas qualidades generosas, que se molda aos espaços e as condições dadas, percorre caminhos onde sempre se agrega a outras águas até que desemboca no mar da unidade. A água coopera com vida.

3.2.3- A arte fala por si só

Não pretendemos analisar o desenho, pois qualquer tentativa nesse caminho empobreceria a expressão artística que deve ser apenas sentida. Contudo nos arriscamos a identificar os elementos presentes na imagem que foi feita com o objetivo de expressar os textos construídos coletivamente. O grupo responsável pela arte estava totalmente imerso e focado na ação, como em estado de fluxo. Difícil parar, difícil guardar tintas e pincéis usados pelas mãos habilidosas das artistas, tal o prazer que a atividade proporcionou. Ao apresentar o desenho as mulheres apenas o exibiram em silêncio. Explicitaram que não iriam explicar o que tinham feito, visto que arte é fruição e sentimento. Nenhuma palavra, só expressões de admiração por parte das demais que recebiam a apresentação. A imagem apresentada no II capítulo segue novamente, mais ampliada, para que possamos observar melhor os seus detalhes.

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imagem-18- desenho coletivo

Quais elementos nos chamou a atenção? O desenho traz um grande circulo e dentro dele outro circulo menor com o símbolo do Tao (yang e yin). O círculo para Jung é um desenho arquetípico, pois representa a totalidade, não há lados e pontas, começo, meio e fim. Aniela Jaffé, ao falar do simbolismo nas artes plásticas, no livro O Homem e seus Símbolos, organizado por Jung, dedica um item ao símbolo do circulo:

A Dra M. L.Von Franz explicou o círculo (ou esfera) como um símbolo do self: ele expressa a totalidade da psique em todos os seus aspectos, incluindo o relacionamento entre homem e a natureza. (...) Ele indica sempre o mais importante aspecto da vida – sua extrema integração e totalidade. (JAFFÉ, 1964, p. 240)

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A esfera menor está dentro da outra como se fosse a representação de uma semente envolvida por um coração emoldurado por pessoas de braços abertos. Nos dois círculos brotam frondosas árvores, uma em cada um deles, com raízes profundas e copas espessas. A árvore nos lembra da conexão entre a Terra e o Céu. Tem ainda uma árvore seca atingida por um raio que pode representar crise, ruptura, dificuldades, a própria morte. Vida e morte, uma não existe sem a outra. Uma enorme cobra colorida e prenha olha para o centro e emana energia. Há em volta afluentes cercado de flores, matas, borboletas, pássaros e pedras. Serpentes e borboletas são símbolos de metamorfose. Esses símbolos foram identificados com os poderes transformadores da Deusa na época em que as sociedades de cultura matrísticas reverenciavam a divindade feminina. A borboleta já foi uma lagarta e a cobra solta a sua pele para renovar-se e regenerar-se. Um dos afluentes é representado em vermelho, como um fio de sangue. Podemos inferir que se trata do sangue menstrual que faz parte da vida das mulheres antes de atingirem a menopausa. De uma enorme mão aberta saem pontos coloridos como sementes jogadas para serem semeadas e reflorestarem a terra. Elas são circundadas por um azul marinho, profundo lembrando-nos a cor do planeta. Gotas de chuva caem sobre as sementes para que sejam fertilizadas e enchem os leitos dos rios lembrando o eterno ciclo das águas e o feminino que é fértil e gerador de vida. Pessoas dançando com o coração aberto, expostas ao coração dos outros e entre elas percebemos pegadas de outros animais. Não estamos sozinhos, outros seres coabitam a nossa casa comum. Uma das pessoas desenhadas segura uma estrela e outra a grande cobra. Essa imagem nos remete a origem e a ligação entre o céu e a Terra. O desenho tem um colorido vibrante, expressa muito movimento e destaca as polaridades noite e o dia, o sol e a lua as estrelas. A Terra e o Céu. As fases da lua refletidas nas águas. Será essa expressão do feminino profundo? Apesar de preencher toda a superfície do papel o desenho tem em si o sentido de um processo em construção, móvel e em constante transformação. Essa transformação está interligada a todos os elementos contidos no desenho. Além de tudo isso, é de uma

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beleza impactante. Não dá pra conter a admiração ao apreciá-lo. Foi unanime a constatação de que tudo o que foi dito e vivido estava ali representado

3.2.4 Qual o valor da cooperação?

As mulheres apontaram a necessidade de nos enxergamos (a humanidade) como parte do todo. No texto coletivo, reconheceram o princípio masculino como um fogo: “A criatividade e intuição feminina ganham movimento quando a fagulha masculina lhes dá força, cor e forma, gerando ação e transformando o mundo”.

Reconheceram a

necessidade de recolocar o feminino e o masculino no lugar que lhes cabe - “confluindo masculino e feminino”, favorecendo relações de colaboração. Como o Tao, que simboliza a complementaridade. Não somos separados da natureza, somos a natureza, disseram as mulheres no texto: “(...) Somos água que flui, somos natureza que sonha e cria. (…).”

E continuaram: O poder de transformar a realidade tem como fonte a integração no meio ambiente, confluindo feminino e masculino em complementaridade, favorecendo relações de colaboração. A desconexão histórica ser humano/natureza, ser humano/ser humano, homem/mulher gerou relações de dominação e destruição que não sustenta a vida, porém no rio da vida há crise e oportunidade.

A realidade não se transforma sozinha. Qualquer mudança passa por uma ação humana e nesse caso uma ação que busca integrar ser humano e ambiente. Essa é uma ação cidadã de sujeitos ecológicos que entendem as causas das relações de dominação e que atuam de forma a superá-la. CARVALHO (2004) nos fala dessa consciência que surge da solidariedade, própria da cooperação. Essa consciência dos riscos compartilhados pode atuar como força agregadora, cooperando para formação de redes de ações solidárias. Tais ações, por sua vez, contrapõem-se aos mecanismos de desintegração social e desintegração ambiental relativos à apropriação dos bens ambientais por parte dos interesses privados, contribuindo, assim, para a preservação tanto do planeta quanto dos

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vínculos de solidariedade social, indispensáveis à convivência humana. (CARVALHO, 2004, p.169)

A cooperação, nesse caso é fundamental para que as bases de sustentação físicoquímicas do planeta e as bases sociais de solidariedade entre homens e mulheres e desses com todas as formas de vida. Uma sociedade justa e ambientalmente sustentável terá a cooperação como um valor fundamental. Sem ela não será possível transformar a crise em oportunidade de mudança. As mulheres escrevem no texto o que constitui os fundamentos da cooperação: O conhecimento gerado nesse processo nos dá a consciência do eu e do outro que constitui os fundamentos da cooperação entre todos os seres e se traduz em gratidão. Perceber a interdependência dos seres vivos na teia universal da vida é viver a plenitude do ser.

Para elas, esses fundamentos se traduzem em gratidão e a plenitude do ser só será alcançada se houver a percepção da interdependência entre todos os seres vivos. Essa é uma atitude reflexiva e pode ser considerado um dos objetivos a ser perseguidos pela preservação e conservação da vida. Para isso, é necessário que os valores éticos e estéticos envolvidos nessa postura estejam vinculados à cooperação. BROTTO (2001) é francamente favorável à cooperação como um valor ético fundamental para que se possa construir um mundo melhor, uma vida saudável para essa e para as futuras gerações e, colocar-se no lugar do outro é o primeiro pré-requisito para aprimorar a convivência entre todos os seres, um exercício de corresponsabilidade para melhorar as relações humanas em todas as suas dimensões. Voltando ao texto: ‘Perceber a interdependência dos seres vivos na teia universal da vida é viver a plenitude do ser’. É possível viver a plenitude do ser numa sociedade materialista, desigual, consumista, onde a cultura é apartada da natureza? CAPRA (1983) afirma que é a divisão entre todas as coisas é fruto de uma abstração da realidade e que de fato ela não existe. Na vida cotidiana, não nos apercebemos dessa unidade de todas as coisas; em vez disso, dividimos o mundo em objetos e eventos isolados. (...), contudo, essa divisão não é uma característica fundamental da realidade. Trata-se, na verdade de uma abstração elaborada pelo nosso intelecto afeito à discriminação

101 e à categorização. A crença de que nossos conceitos abstratos de “coisas” e “eventos” isolados são realidades da natureza é uma ilusão. (CAPRA, 1978.p. 103)

Em nossa atual forma de desenvolvimento social, vivemos de maneira demasiadamente masculina, fragmentada, racional e competitiva, Contudo, se quisermos viver a plenitude do ser é importante superarmos essa visão, rompermos com esse paradigma, e buscarmos as inter-relações existentes na teia da vida. Para alcançarmos esse equilíbrio, fruto da colaboração, é preciso uma revolução profunda na nossa maneira de ser e de estar no mundo e agirmos como nos propõe a visão taoista onde as polaridades convivem em harmonia, pois constituem uma única realidade. Assim, é interessante perceber como o grupo deixou explicita a necessidade de reconhecimento do masculino, sem o qual a força feminina também não se expande. A expressão plena do feminino se dá por meio da plena expressão do masculino. E viceversa. Considerando que tudo está vinculado, interconectado e em movimento, tanto no micro como no macrocosmo. E a vida flui como uma dança, serpenteando entre os princípios masculino e feminino. No seu âmago, no seu centro, há o sentimento amoroso, a consciência amorosa, a vida em si mesma. A gratidão é apenas o reconhecimento de todo esse significado.

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REFLEXÕES FINAIS

Depois de um intenso processo colaborativo para a realização desse trabalho de final de curso, podemos fazer algumas considerações que refletem o processo de aprendizagem pelo qual passamos, desde o planejamento até a sua escrita final a quatro mãos. Nosso intento foi identificar a relação de pertencimento singular entre a água, o feminino e a cooperação a partir de um círculo de diálogo com mulheres. Consideramos a experiência do Círculo de Diálogo como um dia fora do tempo ou de um tempo entendido, mágico. Como pôde tanta coisa acontecer em apenas 10 horas? Sabemos que o feminino foi desprezado, ferido e subjulgado pelo masculino que funda a cultura patriarcal centrada no poder de dominação. Quando falamos de feminino não tratamos apenas de mulheres, assim como quando falamos de masculino não nos referimos apenas aos homens. Portanto, o feminino não está ligado ao sexo, mas a energia vital, e é fundado na emoção que nos constitui como humanos - o amor. O feminino simboliza um valor profundo, um sentimento relacionado à ética do cuidado que sustenta e honra a Terra e todas as formas de vida. O trabalho confirmou o que já intuíamos: o feminino é a capacidade de criar, incluir, agregar, cuidar, tecer, planejar e sonhar junto. Podemos reconhecê-lo na voz das avós, sábias anciãs que se reuniram em um conselho internacional com o objetivo de transmitir os seus conhecimentos em benefício das futuras gerações. Assim, consideramos que um dos grandes aprendizados do estudo foi a compreensão de que nossas raízes, nossa ancestralidade, nos define neste mundo. Pois, de fato, são as mulheres quem mais nos ensinam o feminino. Nossas avós, nossas mães e outras mulheres significativas - amigas, irmãs, professoras, companheiras - que foram e que são importantes em nossas vidas. Percebemos o feminino na natureza, principalmente na água, cuja relação de singularidade se pode encontrar nas características e qualidades em comuns. E que qualidades são essas? A capacidade de adaptação, de confluência, de fluidez, de paciência, de flexibilidade, de perseverança, de consistência, de confiabilidade, de contornar obstáculos, de manter-se fiel a si mesma. Podemos, ainda, escutá-lo nas

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relações e conversações, nos diálogos e nas construções coletivas onde a cooperação exista e seja a força motriz. Assim como a água, o feminino profundo e a cooperação são capazes de gerar vidas e delas cuidar para que tudo floresça vigorosamente. Contudo, o feminino profundo traz em si o seu oposto: luz e sombra, noite e dia, forte e fraco, vida e morte. Por isso, não separa e nem segrega. Aceita, recebe, acolhe. Percebe-se como parte do universo. Entende que a parte contém o todo. E, por incluir o todo e a parte, é complexo e transita nas diversas dimensões da realidade. Acreditamos em um tempo em que homens e mulheres poderão fluir livremente. Quando as mulheres forem libertadas da identidade com as características femininas (Yin) e os homens, das características masculinas (Yang) poderão seguir em frente com mais plenitude e felicidade, incluindo as duas polaridades em seu Ser. No círculo de diálogo com as mulheres nadamos em águas profundas e trouxemos à tona os instintos da mulher selvagem, como nos ensinou Clarisse Estés. Nesse movimento escavamos poços, resgatamos nossas almas, refletimos sobre a nossa força criativa, sobre os nossos encontros (nossos afluentes) e sobre como flui o rio de nossas vidas. Perguntamo-nos como é possível integrar masculino e feminino, de modo que o lugar de cada expressão possa ser valorizado e reconhecido como absolutamente necessário. E também, como preservar o nosso feminino e o feminino nos homens, num mundo hierárquico e competitivo. Essas são questões cruciais inseridas na complexa teia de indagações que permeiam o mundo contemporâneo e, a bem da verdade, não podem ser respondidas assim, superficialmente. O que fizemos foi acender luzes sobre elas, dar foco, problematizar, para tentar entender certos significados e nos fortalecemos enquanto mulheres que historicamente têm representado o feminino. Também percebemos a urgência de se instalar uma relação entre homens e mulheres mais respeitosa e solidária. Principalmente as mulheres mais maduras, falaram do resgate do relacionamento com os homens e do cuidado para não envergarmos a vara para além do necessário. Elas falaram que é hora de abrirmos mão da postura de vítimas ou de empunhar as mesmas armas usadas para reprimir as mulheres, contra os homens que são parceiros nessa jornada. É

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tempo de consagrar o amor e a cooperação para construirmos juntos uma possibilidade de bem-viver. Hoje, sabemos que a ordem patriarcal deixou para o mundo uma herança perversa: a dicotomia ser humano e natureza. Com isso a natureza passou a ser vista como um bem utilitário, como um 'recurso natural' que não tem valor intrínseco, mas um valor de uso estipulado pelo capital. Estabelecemos, assim, uma relação de dominação da natureza, de relações exploratórias, que levam em conta necessidades imediatas e não sustentáveis. O uso desmedido e sem limites e a má gestão do que chamamos de 'recurso natural' nos coloca hoje numa situação emergencial. Colonizamos, exaurimos e poluímos a terra, as florestas, os rios, os oceanos, a atmosfera, como nos disse Vandana Shiva (apud Koss 2000). Como sair dessa encruzilhada? Como promover a sobrevivência da espécie humana em comunhão com todas as outras? Como desenvolvermo-nos de forma sustentável? Como preservar a vida cuidando de nossas águas externas e internas? A cooperação pode ser a chave para responder a todas essas questões. Para tanto se faz necessário romper o paradigma utilitário e resgatar o princípio feminino e da colaboração na gestão da água e dos recursos naturais de uma forma mais ampla. Existem muitas armadilhas no caminho. Nossa tarefa é enfrentar o mar revolto e as tempestades, no âmbito individual e coletivo. Para superamos a crise socioambiental contemporânea e recolocarmos a natureza e o feminino em seu lugar, as transformações de nossos valores, percepções e atitudes são fundamentais. Hoje, mulheres e homens questionam o poder dominante. Emerge uma nova consciência que não quer a guerra entre os sexos e nem entre humanos de forma geral. A cultura de paz é parte do resgate do feminino, do poder de parceria e da solidariedade. É tempo agirmos com o coração, com sentimento, com consciência das nossas atitudes e dos seus reflexos. Por isso, evocamos a imagem da metamorfose da lagarta em borboleta e, com ela, os aprendizados adquiridos por meio da pedagogia da cooperação nas vivências dos jogos

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cooperativos. Eles nos alimentaram e nos incentivaram a usarmos nossa energia em prol da transformação social, onde homens e mulheres, seres humanos e natureza vivam em paz. Nesse processo, a água, com as suas características singulares, foi nossa Mestra. Sabemos que nesse rio temos muito a percorrer, muito a conhecer. Iniciamos uma jornada. Agora que molhamos os nossos pés e sentimos o gosto dessas águas. Com isso, nos demos conta de quão essencial é a sabedoria feminina. O feminino manifesto é um milagre em si mesmo!

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