O saltimbancos e a sociologia da música

June 9, 2017 | Autor: Renato Brito | Categoria: Philosophy of Music Education
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X CONFERENCIA REGIONAL LATINOAMERICANA Y III CONFERENCIA REGIONAL PANAMERICANA DE EDUCACIÓN MUSICAL, ISME - INTERNATIONAL SOCIETY FOR MUSIC EDUCATION

Os Saltimbancos e a Sociologia da Música: proposta de um rizoma musical para discussão da educação produtivista Carlos Renato de Lima Brito UFPB – Universidade Federal da Paraíba [email protected] RESUMO A música pode ser usada para avaliar a sociedade a partir de uma postura crítica e transformadora. Este trabalho, cujo objetivo geral é discutir questões relacionadas a presente situação social brasileira, especialmente contextos educacionais escolares, problematiza a educação produtivista, caracterizada pelo paradigma neoliberal. Para isto, analisa a canção O Jumento do musical Os Saltimbamcos (2007) de Sérgio Bardotti e Chico Buarque, de acordo com a proposta de Walcott (1997) de utilizar músicas como rizomas, numa proposta pós-moderna da sociologia da educação musical. Foi notado que a educação atual, com um trabalho regido pelos princípios de produtividade e de eficiência, faz com que professores e estudantes de música sejam submetidos a um processo embrutecedor, de que podem se libertar pela luta e pela arte humanizadora. Palavras chave: educação produtivista; rizoma; Os Saltimbancos

ABSTRACT Music can be used to evaluate society from a critical and transformative stance. This paper, whose general objective is to discuss issues related to this social situation Brazil, especially school educational contexts, questions the productivist education, characterized by the neoliberal paradigm. For this, analyzes the song O Jumento of the show Os Saltimbamcos (2007) by Sergio Bardotti and Chico Buarque, according to the proposed Walcott (1997) of to use music like rhizoma, in a post-modern purpose of Music Education. It was noted that present education, with a work governed by the principles of productivity and efficiency, makes music teachers and students are subject to a stultifying process, that may be released by struggle and humanizing art. Key-words: productivist education, rhizoma, “Os Saltimbancos”.

“Era uma vez (e é ainda!)”... Nosso país, enquanto vivia na ditadura militar dos anos 1964 a 1988 (tendo a promulgação da Constituição em vigor como data final), viu aflorar a chamada música de protesto, rotulada como parte da música popular brasileira, em que artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque se manifestavam contra o regime, com letras, por um lado, aguerridas e, por outro lado, veladas com recursos poéticos, que tinham o papel prático de driblar a censura. Os festivais e publicações de LPs tiveram assim a significativa função política de alertar a população do cerceamento da liberdade, da imposição do sistema econômico e da desumanização das relações sociais presentes nas manifestações mais duras do regime ditatorial. Pensando nesse grupo de artistas e nessas músicas, podemos nos perguntar: será que músicas produzidas nesse período poderiam suscitar questões significativas para crítica da situação social hodierna? Como a reflexão de músicas desse repertório pode problematizar a educação nos contextos escolares atuais? Com o intuito de responder essas perguntas, apresento, neste texto, a análise da canção O Jumento, do disco Os Saltimbancos (2007) de Sérgio Bardotti e Chico Buarque, sob a perspectiva de rizoma (WALCOTT, 1997), para pensar realidades presentes na educação produtivista nacional (SAVIANI, 2008), considerando aspectos estéticos e literários presentes na melodia e na letra da referida canção. A metodologia utilizada consistiu na análise dos elementos musicais da canção como melodia, ritmo, harmonia e recursos timbrísticos, a partir do olhar da Sociologia da Música, que se interessa pelas implicações dessas estruturas estéticas para as realidades sociais, especialmente considerando a educação brasileira.

... “Certo país (e é ainda)” Para Libâneo (2011, p. 34), o neoliberalismo pode ser identificado como doutrina política e econômica que possui três características marcantes: “mudanças nos processos de produção associados a avanços científicos e tecnológicos, superioridade do livre funcionamento do mercado na regulação da economia e redução do papel do Estado”. Discordando e ampliando a visão acima, Chauí (1999) afere o neoliberalismo na complexidade de suas dinâmicas, afirmando que o mesmo “não é a crença na racionalidade do trabalho, o enxugamento do Estado e a desaparição do fundo público”, mas a submissão dos bens públicos a força do capital (CHAUI, 1999, p. 4). Ambos os autores concordam que o neoliberalismo possui uma forte influência sobre o sistema educacional brasileiro, que se observa de modo peculiar na transformação das instituições escolares em organizações administrativas (CHAUI, 1999), caracterizando as práticas pedagógicas da atualidade como produtivistas (SAVIANI, 2008). Desse modo, a escola, ao invés de ser um local onde o conhecimento para a cidadania cresce na humanização da pessoa em formação, torna-se instrumento de um sistema financeiro embrutecedor, que visa fabricar peças novas para substituir aquelas que já se acham gastas pelo funcionamento da máquina. Para isso, a escola segue critérios de produtividade como controle de qualidade, minorização de custos, quantidade e eficiência. Nas palavras de Chauí, referindo-se a realidade do ensino superior, a escola, “definida e estruturada por

normas e padrões inteiramente alheios ao conhecimento e à formação intelectual, está pulverizada em micro organizações que ocupam seus docentes e curvam seus estudantes a exigências exteriores ao trabalho intelectual” (CHAUI, 1999, p. 7). Numa perspectiva pós-moderna da Sociologia da Educação Musical, Walcott propõe a utilização de certas músicas na sala de aula, com o propósito de promover, entre professores e estudantes, a reflexão e problematização da condição social, especialmente no contexto escolar. De acordo com Walcott (1997), o rap, e aqui, acrescento, a música brasileira, podem ser usados na sala de aula, para suscitar discussões e abordar temas geralmente marginalizados do ensino tradicional, no sentido de promover uma educação emancipadora. Para suscitar essas discussões, Walcott propõe uma desconstrução do entendimento da música a ser utilizada, pela qual o pesquisador ou professor reconheceria que seu olhar sobre o fenômeno acaba moldando o mesmo, deixando de ser um reflexo exato daquela realidade. Tendo considerado isso, o autor propõe que o rap seja visto como um rizoma, um conceito importante da teoria de Deuleze e Guattari (1995). Pensando nessa perspectiva pós-moderna da Sociologia da Educação Musical aplicada à música brasileira de protesto, é possível, a partir da reflexão da obra Os Saltimbancos de Sérgio Bardotti e Chico Buarque, entender melhor como se dá esse embrutecimento da educação pelo reformulado paradigma do capital, o neoliberalismo. Os Saltimbancos são uma adaptação da obra dos irmãos Grimm chamada Os músicos de Bremen, para o teatro brasileiro, montada pela primeira vez em 1977. Andrade afirma que “a peça é uma fábula musical destinada, a princípio, ao público infantil e juvenil, e apresenta, de modo lúdico, a representação do trabalho” (ANDRADE, 2013, p. 4). A peça narra a trajetória de quatro animais personificados que, achando condições desfavoráveis de trabalho e vida junto aos seus antigos donos, tentam formar um grupo musical para ganhar a vida na cidade. O sonho do Jumento, do Cachorro, da Galinha e da Gata é refeito, quando os mesmos entendem que a crença numa cidade ideal é ilusória e o grupo consegue se apropriar de uma estalagem, onde seus antigos donos se encontravam. Andrade (2013) destaca que os animais passam por um processo de humanização através da música, encontram valor no trabalho cooperativo e na vivência em comunidade. Apresento, a seguir, como aspectos estético-musicais da canção que representa a trajetória particular do Jumento em relação ao trabalho relacionam-se com esse enredo de superação da realidade imposta, enquanto o diálogo com a Sociologia da Música permite refletir sobre a função da música na crítica do sistema educacional influenciado pelo mercado.

O Jumento A primeira canção solo, acompanhada por um coral de crianças, que alterna partes da música, repetindo-as após o solista, é chamada O Jumento. A canção recorta parte da história de vida do personagem, que pode representar o trabalhador braçal e do campo no contexto brasileiro. O personagem narra como decidiu se insurgir daquela situação de opressão, estando submetida a um trabalho extenuante e desumano. O Jumento foge de seu patrão e vai para a cidade, com o

propósito de trabalhar como músico, uma carreira menos desfavorável na concepção do personagem e que não necessitaria de muita qualificação. Abalado emocionalmente, o Jumento canta, pensando consigo mesmo. A canção O Jumento não parece o lamento de alguém que está triste por sua condição solitária e desiludida, mas uma descrição de um trabalho ritmado, urgente, pressionado a galope, para atender as altas demandas do dia de trabalho. A introdução é marcada por sons de “ei!”, chicotadas e “ais”, fazendo o ouvinte imaginar a cena de um carroceiro, obrigando o animal a puxar uma carga com sofrimento. A primeira estrofe, com predominância rítmica de tercinas e semínimas em compasso simples, esclarece a condição do Jumento. A poesia descreve um animal embrutecido pelo trabalho imposto. Considerando que o gênero literário é a fábula, uma das interpretações possíveis seria de que este tipo de trabalho, a que uma pessoa do campo é submetida, se constitui num poderoso meio de dominação. Os dois últimos versos dessa estrofe, com uma linha melódica diferente dos versos iniciais, descrevem a possibilidade de libertação daquela relação opressor/ oprimido. É notável que as notas utilizadas sobem gradativamente até a palavra “rachar”, dando a ideia de tensão e clímax no discurso tonal, e depois as notas descem gradativamente até a palavra “dá”, chegando ao alívio ou resolução na tonalidade. Tomados estes elementos musicais como simbólicos, num entrelaçamento do texto com a melodia, posso sugerir que o autor propõe que o meio de libertação do personagem teria sido a resistência dele àquele trabalho caracterizado pela exploração. Uma descrição vívida da quantidade insuportável de trabalho a que o Jumento estava submetido é dada na segunda estrofe. Cada verso da estrofe é composto por uma quantidade de itens que seriam carregados pelo Jumento. A lista de itens vai aumentando gradativamente, com itens mais e mais pesados. No fim de cada verso, é repetida a pergunta: “Quem é que carrega?”. O Jumento responde: “Hi-ho!”, numa onomatopéia alusiva ao animal. Os elementos musicais corroboram para descrição do trabalho extenuante do Jumento. O primeiro deles é a repetição. Esta repetição é aplicada na estrofe inteira, à parte dos versos, que sofrem acréscimo e a recorrência de instrumentos musicais. Outro elemento musical importante é o recurso da canção praticamente falada com ritmo bem marcado, chegando a ser acelerado para o fim da estrofe. Além disso, os instrumentos mais graves, tímpano e baixo, sobem a altura das notas em intervalos de microtons, o que parece descrever um recipiente que está para transbordar, simbolicamente, a resistência do Jumento. A solução a todas estas tensões acumuladas seria a contraposição, a luta por um trabalho mais humano e significativo, a busca pela arte, por uma melhoria de vida representada pela música e pela cidade. Não seria extenuante e desumano o trabalho a que muitos professores de música e de outras disciplinas estão submetidos para ganharem “no fim, nem uma cenoura”? Não é exagero afirmar que um número significativo de professores da educação básica e até do ensino superior, para sobreviverem da docência, precisam acrescentar aos seus anos mais produtivos uma intensa carga horária de aulas e uma quantidade expressiva de turmas, no ensino público e privado. Com o professor de música não é diferente. Ele está sujeito ao mesmo patrão, por vezes, mais cruel. O professor de música tem que enfrentar a hierarquização das disciplinas, a

instabilidade da carreira profissional com os contratos temporários, a cultura dos dias festivos escolares e as possíveis tensões entre carreira artística e docência. No contexto do ensino superior, professores de curso de graduação e pós-graduação em música sentem a enorme pressão de atuarem em várias frentes além da sala de aula, sendo avaliados e dando valia a seus cursos com base em sua produção quantitativa que, por vezes, não é equivalente a sua produção intelectual e formativa (LOURO, 2004, p. 96-118). No contexto de uma educação produtivista, o professor pode ser considerado apenas um item que agrega custo a um bem manufaturado. Nesse caso, quanto mais o professor trabalhe, a menor custo, mais competitivo será o produto final, tornando o docente apenas um número na célula de uma planilha. Como a educação de qualidade visa formar cidadãos, pessoas plenas de suas faculdades físicas e mentais com capacidade de cooperação solidária, este modelo de professor “que trabalha feito jumento” não cabe na educação para vida, para libertação, para autonomia. Como o personagem da canção rizoma, o professor leva uma carga pesada demais, por isso deve recorrer à música e à aventura da vida em direção da estalagem real e conquistada, para achar com seus pares o valor do trabalho cooperativo.

Minha canção Numa abordagem proposta por Walcott (1997), que sugere a utilização do rap, gênero musical afro-americano, como rizoma para trazer para sala de aula temas marginais, numa perspectiva pós-moderna da educação musical, este trabalho discutiu educação produtivista, termo cunhado por Saviani (2008), a partir de uma canção, O Jumento, da obra Os Saltimbancos de Sérgio Bardotti e Chico Buarque. Como se intentou demonstrar, a canção é uma representação simbólica e musical do trabalho embrutecedor, extenuante e imposto por uma relação desigual, característico das relações trabalhísticas do contexto capitalista. Foi notado que, apesar dos novos contextos, as relações de trabalho na educação podem ser entendidas como desiguais e desumanas, o que é também encontrado na docência em música. Os Saltimbancos e O Jumento sugerem a busca realista por condições mais favoráveis, a humanização pela música e a conquista da autonomia pelo trabalho cooperativo. Notei que as críticas feitas de modo permeado de arte e beleza nesse passado não distante permanecessem atuais, mesmo considerando os novos contextos de democratização e rearranjo do sistema capitalista global. A educação regida pelo paradigma neoliberal e a decorrente exigência de um trabalhador qualificado para o novo mercado de trabalho fazem com que professores de música e estudantes de todos os níveis sejam submetidos às exigências da produção e eficiência, que caracterizam as organizações administrativas e empresariais.

Referências ANDRADE, Adriely Apolinário de. Todos juntos somos fortes: a representação do trabalho n’Os Saltimbancos. 2013. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Letras, com habilitação em Língua Portuguesa). Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande, 2013. BUARQUE, Chico. Os Saltimbancos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007. CHAUI, Marilena. Universidade operacional. Revista da Avaliação da Educação Superior, v. 4, n. 3. Campinas: Universidade de Sorocaba, 1999. DELEUZE, Giles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. LIBÂNEO, José Carlos; OLIVEIRA, João Ferreira de; TOSCHI, Mizra Seabra. Educação Escolar: políticas, estruturas e organização. Ed. 10ª. São Paulo: Cortez, 2011. LOURO, Ana Lúcia de Marques e. Ser Docente Universitário – professor de música: dialogando sobre identidades profissionais com professores de instrumento. 2004. Tese (Doutorado em Música) – Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004. SAVIANI, Demerval. História das Ideias Pedagógicas. Ed. 2ª. Campinas: Autores Associados, 2008. WALCOTT, Rinaldo. Post Modern Sociology: Music Education and the Pedagogy of Rap. In: RIDEOUT, R. R. On the Sociology of Music Education. Norman: University of Oaklahoma School of Music, 1997.

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