O SALÁRIO EM GARANTIA DE OBRIGAÇÕES NO ÂMBITO DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL

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O SALÁRIO EM GARANTIA DE OBRIGAÇÕES NO ÂMBITO DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL Revista de Direito do Trabalho | vol. 149/2013 | p. 237 - 255 | Jan - Fev / 2013 | DTR\2013\2481

Gerson Luiz Carlos Branco Doutor e Mestre em Direito Privado pela UFRGS. Professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito da UFRGS. Advogado. Área do Direito: Trabalho Resumo: Esta pesquisa tem por objeto investigar a possibilidade de transformação do salário e da aposentadoria dos trabalhadores como garantia de obrigações contraídas no âmbito do Sistema Financeiro Nacional. O direito fundamental da proteção do salário e do devido processo legal, assim como as normas construídas pela tradição que historicamente impediram que o credor se apropriasse do objeto da garantia ou exercitasse o seu crédito por mecanismos de autotutela tornam inoperantes as disposições que impedem o cancelamento do desconto em folha de pagamento. Embora o legislador possa modificar as regras, não pode fazê-lo ao arrepio do texto constitucional, das invariantes axiológicas, da lógica e da própria tradição em que está inserido o modelo jurídico que é objeto de regulamentação. Palavras-chave: Sistema Financeiro Nacional - Liberdade contratual - Garantia das obrigações - Direito bancário - Direitos fundamentais. Abstract: This article is about the possibility of transformation of the salary and retirement of workers in warranty of obligations in favor of banks. The fundamental right of wage protection and due process of law, as well as the rules constructed by the tradition that has historically prevented the creditor to appropriate the object of the guarantee or exercise the credit by himself, make it become inoperative the provisions that prevent the cancellation of discount on payroll. Although the legislator can change the rules, he cannot do it in defiance of the constitutional text, of the axiological invariants, of logic and the own tradition in which it appears the legal model is subject to regulation. Keywords: National Financial System - Contractual freedom - Warranty of obligations Banking Law - Fundamental rights. Sumário: 1.INTRODUÇÃO - 2.DO SALÁRIO COMO GARANTIA DE OBRIGAÇÕES BANCÁRIAS - 3.DA PROTEÇÃO AO SALÁRIO E DEVIDO PROCESSO LEGAL COMO LIMITES AO AUTOPAGAMENTO E A IRREVOGABILIDADE DA AUTORIZAÇÃO DO DESCONTO EM FOLHA 4.CONCLUSÃO - 5.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1. INTRODUÇÃO

A garantia é um dos elementos da obrigação. Consiste na responsabilidade patrimonial do devedor, cuja eficácia jurídica submete integralmente o seu patrimônio às ações do credor para realização de seu crédito. Como é limitada a possibilidade de a garantia recair sobre a liberdade do devedor, sendo exceção a possibilidade de prisão do devedor de alimentos, cabe ao credor exercitar a sua garantia contra o patrimônio do devedor. Não obstante a “totalidade” do patrimônio do devedor responda por suas dívidas, segundo o que determina o art. 391 do CC/2002 (LGL\2002\400),1 o legislador instituiu uma série de exceções para evitar que a execução das dívidas civis promova a destruição econômica do devedor, com consequências nefastas sob o ponto de vista social. Assim, considera-se que é em demasia gravosa a penhora das ferramentas de trabalho do devedor para pagamento de dívidas civis, pois ainda que não tenha outros bens, a limitação à possibilidade do exercício de uma atividade profissional provoca a redução da capacidade futura de geração de renda, inclusive para pagamento do débito, assim como das obrigações que possui com sua família, por exemplo. Da mesma maneira, o constituinte considerou como direito fundamental a impenhorabilidade da propriedade rural quando os débitos forem provenientes do desenvolvimento de sua atividade produtiva.2 As regras a respeito da impenhorabilidade não protegem o devedor da insolvência, pois aquele que somente possui bens impenhoráveis é insolvente. 3 O objetivo da norma é proteger a sociedade, pois em razão do caráter assistencial que o Estado é obrigado a prestar, a realização de um crédito de forma extremamente onerosa pode repassar custos para a sociedade, pois alguém que não possui recursos suficientes para pagar suas dívidas e ainda tem o bem em que reside com sua família, expropriado, acabará nas filas da assistência social ou até mesmo sob as pontes de nossas metrópoles. Ou seja, por detrás da proteção de um “mínimo existencial” está a proteção da pessoa e de sua dignidade, valores que o ordenamento considera superiores a proteção dos interesses do credor.4 Essas razões de caráter social criam uma dualidade no patrimônio do devedor, 5 pois parte do patrimônio não responde pelas dívidas civis, com as devidas exceções, como por exemplo, as elencadas no art. 3.° da Lei 8.009/1990, que permite a penhora da residência familiar para garantir o pagamento dos débitos com os empregado domésticos, condomínio, impostos sobre o imóvel, fiança em contrato de locação etc. Na parte em que o legislador tornou uma exceção a impenhorabilidade do imóvel residencial quando for outorgada fiança para garantir contrato de locação, está uma característica peculiar de reforço da garantia. O crédito de aluguéis imobiliários garantido por fiança bancária tem melhor garantia do que outros créditos. O privilégio para tais créditos teve como razão de ser a necessidade que “o mercado imobiliário” possuía na época em que foi editada a Lei 8.241/1991, de fomentar aos proprietários de imóveis que disponibilizassem a propriedade imobiliária para locação, pois mais interessa à sociedade a circulação econômica e a ampliação da oferta e redução geral dos preços da locação, do que a proteção da residência do fiador.

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Em outras palavras, o imperativo social determinante do reforço da garantia a essa modalidade de crédito prende-se ao fato de que existem ações econômicas que observadas sob a perspectiva macroscópica produzem um efeito benéfico para a sociedade, ainda que no caso concreto se esteja privilegiando a parte "socialmente" mais forte da relação, que é o locador, geralmente proprietário do bem locado. Essa análise foi recentemente desenvolvida por Judith Martins-Costa em artigo que tratou sobre o modelo dos juros no direito brasileiro, justificando a necessidade de tratamento diferenciado das instituições financeiras. Essa análise a partir de uma "perspectiva macrojurídica" leva em consideração os efeitos da regulamentação "na economia global da sociedade", abandonando--se uma visão baseada na justiça comutativa adstrita às relações individuais e unitariamente consideradas.6 Esse pressuposto é tomado em consideração tendo em vista que o Direito Privado moderno não pode ser examinado em uma esfera limitada do sujeito, seja pela pura análise da relação estática entre crédito e débito, seja porque a relação obrigacional, quando vista como totalidade, não pode ser dissociada dos seus fins. E os fins não são unicamente determinados pelo vínculo obrigacional, mas também pelos valores consubstanciados na norma jurídica que disciplina o modelo jurídico. Na mesma perspectiva, tem-se a análise da Lei 10.820/2003,7 que passou a dar garantia aos bancos contra as reiteradas decisões dos Tribunais de permitir que os empréstimos cujo pagamento fosse feito mediante desconto em folha pudessem ser cancelados. Esta Lei foi alterada pela Lei 10.953/2004, para permitir que os aposentados vinculados ao INSS também fiquem autorizados a dar em garantia os seus benefícios: Em outras palavras, a Lei 10.820/2003 e a Lei 10.953/2004 criaram uma garantia especial para as instituições financeiras: o salário dos trabalhadores e a aposentadoria dos aposentados do INSS. 2. DO SALÁRIO COMO GARANTIA DE OBRIGAÇÕES BANCÁRIAS

Essa nova garantia às instituições financeiras foi constituída em razão de uma "necessidade" do mercado de reduzir o spread bancário, no qual o inadimplemento constitui-se em elemento de extrema relevância, com o objetivo final de reduzir o "preço" do crédito para aquelas pessoas que não possuem bens, mas somente o seu salário ou aposentadoria. Essas pessoas acabavam ficando à margem do sistema de concessão de crédito por não terem garantias patrimoniais e muitas vezes pela existência de restrições cadastrais. Com a edição da Lei, tais pessoas foram integradas no mercado do crédito porque passaram a contar com um bem extremamente valioso, que é o seu fluxo financeiro futuro derivado do salário ou aposentadoria para oferecer em garantia. A ideia de fortalecimento do sistema financeiro tem por fundamento a circunstância de que os bancos e as instituições financeiras, em geral, não emprestam seu capital próprio, mas os recursos advindos da poupança popular. Em outras palavras, "o segmento econômico bancário funciona basicamente como um intermediário entre os poupadores e os tomadores de empréstimo".8

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Nessa perspectiva macrojurídica a doutrina tem considerado que a "responsabilidade econômica" pelas altas taxas de juros praticadas pelo sistema financeiro é fundamentalmente provocada pela alta inadimplência e demora no processo de recuperação judicial dos créditos. A análise dos dados fornecidos pelo Banco Central do Brasil sobre o perfil do spread bancário médio indica que na década passada o custo com a inadimplência representava 35% do spread bancário. Cem por cento do provisionamento das instituições financeiras são revertidos para elevação das taxas de juros praticadas para determinado produto financeiro.9 Nessa linha é importante a observação feita pelo Ministro do STJ, João Noronha, a respeito da fragilidade do sistema de garantias existentes no Direito brasileiro. Conforme sua manifestação no XII Congresso Internacional de Direito Comparado, o sistema de garantias deveria ser reescrito.10 Neste sentido, a Lei 10.953/2004, foi de extrema importância para fornecer ao sistema financeiro uma garantia "real" sobre os salários dos funcionários públicos. Embora festejada pelo sistema financeiro e também pelos que têm sede de crédito, tal garantia precisa ser examinada sob a ótica do Texto Constitucional, para que se verifique sua compatibilidade com o sistema de proteção dos direitos fundamentais, tendo em vista que parte da doutrina e da jurisprudência afirmam a impenhorabilidade do salário por força do mandamento constitucional do art. 1.°, III, da CF/1988 (LGL\1988\3) e do art. 7.°, X, dispositivos constitucionais que instituem o princípio adotado expressamente no art. 649, IV, do CPC (LGL\1973\5). Além disso, também recai sobre tal Lei a dúvida a respeito da necessidade de tal matéria ter sido objeto de lei complementar, tendo em vista o disposto no art. 192 da CF/1988 (LGL\1988\3).11 O constituinte, porém, tratou da irredutibilidade do salário, assim como da proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa, mas não dispôs de forma expressa regra similar a do art. 649, IV, do CPC (LGL\1973\5). Isso, porém não afasta a impenhorabilidade do salário e a inserir tal norma no elenco dos direitos fundamentais do cidadão, já que a disposição do Código de Processo Civil (LGL\1973\5) nada mais faz do que tornar explicita uma condição ínsita do salário, que está associado de maneira direta e inafastável à força de trabalho. A força de trabalho do assalariado e a aposentadoria não podem ser consideradas como riqueza ou bens desprendidos da natureza e da condição humana, pois a sua percepção tem origem numa atividade básica ligada ao animal laborans, que corresponde ao processo biológico do corpo humano e às suas necessidades básicas, na sua luta constante para consumir e com isso sobreviver. Fazendo-se a distinção proposta por Hannah Arendt, segundo quem há que se distinguir o labor,12 como atividade que se esgota nela própria (nada remanescendo após a sua realização), do trabalho, como atividade humana produtora de coisas e da reificação que elas significam, chega-se à conclusão de que o assalariado, ainda que não represente mais o conceito de operário do século XIX ou do início do século XX, continua tendo como seu principal bem a força de trabalho e o salário como fruto que lhe permite consumir e sobreviver. Mesmo que o assalariado esteja vinculado a uma atividade de reificação, as coisas produzidas, o conhecimento acumulado que impregna aquilo que fabrica, podem garantir a

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cultura e a memória sobre o que o homem foi no passado, mas não garante a apropriação de tais coisas. É preciso do salário para manter a vida, já que o trabalho para o assalariado não é uma contingência, mas uma necessidade. 13 Apesar de o assalariado ser visto como proprietário, dono de sua força de trabalho, não há possibilidade jurídica de se transferir o produto de sua atividade futura como garantia do pagamento de uma dívida sem atentar contra a sua condição humana, pois a sua existência biológica é condição inafastável do exercício do trabalho. E, para o aposentado, essa condição se reproduz, pois este tecnicamente já não tem condição de vender sua força de trabalho, remanescendo da atividade o direito à percepção de proventos para manutenção da sua existência, decorrente do sistema de distribuição de riscos e de previdência social organizado pelo Estado. Em certas circunstâncias, a condição biológica não permite que o salário seja recebido ou impõe a necessidade de uso do salário para manutenção de sua vida biológica e sua integridade física. É nessa perspectiva que o constituinte instituiu a norma genérica de proteção ao salário, tendo em vista todas as circunstâncias que, de alguma maneira, retirem do trabalhador a sua fonte de manutenção, pois vincular o salário ao pagamento de obrigações específicas representa em certa medida "escravizar" o assalariado, já que o resultado do seu trabalho futuro não servirá para sua manutenção, mas para pagamento de uma dívida. A questão que se põe é saber até que ponto as razões do legislador para instituir tal garantia em benefício das instituições financeiras se sustenta sob o prisma da disposição constitucional da proteção ao salário. Embora a Constituição Federal (LGL\1988\3) não trate da impossibilidade de se dar em garantia do pagamento de uma dívida o salário, mas da genérica cláusula geral de proteção ao salário, a interpretação realizada não pode deixar de considerar o conjunto de regras que, além da irredutibilidade, proibição à redução análoga a condição de escravo e da impenhorabilidade, são modelos jurídicos que dão certo significado para tal direito fundamental social. 3. DA PROTEÇÃO AO SALÁRIO E DEVIDO PROCESSO LEGAL COMO LIMITES AO AUTOPAGAMENTO E A IRREVOGABILIDADE DA AUTORIZAÇÃO DO DESCONTO EM FOLHA

A proteção ao salário, no caso, não pode se dar pela proibição da penhora, pois o mecanismo criado pela Lei 10.953/2004, outorga ao credor uma ação de direito material, permitindo a realização do crédito independentemente da intervenção do Poder Judiciário. Ou seja, trata-se de uma hipótese extremamente nova no contexto do Direito Privado brasileiro, pois estabeleceu uma duplicidade de efeitos. O primeiro efeito foi de transformar o salário em garantia da obrigação contraída no âmbito do sistema financeiro da habitação. O segundo efeito refere-se à permissão para que o credor fique com o objeto da garantia. A compreensão da dupla eficácia é imprescindível para o enfrentamento da problemática

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envolvendo, em primeiro lugar, a compatibilidade da transformação do salário em garantia de obrigações perante instituições financeiras com a disposição do direito fundamental à proteção do salário e, por outro lado, se no ordenamento jurídico pátrio é possível que o credor fique com o objeto da garantia. A lógica da criação dessa dupla eficácia está em um aspecto prático, que é a transformação da folha de pagamentos em "meio de pagamento", com o objetivo de facilitar a quitação das dívidas. É de conhecimento público o baixo custo de implantação dos descontos em folha de pagamento, pois facilita a atuação das instituições financeiras e contribui para a redução do spread bancário pela redução dos custos administrativos. Esse aspecto prático também poderia ser considerado em outras situações, como por exemplo, no caso da hipoteca, do penhor ou da alienação fiduciária em garantia. E daí a pergunta: o sistema jurídico pátrio admite que o credor fique com o objeto da garantia? A resposta dada tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência é negativa e também encontra fundamento constitucional. São clássicas as decisões do STF (no período anterior a 1988) que deram origem à proibição do pacto comissório ilícito, por violação do princípio jurídico que estava insculpido no art. 765 do CC/1916 (LGL\1916\1). Embora a jurisprudência brasileira admita que a compra e venda pode ser mista ou conter disposições que não sejam exatamente próprias da compra e venda, não se tem admitido que a compra e venda seja utilizada como instrumento para constituição de garantia de recebimento de determinada quantia emprestada. Também não há uma rejeição direta e expressa de autorização para realização de negócios jurídicos indiretos e fiduciários,14 embora sua eficácia seja limitada.15 Desde a década de 1940 a jurisprudência tem proferido decisões em torno da regra do art. 765 do CC/1916 (LGL\1916\1), estendendo a eficácia de tal artigo para outros casos, convertendo tal regra em princípio jurídico do direito privado.15 O fundamento para a consagração de tal regra como princípio geral tem por razão de ser a ratio da norma, pois o que tal regra sempre visou evitar é a apropriação pelo credor do bem objeto da garantia sem qualquer avaliação ou obediência a princípios como o devido processo legal e contraditório.16 Ou seja, a impossibilidade de o credor ficar com o objeto da garantia tem como fundamento último o direito fundamental previsto no art. 5.°, LIV, segundo o qual ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal: a tradição do Direito Privado brasileiro consagrou princípio que é verdadeira eficácia de direitos fundamentais estruturantes do Estado Democrático de Direito. Ainda que no caso em análise o legislador tenha andado na contramão da tradição aproveitando-se da inexistência de proibição expressa -, a lei não consegue fugir da tradição civil e constitucional: somente se pode bem interpretar as disposições legais e verificar sua constitucionalidade a partir de um conjunto de ferramentas institucionais, discursivas, comunicacionais construídas ao longo da história e que formam os parâmetros legitimadores dos modelos jurídicos.17 Por isso é preciso contextualizar social e historicamente a possibilidade de o credor apropriar-se do objeto da garantia ou realizar um autopagamento e analisar as suas duas

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dimensões: estrutural e funcional. A dimensão estrutural evidencia a relação entre crédito e débito, com um caráter neutro em relação aos sujeitos. A dimensão funcional, por sua vez, estabelece uma vinculação entre essa relação e sua origem, a sua causa e, por isso, a partir da função prático--social a que corresponde, há a definição dos direitos, obrigações, poderes do credor.18 Quanto à análise funcional não se pode perder de vista o sentido histórico da funcionalização dos modelos jurídicos do Direito Privado, a fim de evitar uma funcionalização arbitrária, tendo em vista que qualquer limitação da autonomia privada que não seja justificável em termos de utilidade social é arbitrária e inconstitucional. 19 Por outro lado, o sentido histórico de funcionalização dos modelos jurídicos fornece limites dogmáticos que evitam (a) o excesso de abstrações generalizantes e a falta de conexão das soluções jurídicas com a realidade e (b) reduzem o risco de subjetivismo e empirismo nas decisões judiciais. Por isso, para compreender tais fins e valores, bem como sua compatibilidade com o sistema constitucional, sem perder a perspectiva macrojurídica, o tema é enfrentado através de uma análise dos (a) antecedentes históricos para então ver sua (b) regulamentação legal (dimensão estrutural) e, na última parte (c) verificar a relação entre a estrutura legal e a funcionalidade do modelo jurídico em questão.20 Poder-se-ia argumentar que o trabalhador necessita de crédito e o crédito é um mecanismo de transferência de rendas, duplicação de riquezas, de facilitação de acesso aos bens etc. Porém, concessão de crédito é operação econômica pela qual o credor, antecipadamente, sabe que o devedor não dispõe de recursos e que conta com a possibilidade de futuramente satisfazê-lo. Isso significa que o trabalhador perde o poder de disposição sobre a sua força de trabalho futura, já que seu salário está "empenhado" nas mãos do credor, com o beneplácito do Estado. Os direitos fundamentais da proteção ao salário, do devido processo legal e do contraditório asseguram claramente que não é possível instituir um mecanismo em que o devedor não tem alternativa à subjugação aos interesses do credor. Se a jurisprudência pátria tem considerado que a apropriação de bens por parte do credor não é lícita, mais grave é a situação quando o bem diz respeito ao mínimo existencial proporcionado pelo salário ou pela aposentadoria, ambos com forte proteção constitucional e vinculados à proteção da dignidade da pessoa. Além disso, o Direito não pode ignorar que o Brasil é um país com uma grande população de baixo poder aquisitivo em que o salário é a principal, senão a única, fonte de renda essencial para manutenção da saúde, alimentação, educação e do transporte, direitos também previstos no mesmo artigo e que o Estado brasileiro ainda não conseguiu suprir, seja por meios diretos ou indiretos. Ainda que seja extremamente respeitável o argumento da necessidade de solidez do sistema financeiro nacional, de ampliação e reforço da eficácia das garantias em favor dos credores, não se pode chegar ao ponto de usar o único bem da população mais pobre que é o salário para tal fim. Embora propicie a socialização do crédito, em um primeiro momento, logo a seguir propicia a transferência de renda das mãos dos mais pobres para os mais ricos.

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Os mais ricos não são somente as instituições financeiras, mas aqueles que adquirem CDBs, CDIs, quotas de fundos de investimento etc., e que recebem os polpudos juros do sistema financeiro nacional. Esses que representam a "poupança popular" precisam ser preservados, mas jamais os fins justificam quaisquer meios. Nesse sentido, não se pode sacrificar direitos fundamentais para fins econômicos de razão útil, mas que a médio e longo prazo contribuem para a concentração da renda e que, no curto prazo, ferem de morte princípios integradores do Estado Democrático de Direito. Não se pode deixar de considerar, também, que a "guerra" das instituições financeiras e a ampliação do crédito encontrou limites nas classes média e alta, razão pela qual tem ampliado o fenômeno da popularização do crédito, crescendo substancialmente o crédito de pequena monta, tais como o crédito para aquisição de alimentos, vestuário, telefones celulares etc. Deixando de lado as considerações econômicas e jurídico-políticas, não se está afirmando que é nula a autorização para desconto em folha. É nula a cláusula que estabelece que tal autorização é irrevogável. Porém, ela não tem por efeito a irrevogabilidade, que pode se dar a qualquer momento por meio de declaração unilateral do empregado, tendo em vista as normas constitucionais segundo as quais é assegurada proteção ao salário, assim como é garantido que ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal. Ou seja, não há como realizar qualquer processo de expropriação ou bloqueio sem a concordância do devedor ou sem a intervenção do poder judiciário. O texto constitucional é expresso ao afastar a possibilidade de intervenção administrativa como asseguradora de créditos privados em favor de instituições financeiras contra as disposições constitucionais acima mencionadas. 4. CONCLUSÃO

Do estudo realizado, chega-se à conclusão de que a crise do sistema de garantias deve ser preservada, mas não a qualquer custo. Assim como não se admite a prisão civil como garantia de dívidas, os princípios constitucionais estruturados sob a forma de Direitos Fundamentais que garantem o devido processo legal e a proteção do salário afastam a validade da regra que torna irrevogável a autorização para desconto em folha como forma de pagamento de obrigações contraídas no âmbito do Sistema Financeiro Nacional. Não há autorização da Constituição Federal (LGL\1988\3) para que o legislador conceda aos particulares o direito potestativo de "autopagar-se" mediante o desconto em folha de assalariados e aposentados sem que se fira de morte os direitos fundamentais antes mencionados, já que não se trata simplesmente de "autorizar" a "penhora", mas de retirar as condições para a preservação do mínimo existencial que dá dignidade ao ser humano. 21 Pelo contrário, a autonomia privada concede o poder de os particulares auto-regularem suas relações, dando-se regras a si próprios. Vinculado ao poder geral de autodeterminação (liberdade da pessoa em decidir o seu destino, conforme suas

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preferências), a autonomia privada trata da liberdade de autovinculação, de constituição de relações jurídicas a partir de atos autônomos e não heterônomos. 22 Jamais a autonomia privada pode ser interpretada como instrumento para constituição de garantias que violem regras básicas do ordenamento constitucional que protegem a pessoa e atributos que lhe são caros, como é o caso do salário como fonte de manutenção de um mínimo existencial. O princípio da autonomia privada, que decorre do art. 5.°, I, XIII, XVII, e XXXVI e do art. 171 da CF/1988 (LGL\1988\3)23 fica aleijado, sendo suprimido pela possibilidade de autopagamento das instituições financeiras, pois a cada mês deve o assalariado ou o aposentado ter a liberdade de decidir o destino que vão dar à remuneração recebida naquele período, sendo absolutamente incoerente com nosso sistema constitucional a indisponibilidade futura de salário que ainda não foi adquirido. Quanto a esse ponto, a Lei instituidora do desconto em folha e da impossibilidade de seu cancelamento viola o substantial due process of Law,24 pois a norma tem caráter contraditório e teratológico, não obedecendo aos princípios constitucionais da razoabilidade e proporcionalidade no ponto em que atribui a possibilidade de autopagamento e de permissão que o credor fique com o objeto da garantia. Não se pode negar a soberania do legislador, mas ele não pode ser arbitrário ao ponto de distorcer a tradição e a história de proteção dos devedores contra os abusos e o excesso de poder constituído por atos voluntários, pois quando o legislador tenta mudar a tradição com subversão da lógica de proteção dos direitos fundamentais, subvertendo a lógica inerente à própria cultura e a todo o conhecimento acumulado, inclusive invariantes axiológicas que estão por detrás da construção do conceito de autonomia privada, há evidente violação do substantial due process of law, como já decidiu o STF25 na esteira da tradição democrática trilhada pela Suprema Corte Norte Americana. O legislador pode modificar conceitos, mas não pode fazê-lo ao arrepio do texto constitucional, das invariantes axiológicas, da lógica e da própria cultura em que está inserido o modelo jurídico. Exemplo recente disso é o debate que ocorre nos países da common law a respeito dos limites do legislador na fixação das normas privadas mesmo sem uma constituição formal.26 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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meios de financiar o seu desenvolvimento”. 3 Esclareça-se, desde já, que o conceito de insolvência acima é o “clássico” do Direito Civil, pois a insolvência sob o ponto de vista do Direito Empresarial é a impontualidade, que prova a falta de liquidez, como se depreende do art. 47 da Lei 11.101/2005. 4 A respeito do mínimo existencial ver texto de GUERRA, Sidney; EMERIQUE, Lilian Márcia Balmant. O princípio da dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial. Revista da Faculdade de Direito de Campos. ano VII, n. 9, p. 379-397. A perspectiva do artigo é a de criação de um rol de direitos que comporiam um “mínimo vital” e assegurariam direitos a prestações perante o Estado. A relevância de tal texto para este artigo está relacionada a sua vinculação da preservação de um mínimo existencial como condição necessária para realização do princípio da dignidade da pessoa. 5 Toma-se como excluído do “patrimônio” o conjunto de bens que são atributos da personalidade do devedor, ou seus Direitos da Personalidade, que embora sejam bens, não são bens que se incorporam ao seu patrimônio, pois indissociáveis da sua condição humana. Há direitos da personalidade, como por exemplo, o direito sobre a própria imagem ou os direitos autorais, que possuem estimação econômica. Embora o fundo do direito esteja vinculado a personalidade, os efeitos patrimoniais decorrentes dos contratos celebrados ou da exploração econômica são separáveis da pessoa e por isso passa a integrar o patrimônio. 6 MARTINS-COSTA, Judith. O regime dos juros no novo direito privado brasileiro. Revista da Ajuris 105/241. "Evidencia-se então, o fato de o tratamento jurídico dos juros ter direta relação com o desenvolvimento do País, com o crescimento da sua atividade produtiva ou, contrariamente (se os juros são excessivamente altos), com o empobrecimento e com as dificuldades da atividade produtiva, pois é favorecida a especulação, e a roda da 'ciranda financeira' se põe a girar em detrimento da produção. Subjacente à perspectiva macrojurídica está a ideia de justiça distributiva. Admite-se que o Direito Privado não se esgota nas relações privadas intersubjetivas, mas mantém relações diretas e reflexas com a comunidade, lócus de atuação dos interesses meta individuais ou transubjetivos". p. 245. 7 "Art. 1.° Os empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho - CLT (LGL\1943\5), aprovada pelo Decreto-Lei n. 5.452, de 1.° de maio de 1943, poderão autorizar, de forma irrevogável e irretratável, o desconto em folha de pagamento dos valores referentes ao pagamento de empréstimos, financiamentos e operações de arrendamento mercantil concedidos por instituições financeiras e sociedades de arrendamento mercantil, quando previsto nos respectivos contratos.""Art. 6.° Os titulares de benefícios de aposentadoria e pensão do Regime Geral de Previdência Social poderão autorizar o Instituto Nacional do Seguro Social - INSS a proceder aos descontos referidos no art. 1.° desta Lei, bem como autorizar, de forma irrevogável e irretratável, que a instituição financeira na qual recebam seus benefícios retenha, para fins de amortização, valores referentes ao pagamento mensal de empréstimos, financiamentos e operações de arrendamento mercantil por ela concedidos, quando previstos em contrato, nas condições estabelecidas em regulamento, observadas as normas editadas pelo INSS".

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8 THEODORO JR., Humberto. A cédula de crédito bancário como título executivo extrajudicial no direito brasileiro. 2006. Disponível em: [www.americajurídica.com. br[. Acesso em: 21.11.2006. 9 "High taxation levels and the costs of non-performing loans also affect bank spreads between interest rates on deposits and interest rates on loans". CARDOSO, Eliana. Implicit and explicit taxation of financial intermediaries in Brazil: the effect of reserve requirements on bank spreads. Paper prepared for the April 8th, 2002 World Bank conference on Taxation of Financial Intermediaries. Washington: Georgetown University, mar. 2002. Disponível em: [www.worldbank.com[. Acesso em: 21.11.2006. p. 2, 14 e 23. 10 XII Congresso Internacional de Direito Comparado. Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro. Brasil, 2003. 11 OLIVEIRA, Jorge Rubem Folena de. A Lei (10.820/2003) do empréstimo consignado e a sua inconstitucionalidade. Revista de Informação Legislativa. ano. 43, n. 172, p. 226. O art. 192 tem a seguinte redação, determinada pela EC 40/2003: "Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram". 12 "Os produtos do labor, produtos do metabolismo do homem com a natureza, não duram no mundo o tempo suficiente para se tornarem parte dele, e a própria atividade do labor, concentrada exclusivamente na vida e em sua manutenção, é tão indiferente ao mundo que é como se este não existisse". ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária/Salamandra, 2007; São Paulo: USP, 1981. p. 130. 13 Segundo Hannah Arendt, o homo faber, que realiza o trabalho e não mero labor, tem no mercado o lugar das trocas, "no qual ele pode exigir os produtos de sua mão e receber a estima que merece". Idem, p. 174. 14 A jurisprudência mais antiga do STF negava a possibilidade de negócios indiretos, principalmente pela forte doutrina de Eduardo Espínola, como se pode ver no RE 60.699/Guanabara, 2.ª T., j. 08.11.1966, rel. Min. Aliomar Baleeiro, Audiência de publicação em 16.11.1967. A decisão considerou a matéria sob o ponto de vista da utilidade: "Sem dúvida, um negócio fiduciário, como sustentam as doutas decisões de f., pode ser lícito para o fim pretendido pelas partes nestes autos, - o de garantir dívida periclitante da firma comercial de que era sócio o Recorrente varão. Lícito, mas inútil, porque há meios mais eficazes e adequados no direito positivo do Brasil, para tal objetivo. Só não há é meio lícito de ficar o credor com o objeto da garantia se não for pago. Isso lhe não é permitido nem extensivamente, nem pela simulação duma cessão de direitos de promessa de venda, porque contraria princípio de ordem pública do art. 765 do CC. E

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então, segundo os melhores doutrinadores, como Eduardo Espínola, ou como Ferrara, citados pelas venerandas decisões, desaparece o negócio aparente para que prevaleça a realidade dissimulada e condenada pela lei, - no caso o citado art. 765 do CC". A visão do referido acórdão e a necessidade de proximidade do direito com a realidade é reconhecida no acórdão por menção à situação fática ainda presente na realidade brasileira: "O Sr. Min. Aliomar Baleeiro: - Não sei se os eminentes Ministros notaram, nos jornais (o jornal 'é uma janela aberta sobre a vida'), que há sujeitos que anunciam: 'Empresto dinheiro sob hipoteca e também com pacto de retrovenda'. Pois bem, é muito comum simular-se a hipoteca num pacto de retrovenda, para maior desembaraço do credor. Se o devedor não paga, ele fica logo com o bem". No acórdão, embora tenha sido admitido o negócio fiduciário, não foram atribuídos os efeitos pretendidos pelas partes, mas somente os admitidos pelo ordenamento, no caso, foi declarada a impossibilidade do credor ficar com a propriedade do bem transferido em garantia.Decisão em sentido contrário foi proferida no julgamento do RE 82.447, rel. Min. Moreira Alves, que admite o negócio fiduciário, salvo quando o "escopo" for fraudar lei imperativa. Ou seja, o "controle do escopo", mediante a confrontação da finalidade prevista pelo tipo jurídico e a finalidade a ser alcançada pelas partes, indica se o negócio é indireto e se busca fraudar lei imperativa. No referido acórdão Moreira Alves admite a celebração do negócio fiduciário, tendo em vista que não foi visualizada a violação de lei imperativa, no caso a Lei da Usura.

15 A doutrina brasileira debate constantemente esse problema, havendo muitos estudos tratando sobre a possibilidade de negócios jurídicos fiduciários e indiretos principalmente com o objetivo de admitir tipos contratuais do direito estrangeiro que são incompatíveis com o sistema pátrio - caso do trust ou de determinadas modalidades de garantia. Uma análise acurada sobre o conceito de negócios indiretos, a diferença entre estes e os negócios simulados e sobre as dificuldades estruturais para a adoção do trust no direito brasileiro é feita por MARTINS-COSTA, Judith. Os negócios fiduciários. Considerações sobre a possibilidade de acolhimento do trust no direito brasileiro. RT 657/37 (DTR\1990\137) e ss. Ver também SALOMÃO NETO, Eduardo. O trust e o direito brasileiro. São Paulo: Ed. LTr, 1996. Outra importante obra sobre o tema é a de CHALHUB, Melhim Namem. Trust - Perspectivas do direito contemporâneo na transmissão da propriedade para administração de investimentos e garantia. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2001. CHALHUB, Melhim Namem. Negócio fiduciário. São Paulo: Renovar, 2006. 16 STJ, REsp 2.216/SP, 3.ª T., j. 28.05.1991, rel. Nilson Naves, DJ 01.07.1991; REsp 475.040/MG, 3.ª T., j. 24.06.2003, rel. Min. Ari Pargendler, DJ 13.10.2003; REsp 2.216/SP etc.Para os fins deste estudo deixa-se de fazer uma análise mais aprofundada de opiniões no sentido da irrelevância da função típica dos contratos, defendendo, por exemplo, ser possível a utilização da compra e venda como instrumento de garantia. "Se tomarmos como objeto de reflexão a compra e venda e se aceitarmos que ela se caracteriza pelo consenso em trocar uma coisa por certo preço, verificaremos que, em princípio, isto é, nas hipóteses normais, não há necessidade da distinção que fizemos, entre elemento categorial a integrar o objeto, e causa, definida, conforme geralmente se faz, como função prático-social do negócio, ou como função econômico-social, pois haverá total correspondência entre ambos. Todavia, nada impede que se use a compra e venda, já não

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mais com a finalidade de circulação de bens, mas como a função diversa, por exemplo, com escopo de garantia, como acontece na compra e venda com pacto de retrovenda. Aí muda a função, e se realmente fosse esta que determinasse diretamente o tipo do negócio e respectivo regime jurídico, estes também mudariam. Tal não ocorre, nem nesse caso (o negócio, ainda que a função seja outra, continua a ser compra e venda), nem em todas as outras hipóteses de negócio indireto, justamente porque é o elemento categorial inderrogável, e não a função, que fixa o tipo e o regime jurídico de cada negócio". AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio jurídico - Existência, validade e eficácia. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 148.

17 Ferramentas no sentido utilizado por HESPANHA, António Manuel. Panorama histórico da cultura jurídica europeia. Lisboa: Europa-América, 1997. p. 26 e 27. "A tradição não representa um resultado, um valor, uma norma; mas uma série de ferramentas (...) com as quais são produzidos novos resultados. Na verdade, o trabalho de produção de novos efeitos jurídicos (novas normas, novos valores, novos dogmas) é levado a cabo com ferramentas recebidas da tradição: ferramentas institucionais (instituições, papeis sociais), ferramentas discursivas (linguagem técnica, tópicos, modelos de argumentação e de prova, conceitos e dogmas), ferramentas comunicacionais (bibliotecas, redes acadêmicas ou intelectuais). É desta forma que o passado modela o presente. Não pela imposição directa de valores e de normas, mas pela disponibilização de uma grande parte da utensilagem social e intelectual com que se produzem novos valores e novas normas". 18 A busca da função está relacionada ao aspecto causativo: "Ela assume uma disciplina segundo a sua causa, a qual é expressão da sua disciplina: o aspecto funcional e aquele causativo exprimem a mesma exigência, isto é, individuar e completar uma relação entre situações subjetivas. O credor, segundo seja a causa uma ou outra, tem, ou não, determinados poderes, obrigações (...)". PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 117. 19 Ver JHERING, Rudolf von. A finalidade do direito. Edição histórica. Trad. José Antônio Faria Correa. Rio de Janeiro: Rio Ed., 1979. JHERING, Rudolf von. Do lucro nos contratos e da suposta necessidade do valor patrimonial das prestações obrigatórias. Questões e estudos de direito. Campinas: LZN, 2003. CIMBALI, Enrico. Op. cit. GOMES, Orlando. Lineamentos gerais do anteprojeto de reforma do Código Civil (LGL\2002\400). Revista Forense 206. GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 1980. BETTI, Emilio. Negozio giuridico. Novíssimo Digesto Italiano. Torino: Utet, 1959. p. 209 e ss. ASCARELLI, Tullio. Panorama do direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1947. DUGUIT, Leon. Las transformaciones generales del derecho privado desde el Código de Napoleón. 2. ed. Madri: Francisco Beltran, Libreria española y extranjera, 1920. p. 69-74. RENNER, Karl. Gli istituti del diritto privato e la loro funzione giuridica. Un contributo alla critica del diritto civile. Bolonha: Società editrice il Mulino, 1981. Realizei estudo sobre as origens doutrinárias da função social dos contratos na obra "As origens doutrinárias da função social dos contratos no Código Civil (LGL\2002\400)", tese de doutorado defendida em junho de 2006 na UFRGS, publicada pela Saraiva em

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2009. 20 Modelo no sentido que já abordamos no livro BRANCO, Gerson Luiz Carlos; MARTINS--COSTA, Judith. Diretrizes teóricas do Código Civil (LGL\2002\400). São Paulo: Saraiva, 2002. 21 Como diz Jorge Miranda, a regra constitucional da não discriminação impede que o legislador estabeleça discriminações entre concretos sujeitos econômicos como elemento essencial do Direito de Iniciativa. MIRANDA, Jorge. Iniciativa econômica. Escritos. vários sobre direitos fundamentais. São João do Estoril: Principia, 2006. p. 173-185. 22 Sobre a problemática dos limites entre autodeterminação e autonomia privada, ver RIBEIRO, Joaquim de Sousa. O problema do contrato as cláusulas contratuais gerais e o princípio da liberdade contratual. Coimbra: Almedina, 2003. p. 21 e ss. A diferença marcada pelo autor português pode ser sintetizada na natureza instrumental da conexão entre os dois conceitos: "a autonomia privada relaciona-se com a autodeterminação como um meio para o seu fim (um dos seus fins) (...) a autonomia privada não é uma componente da autodeterminação, mas apenas uma técnica de criação jurídica ajustada à autodeterminação". p. 30. 23 O sistema constitucional pressupõe a autonomia privada a partir de uma série de comandos que devem ser compreendidos em conjunto, entre eles os incisos do art. 5.°, acima citados, que tratam da liberdade geral, liberdade profissional, liberdade de associação, e que garantem eficácia ao ato jurídico perfeito e, portanto, a eficácia obrigatória e a irretratabilidade dos negócios jurídicos.Há opinião contrária, como por exemplo, a de Ana Prata que afirma não se poder considerar a autonomia privada como manifestação da liberdade individual, porque isso representa "erigir em ordem natural aquilo que é ordem económica históricamente referenciada". PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra: Almedina, 1982. p. 78. O equívoco da afirmação de Ana Prata é a confusão entre o direito fundamental da liberdade e um pressuposto Direito Natural à liberdade, que não estão em debate na atualidade, tendo em vista a incontestável natureza histórica dos próprios direitos fundamentais. Sua proposição é a de que a solução constitucional não é de uma "tutela constitucional da autonomia privada", mas de que a Constituição é restritiva da liberdade negocial, reordenando o seu significado clássico, colocando-a como acessório da liberdade de iniciativa e do direito de propriedade, (p. 215 e 216) argumento que não resiste a natural e indiscutível proteção da liberdade de contratar posta nas divesas disposições constitucionais, não obstante a autora portuguesa esteja correta no sentido de que a Constituição "reordena" a autonomia privada para afastar o conceito clássico tal qual foi concebido por Savigny. Embora a referência à Constituição referida por Ana Prata seja a portuguesa, nesse aspecto não há notas ou traços que sejam de gritante distinção com a Constituição brasileira.

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24 Sobre a concepção substancial do princípio, ver OLIVEIRA, Maria Rosynete. Devido processo legal. Porto Alegre: Fabris, 1999. p. 200-208. O enfoque substantivo do due process of law significa que o Estado não pode privar arbitrariamente certos direitos fundamentais, ainda que seja observada a sequência de etapas de um procedimento. O procedimento previsto pelo legislador, por competência constitucional, não pode estabelecer procedimentos que não garantam direitos ou a essência de direitos, como o direito à vida, liberdade e propriedade. Acolhido inicialmente por decisões dos Ministros Moreira Alves e Themístocles Cavalcanti, o STF "acentua a presença no devido processo legal de um conteúdo de razoabilidade, capaz de sindicar os atos estatais que se afigurem aberrantes da razão". Isso significa que pode ser reconhecida a inconstitucionalidade de leis que aberrantes da razão firam indiretamente direitos constitucionais.O devido processo legal substantivo exige senso de justiça e enquadramento nos preceitos constitucionais. No mesmo sentido o clássico texto SAN TIAGO DANTAS. Problemas de direito positivo. Rio de Janeiro: Forense, 1953. p. 37-64.

25 Entre outras, veja-se a recente decisão considerando inconstitucional Lei do Estado do Rio Grande do Sul por ter violado o substantial due process of law: STF, ADIn 2.806/RS, Pleno, j. 23.04.2003, rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 27.06.2003. Veja-se ainda a decisão STF, ADIn na MC 2.667/DF, Pleno, j. 19.06.2002, rel. Min. Celso de Mello, DJ 12.03.2004: "As normas legais devem observar, no processo de sua formulação, critérios de razoabilidade que guardem estrita consonância com os padrões fundados no princípio da proporcionalidade, pois todos os atos emanados do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do substantive due process of law". 26 BROWNSWORD, Roger. Contract law and the Human Rights Act 1998. Contract Law Themes for the twenty-first century. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 241- 272. Ainda a esse respeito ver, entre outros, texto que trata sobre a constitucionalização do direito privado na Escócia, cujo parlamento data de 1999, inserido no sistema da Grã-Bretanha, mas cuja tradição de proteção dos direitos civis fez nascer o debate a respeito dos limites "constitucionais" ao legislador. THE HONOURABLE LORD REED. The constitutionalisation of private law: Scotland. Electronic Journal Of Comparative Law. May, 2001. Disponível em: [www.ejcl.org/52/art52-4.html[. Acesso em: 21.01.2012. Deve-se observar, também, que assim como no Brasil, há resistências a esse movimento, como a que é apresentada no texto: SMITS, Jan M. Private law and fundamental rights: a sceptical view. In: BARKHUYSEN, Tom; LINDENBERGH, Siewert (eds.). Constitutionalisation of private law. Leiden/Boston: Martinus Nijhoff Publishers/Brill Academic, May 2006. p. 9-22.

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