O saber médico psiquiátrico e a saúde mental. Práticas de cuidado no CAPS Esperança

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O saber médico psiquiátrico e a saúde mental. Práticas de cuidado no CAPS Esperança1.

Lecy Sartori UFSCar/São Paulo

Resumo:

Neste artigo vou problematizar, a partir de uma etnografia realizada no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Esperança, as práticas terapêuticas oferecida à pacientes psicóticos. Procurei observar como os profissionais pensam e formulam suas práticas de cuidado, que estão pautadas no uso da medicação e na escuta terapêutica. Os profissionais do CAPS utilizam da psicanálise lacaniana para produzir uma intersecção entre o discurso da saúde mental e o discurso do saber médico psiquiátrico. A relação de transferência e de vínculo com o paciente possibilita ao profissional calcular a melhor forma de intervir no caso clínico, ao mesmo tempo em que permite analisar como os sujeitos reagem à interação com a medicação. O diálogo se estreita quando a perspectiva médica psiquiátrica e a perspectiva da saúde mental analisam o sujeito e seu sofrimento. As duas perspectivas, atravessadas pelo saber psicanalítico, concordam que o sintoma deve ser articulado pelo discurso dos sujeitos. Pode-se observar uma transformação na forma de cuidado que opera mecanismos de poder, que incide sobre a vida dos sujeitos e sobre as suas potencialidades particulares. Deste modo, os profissionais não procuram a cura da doença, mas formulam estratégias pautadas em uma nova tecnologia terapêutica que problematiza a existência e otimiza a saúde dos pacientes. Assim, procuro observar as práticas de cuidado, os saberes e a produção de novas formas de controle dos sujeitos.

Palavras-chave: Antropologia Política, Saúde Mental, Psicanálise, Psiquiatria.

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Trabalho apresentado na 27ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil.

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Introdução

Proponho neste artigo discutir o modo como, no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Esperança, os atores produzem uma terapêutica em que o saber médico psiquiátrico e os discursos da saúde mental são atravessados pela psicanálise lacaniana. Esta nova tecnologia de cuidado produz certa forma de controle, “psiquiatria como controle social” (Brasil, 2010: 12), já prevista nos discursos oficiais do ministério da saúde. No CAPS Esperança o cuidado desponta como possibilidade e como alternativa efetiva dos pacientes2 psiquiátricos viverem fora de grandes instituições de confinamento, como os antigos manicômios. Registram-se, desde o final da década de 70, lutas sociais que culminaram no movimento da Reforma Psiquiátrica 3, que atualmente produzem novas instituições e uma nova tecnologia de cuidado (Sartori, 2010a). Nesta perspectiva, pretendo contribuir neste artigo com uma descrição desse cuidado a partir das experiências vividas pelos profissionais no cotidiano de suas práticas no CAPS Esperança. Entres os meses de fevereiro a julho de 2008, realizei trabalho de campo no CAPS Esperança, situado no distrito leste de Campinas. Esta instituição, criada em 2003, é um desdobramento de alguns acontecimentos que modificaram as práticas terapêuticas a partir da transformação no modelo de assistência da instituição filantrópica Cândido Ferreira4. Na dissertação de mestrado (Sartori, 2010), descrevi os acontecimentos que possibilitaram ao Cândido Ferreira modificar seu regime de dominação antes voltado para um modelo disciplinar (Foucault, 2002) de confinamento do hospital psiquiátrico para um “controle ao ar livre” (Deleuze, 2007:220) que se volta para o paciente que transita por uma Rede de instituições. O CAPS Esperança foi criado

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Todos os termos que aparecem em itálico correspondem a expressões nativas, com exceção das palavras em idioma estrangeiro. As palavras e frases colocadas entre aspas correspondem à transcrição da fala dos meus interlocutores de pesquisa. Em alguns casos as aspas serão utilizadas para indicar citação de outros autores, que virão acompanhadas pela referência bibliográfica. 3 A Reforma Psiquiátrica foi um processo histórico de questionamento e reformulação das práticas na área de saúde mental, seu objetivo era elaborar um novo modelo de atenção psicossocial e a inserção do paciente em uma rede de relações sociais e institucionais que teve seu estopim no fim da década de 70 a partir do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM). A Reforma Psiquiátrica é um assunto discutido em grande parte das obras sobre saúde mental no Brasil. Entre as versões mais detalhadas estão os trabalhos de Amarante (1995, 1995a), Vasconcelos (2002) e Delgado (1992). 4 O Cândido Ferreira ou Cândido (como meus interlocutores costumam falar quando se referem à instituição) é formado por uma Rede de instituições, com caráter filantrópico em co-gestão com a prefeitura de Campinas, que oferece assistência à pacientes psiquiátricos. O CAPS Esperança é uma das instituições que configuram esta Rede.

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a partir das experiências dos profissionais do Cândido, primeiramente, com a criação do Hospital-Dia, instituição que funcionava como um ambulatório. Na pesquisa de campo, observei o funcionamento e a organização do cotidiano institucional. Para este artigo é importante pontuar que o CAPS Esperança prestava assistência durante o dia por meio de atividades terapêuticas em grupo ou individualmente. As intervenções terapêuticas eram produzidas e avaliadas nos espaços de discussão em grupo, onde participavam somente profissionais (a reunião de equipe, a reunião de mini-equipe, o grupo de estudo, a supervisão clinica e supervisão institucional) e espaços em que se reuniam profissionais e pacientes (como a assembléia, o grupo de tratamento, acolhimento, triagem, oficinas e visitas domiciliares). Ao mesmo tempo, existiam na instituição leitos para internação de curta permanência, mas somente para pacientes tratados pela equipe de profissionais (ao todo eram 30 profissionais formados em especialidades como medicina psiquiátrica, psicologia, enfermagem, terapia ocupacional, assistência social e técnico em enfermagem). O CAPS Esperança atendia cerca de 280 pacientes em uma média de oitenta a noventa pacientes ao dia (em sua maioria os pacientes eram diagnosticados como psicóticos, segundo a médica psiquiátrica do CAPS). Na verdade, procurei descrever o modo de funcionamento das práticas de cuidado no CAPS Esperança a partir dos discursos dos profissionais. Se é assim, então, o mais importante foi descrever, a partir dos discursos dos meus interlocutores (ou seja, dos profissionais do CAPS Esperança), como era produzida uma “ciência experimental”, nas palavras de Isabelle Stengers (2002), que permite aos profissionais inventarem saberes e um discurso que legitima suas intervenções terapêuticas. Nesse sentido, pretendo realizar uma “descrição analítica” (para usar uma expressão de Villela, 2010:14), de como as práticas de cuidado no CAPS Esperança refutam, a exemplo, a forma como eram medicados os pacientes psicóticos no hospital psiquiátrico. Segundo meus interlocutores de pesquisa, todas as atividades produzidas na instituição são terapêuticas, mas o cuidado se fundamenta no uso da medicação e na escuta terapêutica. A prática da experimentação medicamentosa comentei-a em outro lugar (e.g. Sartori, 2010b). Para este artigo pretendo descrever a relação entre a técnica de prescrição da medicação e as informações, que indicam a interação medicamentosa no corpo do paciente, adquiridas por meio da prática da escuta terapêutica. Por outras palavras, a experiência do paciente com a medicação é expressa em sua fala que permite

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ao profissional de sua referencia5 avaliar se a intervenção medicamentosa está agindo de forma terapêutica.

O uso da medicação na “clínica da palavra” A clínica praticada pelos profissionais do CAPS Esperança é denominada de clínica ampliada6 esta prática estende a clínica (que antes era praticada pelo médico psiquiatra dentro do consultório) para todos os profissionais da equipe e para todos os espaços institucionais e para fora do CAPS Esperança. A clínica ampliada possibilitou que todos os profissionais colocassem em funcionamento a clínica do particular, que é um cuidado proposto a partir da singularidade de cada sujeito. Para meus interlocutores, somente o sujeito é capaz de elaborar um saber sobre o que ele sente e vive como experiência. Isto implica em uma inversão da posição de passividade dos pacientes para uma posição de sujeito atuante no seu processo terapêutico. De acordo com uma enfermeira e psicanalista lacaniana do CAPS: “O sofrimento indica o caminho para cuidar do paciente”. Ou seja, os caminhos para a elaboração de intervenções que procuram ajudar os pacientes a minimizar os seus sofrimentos, a evitar as crises e possíveis internações psiquiátricas. Os profissionais colocam em funcionamento uma nova tecnologia que considera o sofrimento como parte constitutiva dos sujeitos. A desinstitucionalização pautada na complexidade do sujeito não procura mais a cura da doença ou explicações orgânicas para o sofrimento. Tendo em vista que a cura tornou-se um projeto de invenção de saúde, de autonomia, de cidadania, de produção de subjetividade, de relações sociais e criação de vínculos. Nesta perspectiva, as práticas terapêuticas são marcadas por uma relação de negociação constante entre o profissional e o paciente. De acordo com meus interlocutores, os profissionais do CAPS Esperança têm o

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Profissional de sua Referência ou Profissional de Referência é o profissional que possui um vínculo de confiança com o paciente, ou seja, é o profissional que mantém uma relação de transferência com este sujeito cuidado, em outras palavras, é o profissional responsável pelo caso clínico do paciente. Sobre a importância do trabalho realizado pelo Técnico de Referência na organização da terapêutica empregada em instituições como os CAPS, ver Silva (2007). 6 Essa operação, que desloca para toda a equipe o lugar da percepção dos sintomas e da escuta das queixas e/ou demanda dos pacientes, fez com que o dispositivo de consulta (Cardoso, 1999: 42) fosse estendido da prática médica para todos os profissionais. Discuti e descrevi como a clínica ampliada se configura no cotidiano institucional do CAPS Esperança em um artigo apresentado na Reunião de Antropologia Equatorial, em Natal (ver: Sartori, 2009).

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objetivo de ajudar os sujeitos a “construírem laços sociais”. Os “laços sociais” ou vínculos pessoais podem se romper (ou se rompiam) devido às crises, aos sofrimentos e pela antiga forma de tratar baseada em internações por longos períodos de tempo (meses, anos e, em alguns casos, décadas). Uma grande parte dos pacientes, atendidos na instituição, vive em situações socioeconômicas precárias e muitos vivem em situação de rua, alguns foram abandonados pela família e vivem em pensões ou em moradias assistidas. Em razão dessa dinâmica específica, o CAPS propõe um anteparo institucional e a possibilidade de criação de vínculos, primeiramente, com o profissional por meio da transferência (assunto ao qual será dedicada uma discussão mais adiante). Esta relação produz o que Wolf (2003) chamou de “coalizões centradas no indivíduo”. Pode-se afirmar, segundo a formulação de Marques (2002), que as relações de solidariedade estabelecidas na produção de conexões e alianças que partem do indivíduo permitem desempenhar um papel que viria a suprir um vazio provocado por nexos institucionais, pela falta de relações solidárias de parentesco e por situações econômicas precárias. Desta maneira, os laços criados pela via interindividual como as relações de amizade, de solidariedade, de afinidade e afeto, viriam amenizar o abandono e a mascarar certas desigualdades, mas, contudo, não permitem uma autonomia dos sujeitos com relação aos laços institucionais. As intervenções terapêuticas e a análise do caso clínico dos pacientes são elaboradas na reunião de mini-equipe. Os profissionais afirmam que o cuidado em equipe permite compartilhar a responsabilidade do cuidado com outros profissionais. As queixas dos pacientes sobre os efeitos da medicação são freqüentes. O paciente aqui é transformado em caso a partir de vários exames. Conforme já notou Pignarre (2008a), é consenso entre os profissionais da área da saúde considerar os pacientes como casos clínicos. Assim como afirmou Foucault (2002: 159), a constituição dos indivíduos como caso é o mesmo que pensá-los com um objeto descritível, mensurável, analisável, mantendo-os em suas singularidades e em suas capacidades particulares. Para meus interlocutores de pesquisa foi possível verificar, com certa freqüência, que a prescrição da medicação acontece de forma particular, pois está pautado na singularidade de cada sujeito. Ou seja, a prescrição é calculada a partir do caso clínico do paciente. No interior da instituição é possível observar que o paciente ao falar como está se sentindo, explica, por exemplo, que não está “dormindo muito bem”, ou que está com “dificuldade para acordar”, isto devido à sonolência que o uso de alguns 5

medicamentos pode provocar. Assim, pude observar que, por um lado, alguns pacientes pediam para médica ou para outro profissional aumentar a medicação e, o contrário também acontecia, a dose da medicação era diminuída quando apareciam os efeitos colaterais indesejados. Na realização da minha pesquisa de campo, um dos profissionais do CAPS disse que, às vezes, o uso da medicação era capaz de orientar a direção do tratamento. Isso quer dizer que a partir do fármaco e sua ação no corpo, era possível atingir determinado sintoma e, assim, proporcionar a diminuição do sofrimento psíquico, evitando que o paciente se desestabilizasse7. Embora o uso da medicação no CAPS Esperança esteja ligado à dinâmica da transferência8 existem lugares que a prescrição da medicação psicotrópica é orientada por um protocolo9. No CAPS, a prescrição da medicação é feita pelo médico, mas está estritamente relacionada à escuta terapêutica e as informações que os profissionais adquirem por meio da transferência estabelecida com o paciente. Os profissionais afirmam que o saber adquirido por meio dessa relação possibilita entender como o paciente funciona com determinada medicação. Isso permite ao médico avaliar a experiência de interação do paciente com a medicação. Os profissionais no exercício de suas práticas consideram o sujeito que sofre um colaborador do processo terapêutico. Nesse sentido, o paciente ao falar de um efeito indesejado da medicação para o técnico que ele confia faz com que essa informação chegue ao médico que modifica a sua prescrição. É recorrente, no CAPS, a atualização das prescrições dos pacientes, em outras palavras, o ajuste da medicação acontece a partir de uma queixa, de uma demanda ou por uma necessidade do paciente. O funcionamento da terapêutica é marcado por micro-poderes que organizam a dinâmica das relações no interior da instituição. Essas relações foram descritas primeiramente no processo da triagem e em práticas como a escuta e a observação permanente dos sujeitos. Pode-se afirmar que as medicações são utilizadas para controlar todas as manifestações mórbidas. Como foi possível observar na descrição

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Desestabilização é o nome utilizado para se referir a uma crise psicótica. Segundo os profissionais do CAPS Esperança a transferência é uma relação de confiança estabelecida com o paciente. Ao mesmo tempo em que a transferência é pensada como um instrumento que possibilita ter acesso ao saber do paciente. 9 Prescrições orientadas por protocolos quer dizer que o médico preenche um papel com informações sobre o paciente. Essas informações indicam o tipo de medicação que vai ser prescrita. Em outras palavras, o psiquiatra assinala com um X as alternativas referentes às informações que o paciente afirma e, assim, no final todos aqueles que, por exemplo, foram assinalados com o diagnóstico de esquizofrenia o protocolo vai indicar a medicação. 8

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feita sobre a triagem. Na prática da triagem a demanda do paciente é transformada em sintomas que, por sua vez, permitiam uma intervenção terapêutica. No jogo de perguntas e resposta da triagem, os técnicos não se aprofundam na loucura do paciente. No caso da medicação, as relações de poder operam por meio de um jogo de forças. Este jogo permite ao médico apreender internamente o processo do adoecimento, a partir de um saber que o psiquiatra “imagina poder compreender dos fenômenos da loucura” (Foucault, 2006: 373). Nesse processo, a loucura é caracterizada como doença ou sofrimento, o uso do remédio possibilita a reprodução artificial desse estado, uma vez que o remédio produz efeito nos corpos, em sua maioria, efeitos, também, indesejáveis, isto é, efeitos colaterais10 que afirmam para o sujeito a condição de doente. Pignarre (2008b.) observou em suas análises os efeitos colaterais no uso da medicação psicotrópica. Para ele, essas medicações (benzodiazepínicos prescritos como ansiolíticos e hipnóticos) são utilizadas para sedar, ou diminuir o nível de consciência dos pacientes com a intenção de controlar os comportamentos agitados e agressivos. O autor afirma que o “diagnóstico de esquizofrenia implica na prescrição de um neuroléptico, cujos efeitos colaterais fazem com que o paciente pareça cada vez mais com um esquizofrênico!” (Pignarre, 2008b). Os efeitos medicamente nocivos são provocados não pelo erro de diagnóstico ou pela ingestão esporádica do medicamento, mas pela ação da intervenção médica fundada em seu cálculo sensível. Isto quer dizer que as intervenções médicas produzem efeitos nocivos e alguns incontroláveis que sujeita os indivíduos em um processo arriscado que pertence ao domínio das probabilidades intuitivas (Castel, 1987: 127). No CAPS toda medicação principalmente os antipsicóticos são usados na tentativa incessante de controlar, esconder, mascarar e aliviar todos os sintomas da psicose como agressividades, agitações, alucinações auditivas e visuais. O médico prescreve doses elevadas da medicação, ao mesmo tempo em que prescreve outras medicações que têm a função de inibir os efeitos colaterais. Em outras palavras, os efeitos colaterais são tão freqüentes que na conduta médica é comum a prescrição já calculada dos efeitos indesejáveis ou, ainda, junto com a prescrição do antipsicótico o psiquiatra receita o medicamento que irá inibir e/ou prevenir seus efeitos colaterais. O cálculo terapêutico é 10

Os efeitos colaterais que podem ser observados são, em muitos casos, a salivação excessiva, tremores, pele oleosa, discinesia - que são movimentos involuntários como mastigação repetitiva e movimentos que repuxam os músculos da face. Ocorrem efeitos sobre o sistema motor como rigidez muscular, a inquietação, vontade de andar e mexer com as pernas mesmo estando parado. Em muitos casos a face assume a feição de uma estátua.

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elaborado pelos profissionais por maio da avaliação das probabilidades já experimentadas na realização de suas atividades de cuidados. É a partir de suas experiências que eles conseguem analisar e considerar aquilo que pode acontecer, os imprevistos que podem surgir. O profissional ao calcular uma intervenção terapêutica considera as possibilidades de acertos e erros da prática do cuidado. Pode-se considerar o cálculo uma estratégia de ação produzida, freqüentemente, de forma coletiva. É possível, segundo meus interlocutores, calcular possíveis reações dos pacientes às intervenções ou acontecimentos, este cálculo é denominado de “passagem ao ato”. O cálculo permite ao profissional presumir a sua posição na intervenção terapêutica (Sartori, 2010). Certamente a obra de Estroff (1997), sobretudo a relativa ao processo de desinstitucionalização, analisou como a medicação psicotrópica inibia a capacidade do paciente em negociar suas necessidades. Nesse sentido, o medicamento apareceu como um estigma para o paciente psiquiátrico. Os profissionais, por um lado, acreditavam que o estigma era produzido pelos sintomas da doença. Por outro, os pacientes sofriam mais o estigma provocado pelas injustiças, por humilhações de alguns tratamentos, pela pobreza econômica e pela escassez de oportunidades. Para autora, o estigma pode ser considerado, em grande parte, o efeito de uma afirmação de “periculosidade” do paciente, que permite a intervenção terapêutica e doses elevadas de medicamentos. Segundo Estroff, os pacientes reagiam de forma agressiva quando submetidos a fatores situacionais, de dependência econômica e o convívio com relações hostis. No CAPS Esperança, pude observar que os pacientes eram medicados por serem ou estarem agressivos ou agitados. Cabe lembrar que todos os pacientes que faziam tratamento no CAPS eram medicados, mas as prescrições eram diferentes, já que o tratamento buscava uma singularização dos sujeitos tratados. Em muitos casos eram prescritas as chamadas medicações de depósito11, que seriam injeções de Haldol Decanoato administradas uma ou duas vezes ao mês. Essa medicação, administrada por via intramuscular era liberada aos poucos no decorrer dos dias. Cerca de oitenta pacientes tomavam a medicação de depósito.

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Os neurolépticos de depósito são medicações que possuem em sua composição um álcool (neuroléptico original) e um ácido graxo (palmitato, decanoato, undecilinato, enantato). Com isso, obtém-se um tipo de substância que possui uma lenta absorção, por ser uma substância oleosa. A partir da composição química do medicamento é possível afirmar que a duração do efeito terapêutico é maior para o palmitato, seguido do decanoato (Bressan, 2000).

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Apesar de muitos pacientes pedirem constantemente para serem medicados, o que se verificava, nas práticas cotidianas do CAPS, era o esforço do profissional em entender o que existia por trás dessa demanda pela medicação. Ou ainda, que tipo de sofrimento o paciente procurava aliviar com o consumo da medicação. Uma vez que não existia a cura da doença e nem a alta do paciente, o tratamento se mostrava contínuo e o uso da medicação, incessante. Desse modo, a prescrição de um neuroléptico não trataria o diagnóstico da psicose, mas aliviaria seus sintomas. Segundo Pignarre (2008c), o uso prolongado e contínuo de medicações neurolépticas traz efeitos colaterais irreversíveis, como as discinesias tardias12. Foi a partir da observação do cotidiano institucional que percebi a existência de pacientes que não aceitavam tomar a medicação. Nesses casos, os técnicos tinham que convencer os pacientes que o uso do remédio era importante. Em alguns casos específicos, os profissionais explicavam para o paciente por que ele precisava tomar a medicação e isso já era suficiente para o paciente aceitar o tratamento medicamentoso. Segundo meus interlocutores, a medicação de depósito era indicada para pacientes que “não aderem ao tratamento”, isto é, por alguma razão não aceitavam e não seguiam o tratamento proposto pelo médico. Alguns sujeitos tratados costumavam esquecer ou, simplesmente, deixavam de tomar a medicação. De acordo com os profissionais, este comportamento de risco poderia levá-los a uma crise e a uma internação psiquiátrica. Assim, com a aplicação quinzenal ou mensal da medicação de depósito o médico é capaz de prevenir o esquecimento do paciente, além de evitar uma crise indesejada. Para Bressan (2000), a medicação de depósito usada em ambulatórios públicos é uma intervenção terapêutica de fácil execução, com uma alta eficácia e com um baixo custo. Isso permite diminuir o número internações e favorece a reinserção social do paciente, ao mesmo tempo em que melhora a relação médico-paciente. Uma interlocutora de pesquisa, afirmou que os pacientes que recebem tratamento em instituições como os CAPS são mais medicados do que aqueles que recebem o tratamento nos hospitais psiquiátricos. Quando questionado o profissional respondeu que os pacientes tratados em instituições como estas estariam em contato 12

A discinesia tardia (DT) é um efeito extrapiramidal causado por neurolépticos, caracterizada por movimentos involuntários, anormais e repetitivos localizados principalmente na região orofacial, tronco, extremidades inferiores e superiores, podendo acometer inclusive o sistema respiratório. A DT acomete ao menos 20% dos indivíduos em uso de neurolépticos, com taxas de incidência para novos casos de aproximadamente 3 a 5% ao ano. Essa incidência ocorre de maneira cumulativa e chega a 30% entre os idosos expostos ao uso crônico de neurolépticos (Soares, 1998, grifo meu).

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com pessoas e relações, antes impossíveis de acontecer visto que esses sujeitos viviam em grandes instituições como os hospitais psiquiátricos. Os dados epidemiológicos disponibilizado pelo DATASUS revelam que entre 1995 e 2005, ocorreu um aumento de 15% na distribuição de psicotrópicos no SUS (Andreoli et al., 2007). E a política de saúde mental com a criação de novos serviços de assistências entre o ano de 1990 até 2007 levou a desospitalização de 60.000 leitos psiquiátricos no país13 (Silva, 2009). Para meus interlocutores, o contato com a realidade social faz com que os pacientes necessitem de mais medicações para evitar um sofrimento. Vemos aqui um sistema no qual a terapêutica é ordenada pelo uso da medicação, assim como os corpos dos sujeitos construídos e constituídos por essa relação química. Tomo emprestado de Donna Haraway (2000), a expressão “ciborgue” para me referir as pessoas que fazem uso contínuo, prolongado, às vezes por toda a vida, de substâncias químicas como os medicamentos. A autora em sua análise sobre redes biológicas faz uma crítica sobre a forma como a biotecnologia constrói os corpos. O ‘ciborgue’, portanto, é um organismo cibernético, uma junção de organismo e máquina, um híbrido de relações sociais vividas, ao mesmo tempo em que ele é uma ficção. É que a vida atual implica em uma relação íntima entre os sujeitos e as tecnologias. Assim, novas formas de subjetividades são criadas e, neste caso, devemos considerar ao analisar as subjetividades a sua interação com a medicação.

A ação da medicação nos corpos dos sujeitos Os medicamentos psicotrópicos são moléculas de sínteses acolhidas pelo organismo por meio dos receptores nervosos, estes por sua vez, são uma espécie de órgão sensitivo dos neurônios, que formam a estrutura orgânica do cérebro. O cérebro, nesta perspectiva, é pensado como uma propriedade que pertence exclusivamente ao sujeito. Para Rose (2006: 12) o cérebro é, ao mesmo tempo, uma estrutura fixa e um conjunto de processos dinâmicos. Suas funções estão localizadas em pequenos agrupamentos de células e, em alguns aspectos, ligados ao sistema como um todo. O 13

A política de redução de leitos em hospitais psiquiátricos no Brasil se deu a partir de alguns mecanismos implementados como a expansão de instituições como os CAPS, as Residências Terapêuticas, os benefícios como o ‘Programa De Volta Para Casa’, o Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar Psiquiatria (PNASH), assim como o Programa de Reestruturação da Assistência Hospitalar Psiquiátrica no SUS (PRH) permitiram a redução de 6.227 leitos, entre os anos de 2003 e 2005 (Delgado et al, 2007).

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conhecimento sobre o funcionamento do cérebro em alguns destes agrupamentos são parciais. No CAPS Esperança, a medicação administrada tem seu efeito nos receptores nervosos do sistema nervoso central do paciente. O profissional ao administrar14 a medicação promove a possibilidade de uma interação, humana e não-humana (Latour, 2001:352), no corpo do paciente. Mas, especificamente, nos receptores15 neurais de dopamina. Nesse processo, as células de dopamina - que agem no cérebro promovendo, entre outros efeitos, a regulação e o controle dos movimentos musculares, a cognição, a capacidade de sentir sensações de prazer, ânimo, motivação – sofrem uma desaceleração provocada pelo medicamento. Um dos receptores de dopamina mais importante é conhecido como D2. A medicação antipsicótica atua como antagonista desse receptor, ou seja, atua no sentido oposto, diminuindo a ação da dopamina no organismo. Os efeitos extrapiramidais ou colaterais dos antipsicóticos típicos decorrem da ocupação de mais de 80% dos receptores de dopamina (Moreira e Guimarães, 2007:67). Há pouco tempo atrás, conforme me explicou uma médica psiquiatra do CAPS, a conduta com relação à medicação era de administrar até o paciente impregnar (impregnação é o efeito colateral da medicação) e depois que isso acontecia o médico diminuía um pouco a dosagem do medicamento e prescrevia, mantendo o paciente em um limiar de impregnação. No CAPS a relação com a medicação não está pautada nos manuais psiquiátricos, mas sim em uma relação estabelecida com o paciente que está pautada na prática da escuta terapêutica e da transferência. Meus interlocutores de pesquisa afirmam que procuram não recorrer à medicação como única solução para o alivio do sofrimento do paciente, pois em alguns casos, o paciente melhora com uma escuta terapêutica, ou com o manejo do caso, evitando assim, o uso abusivo do medicamento. Na pesquisa de campo, procurei entender como funcionava os efeitos da ação da medicação no organismo dos pacientes. Principalmente, ao que se referia à ação da medicação psicotrópica, no organismo dos sujeitos, capaz de inibir estados alterados da consciência, como aqueles sintomas manifestados por alguns pacientes psicóticos os quais são acometidos por alucinações visuais e auditivas. Perguntei para a médica psiquiátrica do CAPS como era a ação dos antipsicóticos no organismo. Ela me respondeu que tanto as ações das medicações psicotrópicas assim como as causas dos

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Administrar no sentido de ministrar a medicação. Os receptores seriam células que compõe o córtex cerebral, este por sua vez, é responsável pela representação, pelo entendimento e pela razão. 15

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‘transtornos mentais’ eram de certa forma, inexplicáveis. No CAPS, as condutas relacionadas ao uso da medicação no processo terapêutico são determinadas pela ação, absorção e reação de cada paciente em particular. Antes de continuar a discutir sobre as ações e reações das medicações nos corpos é preciso, neste momento, destacar a influência da psicanálise sobre a psiquiatria. Mais especificamente, como a psicanálise modifica sua postura em relação à medicação. Ou seja, como a psicanálise lacaniana, atualmente, se mostra favorável a medicalização dos sintomas psiquiátricos e como é possível observar isso no cotidiano do CAPS Esperança. A psicanálise, no final do século XIX, foi considerada a primeira forma de antipsiquiatria, visto que ela tinha como projeto inicial a desmedicalização de grande parte dos sintomas que a psiquiatria classificava como doença. Contudo, o que se verificou posteriormente foi uma nova medicalização muito maior e mais abrangente, tendo em vista que as condutas cotidianas estão suscetíveis as análises da psicanálise (cf. Foucault, 1974: 16). Segundo meus interlocutores, os psiquiatras influenciados pela psicanálise prescrevem a medicação para fazer com que os pacientes falem, por outro lado, a vertente da psiquiatria biológica prescreve para fazer com que eles se calem. Ao diferenciar as perspectivas da psiquiatria por meio de suas prescrições, é importante ressaltar que para os psiquiatras psicanalistas a sua forma de medicar não é determinada, pelo menos em um primeiro momento, pela estrutura psíquica do paciente (que pode ser uma estrutura neurótica, perversa ou psicótica), mas sim por práticas da psiquiatria clássica que analisam os aspectos fenomenológicos do paciente (cf. Pignarre, 2008b). Deste modo, no CAPS Esperança as intervenções medicamentosas reassumem o discurso da psiquiatria clássica, que possibilita intervir de forma incisiva sobre o controle dos sintomas nos corpos dos pacientes. A forma de medicar passa pela avaliação da experiência do paciente com a medicação. No caso da medicalização no CAPS, pode-se afirmar que a conduta terapêutica procura evitar as crises por meio do uso incessante da medicação que age sobre os sintomas dos pacientes. Azize (2008: 18), em sua análise sobre as doenças e medicamentos do cérebro, depara-se com um posicionamento idêntico ao da médica do CAPS quando afirma o desconhecimento da neurociência sobre algumas atividades cerebrais. Para o autor, a literatura atual sobre neurociência aponta para um “sujeito

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cerebral”16 responsável por diluir as fronteiras entre mente e corpo e, por conseguinte, o nosso “eu” é, também, colocado como algo desconhecido. Embora o dualismo almamente/corpo seja questionado, a alma e a consciência são vistos como um reflexo do processo cerebral. A idéia de mente e corpo está estreitamente relacionada com o funcionamento do cérebro, assim como o modelo ainda adotado pela neuropsiquiatria. Contudo, o mais surpreendente seria o rumo que, cada vez mais, os sujeitos medicam sua subjetividade, isto é, a medicalização da própria vida a partir de argumentos como melhor “qualidade de vida” (Azize, 2008b: 3). Segundo Rabinow, o uso de medicações cria a possibilidade de um novo tipo de autoprodução ou ‘biossocialidade’ (1991: 85). Para o autor, a biossocialidade produz grupos de interesse que se organizam a partir de critérios de saúde. Esses grupos fornecem normas morais de avaliação dos critérios de saúde. Mas, cada pessoa será autônoma para tornar-se perita de si própria, ou seja, cada um será perito de sua própria saúde, do seu corpo, dos seus sintomas e do seu sofrimento. No CAPS, os profissionais influenciados pela psicanálise lacaniana acreditavam que o paciente era aquele que possuía um conhecimento sobre seu sofrimento. Nesse sentido, o paciente, ao ser interpelado pelo profissional, exprime por meio da fala seu sofrimento, isto quer dizer que esse sujeito define e re-define sua categoria de sofrimento a partir das ações, reações e efeitos das moléculas dos medicamentos em seu corpo. Ainda a esse respeito vejamos dois exemplos, dentre todos que a pesquisa de campo me possibilitou observar ao longo de cinco meses. Em uma conversa com residente do Cândido Ferreira, ela me explicou que no caso de pessoas com sintomas de Transtorno Afetivo Bipolar17, por exemplo, é conduta médica prescrever um estabilizador de humor, mas existem casos em que esta medicação não resolve. Nesse caso, o médico pode prescrever um antipsicótico e ter o efeito do alivio de sintomas que causam sofrimento ao paciente. Em outro exemplo, um paciente chegou na instituição e participou do grupo de tratamento (atendimento em grupo). Nesse espaço o paciente contou que estava sentindo fortes alucinações que não o deixavam trabalhar. A médica, que participava da reunião, modificou sua prescrição e pediu para ele voltar no CAPS na mesma semana. Esse sujeito, depois de dois dias voltou à instituição e, apesar de 16

O “sujeito cerebral” é descrito como uma “figura antropológica que incorpora a idéia de que o ser humano é essencialmente reduzível ao seu cérebro” (Vidal & Ortega, 2007: 257). O cérebro torna-se um “ator social”, ele tem um lugar, em termos corporais, na representação da subjetividade e da própria individualidade. 17 Transtorno Bipolar mais conhecido antigamente como psicose maníaco-depressiva. Caracteriza-se por deter sintomas de alternância de humor extrema da euforia a depressão (Associação Fênix, 2007).

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sentir-se melhor com relação aos sintomas de alucinação, queixou-se para a médica de sentir muito sono. Este sintoma que o paciente começou a sentir foi medicado ou sua prescrição foi reorganizada e as doses de alguns medicamentos diminuídas pela médica psiquiatra. Pode-se entender que o paciente, como perito de si mesmo ou como aquele que possui um conhecimento sobre seu sofrimento, em sua relação com o profissional negocia os efeitos das moléculas do remédio. Em outras palavras, os efeitos do medicamento sobre o seu corpo e o seu comportamento são ajustados até estarem agindo de forma satisfatória. Isabelle Stengers utiliza uma expressão denominada de ‘farmacologia racional’ (1995: 131), ao analisar este saber teórico-experimental sobre os corpos vivos a partir da análise do poder curativo de uma substância química. Le Breton, ao analisar “produção farmacológica de si” (Le Breton, 2003: 59), afirma a existência de uma medicalização da existência e conseqüentemente um aumento do consumo de psicofármacos segundo as necessidades dos indivíduos (doentes ou não). Mas no caso dos psicotrópicos há um consumo clássico que é justificado pelo fato do sofrimento impedir o sujeito de existir e de se relacionar em uma realidade social. No CAPS há uma medicalização da existência, principalmente de estados de angústia, dos estados deprimidos e insones. A medicalização da existência está diretamente relacionada a uma possibilidade de “estar no mundo” (segundo uma psicóloga do CAPS) para estes sujeitos que foram ressocializados. A busca incessante de suprimir os sintomas da psicose ou do sofrimento provoca, freqüentemente, reações como os efeitos colaterais que são medicados como um sintoma de mal estar (sono excessivo, insônia, verborragia). Esta forma de prescrição está associada ao que Azize (2008:3) chamou de “cultura da qualidade de vida”. Porém, o Haldol, medicamento criado em 1957 e colocado em circulação dez anos depois, não possui uma campanha publicitária como os novos remédios. Mas, ao mesmo tempo, o que se pode notar é um número crescente de pessoas (com diagnóstico de psicose ou não) que utilizam o medicamento por serem alvos de uma nova forma de apropriação do uso dessa medicação. Enfim, o que se verifica é uma nova apropriação do antipsicótico Haldol prescrito agora de uma forma em que a ação da medicação no corpo do sujeito é levada em consideração. Todas suas reações são controladas minuciosamente, isso permite certa estabilização e a possibilidade da existência desse sujeito em uma realidade social, fora do confinamento do hospital psiquiátrico.

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Considerações Finais

No CAPS Esperança, portanto, pode-se observar que tanto o domínio do saber médico psiquiátrico quanto os domínios da psicologia, da psicanálise e da saúde mental modificaram a forma de avaliar o sofrimento. Cabe lembrar que clínica ampliada concede a todos os profissionais a possibilidade de observação e escuta do paciente. A invenção das práticas terapêuticas permite a circulação de informações entre os diferentes atores e seus diferentes saberes. A troca de informações acontece nos espaços em que a equipe se reúne em grupo ou, o que acontece com muita freqüência, em conversas que acontecem no cotidiano institucional. Em meu caso de pesquisa, a clínica é pensada como gestão, administração e manejo do caso particular de cada paciente. De fato, a clínica está, no limite, em práticas preventivas e de controle contínuas externas à instituição enquanto construção arquitetônica. Nesta perspectiva, a psicanálise lacaniana aplicada à instituição modifica a atuação do profissional, que passa agora à elaborar suas intervenções pautadas em uma saber que o paciente articula em sua fala, ou seja, os profissionais do CAPS Esperança afirmam que o “saber está do lado do paciente”. Desta maneira, o paciente ao falar de seu sofrimento, de suas queixas e sobre sua história de vida, participa do processo de elaboração de sua terapêutica. Trata-se, então, de produzir as intervenções terapêuticas considerando a singularidade dos sujeitos. Nesse processo, os profissionais afirmam incluir o “sujeito do inconsciente na prática clínica” (conforme afirmou a terapeuta ocupacional do CAPS). Esta orientação ética da equipe tem forte influência da psicanálise lacaniana. Ao mesmo tempo em que os profissionais responsabilizam os pacientes pelo seu tratamento impondo, assim, um comprometimento dos sujeitos no processo de construção de sua cidadania. É curioso notar que a relação entre o profissional e o paciente tem o objetivo de produzir um vínculo de confiança, que auxilie o paciente a ter uma vida melhor ou, como afirmou uma enfermeira do CAPS, “viver de uma forma digna” e, se possível, sem sofrimento, crises, desestabilizações e internações psiquiátricas. Como já foi dito, as condições técnico-institucionais permitem observar e escutar as sensações físicas (sintomas) que os pacientes experimentam. De fato, os sintomas são inscritos dentro de um campo de significações considerados como manifestações do sofrimento psíquicos. Essa operação da clínica desloca a assistência do campo da significação anatomopatológico (que são aquelas fundamentadas em evidências orgânicas que 15

explicam as manifestações das enfermidades), para a explicação dos sintomas apresentados no discurso do paciente sobre seu sofrimento. A tecnologia de cuidado, colocada em prática pelos profissionais do CAPS, foi investida pelo processo de ressocialização dos pacientes, pelas discussões que resultaram de todo questionamento da Reforma Psiquiátrica e pela formação dos profissionais em cursos de psicanálise lacaniana18. Os médicos psiquiatras também participam da formação em psicanálise e sua forma de prescrever leva em consideração o que Pignarre (2005) chamou de “aventura empírica pragmática”. Uma aventura que procura unir o diagnóstico, o prognóstico e o tratamento em um conjunto de noções pragmáticas. Contudo, a idéia de sofrimento não traz mais as explicações para os mistérios da alma ou da falta como afirma a teoria psicanalítica. Assim como afirmou uma colaboradora de pesquisa e enfermeira do CAPS, “hoje nós não estamos mais preocupados em entender o delírio do paciente”. Nesse sentido, o sofrimento funciona como um ordenador das estratégias de intervenções terapêuticas. Enfim, a prática de medicar os sujeitos possibilita entender e calcular - a partir da experiência do cuidado particular - qual é a melhor forma de interação do paciente com a medicação. Entre meus colaboradores locais de pesquisa, as experiências (de produção de vínculo de confiança e responsabilidade com o paciente) permitem ao profissional definir, observar e calcular as condições do encontro entre a molécula do medicamento e o paciente. Podemos dizer que o dispositivo experimental que opera na relação com a medicação possibilita a produção de um sujeito adaptável, que mobiliza e amplia sua rede de aliados. Assim, as relações de poder são conseqüências do acontecimento experimental, que podem convencer e mobilizar os aliados em suas micro-relações, uma vez que negociam as alianças estabelecidas e produzidas nas redes de poder. O controle da crise, a diminuição do sofrimento dos sujeitos, a criação de vínculos e a invenção de um sentido para a vida dos pacientes legitimam as intervenções terapêuticas pautadas em um saber experimental. Analisar as práticas desse saber experimental no cotidiano do CAPS permite tomar este saber como um processo de invenção do social por meio de uma prática coletiva. Ora, pode-se afirmar que as práticas institucionais que incidem sobre uma população de risco são utilizadas, com certa freqüência, para governar a ordem publica. 18

O CLIN-a é associado ao Instituto do Campo Freudiano de São Paulo. Este centro oferece Curso de Formação em Psicanálise e Saúde Mental. Os membros do CLIN-a, a partir do ensino de Jacques Lacan, promovem e participam de um programa de pesquisa sobre psicanálise aplicada às instituições.

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Mas, o que se verifica, ao mesmo tempo, são experiências que requerem uma arte da dosagem (como afirmou Stengers ao falar do pharmakon de Derrida, 2008). Uma arte que obriga os profissionais a encontrarem uma relação entre os saberes e as práticas cotidianas. Nessa perspectiva, os atores criam saberes, ativos e coletivos, que são negociados de forma política com os pacientes. O evento da negociação permite a experiência da conexão entre outras práticas e novas idéias diferentes das técnicas hierárquicas existentes.

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