O SAMBA NA MÚSICA POPULAR INSTRUMENTAL BRASILEIRA DE 1978 A 1998

June 6, 2017 | Autor: Marcelo Gomes | Categoria: Popular Music
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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

O SAMBA NA MÚSICA POPULAR INSTRUMENTAL BRASILEIRA DE 1978 A 1998

MARCELO SILVA GOMES

São Paulo 2003

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MARCELO SILVA GOMES

O SAMBA NA MÚSICA POPULAR INSTRUMENTAL BRASILEIRA DE 1978 A 1998

Dissertação apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie para obtenção parcial do título de Mestre em Educação, Artes e História da Cultura.

ORIENTADOR: Dr. ARNALDO DARAYA CONTIER

São Paulo Junho de 2003 Dedico este trabalho a minha tia, Maria Aparecida de Moraes.

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RESUMO

O presente trabalho é uma investigação bibliográfica e fonográfica, que propõe ferramentas diferenciadas para a análise das estruturas rítmicas do samba. Constitui-se em um projeto interdisciplinar que envolve as áreas de Educação, Artes e História da Cultura. Educação, na medida em que pretende legitimar a oralidade como processo de ensino-aprendizagem para a transmissão e preservação de certos conteúdos musicais. Artes, pois todo o trabalho é construído sobre uma expressão artística fundamental à humanidade, a música. História da Cultura, entendendo que diferentes culturas produzem diferentes estruturas sonoras. Sociedades complexas, tal qual o Brasil, possuem formas musicais constantemente re-inventadas a partir de elementos de origens diversas. Contemplando a linha de pesquisa “História da Cultura, da Educação e das Artes: abordagens interdisciplinares”, o trabalho está dividido em três capítulos. O primeiro visa compreender quais foram os diálogos e atravessamentos que tornaram a música popular brasileira possível. O segundo capítulo propõe as ferramentas para que se analise o conjunto específico de estruturas rítmicas do samba. E o terceiro, utilizando como premissa os capítulos anteriores, realiza efetivamente algumas análises. O objetivo é o de perceber que os ritmos são um tesouro escondido, ansiando por ser descobertos e valorizados de acordo com seus próprios paradigmas.

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ABSTRACT

This research, a bibliographic and phonographic investigation, presents distinct tools to approach the samba rhythmic structures. As an interdisciplinary project it involves areas such as Education, Arts and Culture History. The Education, which is concerned about the oral knowledge, as a process of teaching-learning to transmit and preserve some musical contents. The Arts, the reason for having all this work built on one of the most fundamental expressions of humanity, music. The Culture History, which considers that different cultures produce different sound structures. Complex societies, such as the Brazilian, have musical forms constantly reinvented based on elements from different origins. This work is split up into three chapters considering the lines of research “Cultures History, Education and Arts: interdisciplinary approaches”. The first chapter aims at the understanding of the dialogs and crossovers that made the Brazilian popular music possible. The second one presents the tools to analyze the samba specific group of rhythmic structures. And the third uses the previous chapters as spring boards to carry out some analysis. The main objective of this work is to realize that rhythms are like a hidden treasure, concerning being discovered and evaluated according to their own paradigms.

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O SAMBA NA MÚSICA POPULAR INSTRUMENTAL BRASILEIRA De 1978 a 1998 Sumário Introdução A- tema 1 B- hipótese central 6 C- objetivos 7 D- critérios teórico-metolodógicos

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E- debate sobre a produção científica 18 F- corpus 28

Capítulo 1. Samba e Cultura, 29 1.1. As culturas e a história 31 1.2. A África no Brasil 35 1.3. Os processos de trocas e sínteses culturais 39 1.3.1. Os conceitos: biombos e mediadores 39 1.3.2. O músico, esse re-inventor 42 1.3.3. Os diálogos musicais 45 1.4. A Casa da Tia Ciata 49 1.5. Ritmo e gesto 53 Capítulo 2. Premissas musicais para a análise do ritmo 56 2.1. Simultaneidade e polirritmia 59 2.2. A contrametricidade como regra no emprego da síncopa 60 2.3. O sentido cíclico dos ritmos 65 2.4. A não linearidade como forma musical 70 2.5. As conseqüências da oralidade na transmissão dos signos musicais 72 2.6. A concepção de compasso na música ocidental 75 2.7. Autoria e criação coletiva: temas em debate 76 2.8. A Ginga e a questão da oralidade 78

vi Capitulo 3. Estruturas rítmicas do samba: algumas análises 83 3.1. Samba Antigo? 85 3.2. Samba Novo? 89 3.2.1. A linha grave 90 3.2.2. As semicolcheias 91 3.2.3. A “time line” 93 3.3. A síncopa por ela mesma 95 3.4. O atravessamento pelo Partido Alto 101 3.4.1. Bateria Nota 1000 106 3.4.2. Paulinho da Viola 107 3.4.3. Tom Jobim 108 3.4.4. Terra Brasil 110

Conclusão 113 Bibliografia 114 Anexo I: Upa Neguinho 116 Anexo II: Samba Quente 119 Anexo III: Tamborins 137 Anexo IV: Atravessou 139 Anexo V: Gravações 141

(16’29’’)

Faixa 1: Capoeira 1’02’’ Faixa 2: Miragem do Porto 1’39’’ Faixa 3: Samba Quente 1’43’’ Faixa 4: Pandeiro 0’55’’ Faixa 5: Tamborins 1’00’’ Faixa 6: Partido Alto 1’04’’ Faixa 7: Atravessou 3’54’’ Faixa 8: Brasil Nativo 3’48’’ Faixa 9: Swing Paulista 1’00’’

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Introdução

A) Tema O samba é uma expressão artística fundamental ao País, ativa musicalmente em inúmeras manifestações, sendo cultivado nos terreiros, nas escolas de samba, em redutos da bossa nova e pelos praticantes da chamada música instrumental, que engloba desde o choro até o jazz-samba moderno. Por isso, pode ser considerado não apenas um ritmo, mas uma grande família de células rítmicas e suas variações, bem como uma prática cultural disseminada por vários grupos da sociedade. De maneira paralela a sua produção e divulgação, sempre houve interesse de pesquisadores em discutir e compreender esta arte. Uma face desta discussão tem caráter histórico, e busca explicar origens, formas de preservação, desdobramentos sociais, e sua apropriação ideológica por parte de várias instâncias sociais. Para tal tipo de trabalho, antropólogos, sociólogos e historiadores têm como principais fontes de pesquisa a documentação sobre o assunto, seus autores, letras dos próprios sambas e gravações. Entretanto, o que se percebe, na maioria dos casos, é que essas pesquisas não abordam o tema por um recorte musical propriamente dito. Apontam mais em direções sociológicas e antropológicas do que necessariamente musicológicas. Este trabalho propõe uma visão histórica do samba através de um recorte também técnico-musical. Não que se pretenda “recontar” a história do samba, mas sim, abordar certos momentos e acontecimentos recorrentes na bibliografia sobre o tema, no intuito de compreender melhor essas diferentes formas musicais. Não só perceber os “lugares” que esta arte ocupa na sociedade, mas como se dá seu trânsito por diferentes instâncias sócio-culturais. Vale dizer: se bem sucedida a empreitada de aliar visão histórica e musical concomitantemente,

incrementa-se

a

compreensão

de

como

determinadas

“sínteses” musicais afloraram. A arte ocupa posição privilegiada na sociedade como espelho dessa, e assim processos culturais podem ser mais bem compreendidos.

2 Some-se certa carência de uma abordagem do samba por um viés musical não usual. Isso porque a maioria das ferramentas de análise foi criada pela música chamada “erudita”, de caráter eurocêntrico. Portanto é provável, como se quer mostrar aqui, que estes procedimentos sejam até certo ponto inadequados para uma análise mais efetiva de um tipo de música que nasceu partindo de outros parâmetros. Tal característica torna difícil falar de samba sem falar de etnia, ou de música popular sem falar de música erudita. Afinal , como falar de visão de arte sem falar de visão de mundo? Ao compreender melhor as formas de transmissão e preservação do samba, também se fomenta capacidade de compreender historicamente o País, pois é possível observar a existência de uma história que não está oficialmente registrada. Neste sentido, é preciso dimensionar a importância da oralidade como forma de manutenção e preservação de conhecimentos dos negros, que foram considerados por muito tempo como selvagens e primitivos, e suas manifestações tratadas como “demoníacas” até mesmo por alguns cientistas sociais e musicólogos. Propor uma forma de analisar este ritmo deve ser também buscar vê-lo primeiro como fruto dessa cultura que se relaciona diretamente com o samba. Necessário então, conhecer não só características dessa música, como também o que a diferencia daquela de origem européia. É preciso, de início, fazer uma distinção entre “o” e “um” samba. Uma interpretação é que “um” samba é uma canção luso/brasileira que tem o ritmo como um ostinato no acompanhamento. Essa é uma possibilidade de interpretação da síntese. Existem outras. Em primeiro lugar “o” samba é um ritmo, uma forma musical elaborada, auto-suficiente. Esse ritmo usa1 as canções, veste-se de acordes e melodias, atravessa instâncias sociais diferenciadas, e atinge os mais diferentes decodificadores de suas mensagens, chegando a ouvintes inesperados. Esta segunda interpretação pode ser descrita como uma tática, no sentido que De Certeau coloca como “mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro”, ou seja, o espaço instituído por outros”, pois “nesses estratagemas de combate existe

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“Em grau menor, o mesmo processo se encontra no uso que os meios ‘populares’ fazem das culturas difundidas pelas ‘elites’ produtoras de linguagem” (Id. Ibid., p. 95. Grifo meu).

3 uma arte dos golpes, dos lances, um prazer em alterar as regras de espaço opressor” (DE CERTEAU, 1990, p. 79). E se para muitos historiadores a canção2 samba já foi definida como representante da brasilidade, a música que sobreviveu no terreiro não chegaria, em sua forma mais “original”, a ocupar importante espaço em nossa música, como por exemplo, nas rádios, senão se aproximando da linguagem da “cultura dominante” (Id.Ibid., p.79). Conhecer os diferentes processos pelos quais sociedades distintas produzem e preservam suas formas artísticas mostra-se necessário na medida em que vários musicólogos, ao se defrontarem com uma manifestação popular na qual a questão rítmica era fundamental, abandonavam o olhar técnico, para tecer comentários apenas sensoriais. Na visão geral daqueles estudiosos da música, questões ligadas ao ritmo parecem pertencer ao universo folclórico ou etnomusicológico, e não, como se quer mostrar aqui, a um assunto musical strito senso, porém com um viés analítico diferenciado. Por exemplo, Mario de Andrade, quando está em Recife3 numa festa popular, abandona o olhar analítico presente em seu “Pequena História da Música”, e descreve não o procedimento técnico em relação a construção do aspecto rítmico desta manifestação musical em particular, mas seus efeitos: Tão violento o ritmo que era obrigado a me afastar de quando em quando para...(sic) pôr em ordem o movimento do sangue e do respiro (ANDRADE, 1944, p.186).

Para o presente trabalho, é interessante notar como Andrade, enquanto não mostra nenhuma pretensão analítica, admite sofrer efeitos dinamogênicos e sinestésicos do ritmo. O que é considerado pelos setores eruditos como a forma mais “elementar” do samba enquanto ritmo, vem sendo preservado, transmitido e difundido através de outros conceitos culturais ou práticas artísticas dos excluídos sociais, num primeiro momento, e num segundo, por artistas de outras camadas sociais. Nessas práticas

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Canção aqui deve ser entendido como uma forma musical de características tonais, quadratura estrófica e com um texto poético vinculado a essa estrutura. 3 Andrade não precisa a data em que, segundo ele, presenciou, no Carnaval do Recife, ao Maracatu da Nação Leão Coroado.

4 as

heranças

africanas,

transmitidas

oralmente,

desempenham

um

papel

fundamental. Apesar das controvérsias, há um ponto inegável a respeito das heranças africanas embutidas nessa forma musical [o samba]: os ciclos rítmicos” (MUKUNA, 2000, p. 27).

A cultura negra, da qual se herdou esses princípios musicais essencialmente rítmicos, passou por situações históricas que, de um lado dificultaram sobremaneira a continuidade de suas práticas, mas de outro acabaram por fortalecer algumas destas formas musicais específicas. Denominados Res Vocale4, numa primeira impressão,

as

possibilidades

de

preservação

da

cultura

original

desses

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“transplantados” parecem nulas. Entretanto, ainda que transportados em condições subumanas, sem a possibilidade de trazer consigo quaisquer representações materiais de sua cultura além de seu próprio corpo, o que não se podia prever era que este conhecimento estava como que traduzido e preservado através de ritmos que portavam em sua memória coletiva. Assim, aquela herança não precisou nada mais do que estar presente no universo musical daqueles pretos feito escravos6, para se perpetuar e ocupar hoje espaço importante na música brasileira. Num ambiente tão adverso quanto o cativeiro, instrumentos de percussão, talvez os mais rudimentares e de mais simples construção, foram basicamente os únicos aos quais esses escravos tiveram acesso ou puderam construir. Entretanto, a conjunção entre uma herança rica em figuras rítmicas, instrumentos simples e uma transmissão oral eficaz foi suficiente para que, durante o longo período da escravidão, esse patrimônio cultural se mantivesse vivo e ativo. Num segundo momento, a própria abolição, e a conseguinte movimentação destes escravos libertos para os centros urbanos, foi responsável por criar um espaço único para a realização do que é entendido hoje como música popular. Esta, por sua vez, nasceu num ambiente onde foi possível que, através de um processo 4

Res Vocale, a “Coisa que Fala”. Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro, 1995, Companhia das Letras. 6 A professora Petronilha Gonçalves e Silva, primeira negra a ocupar uma vaga no Conselho Nacional de Educação (CNE), afirma que até hoje a forma que se ministra o conteúdo da história é racista, na medida em que esta história começa “na África, e não na chegado dos escravos em solo brasileiro”. Folha de São Paulo, 23/03/2002, caderno Cotidiano, p. C8. Assim, o próprio Jose Ramos Tinhorão em seu “Os Sons dos Negros no Brasil” (1988, p. 17), escreve: “a importação de escravos africanos”, quando o correto seria a importação de africanos, feito escravos. 5

5 de trocas e diálogos culturais, dinâmicas de “síntese” fossem levadas a cabo de maneira intensa e sistemática, gerando uma forma musical

constituída por

elementos de origens culturais e sociais diferentes. De um lado, a classe média (mesmo que baixa). De outro, os descendentes de escravos. Com os primeiros, a formação profissional que capacitava a ler partituras, o saber musical do tipo europeu, e a conseqüente vinculação estilística à polca. Já os segundos perpetuariam na musica a ausência de qualificação profissional de seus ancestrais; eles seriam salvos, no entanto, pela paradoxal capacidade de criar um gênero que, sendo novo, seria ao mesmo tempo o último estágio do batuque angolano (SANDRONI, 2001, p.139).

Não se pode considerar os elementos musicais de maneira separada do lugar que ocupam em culturas distintas, nem tampouco que tais elementos musicais são, até hoje, transmitidos de uma maneira própria. A citação visa endossar a diversidade das origens musicais, mas daí a afirmar que isso desemboca no “batuque angolano” é supor a ausência de intensos diálogos e atravessamentos culturais que se deram em solo nacional. O samba, naquela época [final dos anos 30], não era visto como propriedade de um grupo étnico ou uma classe social, mas começava a atuar como uma espécie de denominador comum musical entre vários grupos, o que facilitou sua ascensão ao status de música nacional (VIANNA, 1995, p. 120).

Como se pode notar, a discussão aparece sempre levando em conta de um lado história, etnia e consagração social, e de outro, sínteses ou denominadores musicais comuns. Se o ponto de vista de Vianna fosse musical, notaria que o samba ritmo pôde então ascender a esse status, na medida em que dialogou com canções. “Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia” (De Certeau, 1990, p. 101). De fato, a oralidade é o meio de transporte por excelência desse tipo de conhecimento. Interessante é que a possibilidade de gravar um acontecimento musical é, enquanto registro, imparcial.

Portanto, para que se mostrem os

atravessamentos que as estruturas rítmicas do samba são capazes de realizar, encontra-se inserido nesse trabalho um anexo sonoro, um compact disc que consta de nove faixas. Assim, as datas

compreendidas entre primeiro e o último registro desse

anexo são exatamente a periodização desse trabalho: desde um samba de Paulinho

6 de Viola de 1973 até um tema7 instrumental do grupo paulistano Terra Brasil, gravado 1998. Quer se verificar assim a hipótese central: será que o samba, em diferentes roupagens, em diversos matizes, mantém sua estrutura rítmica intacta? Para tal tarefa as gravações são inequívocas. O primeiro capítulo trata de alguns acontecimentos marcantes na história do samba. O trabalho compara a visão que certos autores têm sobre esses marcos, adicionando um viés analítico musical. A tentativa é de visualizar como algumas dessas sínteses se deram, bem como certas expressões artísticas puderam ser preservadas e transmitidas no escopo da oralidade. No segundo capítulo, certas premissas musicais serão apresentadas sem as quais acredita-se que uma análise do samba perderia muito de sua valia. E se é possível aceitar o fato de que a origem desse remonta a uma cultura distinta, sua análise não pode ser empreendida com as ferramentas usualmente empregadas pela musica erudita. E no terceiro capítulo, desenvolve-se efetivamente uma análise musical, aliando ferramentas já consagradas no estudo da música ocidental às proposições levantadas no capítulo 2. Espera-se vislumbrar suas táticas traçando seu caminho. Esse se inicia no samba rítmico, batucada, passa pelo samba de “raiz”, canção. Flerta com Tom Jobim e chega até à música popular instrumental atual. Nesse percurso, espera-se incrementar a visão atual do samba. Legitimar a oralidade como forma de transmissão adequada para certos tipos de conhecimentos e formas musicais. E ainda, propor novas ferramentas de análise que permitam uma melhor compreensão do ritmo na música popular brasileira.

B) Hipótese central As estruturas rítmicas do samba atravessam intactas seus vários matizes.

c)Objetivos C.1. A relevância em nível institucional desta pesquisa tem seu foco na busca da legitimação da transmissão oral para as questões do ritmo.

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Denominação dos músicos de Jazz para as estruturas musicais sobre as quais improvisam.

7 Se aceitas as premissas no que se refere ao caráter de “síntese” que marca a própria música popular, e depois de apontados em termos técnico-musicais às limitações as quais o ensino formal oficial tem diante desta tarefa, o que se quer é demonstrar que a oralidade é a maneira mais eficaz de se empreender um processo de ensino-aprendizagem para este tipo de conhecimento. C.2. Chamar atenção para o fato de que a herança cultural africana não só é rica, como também mais detectável e marcante no contexto brasileiro do que se supõe usualmente. A exclusão, até hoje notável, da parcela negra da sociedade não impede que, musicalmente, a presença de suas manifestações seja acentuada. Se for possível no momento aceitar que a música popular tem realmente um caráter sintético, pois reúne, entre outros, elementos da cultura portuguesa e africana, pode-se propor formas de compreender melhor musicalmente a contribuição africana ao samba. Não parece que o aspecto eurocêntrico que a integra necessite ser enfatizado, pois seus processos já são aceitos, legitimados, e até tratados como mito, no sentido empregado por Barthes (1957), devido a todo um universo ideológico que se construiu consagrando a música erudita como “grande arte” ou “arte culta”. Essa construção inclui não só o próprio objeto musical, como também suas salas de concerto, seus autores e interpretes e seus processos oficiais de ensino. Já no caso do samba enquanto ritmo, dada certa natureza marginal a que sempre se encontraram submetidas às comunidades que o praticam, nota-se que sempre houve uma pressão excludente em relação as suas expressões culturais. Perseguições e atrocidades marcaram todo o processo de continuidade da existência dessa forma de arte. C.3. Demonstrar que a persistência das estruturas rítmicas é uma resistência da cultura. Isso não quer dizer que se fazia essa música para “resistir”. O que se percebe, analisando com um pouco mais de acuidade, é que a etnia negra portava essa riqueza de forma tão intensa que, não obstante toda coação e repressão a que foi submetida, encontrou caminhos para continuar realizando sua música. Os delegados da época (década de 20), beleguins que compravam patentes da Guarda Nacional, faziam questão de acabar com o que chamavam os folguedos da malta. As perseguições não tinham quartel. Os sambistas, cercados em suas próprias residências pela policia, eram levados para o distrito e tinham seus violões confiscados. Na festa da Penha, os pandeiros

8 eram arrebatados pelos policiais (Donga, entrevista a Sodré, in SODRÉ, 1998, p. 72).

C.4. Compreender melhor o conceito de diálogos, de bricolagens musicais. Graças à continuidade e presença da cultura negra, esses processos

se

intensificaram de tal forma, em especial após a abolição e a conseqüente migração em direção aos centros urbanos, que o samba saiu de sua esfera funcional e religiosa, para se fazer presente em todas as camadas sociais. A compressão usual desse fato é que a elite se apropria de expressões populares em seu próprio favor. A proposta aqui é de, por um momento, inverter o ponto de vista. Se as estruturas rítmicas do samba produzem efeitos naqueles que as ouvem, é fato que esses se propagam por toda a sociedade. Entretanto, se por um lado o tempo legitimou esta música, por outro não se encontraram ainda formas científicas de incluir e compreender de que maneira fazse tecnicamente sua transmissão e preservação. No universo da oralidade, ele se preserva enquanto conjunto de células rítmicas e, ao mesmo tempo, dialoga com diferentes formas musicais. Através disso, esse ritmo pode transitar por esferas que ninguém imaginaria. C.5. Objetivo deste também é creditar ao próprio músico popular a peculiaridade de ser agente mediador cultural por excelência na questão específica das sínteses tão significativas para a música popular. Na bibliografia sobre o tema, este ator social sempre aparece em segundo plano em detrimento de grandes cantores, ou de uma herança folclórica. Ao contrário disso, deseja-se ressaltar a importância desses músicos nesses processos. Suas “escutas” continham simultaneamente tradições até certo ponto conflitantes e oriundas de diferentes culturas. Essas só poderiam então se tornar partes constituintes de um mesmo todo, na medida em que esses artesãos tinham acesso a escutas diferenciadas. Aliado a isso, o contato com as diversas formas de transmissão desses conteúdos.

D)Critérios teóricos metodológicos A oralidade é a forma mais recorrente de transmissão de conhecimentos. Ela permeia todos os níveis de contato humano, seja na família, da sociedade ou da academia.

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Desde a leitura da criança até a do cientista, ela é precedida e possibilitada pela comunicação oral, inumerável ‘autoridade’que os textos não citam quase nunca (DE CERTEAU, 1994, p. 263).

No que se refere à música popular, sabe-se que existe uma infinidade de músicos que são julgados por sua proficiência, e não pelo fato de que tenham ou não uma educação musical formal, letrada ou escolástica. No caso dos ritmos em questão, isso se acentua ainda mais, pois este tipo de conhecimento nasceu na cultura africana, onde o corpo de saberes foi, por muito tempo, todo baseado nessa oralidade. Em certas camadas sociais, por exemplo, notam-se características de um comportamento que reproduz relações “tribais”. Devido a seus traços informais, podem musicalizar desde cedo, de maneira intensa, crianças. Esse tipo de traço fortalece a idéia da intensidade e da precocidade com a qual a oralidade pode agir como ferramenta de transmissão de uma dada prática cultural. Assim a professora Cecília Conde8, ao pesquisar em determinados morros do Rio de Janeiro9, nota que “no exame do comportamento pedagógico das pessoas e grupos na transmissão de dados -conceitos ou técnicas- referentes a manifestações da cultura popular, chama a atenção à integração natural entre adultos e crianças” (CONDE, 1985/85, p. 43). Não são poucos os autores que compreendem e aceitam a oralidade como riqueza humana de suma importância. Agora se reconhece que a linguagem oral é um instrumento e uma riqueza fundamental da mente; a escrita, embora importante, é sempre secundária (OLSON, 1997, p. 25).

Desses, Michael De Certeau é um dos que pesquisou de forma sistemática as formas de utilização que a cultura popular faz daquilo que lhe é imposto pela cultura dominante. Numa reflexão das relações entre arte e ciência, dá sustentação a colocações feitas aqui: Trata-se de um saber não sabido. Há, nas práticas, um estatuto análogo àquele que se atribui às fábulas ou mitos, como dizeres de conhecimentos que não se conhecem a si mesmos. Tanto num caso como no outro, tratase de um saber sobre os quais os sujeitos não refletem. Dele dão 8 9

Artigo publicado na revista do Conservatório Brasileiro de Música. Ver bibliografia.

10 testemunho sem poderem apropriar-se dele. São afinal os locatários e não os proprietários do seu próprio saber-fazer (DE CERTEAU, 1994, p.143).

Ora, o ritmo trafega exatamente nessas condições. Nascido, desenvolvido e estabelecido na oralidade e na prática. E, não há, por parte de certas esferas sociais, e dos músicos criados dentro dessas, uma reflexão sobre o que se sabe. É um “saber fazer” coletivo, transmitido por caminhos sociais de contato direto, que engloba as relações de pai para filho, de adulto para criança, de mestre para discípulo, enfim, de todas as formas de relação social possíveis numa comunidade. Referindo-se às elites, De Certeau conceitua estratégia: “uma vitória do lugar sobre o tempo”, um “gesto cartesiano” de “circunscrever um próprio num mundo enfeitiçado pelos poderes invisíveis do Outro” (Id. Ibid., p.99). Já na observação dos usos que os meios populares fazem das culturas difundidas pelas “elites” produtoras de linguagem, ressalta: “os conhecimentos e as simbólicas impostos são o objeto de manipulações pelos praticantes que não seus fabricantes” (Id. Ibid., p. 95). Assim, vai chamar de tática a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Ela (a tática) não tem por tanto a possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversário num espaço distinto, visível e objetivável. Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as ‘ocasiões’ e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas. (Id. Ibid., p.100).

Em outras palavras, enquanto empresas, exércitos ou instituições podem, através de um “próprio”, criar estratégia para gerir as relações com uma exterioridade, a prática

usa táticas que apontam para uma “hábil utilização do

tempo” e dos jogos que introduz “nas fundações de um poder” Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Ai vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia. (Id. Ibid., p. 101).

No capítulo um, uma temática recorrente é a Casa da Tia Ciata. Mencionada de maneira constante pela bibliografia sobre o gênero, a Casa é vista como um microcosmo das relações sociais, culturais e artísticas do início do século passado. De Certeau, referindo-se ao trabalho de Bordieu, afirma:

11 Este fragmento de sociedade e de análise é primeiramente a casa que é, sabe-se bem, a referência de toda metáfora. Seria necessário dizer: uma casa (Id. Ibid., p. 119).

Nesse contexto, a Casa da Tia Ciata tem inúmeras características que a tornam modelo rico para as relações de escambos e sincretismos culturais que são analisadas

aqui.

Os

inúmeros

diálogos

e

atravessamentos

podem

ser

metaforicamente visualizados através de um modelo que além de já constituído, foi também desenvolvido por vários autores. O que se acrescenta aqui são questões musicais mais específicas, que se valem do modelo ao mesmo tempo em que o incrementa. Entretanto, essa analogia não se baseia na importância que essa Casa especificamente possa ter tido em detrimento a outras. Sabe-se que havia muitas “Tias” no Rio de Janeiro. O modelo interessa na medida em que pode ser analolgo as relações sócio culturais da época. Assim, sala, cozinha e terreiro são reflexo dos “lugares” sociais onde aconteciam expressões culturais diferenciadas. A proposta é que dois conceitos sejam empregados de forma concomitante para que o modelo se torne mais apurado. Primeiro, o conceito de “biombos”, barreiras sócio-culturais entre seus cômodos, que ora impedem o contato entre condutas artísticas de origens tão diversas, ora se permitem ser transpassados por astúcias. Inúmeras táticas utilizadas pelos que não contam com privilégios sociais que os permitam trafegar livremente pela Casa. Em segundo, a figura dos chamados “mediadores culturais”, sujeitos que, por razões diversas, tinham o passaporte que lhes possibilitavam circular por esses cômodos. Entretanto, o que chama a atenção é que esse papel é atribuído em geral a personalidades que, se situando na sala, podiam atravessar os biombos e assim cumprir este papel mediador. Musicalmente falando, no que se refere ao ritmo, o que interessa é a forma que esses vazamentos se dão no sentido contrário. O centro da questão é como foi possível que as matrizes culturais geradas no terreiro, tratadas como selvagens e primitivas, tivessem influência tão pungente nos processos musicais posteriores. Como podem estruturas rítmicas tão similares ser observadas num samba somente percussivo e num grupo de música instrumental atual.

12 Se essa bagagem musical era, a princípio,

tão avessa às normas cultas

daquele período, como foi possível que se preservasse e, nesta bricolagem, chegasse a esferas artísticas tão diferenciadas? Para tais discussões faz-se necessária uma análise mais cuidadosa da concepção e interpretação dos elementos que compõem o samba. Importante também verificar o grau de proximidade entre o ritmo em seus trajes “canção” e compará-lo com execuções do ritmo tal como é tocado ainda hoje, em contextos onde se encontra executado de maneira mais primordial, somente batucada. Não que sua forma batucada deva ser considerada pura. Afinal, o samba quase nunca aparece assim. Onde háa samba, há canto, e muitas vezes dança. Mas as estruturas rítmicas são um “denominador comum”. Seja no seu formato percussivo, seja num disco de Tom Jobim, pode-se aferir a presença dessas mesmas células, ou de sua gama de variações. Nosso objeto de estudo então será tratado paralelamente de duas formas distintas: Primeiro, um trabalho de especificação técnica do ritmo em seu estado “livre”, ou seja, em gravações realizadas por comunidades que ainda mantêm tal forma musical em seu caráter percussivo e informal, no sentido de não atado a uma “forma” canção. Segundo, a comparação desse samba com sua presença no que se vai denominar aqui de “música popular” atual. Nesse caso, será uma abordagem do ritmo inserido em vários formatos, ou seja, aliado a formas harmônicas e estruturais diversas. O que se quer mostrar é que existe uma proximidade muito grande entre o ritmo no seu estado “puro” e na sua presença em diferentes manifestações musicais. A periodização desse trabalho se refere especificamente a esse ponto. São analisadas e transcritas no capítulo 3 gravações que visam montar um quadro dessa travessia. Numa discussão sobre samba antigo, samba novo e Partido Alto, elegeuse trabalhos registrados no período de 1978 a 1998. Pode-se assim vislumbrar um quadro panóptico que ajude a compreender como se dá hoje, no universo da música popular instrumental, realizada por músicos preparados – e sabe-se que esta capacitação remonta até os chorões do início do século (MORAES, 2000, p. 249) - a presença e a transmissão dessa sofisticada forma de arte musical. E, para que se possa analisar e transmitir uma expressão musical originada numa cultura diferente, é necessário que se pergunte até que ponto existe e se pode

13 notar a presença dessa cultura no momento atual. Tomando como universo a música instrumental paulistana hoje, pode-se avaliar a capacidade desta comunidade musical de compreender e manter em seus procedimentos os processos orais nos quais se dão a criação, a preservação, e a própria significação do ritmo. Para que se faça isso com rigor, faz-se necessário enfrentar não só algumas adaptações nas maneiras de utilizar determinadas ferramentas analíticas, como também, devido ao caráter interdisciplinar que se pretende aqui, trabalhar com autores fundamentados em diferentes escopos do conhecimento. Em certas questões, praticamente inexistem estas ferramentas, pelo menos até onde o levantamento bibliográfico desta pesquisa se acercou. Assim o trabalho se realiza através de algumas releituras de abordagens já utilizadas, mas não necessariamente já elevadas ao status de metodologia. Ao se fazer um cruzamento entre o recorte histórico, étnico e sociológico da questão negra com uma perspectiva analítica musical strito senso, quer se compreender o valor e a importância do componente africano da música popular. Por enquanto, sabe-se que, transmitido oralmente, talvez seja o elemento que fundamenta e caracteriza a própria noção de “música popular brasileira”. A separação técnica, quase didática, usualmente utilizada para que se empreenda essa análise se inicia pela divisão do conteúdo sonoro da música popular em melodia, harmonia e ritmo. Tomando como exemplo um trecho de partitura usual para os praticantes desse tipo de música (exemplo 1), nota-se que existe uma melodia escrita nos moldes usuais da escrita musical ocidental. Claves, acidentes, fórmula de compasso, enfim, todo o aparato usual necessário para que se leia10 as alturas e durações das notas que constituem uma dada melodia, bem como a cifragem, que representa os acordes do acompanhamento. Saber-se que a conformação rítmica da melodia, no caso do samba, está estritamente ligada ao próprio ritmo. Ao utilizar o padrão ocidental de notação, percebe-se certo grau de complexidade na forma de escrever o ritmo da melodia, e isso pode ser atribuído a uma

discrepância entre origens musicais. Se o ritmo

preserva algumas características africanas, e a escrita foi criada na Europa, e de se supor que existam certas dificuldades nessa transposição de “linguagens”.

10

Apenas a título de esclarecimento, o termo utilizado é exatamente “leitura musical”.

14 Usando o conceito de cometricidade e contrametricidade11, nota-se que o ritmo melódico aparece na partitura como sendo contramétrico, ou seja, deslocado e irregular. Exemplo 1

Paradoxalmente, essas divisões de difícil leitura para um músico de formação acadêmica, são executadas com naturalidade por aqueles que têm sua vivência musical dentro de uma comunidade que cultive, via oralidade, este rico e variado corpo de figuras rítmicas. Uma frase musical que tenha uma codificação rítmica complexa (exemplo 2, ver compassos 5 e 6) em partitura, será comunicada oralmente a alguém que conheça essa linguagem com facilidade. Mas o que é interessante no caso brasileiro é que o sistema rítmico clássico europeu, do qual faz parte, no país, a música escrita, inclusive a música popular escrita, veio a ser questionado em seu contato com práticas musicais afro-brasileiras (SANDRONI, 2001, p. 26).

A questão não é se o sistema foi questionado, já que em termos de escrita é o que está disponível. A pergunta é se existem outros métodos de transmissão úteis e eficazes para esse tipo de música. Afinal, pode ser que ritmo da melodia de uma “canção samba” seja tão afro-brasileiro, e neste sentido, com uma constituição

11

O conceito será aprofundado. Por hora, basta colocar que cométrico é quando o ritmo tende a concordar com a pulsação ou realiza divisões simples, e a idéia de contrametricidade se baseia no fato de que a grande maioria das colocações rítmicas no samba tende a contrariar a pulsação, a estar num constante processo de “sincopação”. O reconhecido músico norte americano Winton Marsalis, falando da sincopa no jazz, coloca que sincopar é sempre realizar os acentos em lugares que surpreendam o ouvinte.

15 rítmica tão diversa do universo europeu “de concerto12”, que a escrita que caracteriza o último seja inadequado ao primeiro. Com

relação

a

harmonia

da

peça,

para

montar

os

acordes

do

acompanhamento, a música popular se vale da cifragem (ver letras sobre a partitura no exemplo1). O músico (ou músicos) responsável pela execução do texto harmônico, dentro de uma determinada esfera de possibilidades, poderá realizar desde um acompanhamento simples, até uma condução harmônica primorosa. Devido as suas características, esta competência se configura como uma habilidade mais européia, já que se refere à organização das alturas musicais. No caso do samba, o que se nota é que o estudo das relações entre os acordes, e entre eles e a melodia, momentaneamente desconsiderando o ritmo, é que tal estudo pode se realizar com as mesmas ferramentas utilizadas pela música européia. Ou seja, a abordagem analítica das relações entre “alturas” musicais, usando-se a harmonia tradicional ou funcional, é a mesma que se usaria para analisar Beethoven, por exemplo. As diferenças que porventura vêm à tona referem-se muito mais ao tipo de tratamento composicional que se emprega a um dado universo temático, de acordo com a origem e formação do autor, do que a diferenças do ponto de partida melódico ou harmônico em si. No capítulo 2, que se refere às premissas musicais, são feitas considerações sobre esses ritmos em estado mais “rústico” (adjetivo eurocentrista?), só percussivo. Incluem-se também as limitações engendradas a partir do momento em que se insere dentro de uma “canção samba”. A execução, no nível rítmico, terá um conjunto de similitudes capaz de, ao abstrair-se de uma “canção samba” sua harmonia e melodia e trazer à tona sua constituição rítmica, fornecer ao ouvinte a sensação clara de que estamos diante de uma herança musical contramétrica, deveras rigorosa na utilização ou não de determinadas figuras rítmicas, e provavelmente não européia. Não há interesse aqui em tratar com profundidade de questões organológicas, exceto em dois pontos: o das limitações às quais o negro estava submetido em relação ao acesso a determinados instrumentos, que basicamente se limitavam aos 12

Entende-se por repertório de “concerto” a literatura musical consagrada, composta por aqueles considerados grandes autores eruditos, desde a renascença até os modernos. Não se pretende aqui tratar da chamada musica erudita contemporânea, pois esta inclui novos procedimentos que não dizem respeito ao tema tratado.

16 de percussão, e de uma distinção um pouco mais acurada das funções básicas de alguns desses em execuções puramente percussivas do ritmo aqui abordado. Também de maneira interessante para o que se pretende colocar aqui, ao se observar uma partitura de música popular para o baterista ou percussionista, não se verá nada diferente do que uma partitura praticamente em branco, quando muito com apenas as marcações da forma geral do arranjo da peça. Eventualmente, no caso ter sido escrita para um baterista ou percussionista mais “preparado”, e que portanto, seja “letrado” em música, nota-se alguns pontos onde uma determinada figuração rítmica será feita por todo o grupo13, aparecendo escrito na partitura para que ele também a execute. A observação, a partir daí, sobre a questão da rítmica do acompanhamento harmônico, mostra um ponto chave para o qual se quer chamar atenção. José Maria Neves, ao analisar o álbum manuscrito “Modinhas do Brasil”, descoberto pelo musicólogo francês Gerard Behague na Biblioteca da Ajuda em 1968, indica que “cada vez que há notação essencialmente rítmica no acompanhamento, com ausência de arpejos, aparece cifragem”. Ora, novamente a idéia de cifra indica que existe algo a ser decodificado. No que se refere a este código na música popular, o que deve ser trazido à luz é a montagem do acorde, a harmonia de uma dada canção. Esse é, pelo menos, o entendimento habitual. Mas da observação de J. M. Neves é possível inferir muito mais do que apenas isto: o que aparece como conhecimento cifrado é também a maneira como se deve executar o ritmo da harmonia14. E da mesma forma com que o músico de melhor formação harmônica será capaz de montar um melhor acompanhamento, o de maior conhecimento rítmico participará da peça, neste aspecto, com muito mais eficácia, usando seu conhecimento e experiência nesta área. Pelo fato de ser um conhecimento tácito de um músico popular de determinado país, perdeu-se a capacidade de compreensão que isto é efetivamente um conhecimento, uma bagagem cultural. Portanto, pode-se trabalhar em diferentes

13

Neste procedimento em arranjo, num dado fim de frase ou trecho da peça, todo o grupo realiza em uníssono uma dada figura rítmica. Isto, em linguagem de arranjo, chama-se “convenção”. 14 A discussão aqui não é a do “ritmo harmônico” no sentido empregado pela música erudita. Refere-se sim a forma que os acordes são executados dentro das figurações de um ritmo popular, as células rítmicas do acompanhamento.

17 níveis de qualidade tanto na harmonização como na área rítmica. A questão é: o que fazer para que se entenda e valorize tal competência ? Para que se inicie a compreensão do que seriam essas diferentes características e competências rítmicas, e também se possa posteriormente criticar, vai se utilizar aqui os conceitos adotados por Sandroni (2000) de cometricidade e contrametricidade mencionados anteriormente. No primeiro se vê, como no caso geral da música européia, uma tendência de relação direta entre a pulsação e figuras que, em geral, reforçam as subdivisões regulares e matemáticas do próprio pulso. Este é também o ponto de partida do estudo da rítmica, chamado de “divisão musical”. Construída numa norma de notação que é fruto dessa determinada cultura, se mostra adequada a ser escrita, lida e até mesmo composta nestes parâmetros. Com relação a contrametricidade, parece inevitável que já se está partindo de um sistema como referência, para depois afirmá-lo como o oposto. De certo modo, não se conta com outra perspectiva, pois o próprio paradigma de se empreender uma análise é fruto de uma visão ocidental de mundo. Esse universo rítmico foi constituído sem levar em consideração a escrita. Parece inusitado considera-lo contra o metro, se ele nem mesmo o considerava. O que se busca, então, com o intuito de atenuar esse olhar, é engendrar neste ponto a visão que Muniz Sodré tem do ritmo, para que se amplie o quadro de referências, adicionando, assim, uma perspectiva respeitadora do lugar que o ritmo ocupa na tradição afro-brasileira. Não se trata de fazer apologia da contribuição negra. Entretanto não se pode ver o assunto com uma ótica que se supõe isenta, mas está embotada pelas teias institucionais. O privilégio detido pela problemática da repressão no terreno das pesquisas não surpreende: as instituições científicas pertencem ao sistema que estudam; examinando-o, elas se conformam ao gênero bem conhecido da história da família (uma ideologia crítica nada ao seu funcionamento, pois a crítica cria uma aparência de distancia no seio da pertença) (De Certeau, 1995, p. 105).

Os exemplos musicais escritos e gravados são ferramentas que auxiliam na compreensão deste ponto. Comparações detalhadas do ritmo em seu estado percussivo e sem autor com sua presença em composições consideradas do gênero, mas em contextos já europeizados por seus usos formais e harmônicos são de grande valia. O intuito e mostrar a extensa gama de similitudes em nível rítmico destas formas musicais.

18 E a ênfase é exatamente no anexo das gravações (anexo V). Em vários momentos, ao ler determinado trecho, vai se propor a audição de uma das faixas do CD que acompanha esse trabalho. Vivas na oralidade, as estruturas rítmicas se preservam nas gravações, que não as tornam divisões musicais matemáticas. Já as partituras servem como exemplos analíticos e visuais, mas no que tange ao ritmo, são apenas caricatas.

E)Debate sobre a produção historiográfica Os diálogos e atravessamentos, que geram conjuntos de combinações entre elementos musicais distintos, são processos de trampolinagem, de inexpugnáveis caminhos de apropriação e expropriação da cultura dominante pela dominada. Veja o conceito: Palavra que um jogo de palavras associa à acrobacia do saltimbanco e a sua arte de saltar no trampolim, e como trapaçaria, astúcia e esperteza no modo de utilizar ou de driblar os termos dos contratos sociais (DE CERTEAU, 1990, p.79).

O “lugar” que essas diferentes expressões musicais ocupam em culturas diversas, faz com que seus processos de manutenção, adaptação e transmissão se dêem realmente em “mundos” diferentes. Nesse sentido, a música ocupa uma posição privilegiada de arte com um alto grau de permeabilidade dada sua polissemia, então permite resultados impares, alguns dos quais são discutidos. Níveis de discussão paralelos serão propostos: caso esta se dê ora num parâmetro mais técnico em relação ao texto musical, ora transite numa esfera que se relaciona às questões da significação de uma expressão artística dentro de determinada cultura. Ou ainda, que a discussão entre em um espectro ideológico. Hermano Vianna afirma em seu “O Mistério do Samba” (1995) que a síntese do samba foi “o coroamento de uma tradição secular de contatos entre vários grupos sociais na tentativa de inventar a identidade e a cultura popular brasileiras” (VIANNA, 1995, p. 34). Necessário certo discernimento nessa colocação, pois aqueles que realizaram esta síntese (partindo-se novamente do pressuposto de que o estilo é uma síntese) foram os próprios músicos, e estes não tinham participação direta no processo de criação e consagração de ideologias. Se os resultados destes trabalhos foram utilizados para tais fins, isso não é mais uma questão musical.

19 Na observação dos contatos entre elite brasileira e música popular, a atenção de Vianna se volta aos processos de oficialização do samba como retrato de uma cultura mestiça. Musicalmente vislumbra-se, através da Casa da Tia Ciata15, que as sínteses da música popular se dão na cozinha, e não na sala. Sua maior visibilidade interessa mais a questões mercadológicas do que propriamente a criação artística. Ou seja, aqueles que participaram deste processo sócio cultural quase artesanal de criação de um estilo musical, fruto de sínteses e diálogos entre diferentes culturas, não necessariamente têm qualquer relação com os aparatos ideológicos que ora visavam coibir, ora alçar o samba à posição de música representativa do país. É preciso considerar que era imprescindível, para a realização deste fenômeno, que uma das escutas do músico popular estivesse ligada ao terreiro. Embora de difícil aceitação pela sociedade da época, dada a proximidade ao “ritual religioso popular”

16

de caráter afro-brasileiro, escutá-lo era imprescindível para que

as soluções rítmicas fizessem parte dos inúmeros formatos sob os quais o samba se dá hoje. Nesse aspecto, a tendência bibliográfica é de não se privilegiar o músico popular, nem seu contato com manifestações de origem étnica. O terreiro era o “lugar” onde se realizava, preservava e desenvolvia o ritmo em seu estado mais “primordial”. Para que essa miscigenação com a canção tonal e com a letra 17 fosse possível, o músico era quem atravessava os biombos. Adotando aqui o conceito de “mediadores culturais” (id. Ibid., p. 41) numa perspectiva musical, e não mercadológica ou ideológica, os músicos devem ser situados no biombo cozinha/terreiro, e não no biombo sala/cozinha. Mas a síncopa brasileira teve maior influência institucional no samba, possivelmente devido a maior proximidade dessa forma musical com os terreiros - nome dado às comunidades litúrgico-culturais que agrupam os descendentes de africanos no Brasil (SODRÉ, 1998, p.26).

Quando Vianna se refere às questões relativas aos processos de urbanização, embora isto ajude a traçar um panorama da dinâmica desses biombos e contatos, novamente surge uma impessoalidade que furta das mãos dos músicos sua função sócio-artístico-cultural. Num parêntese, afirma que muitas famílias 15

Vide capítulo 1 Terminologia proposta por Wisnik. 17 No sentido moderno de autoria, já que no samba antigo havia o canto, mas esse muito mais improvisado. 16

20 baianas se mudaram da Bahia para o Rio de Janeiro após a abolição, “trazendo em sua bagagem o candomblé e vários ritmos do samba, que aqui foram transformados no samba carioca”. Quem os transformou, Pereira Passos, as Tias Baianas, ou os próprios músicos que estavam ali, técnicos em sua aérea, e oportunamente diante de manifestações musicais tão distintas? A qualidade de seu trabalho é se manter desapegado num tema que conjuga tantas paixões, as questões relativas a “pureza” do samba. Este olhar antropológico de Vianna ajuda a neutralizar uma discussão tão inócua quanto essa. Sabe-se que não existe pureza, nem gênese. Uma rede complexa de trocas, intercâmbios, diálogos e atravessamentos acontecem continuamente no âmbito da música, como também da cultura em geral, não permite que se afirme nenhuma manifestação como “pura”. Entretanto, existe algo que não pode ser chamado de “puro”, talvez possa ser visto como “preciso”. Ainda hoje, ao se escutar um grupo de música instrumental moderna, transformando tudo que se refere a alturas em apenas ritmo (por exemplo, o som do piano em atabaque, e assim se ouvisse só os ataques, e não os acordes), o resultado é um batuque, um samba com um rigor surpreendente na presença de figuras rítmicas muito bem caracterizadas. Nota-se até algumas daquelas que Mukuna (2000) entende como trazidas da África. E, mais importante ainda do que a exatidão ou não destas figuras, é o vigor da presença das cinco características básicas que o estilo herdou e consagrou e são aprofundadas

no

capítulo

2:

ciclicidade,

contrametricidade,

simultaneidade,

acentuação e ginga . Já Sandroni, como músico, pode abraçar simultaneamente diferentes abordagens do tema. Quando coloca que a batida do violão não é “um simples fundo neutro sobre o qual a canção viria passear com indiferença” (2001, p.14), parte de uma suspeita legítima. Também algumas das premissas musicais com as quais abre seu livro estão de acordo algumas das ferramentas teórico-metodológicas que se utilizam no capítulo dois e três. É importante mencionar alguns parâmetros adotados em comum, bem como as necessárias ressalvas. Um conceito importante que se adotará aqui, em comum com Sandroni, será o de contrametricidade. Entretanto, tal idéia só pode ser concebida caso se aceite que há uma “metricidade” vigente. E, musicalmente falando, não existe uma

21 metricidade padrão, para que se defina a outra pela negação. Notar-se é que, em linguagens musicais diversas, existem métricas mais ou menos constantes ou usuais. O próprio autor nos lembra que: Na África Negra, ao contrário, elas (as figuras musicais contramétricas, que estarão detalhadas no capítulo 3) pertencem ao senso comum musical, freqüentando inclusive o repertório rítmico das crianças (Id. Ibid., p.25).

Parece também que, na tentativa de enumerar os gêneros musicais, muitos autores despedem energia ao tentar definí-los, com a preocupação de serem precisos. No entanto Sandroni acerta quando coloca: “nos informavam basicamente que se tratava de música ‘sincopada18’, ‘tipicamente brasileira e propícia aos requebrados mestiços” (Id. Ibid., p. 31). Ou seja, ao invés de se preocupar em nomear uma infinidade de categorias rítmicas, tais como maxixe, cateretê, habanera, etc, o autor centra-se no que musicalmente deve-se destacar: trata-se de música com características contramétricas. Ligado à inusitada forma pela qual os africanos trouxeram sua bagagem cultural, Sandroni, referindo-se à escolha do próprio título de sua obra que foi buscar em Noel Rosa, “Feitiço Decente” 19 acha uma frase primorosa, na qual coloca que “A doce vingança dos negros libertos é produzir uma música que escraviza quem a escuta: decente, porém feitiço” (Id. Ibid., p.171). Novamente isso corrobora a idéia do poder que esta “trama” rítmica exerce sobre seus ouvintes. E como colocado acima, enquanto ritmo do terreiro, esse não chegaria jamais a ser “decente”. Assim, joga com canções, passaporte para que este “feitiço” continue sendo “ministrado”, ou seja, tornado aceitável e, assim, pronto para os atravessamentos subseqüentes. Sem trafegar por assuntos de ordem teológica ou mágica, não deixa de ser interessante colocar a pergunta de como uma música que nasce e/ou sobrevive no terreiro, dialoga com canções, as influencia e chega até a sala. Se isto soa forçado, pode-se observar que, ainda que existam inúmeros sambas e seus diversos autores, há sempre um elo forte entre todos eles, o fato de que todos contêm o samba (sem autor) em seus principais fatores constituintes. Quando Sandroni coloca que os cantores que não são “letrados” em música “dividem” de maneira mais contramétrica20, percebe-se a natureza sincopada da

18

O conceito de sincopa empregado aqui está colocado no capitulo 2 e aprofundado no 3. Pequeno trecho da composição de Vadico e Noel Rosa intitulada “Feitiço da Vila”. 20 Vide depoimento de Francisco Alves in Sandroni, 2001, p.212/213. 19

22 melodia, característica clara do samba, bem como a oralidade como forma eficaz de aprendizagem. O ritmo (ou ritmos), como veremos no capítulo adiante, é absolutamente similar, seja num batuque ou na subdivisão rítmica do acompanhamento harmônico no disco de Tom Jobim. Tudo isso ratifica a idéia de que as estruturas rítmicas do samba chegam por inúmeras vias à “escuta” do brasileiro. Vale dizer que essas similitudes fazem com que aquele que pensa estar ouvindo uma canção, está, de fato, escutando o samba do terreiro, ainda que supostamente como pano de fundo. No sentido geral de seu trabalho, vê-se apenas um equívoco, exatamente no que ele coloca como hipótese central, o fato de que o samba mudou seu paradigma de uma figuração rítmica menos sincopada (exemplos no capítulo 3), para uma mais contramétrica, nas primeiras décadas do século passado. Ora, o fato é que a legitimação social ou comercial deste gênero não tem relação com o fato de que ele é o que sempre foi. Colocado de outra forma; ainda que o samba, com estas características mais contramétricas não tivesse alcançado a posição que ocupa no cenário nacional, ou seja, se não tivesse encontrado e passaporte para transpor certos biombos sociais, ele ainda continuaria existindo dentro de nossa cultura. Mesmo que sua existência fosse de pouca relevância cultural no sentido de seu alcance, ainda estaria lá. Não interessa, desconsiderando questões de mercado, se houve uma mudança no que é aceito como sendo ou não o “legítimo samba”. O que ele chama de samba antigo continua vivo e sendo executado por inúmeros músicos em diversos trabalhos, alguns desse explicitados em gravações que seguem anexas a esse trabalho. Talvez para Vianna, como antropólogo, seja importante o que se consagrou ou não como o legítimo samba. Mas para o músico Sandroni, que nos lembra que o mais importante não é a nomenclatura , e sim características contramétricas, não deve importar o uso que se fez do samba. Essa homogeneização não interessa ao músico, que deve sim, notar a presença da diversidade, em termos de possibilidades rítmicas hoje. Parece patente

que não houve uma “gênese” na Estácio. Essas figuras

rítmicas não foram inventadas ali, como é possível perceber na leitura de Mukuna (2000). Eles vinham trafegando pelos anais da história, assim com ainda hoje fazem.

23 Assim, não se pode confundir difusão ou homogeneização, com criação ou ainda com o nascimento destas figuras rítmicas. O rádio e as necessidades de fixação da idéia de autoria por motivos econômicos cristalizaram algumas das possíveis figurações do samba como sendo “o” samba. Além disso, um dos argumentos principais que utiliza se baseia na idéia de que a time line do samba “moderno” é mais contramétrica que o samba “antigo” Essa discussão é feita de maneira detalhada no capítulo 3. E, com se pode notar ali, não se pode afirmar isso. Em relação a Mukuna, como já citado, sempre é útil reforçar a idéia de que existe uma inegável contribuição da cultura africana à música popular, “os ciclos rítmicos” (MUKUNA, 2000, p. 27). Como se observará no capítulo dois, existe uma certa fragilidade, ao menos no que tange ao olhar do músico, em se resumir um ritmo a apenas uma linha rítmica. Entretanto, para efeito de discussão, momentaneamente vamos partir dessa idéia. Já que seu trabalho – Contribuição Bantu na Música Popular Brasileira (2000) - tenta exatamente verificar a relação entre aquelas figuras na África, e a vinda delas para o Brasil, a primeira necessidade seria a de delimitar um espaço geográfico no continente negro para que se pudesse então, num segundo momento, compará-las com as presentes aqui. Suas observações relatam que, durante esse transplante cultural, preservouse tanto a estrutura organológica de alguns instrumentos, como também a ciclicidade de padrões rítmicos. Isso, por si só, independentemente da exatidão (ou tradução) dessas figuras, já confirma a influência de uma abordagem musical que se dá por paradigmas diversos do que se compreende por “arte elaborada” em termos eurocêntricos. Pode-se então, através de Mukuna, reafirmar novamente cinco pilares fundamentais

da

música

afro-brasileira:

a

ciclicidade,

contrametricidade,

simultaneidade, acentuação e ginga. Outro ponto importante a se notar, não só no que se refere aos ritmos, como também às festas onde esses eram executados, é que, na literatura em geral dá-se excessiva ênfase a uma idéia de lascívia e sexualidade exacerbada que envolvia tais eventos. Essa leitura ocidental, que via como dionisíaca o espírito dessas manifestações, tem caráter preconceituoso. Inusitadamente, existe um aspecto interessante nesse pré-julgamento, pois ao menos se nota que a realização dessas festas, onde o ritmo sempre estava

24 presente, realmente tinha o poder de incomodar aqueles que não compreendiam o que se passava. Se Mario de Andrade teve de se afastar para “pôr em ordem o respiro”, o efeito entre portugueses e viajantes que relataram essas cerimônias devia ser contundente. Mas a leitura de Mukuna pode nos esclarecer alguns pormenores desta questão. Assim, ele lembra que muitas destas cerimônias, na África, tinham uma função iniciática em termos de educação sexual e em outros casos, de preparação para o casamento (Id. Ibid., p.92). Isso muda certas apressadas perspectivas que se supõem analíticas, quando são apenas fruto de ideologia preconceituosa ou mesmo de interesses econômicos. Conflito moral para o grupo social dominante católico e capitalista, que de um lado via sexo como degradação e de outro,

fomentava a

procriação em cativeiro, enquanto essa lhe pudesse gerar dividendos. Talvez o ponto mais difícil de lidar, já que não é proposta deste estudo um aprofundamento no qual circule a idéia “religiosidade”, é exatamente a busca do autor em traçar o que chama de “obliteração (sacrifício) dos valores étnicos” (Id. Ibid., p.29). Nesse contexto, as questões se referem ao lugar cerimonial que essas células rítmicas ocupavam na África em contrapartida a seu papel no Brasil hoje. Em sua visão, houve uma migração do “sagrado” em direção ao “profano”. Ou seja, estas figuras tinham um caráter “invocacional” dentro de um contexto operatório “funcional” da tradição africana, e hoje, segundo Mukuna, ocupariam o espaço profano, de uma música popular com dotes “vulgarizados”. Para que se aborde com mais propriedade essa discussão, duas colocações parecem pertinentes.

Juliana Elbein dos Santos

21

, em sua tese de doutorado,

coloca que o isolamento em que se davam no Brasil as cerimônias de origem africana, tende a ser justificado sempre pela perseguição, por parte das autoridades, que esses rituais sofriam. Santos então nos lembra que muitas vezes o que se dava era o contrário, não se aceitava a presença de brancos. Isso redimensiona a idéia de que essa fosse uma cultura constituída apenas com base na “resistência”. Em muitos casos, não eram oprimidos tentando salvar suas tradições, e sim figuras importantes dentro da hierarquia africana que simplesmente não estavam interessadas em compartilhar suas vidas religiosas com a cultura dominante.

21

Tese de Doutorado em Etnologia na Universidade de Sorbonne: “Os Nagô e a Morte”, Editora Vozes, 1977.

25 Deve-se levar em conta ainda dois outros fatores: primeiro, a presença e continuidade significativa de uma expressão religiosa afro-brasileira, nas quais inclusive até hoje muitas figuras musicais (toques) são “interditas”, ou seja, não podem nem sequer ser executadas num contexto profano. Segundo, é curioso também saber que, muito embora exista um acordo em torno da idéia de que a palavra samba se origine em "semba”, que quer dizer umbigada, uma forma de dança africana que pode ter originado essa dança/música, Câmara Cascudo nos lembra que samba também é um verbo Conguês que significa, entre outras coisas, rezar (CASCUDO, 1999, p.137). O fato de não parecer “científico” no momento engendrar uma discussão acerca do que seria uma figura musical de caráter “invocacional”, não impede que se coloque a questão: se essas figuras tinham algum “poder de invocação”, por que esse se perderia no movimento de levar uma figura rítmica de um contexto a outro? Recolocando: aos olhos (ouvidos) de um auditor, se aceito o fato de que um padrão rítmico cíclico produz algum efeito em seus ouvintes, não parece claro por que ele perderia sua força ao ser aplicado em outro contexto, agora mais profano. Nesta direção, a discussão ganha uma tonalidade quase inusitada: “o” samba trampolina, joga com a canção para se tornar “um” ou “outro” samba. Com essa máscara de credibilidade, pode adentrar no universo da cultura oficial, ser gravado e reproduzido no rádio. Com isso, essas figuras e ciclos de força “invocadora” passam a ser ouvidas e, supostamente, exercer seus efeitos nos quatro cantos do país? Dentro desse viés, Muniz Sodré é um autor que pode auxiliar na resignificação dessa temática. Além de sua vida acadêmica, Sodré ocupa uma posição na própria hierarquia religiosa afro-brasileira (Oba Xangô nilê Opô Afonjá), o que faz com que desloque seu ponto de vista para mais próximo do que se pretende aqui, no sentido de que não se trata apenas de um intelectual que fala “de fora”, mas alguém com autoridade para falar também desde “dentro” da cultura negra. Apesar de suas características mestiças (misto de influências africanas e européias), essa música fermentava-se realmente no seio da população negra, especialmente depois da Abolição, quando os negros passaram a buscar novos modos de comunicação adaptáveis a um quadro urbano hostil (SODRÉ, 1998, p. 13).

26 Ao se referir à casa da Tia Ciata, que será discutida no capítulo um, propõe um modelo que utilizado por inúmeros autores, incluindo os já discutidos, e ainda Wisnik, Roberto Moura e Tinhorão. A economia semiótica da casa, isto é, suas disposições e táticas de funcionamento, faziam dela um campo dinâmico de re-elaboração de elementos da tradição cultural africana, gerador de significações capazes de dar forma a um novo modelo de penetração urbana para os contingentes negros. (Id. Ibid., p. 15).

Embora considerado um baluarte da “cultura de resistência”, o que vai interessar aqui é sua contribuição para uma visão diferenciada das questões rítmicas dentro da cultura negra. Para o ritmo propõe então: O ritmo restitui a dinâmica do acontecimento mítico, reconfirmando os aspectos de criação e harmonia do tempo (Id. Ibid., p. 19).

Ainda que não se pretenda discutir aqui questões “cosmológicas” seria interessante lembrar, com Mukuna, do poder invocatório das figuras e ciclos. E recolocar algumas questões: Extraído do contexto, perderiam estas figuras sua potência, seu poder, seus efeitos? Como todo ritmo já é uma síntese (de tempos), o ritmo negro é uma síntese de sínteses (sonoras), que atesta a integração do elemento humano na temporalidade mítica.(Id. Ibid., p. 21).

Mesmo não utilizando o conceito de contrametricidade, Sodré caracteriza esses deslocamentos, essa ênfase no tempo mais fraco, como um processo de utilização ostensiva de síncopas, o que é apenas uma maneira diferente de colocar a mesma questão. Assim, no capítulo 2, pode-se notar que a própria noção de tempo forte é questionada. Melhor interpretar então a origem do samba no transplante, no sentido empregado por Darcy Ribeiro (1995), de toda uma cultura musical que, mesmo contendo suas próprias heterogeneidades, tem, como nos mostra Mukuna, traços gerais em comum com a região da África de onde se originou o maior contingente de negros trazidos ao Brasil, o Reino do Congo (2000, p. 38). É deste sistema de que fala a síncopa do samba. A insistência da síncopa, sua natureza iterativa constituem o índice de uma diferença – entre dois modos de significar musicalmente o tempo, entre a constância da divisão rítmica africana e a necessária mobilidade para acolher as variadas influências brancas. Entre o tempo fraco e o forte, irrompe a mobilização do corpo, mas também o apelo a uma volta impossível, ao que de essencial se perdeu com a diáspora negra (SODRÉ, p. 67).

27 Por esses caminhos e indicações é que se pretende empreender uma análise musical detalhada das estruturas rítmicas do samba , e, ao mesmo tempo, fortalecer a consciência de que não é possível compreender essa herança musical sem que se reveja o papel que ocupa (ou ocupava) na cultura que a geriu. Assim o samba emprega essas sofisticadas táticas, através da oralidade, e se re-significa. Avesso a normatizações, categorizações e verbalizações, “aí vai caçar”. Fugidio em suas maneiras de jogar, perpassa, em seus mil disfarces, todos os âmbitos e camadas da sociedade. E em todas as suas formas, das mais primordiais as mais sofisticadas, consegue estar onde ninguém espera. “É astúcia”.

F) Corpus O cerne do núcleo documental desse trabalho é o anexo de gravações. Existe uma demanda geral de partituras em trabalhos ligados a música. Talvez isso dê aparentemente mais credibilidade acadêmica. Mas a única forma de demonstrar inúmeros aspectos aqui salientados é via audição. Se a partitura categoriza e cristaliza, a gravação, ao registrar a manifestação sonora no eixo do tempo de maneira isenta, deixa-se transpassar pela ginga. Mostras seus detalhes mais sutis através dos interstícios que as possibilidades da execução deixam entrever. Entretanto, para efeitos ilustrativos e analíticos, tanto de caráter visual quanto musical, algumas partituras aparecem anexadas. Citadas durante o texto, têm sua utilidade como fonte de consulta. Anexo I. A primeira partitura é um trecho do arranjo de Rui Carvalho para a música “Upa Neguinho”, de Edu Lobo e G. Guarnieri. Anexo II. A segunda partitura é a transcrição de uma faixa do CD “Batucada Fantástica”, intitulada Samba Quente. Faixa 3 do anexo V. Anexo III. A terceira partitura, é a transcrição da faixa “Tamborins” do mesmo CD, também faixa 5 do anexo V. Anexo IV. A quarta partitura é da música “Atravessou”, de Paulinho da Viola. Faixa 7 do anexo V

28 Anexo V. O anexo cinco é um “compact disc” que contém 9 faixas. Algumas delas são acompanhadas da partitura completa, e outras de apenas trechos que se encontram no decorrer do texto. Essa diferenciação baseia-se na necessidade ou não de dados para a ilustração, conforme o caso. No final desse trabalho encontrase uma ficha técnica detalhada de cada uma das faixas desse anexo. Em segundo, é necessário empreender uma busca no intuito de determinar de quais etnias se herdou cada um desses elementos. Qual cultura, e mais tarde, qual camada social, se destaca no cultivo e desenvolvimento do samba? É uma jornada um tanto complexa. Pode-se atribuir um traço musical a uma etnia? Pode-se separar esses traços num tipo de música? Em terceiro lugar, uma vez sendo a influência portuguesa –e por extensão, européia – supostamente a mais vasta, tudo o que se refere a uma abordagem analítica de um dado conteúdo musical, está por demais comprometida com os paradigmas dessas culturas. Vale dizer: o contexto onde se pratica a análise não é isento. Suas regras e valores têm também pertinência social, cultural, e até mesmo étnica. Uma sociedade seria composta de certas práticas exorbitadas, organizadoras de suas instituições normativas, e de outras práticas, semnúmero, que ficaram como ‘menores’, sempre no entanto presentes, embora não organizadoras de um discurso e conservando as primícias ou restos de hipóteses (institucionais, científicas), diferentes para esta sociedade ou para outras (DE CERTEAU, 1994, p.115).

Numa determinada abordagem, o ritmo é o elemento que mais se destaca no samba. Primeiro, as estruturas rítmicas são o denominador comum, o que muda são as roupagens harmônicas, melódicas e formais. Existe também a suspeita de que essas estruturas tenham origens africanas. Caso essas perguntas tenham respostas afirmativas, está justificado que se busque uma forma diferenciada de análise. É sempre tarefa inexata compreender a expressão artística sem examiná-la através de seus próprios parâmetros. Não caberia, por exemplo, determinar a qualidade de uma batucada por sua riqueza harmônica. Em contrapartida, o fato de uma grande obra da “música de concerto” ter uma série de características complexas, não significa necessariamente que exista nela sofisticação rítmica, ao menos nos moldes abordados aqui. Por isso, se faz necessário pontuar alguns tópicos dos diálogos musicais, culturais e seus atravessamentos.

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Capítulo 1

O Samba na Cultura O Brasil possui uma conformação sócio-cultural impar. Nascido do encontro de diferentes culturas, suas expressões artísticas são o fruto dessa singularidade tão plural. Índios, negros e portugueses, os agentes principais, se amalgamaram de tal forma que muito de nossas manifestações culturais têm um caráter híbrido, sincrético, sintético. Cabe lembrar mais uma vez aqui do que é feita a música brasileira. Embora chegada no povo a uma expressão original e étnica, ela provém de fontes estranhas: a ameríndia em porcentagem pequena; a africana em porcentagem bem maior; a portuguesa em porcentagem vasta (ANDRADE, 1962, p.25).

Sabe-se que a posição de colonizadores dos portugueses fez com que seus valores, em várias áreas, ocupassem papel central na constituição da chamada “cultura brasileira”. Um exemplo disso é a própria língua oficial do país. Entretanto, quando o assunto é música popular, essa posição de maior influência lusa pode e deve ser revista. A música é uma expressão privilegiada para ser veículo que trafega entre esferas sócio culturais diversas. Existem mil maneiras de se combinar melodia, harmonia e ritmo. Além disso, cada um desses elementos pode ter traços atribuídos a diferentes culturas e etnias. Em algumas dessas manifestações musicais não se pode afirmar, como fez Mario de Andrade, que a influência portuguesa é maior do que a africana. Esse é o caso do samba, em suas inúmeras formas e de características híbridas. Para discutir esse assunto, existem três problemas fundamentais. Em primeiro lugar, se o objeto escolhido é “um” samba, cabe buscar discernir o que mais o caracteriza. São seus contornos melódicos e/ou harmônicos, ou sua estrutura rítmica? Ou seja, é possível definir numa música que congrega influências tão diferentes, qual desses elementos constituintes é o que se sobressai?

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1.1 - As culturas e a história Como se dão as inter-relações entre os aspectos históricos, em especial a contribuição dos negros, e a presença e formação dos ritmos? Para avaliar essas questões, pretende-se trabalhar primeiro com uma concepção de história. Sem a pretensão de recontá-la, o que se quer mostrar são algumas das mazelas as quais o negro foi submetido. Ao observar o quão restrito era seu espaço de ação, pode-se compreender melhor por que o ritmo acabou se tornando um dos principais legados da África à música brasileira. Caçados em sua terra natal, aprisionados, transportados em péssimas condições, vendidos e forçados a trabalhar, não puderam portar junto a si nada. A única coisa que trouxeram foram seus corpos. Com eles, seus ritmos e gestos. Pretende-se traçar este quadro de forma não necessariamente linear, fotografando assim flashes históricos concomitantes de aceitação e apropriação, negação e perseguição, astúcias e trampolinagens. Mais um agravante nessa tarefa, com relação a opressores e oprimidos: são sempre os opressores que contam a história. Como antídoto à armadilha de repetir aqui esse erro é necessário trabalhar com autores que transitem por esta história com um olhar diferenciado, mais “de dentro”. Existe uma bibliografia escrita por pensadores que podem versar sobre a cultura africana e a afro-brasileira com propriedade. Assim o africano Kazadi Wa Mukuna, contribui para que se tenha uma idéia do “lugar” do ritmo na cultura africana. Ao se abordar formas de expressão de uma dada comunidade, é preciso situá-la em seu próprio contexto, até onde isso for possível. Outro autor, Muniz Sodré, é a referência para que se vislumbre o paradeiro da cultura africana no Brasil, para que se perceba assim o “lugar” do ritmo na cultura afro brasileira. A cultura estabelecida não consegue dar conta dos mil interstícios por onde caminha o excluído, o diferente, o heterogêneo, nem do uso que os oprimidos fazem da “cultura de elite”. Até mesmo quando o discurso é uma ideologia crítica, isso apenas cria uma aparente distância, mas no âmago do próprio sistema.

31 Mas essa elucidação do aparelho por si mesmo tem como inconveniente não ver as práticas que lhe são heterogêneas e que reprime ou acredita reprimir (DE CERTEAU, 1994, p. 104).

Uma interpolação entre diferentes tipos de “cientistas sociais” se faz necessária na medida em que mesmo os historiadores brasileiros mais “clássicos” partem de um olhar “de fora”, ainda que alguns deles aspirem o contrário. Tentar compreender o mundo assim é similar ao erro de analisar o material sonoro afrobrasileiro com uma bagagem européia, letrada. Isso seria contradizer a natureza da pesquisa em questão. A tentativa de compreensão das similitudes e diferenças entre transmissão oral e cultura letrada é uma das bases desse trabalho. Não devem ser vistas como formas antagônicas, mas como processos de preservação de conhecimentos com características e conseqüências históricas e musicais muito diferentes. Lembrando novamente que a detentora dos meios de análise é exatamente a cultura letrada, note-se que existem vários equívocos nas incursões analíticas a formas musicais que provém de origens estranhas as suas. Não é verdade que o estudo da música européia não se configura como um estudo etnomusicológico? O que justifica então um estudo musical ter uma abordagem étnica, que não pertença à cultura onde foi concebido? Por que o estudo da música germânica, por exemplo, não é visto como “étnico”? O exemplo parece apropriado na medida em que uma das maiores mazelas da humanidade, o antisemitismo e suas conseqüências, baseou-se exatamente em pressupostos étnicos. Ao mesmo tempo, há certo reducionismo quando se intenta analisar a cultura das etnias ou camadas excluídas. Vide, por exemplo, o que se supõe como características colaterais das manifestações rítmicas dos negros no país. As descrições das manifestações musicais negras envolvem adjetivos pejorativos. Esse é mais um biombo, um mito, erguido com a função de distanciar tais expressões musicais do “decoro” necessário as “formas cultas” de arte. Num processo tardio, apenas há alguns anos começou-se a levar a sério, em nível acadêmico, pesquisas sobre a música popular brasileira no que se refere especificamente ao ritmo, a maior contribuição da cultura africana. Embora existam bons trabalhos, esses, em sua maioria, não trazem informações técnicas sobre música.

32 Especialmente no que foi escrito sobre o samba, sublinha-se sobremaneira informações sobre personalidades e seus encontros, letras, autores e cantores. No entanto, o fenômeno rítmico musical é colocado em último plano. É pretensão desse trabalho inverter tal abordagem, pois na visão aqui colocada o ritmo é o samba. Canções, letras, autores, e personalidades são componentes muitas vezes mais históricos, poéticos ou mercadológicos do que musicais. Como representante dessa primeira e mais usual visão, o recém publicado trabalho de Hermano Vianna, intitulado “O Mistério do Samba” (1995) usa como ponto de partida o encontro entre Gilberto Freyre e Prudente de Moraes Neto com Pixinguinha e Donga, entre outros. Esse tipo de bibliografia, embora cite gravações, não privilegia o enfoque do que é, de onde veio, e como se preservou o que nos interessa aqui: uma proposta de se analisar, com ferramentas diferenciadas, o samba enquanto conjunto de estruturas rítmicas. Inúmeros autores consideram que o primeiro samba gravado (Pelo telefone, Donga, 1917) marca o nascimento do gênero. Todavia, isso pode causar algumas confusões. A data do primeiro registro nada tem a ver com o início dessa forma musical. Independente de qual possa ser a data exata em que essa forma de expressão popular tenha sido criada, podemos seguramente afirmar que o samba já estava em voga por volta de 15 de novembro de 1878 (...) (MUKUNA, 2000, p. 98).

O fato é que não existe nem momento exato nem gênese, e sim inúmeros processos que, ritmicamente falando, são com certeza anteriores à data proposta por Mukuna. Daí a expressão “já estava em voga”. Do outro lado, toda vez que nos defrontamos com livros dirigidos a músicos, a tendência é que se enfatize nossa cultura musical letrada, ou seja, européia. Um samba tem uma construção harmônica e melódica22 , baseado na tradição tonal, e uma esfera rítmica baseada nas heranças africanas. Isso é aceito desde o início do século, a começar por Mario de Andrade. E realmente pode ser observado musicalmente, dada a natureza desses elementos. Entretanto, discussões mais técnicas sobre a questão da herança africana sempre estiveram relegados, assim como de seus próprios herdeiros, ao segundo plano.

22

O ritmo de melodia é um reflexo do gênero da peça. Aqui me refiro as relações de alturas da melodia.

33 Quem foi o principal interlocutor nesses diálogos? Possivelmente o músico popular. Como desempenhava tais papéis? Não precisava de teorias modernistas como queria Mario de Andrade com suas bulas composicionais. Porque o saudável descompromisso da música popular faz com que o músico seja um antropófago de suas próprias escutas. Se desde o primeiro português que chegou a terra do sol poente já havia escutas européias e africanas, é por que nunca se levou a sério tratar de maneira analítica a segunda ? Um país mestiço, uma cultura mestiça, e uma abordagem analítica unilateral. Sabe-se que tratar a mestiçagem como solução para o país foi um conceito forjado sob a ótica de concílio, de brado a nossa democracia racial, muitas vezes apenas para amansar os excluídos. Mas isso não quer dizer que, musicalmente falando, não se possa chamar o samba de mestiço, ou ao menos de expressão que sempre dialogou e ainda o faz, com estruturas musicais diversificadas. Aliás, a artes em geral, e a música em particular, têm uma capacidade impar de sintetizar influências, de estabelecer diálogos, de engendrar atravessamentos. Entretanto, no universo acadêmico, muitas vezes se exclui a possibilidade de tratar com seriedade o ritmo enquanto fenômeno musical. Uma outra forma de exclusão vem da idéia de folclore, por se tratar do estudo do “outro”. Na África, culturas são assunto de antropólogos, que durante muito tempo viram tais civilizações como “primitivas”. Hoje se sabe que isso é um equívoco. Por que, ao se tornarem os principais excluídos na sociedade brasileira, suas contribuições culturais se tornam estudos de folclore ou étnicos? Importante atribuir a aqueles que resistiram durante séculos a religiões impostas, perseguições, atrocidades, enfim, toda a sorte de dificuldades, a preservação de algo que simplesmente não podiam parar de carregar consigo: seus ritmos, um dos cernes de suas expressões culturais. Assim, no que tange a música, o trabalho se concentra no ritmo. E, no que se refere a abordagem, a ênfase recai apenas num aspecto essencial para que haja rigor: analisar uma expressão através de seu próprio viés, o que significa propor novas ferramentas de compreensão de um fenômeno musical construído originalmente em outro âmbito cultural.

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1.2. A África no Brasil Dante Moreira Leite, na conclusão de seu “O Caráter Nacional Brasileiro”, é enfático ao colocar que “o passado atua no presente e pode ser uma força determinante da ação, mas que isto só ocorre quando forças do passado continuam no presente” (1976, p. 75). Explica que não é possível delinear o caráter de um povo ao menos que se defina a camada social e os tons regionais. Ao aplicar essa leitura ao foco dessa pesquisa, pode-se formular algumas questões, a começar por: será que a situação dos negros hoje é tão diferente da vivenciada nos últimos quinhentos anos? Não foram todos eles submetidos a muitas situações comuns, o desterro, o transplante, a opressão, o jugo e, talvez mais potente, a pressão psicológica, uma das ferramentas fundamentais de controle para aqueles que tinham de manter sua posição de opressão e domínio. Não se pode, entretanto, emprestando de Leite alguns conceitos, tentar descrever o que seria “cultura africana” devido, no mínimo, a vastidão de culturas que coabitam aquele continente. É necessário traçar delimitações. Geograficamente, a costa atlântica sub-saariana, o que Mukuna (2000) denomina o “Reino do Congo”. Importante também verificar o grau de intensidade das relações entre o Brasil e a África. Luiz da Câmara Cascudo afirma que, em meados do século XIX, o volume de comércio Brasil/Angola era “três a quatro vezes superior ao comércio com a metrópole” (CASCUDO, 1999, p. 96). Nessa linha, segundo Alencastro, considera-se muito o comércio PortugalBrasil e Portugal-África, menosprezando-se, assim, a intensidade e volume de relações comerciais diretas Brasil-África, em especial, Angola/Salvador e Angola/Rio de Janeiro (Alencastro, 2000). Vale dizer que houve uma relação mais intensa do que se supõe usualmente. E, é claro, isso tem inúmeras significações culturais. O problema que se nos coloca, em primeiro lugar, é o de compreender como tantos traços culturais africanos puderam resistir ao rolo compressor do regime servil (BASTIDE, 1967, p. 95).

É então possível tecer considerações entre o que se entende como “cultura brasileira” e seu viés de mundo europeizado (latino), confrontando isso com o quanto

35 se introduziu de “traços” da cultura negra em nosso país, mais especificamente na região Sudeste? Num processo civilizatório tem-se até certo ponto uma visão clara das influências mútuas entre dominadores e dominados. Mirando-se nas relações portugueses/indígenas, se é verdade que o povo mais evoluído tecnicamente influencia sobremaneira a cultura mais “primitiva”, também é verdade que o povo que se vê invadido é o melhor conhecedor do local e suas características, conhecimento muitas vezes indispensável à colonização. Ou seja, ainda que complexo e discutível, existem muitos estudos que trabalham no sentido de compreender relações entre dominador e o dominado. Em geral, reflexo direto de uma relação invasor/invadido. Entretanto, a análise desses processos se torna obscura, no sentido do considerável aumento de variáveis, quando transplantamos uma etnia, privando-a num só golpe de sua cultura original e do local onde esta se dava. A escravidão acarretou a transplantação de africanos de suas tribos, terras, tradições, etc, para um novo mundo com um conjunto totalmente diferente de estilos de vida, regido por uma nova rede de relações (MUKUNA, 2000, p.222).

Some-se a isso vários tipos de aval ideológico, como o determinismo biológico, usado para justificar este comércio. Se o negro era tratado como mercadoria, res vocale, imagine-se com que atenção era tratada sua cultura. No início das navegações, havia justificativas econômicas e teológicas, e o fortalecimento do positivismo veio a piorar a situação, já que havia argumentos supostamente objetivos que alicerçavam todo o tipo de atrocidades, por ação ou omissão. “Conseqüentemente, o clero professa no Brasil a doutrina difundida pela bula Romanus Pontifex (1455). Tolerava-se a escravidão na medida em ela facilitava a catequese. Arrancados das brenhas do paganismo, os negros teriam suas almas salvas no ambiente da metrópole e dos enclaves ultramarinos” (ALENCASTRO, 2000, p.159).

Com a pretensão de observar esse quadro de maneira um pouco mais panóptica, uma das questões que se pretende enfocar aqui vem à tona: que artifícios, nestas condições tão adversas, esta cultura usou para sua auto-

36 preservação, se é que isto aconteceu, e qual a medida da presença desta cultura hoje, se é que isto pode ser medido? Embora se configure como tarefa arriscada, pode-se começar contrapondo algumas diferenças básicas entre a cultura européia e africana, abordando tal tarefa através de conceitos um tanto genéricos, que entretanto se configuram como uma chance de visualização deste traços. O primeiro marco significativo do contraste entre a cultura européia e

a

africana é o fato de uma ser “letrada” e a outra “oral”. Pode-se argumentar que muitos dos portugueses que vieram ao país não eram letrados, muito pelo contrário, havia um grande contingente de degredados. Some-se a isso o número de pessoas não bem posicionadas socialmente, senão não estaria embarcando numa viagem que, ao menos ao início das navegações, era considerada uma verdadeira loucura. Mas o fato é que a maneira pela qual se construiu a cultura européia, desde a Grécia socrática, esteve intimamente ligada aos preceitos de uma cultura que tinha nos mapas, e na escrita alfabética, símbolos-ferramentas de seu desenvolvimento, de sua visão de mundo. Sendo assim, se escolhido como critério de desenvolvimento humano o desenvolvimento tecnológico e científico, as culturas africanas estariam “atrasadas“. Talvez seja exatamente esse o primeiro paradigma, que perdura até hoje, que relaciona de maneira quase direta complexidade, sofisticação, capacidade analítica, com as “letras”. Para Olson, “não passa de um equivoco identificar os meios de comunicação usados com o conhecimento por eles comunicado” (1994, p. 29). Recentemente se iniciou o reconhecimento de que não é fato, ao menos sob este aspecto, supor a superioridade de uma cultura em detrimento de outra. Pois, hoje em dia, ninguém acha que 'primitivos'- se é que existe alguém que ainda use este termo - são pragmatistas simplórios que andam tateando em busca do conforto em meio a uma névoa de supertições (GEERTZ, 2000, p.113).

Uma cultura era sedentária há milhares de anos, e a transplantada era em grande parte nômade. Ora, é fácil de se entender que, assim que o conhecimento dos princípios da agricultura é alcançado, uma cultura tende a fixar-se numa determinada área. Com o desenvolvimento dessa, constroem-se vilas, monumentos,

37 aquedutos, etc, portanto a “produção cultural” se torna cada vez mais materializada, mais sólida, mais ligada a um espaço fixo. Já numa organização que não necessariamente se fixa num determinado ponto do globo, é imprescindível uma cultura “portátil” como garantia de sua própria sobrevivência. Esta então passa a ser acumulada e transmitida usando como veículos contos, danças, rituais, e de especial interesse para esse trabalho, a música. 23

A tradição oral depende da rima e do ritmo , bem como dos feitos impressionantes de deuses e heróis, para poder ser lembrada e servir como fundamento de uma cultura (OLSON, 1994, p.53).

Existe mais um aspecto que, embora dificultasse a comunicação verbal, fomentou a comunicação musical. Uma das estratégias usuais dos mercadores negreiros para manter um grupo sob jugo era exatamente o de selecionar, para venda, escravos que não falassem a mesma língua. Na verdade, já havia essa preocupação desde o embarque em terras africanas. Ou seja, os negros foram privados até da possibilidade de se comunicar usando a própria língua, que porta em seu bojo além da possibilidade de comunicação, vários aspectos de seus modus vivendi/operandi. Não havia aparentemente nada que permitisse a preservação dessa cultura. Nem terra, nem língua, nem relações familiares, nem hierarquia24, já que não fazia a menor diferença ao traficante se uma peça era um príncipe ou um súdito. Em suma, numa visão precipitada, não existia aparentemente nada que pudesse ser um lastro, uma vinculação sócio-cultural entre aqueles que foram feitos escravos. Porém, observando-se a presença e a abrangência de determinadas estruturas rítmicas e suas possíveis origens africanas (Mukuna), aventa-se a seguinte

possibilidade:

um

dos

veículos

responsáveis

pela

manutenção,

preservação e transmissão da cultura africana no Brasil foi a música, em especial os ritmos. Ainda que se colocasse que fazem parte disso o sincretismo religioso, a 23

Não é essa a acepção de ritmo que deve ser considerada nas linhas gerais do trabalho. Sabe-se que o próprio Maracatu, enquanto cerimônia, é a coroação no Brasil daqueles que ocupavam posições de nobreza em sua terra natal. Existe uma polêmica acerca dessa idéia, já que se sabe que muitas vezes eram as próprias castas nobres africanas, ou de mais poder, que escravizavam a população para depois vendê-la. Além disso, Tinhorão mostra que uma das estratégias utilizadas para manter os cativos sobre controle era exatamente delegar mais poder, em forma inclusive de algum título de nobreza, para que esses controlassem seus iguais. 24

38 culinária, etc, estas áreas culturais são vistas como “do outro”. Já a música é vista como “popular brasileira”, como um produto autenticamente nacional. Não se pode negar que o samba e seus atravessamentos permeiam todo o espectro da sociedade brasileira. De um lado, sabe-se que isso foi um artifício ideológico populista. Mas deve-se considerar apenas o uso que as elites fazem da cultura popular, ou também as táticas da cultura popular em perverter o que lhe é imposto? Talvez o vislumbre disso venha através de uma análise histórica e musical do conteúdo rítmico em si. Seta nos dois sentidos: a história fomenta a compreensão dos diálogos musicais, e a música, se analisada com uma ferramenta adequada, por si só conta a história. Mas que música, com que instrumentos, e desempenhando qual importância na vida deste povo ancestral e no Brasil hoje?

1.3. Os processo de trocas e sínteses culturais

1.3.1 Os conceitos: biombos e mediadores Num primeiro momento, é necessário que se incremente a descrição dos diálogos e confrontos entre culturas. A intenção aqui é utilizar como modelo analógico à famosa “casa da Tia Ciata”. Esta, situada na Praça Onze no Rio de Janeiro, teve seu auge nas primeiras décadas do século passado. Foi um centro aglutinador dum sincretismo do qual a música popular, a dança, a culinária e outras expressões culturais fazem parte. Todos os autores com os quais se esta dialogando de maneira mais sistemática , em especial Mukuna, Sandroni, Vianna e Sodré, aprofundam, ou no mínimo mencionam a Casa da Tia Ciata, como pólo de intersecção de diferentes universos culturais. A configuração geral do modelo é realmente de uma casa. Sua descrição mais crua se coloca como um tríptico sala/cozinha/terreiro. Desse, pode-se construir os paralelos raciais -branco/mestiço/negro, de origem - Europa/Brasil/África,

39 organológicos - piano/viola/atabaques, dos ritmos -modinha/samba/batuque, de autoria - um autor/criação coletiva/étnico anônimo, e assim sucessivamente. Sabe-se que toda metáfora levada ao extremo corre o risco de um reducionismo que pode limitar sobremaneira sua utilidade. Mas se configura também como uma boa oportunidade de, tomadas as devidas precauções, compreensão e vislumbre de um retrato social, no sentido de trazer à tona detalhes das trocas e diálogos culturais de uma época. No presente caso, não se quer necessariamente esmiuçar a própria casa25, mas utilizá-la como modelo genérico, no que se refere estritamente à relação entre os elementos constituintes da música popular. Às vezes, toda uma praça pode assumir características da casa, e “às vezes, todo um bairro pode assumir características de praça” (SODRÉ, 1979, p. 17). No caso de Vianna, empresta-se conceito de mediadores culturais (1995) e com relação a Sodré, o de biombos. A existência de indivíduos que agem como mediadores culturais, e de espaços sociais onde essas mediações são implementadas, é uma idéia fundamental para analise do mistério do samba (Vianna, 1995, p.41).

Começando com Vianna, vários motivos podem levar um indivíduo a desempenhar tal papel. Para começar, é necessário que exista uma sociedade com certo grau de complexidade e heterogeneidade, como é o caso do Brasil. Esses mediadores aparecem em geral como fruto de dois processos diversos. Às vezes são estrangeiros, e por isso têm a capacidade de olhar com certa isenção manifestações culturais. Inseridos num contexto sem terem sido criados com valores morais e estéticos desse, podem apreciar expressões artísticas e julgá-las por sua qualidade intrínseca, independente de quais camadas sociais ou étnicas essas são oriundas. Como exemplo, Vianna comenta um texto do compositor francês Darius Milhaud, que morou no Rio de Janeiro de 1914 a 1918, uma das personagens a quem ele atribui essa função mediadora:

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Não se elegeu especificamente a casa da Tia Ciata por outros motivos a não ser que pelo fato de que é a mais conhecida. Mas havia muitas outras casas de igual importância e influência à época.

40 Como se vê nessas palavras, não existe nenhuma hierarquia erudito/popular. Ao contrário, a música e os músicos populares são tratados com grande respeito e seriedade (também em relação a aspectos da técnica musical) como se pudessem – como acabaram fazendo – ensinar coisas importantes e difíceis a qualquer músico erudito (Id. Ibid., p. 104).

Em outros casos, são músicos, que por esse motivo, já se encontravam em interstícios sociais. Profissionais liberais ou funcionários públicos que tinham uma forte relação com a música popular. Uma das propostas do presente trabalho é supor que esses mediadores, no dia a dia desses diálogos, são os próprios músicos. Essa preocupação advém do fato que, nos textos onde se trata disso, a ênfase recai sobre os interlocutores do diálogo entre a sala e a cozinha. Tem-se a impressão de que a maior preocupação está nas relações entre a música sincrética e sua credibilidade social. Quando o discurso se refere aos processos de aceitação social de um fenômeno cultural, que parece ser o que mais interessa a Vianna, essa discussões podem até ser fundamentais. Entretanto é um tanto inócua quando o foco é o conteúdo musical em si. Quando Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda se encontram com Pixinguinha, como descreve Vianna, o interesse musical deve recair sobre o próprio Pixinguinha, somado a inumerável quantidade de músicos anônimos que, em sua labuta diária, realizam essas inúmeras bricolagens entre elementos tão diversos. Ou seja, existe uma tendência em tratar como mediadores culturais àqueles que participam do processo de aceitação da música popular entre as camadas mais esclarecidas e de maior projeção social à época. Mas trazendo tal discussão à questão da síntese musical propriamente dita, o problema da aceitação não é o que merece maior destaque. Mesmo porque nesse processo de abordar a mestiçagem como positiva, tendo Gilberto Freyre como seu maior mentor, parece que as discussões novamente incidem sobremaneira nas relações sala/cozinha. Assim, as pesquisas recaem mais sobre as relações entre “cultura popular” e a “cultura de elite”, como, por exemplo, o dia em que Gilberto Freyre encontrou Pixinguinha (VIANNA) e a preocupação em testemunhar a “presença de membros da elite branca na roda de samba” (SANDRONI). Exceção feita a Wisnik, que se mostra mais atento à relação entre as pontas: “Da sala de visitas ao terreiro de candomblé, passando pelo samba raiado” (WISNIK, 1982).

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1.3.2 O músico, esse re-inventor A construção das canções populares no sudeste do Brasil, em termos de alturas musicais, é basicamente uma herança portuguesa e, por extensão, européia. Esse aspecto da organização dos sons, como até hoje se pode averiguar no samba, é perfeitamente analisável com os instrumentos técnicos da música erudita. São cadências harmônicas e melodias que podem ser analisadas através dos meios usuais do universo acadêmico. Não está se discutindo aqui com que grau de complexidade as técnicas eruditas são empregadas nas canções de samba, apenas que são. Já no que se refere ao ritmo, nota-se que as mesmas células rítmicas que estão numa batucada podem ser encontradas num samba de caráter popular, num samba de Paulinho da Viola, num disco de Tom Jobim ou numa peça de música instrumental que seja caracterizada ritmicamente como samba. Embora as estruturas rítmicas do samba tenham inúmeras nuances, existe uma série de características comuns a todos. Nota-se que os principais elementos musicais que são ali apontados têm mais relação com a música africana do que com a portuguesa. Para que se apreenda isso no contexto de nossa metáfora da casa, é preciso eleger uma manifestação musical que esteja ainda, dentro do possível, longe das influências tonais, a batucada. Entende-se por batucada essa expressão musical do ritmo como um fim em si mesmo. Não é, nem nunca foi necessário haver uma canção para que o samba exista. Em seu formato mais original, apenas com instrumentos de percussão, é que ele pode se expressar em sua plenitude. E essa forma de tocá-lo acontecia exatamente, por analogia, no terreiro, no lugar da casa onde as heranças africanas podiam acontecer sem subterfúgios. A eleição da batucada como ponto de partida não significa que seja uma manifestação cultural usual. Pelo contrário, na maioria das manifestações do gênero, ela vem acompanhada de canto e dança. Esse conjunto de expressões culturais é constantemente re-inventado. Entretanto, as estruturas rítmicas parecem atravessar essas diferentes formas do samba se apresentando de maneira quase incólume. Por isso, devem ser

43 consideradas como “denominador comum” do próprio samba. Detectar a intersecção parece ser a melhor forma de compreender um espectro que contém várias formas de música, dança e canto. Desde a batucada, até que as sínteses e atravessamentos da música popular ocorressem, eram necessárias escutas diversas. Era imprescindível que músicos pudessem ter acesso de um lado, às modinhas e outras formas musicais europeizadas, e de outro, à tradição musical afro-religiosa em seu formato original, o batuque. Então os mediadores não eram aqueles que faziam a ponte entre a cozinha e a sala, mas sim, aqueles que da cozinha podiam fazer a mediação entre a sala e o terreiro. Através duma verdadeira bricolagem entre as duas extremidades, de formas tão distintas de se organizar o material sonoro, o samba em suas várias vertentes vem sendo sintetizado. Astuto, vive se transfigurando. Isso leva ao outro conceito utilizado aqui, os biombos. Esses devem ser compreendidos como uma barreira com variado grau de permeabilidade. Assim, se num extremo existe uma total impossibilidade de transpassá-lo, como, por exemplo, proibições e perseguições policiais explícitas, no outro, como no caso da Tia Ciata, o biombo se deixava vazar em todas as direções. O ‘biombo’ não servia para interditar, mas para marcar uma fronteira pela qual, sob certas condições, passava-se constantemente (SANDRONI, 2001, p.106).

O fato de seu marido ser negro, médico e ainda chefe de gabinete do chefe de polícia no governo Wenceslau Brás, permitia que os bailes, festas e encontros, muitas vezes denominados “sambas”, pudessem fluir sem que houvesse repressão sistemática. Existem vários outros exemplos desses dois extremos, bem como todo o escopo intermediário. Por exemplo, no contexto pré-abolição, em especial no ciclo da cana-de-açúcar, acontecia simultaneamente música na Casa Grande e batuques da senzala.

Nesse caso, havia um significativo contingente de crioulos26 que

dormiam na senzala, mas trabalhavam na casa grande. Não eram esses os mediadores culturais nesse contexto? 26

Utilizo o termo aqui em alusão aos “creoules” norte americanos, que transitavam por certos meandros sociais, tendo acesso a uma formação musical europeizada, mas ainda sim sofrendo discriminação. Foram também os criadores do ragtime, que deu origem ao Jazz, e pode ser traduzido como “tempo quebrado”.

44 Havia ainda uma infinidade de posições intermediárias, como, por exemplo, os mulatos, filhos dos senhores com as escravas, e que acabavam por não pertencer claramente nem a um universo cultural nem a outro. Tinhorão defende a necessidade uma certa “diversidade” social para a gestação da música popular, e a abolição da escravidão contribuiu sobremaneira para que esse leque de etnias e culturas crescesse consideravelmente. Primeiro porque, em termos espaciais, mais uma vez o negro foi desterrado. Da África para o Brasil, dos campos para as cidades. Inicia-se um caótico processo de urbanização que veio a culminar hoje nas favelas. Vianna, referindo-se ao Rio de Janeiro, localização da Casa, coloca: Mas no centro ainda era possível encontrar uma mistura de todas as classes sociais, inclusive morando lado a lado, o que tornava mais rápida a circulação das novidades lançadas pelos diferentes segmentos da sociedade carioca (VIANNA, 1995, p. 113).

Importante salientar que o fenômeno não era apenas carioca. Processos similares em São Paulo estavam acontecendo, tanto no que se refere aos movimentos urbanísticos que fomentaram contatos sociais diversos, quanto nesse desempenho do músico como mediador cultural. Os bons instrumentistas gerados nos encontros informais nas ruas e residências ocuparam paulatinamente os inúmeros espaços pagos de entretenimento, que se multiplicavam por São Paulo (MORAES, 2000, p.252).

Assim, o que socialmente era periférico, musicalmente acabou sendo uma central. O interessante é que isso veio a ocupar papel quase pungente na cultura brasileira. Nesse sentido, a música possui um alto grau de permeabilidade que permite que esses processos de síntese aconteçam. Soma-se a isso uma situação urbanística ímpar que possibilitou o aparecimento de sujeitos sociais diferenciados, e com isso , a intensificação de contatos heterogêneos. As oportunidades

de profissionalização que vão gradativamente surgindo

nesse novo contexto citadino acabam por se tornar uma das poucas possibilidades de ascensão social para as camadas mais baixas da população. Desnecessário citar

45 o enorme vínculo, até hoje, entre cor e posição social27, bem como o fato de que a música, ao lado dos esportes, continua sendo uma das poucas áreas que possibilitam esse fluxo entre camadas sociais.

1.3.3 Os diálogos musicais Pode-se aceitar com certa naturalidade o caráter híbrido da música popular. Mas como colocar de maneira imparcial quais são os elementos que nela mais se destacam? A primeira possibilidade é vê-la como uma reunião entre “canções portuguesas” e um acompanhamento no qual existe o ritmo afro-brasileiro. Pode-se entender que o ritmo é um simples “pano de fundo”, em que canções populares, resquícios de formas mais elaboradas, são apropriadas pela população menos preparada musicalmente. Essa utiliza o ritmo, que se encontra disseminado em tal universo social, para acompanhar pequenas peças. Como seria inverter tal perspectiva? Considerá-la fruto de um processo no qual o ritmo aparece travestido de uma canção? Colocando melhor: o ritmo, forma musical ligada inclusive à religiosidade afro-brasileira, não poderia, em seu estado bruto, tornar-se objeto de interesse artístico pelas camadas mais esclarecidas da população. Então, para atravessar os biombos que se encontram entre os diferentes níveis sócio-econômicos, e, por analogia, entre os cômodos da casa, ele joga com canções de moldes mais palatáveis. Com isso, pode acessar os meios de difusão que estavam se estabelecendo à época. Entrando no universo das gravações, pode inclusive ser propagado pelas ondas do rádio. Com isso, é ouvido por parcelas enormes da população que nem imaginam o que seja um terreiro ou um batuque. Feitiço decente: quem pensa estar escutando um samba, esta ouvindo “o” samba. Esse processo se configura com uma tática, no sentido que De Certau (1990) emprega o termo, a de tornar generalizado em termos de aceitação cultural popular o que era específico de uma comunidade. Era uma tática de falsa submissão: o negro acatava o sistema tonal europeu, mas ao mesmo tempo o desestabilizava, ritmicamente, através da sincopa (SODRÉ, 1998, p. 25). 27

Sobre esse assunto, “Cor, Profissão e Mobilidade”, João Baptista Borges Pereira.

46 E não é por coincidência, mas sim por precisão, que no contexto de uma grande banda de música popular, a reunião dos instrumentos percussivos na chamada seção rítmica, seja até hoje chamada de “cozinha”. Isso reforça de várias maneiras o que está sendo colocado aqui como uma forma de “conhecimento cifrado” 28. Sandroni (2001, p. 215) teve a curiosidade de salientar, ao analisar socialmente a ficha técnica de um disco atual, que os nomes (ou a forma de nomear) dos músicos estão de acordo com sua origem social. Assim nota-se que os instrumentistas de cordas são de origem européia e aparecem com seus nomes completos. Já os dos sopros aparecem denominados por seus apelidos. Muitas vezes nem se mencionam aqueles que foram, e ainda são, estigmatizados como ritmistas. No caso do olhar musical, o objeto de discriminação intelectual é o próprio ritmo. Dados seus vínculos sociais e raciais, este conhecimento continua oral, tácito, e codificado. Para que se detalhe melhor muitos desses aspectos musicais aqui abordados, nada melhor que partir de um texto musical. Nas maneiras de se escrever ou não elementos musicais, já se sobressaem pontos relevantes. É uma espécie de análise da própria técnica de notação ou melhor ainda, de suas limitações. Os exemplos a seguir são trechos extraídos de um arranjo de Rui Carvalho (Os 16 primeiros compassos da grade completa estão no anexo I, paginas 117 e 118), para a peça “Upa Neguinho”, de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri. É um arranjo para Big Band, onde se encontram discriminados, de cima para baixo, saxofones, trompetes, trombones e sessão rítmica, respectivamente. Essa última, denominada no jargão da área “cozinha”, aparece dividida em quatro linhas: guitarra, piano, baixo e bateria.

28

Recentemente fui convidado para a prestação de um serviço como músico profissional para, junto de uma seção rítmica e os sopros de uma orquestra, executar arranjos de música popular. Soube, então, no primeiro ensaio, que a orquestra havia tentado executá-los com seus próprios percussionistas. A tentativa não vingou, e fomos então chamados. O mais interessante é que o que tínhamos a mais para que a música acontecesse não era a capacidade de ler algo que a orquestra não sabia. Sabíamos exatamente o que não estava escrito e, no entanto, esse era um fator imprescindível para que o concerto se realizasse.

47

No alto, à esquerda, a determinação do gênero. Exemplo 1

Nas linhas dos sopros, uma escrita complicada, devido ao alto grau de contrametricidade do ritmo da melodia (exemplo2, letra B). Decodificável em suas alturas e durações, mas não em sua natureza sutil. Nesse exemplo, vê-se o “nipe” de saxofones. Exemplo2

48

Na linha para bateria e percussão, apenas as subdivisões de trechos do arranjo, sem nenhuma marcação a mais (exemplo 3), exceto quando existe uma figuração rítmica realizada por todo o grupo29. Vale dizer, sem conhecimento prévio de onde, como e quando se dá o samba, este é um pedaço de papel sem nenhuma utilidade. Exemplo 3 (Drums)

Na partitura para piano ou guitarra, vê-se a cifragem, que explicita a harmonia da peça, mas não o ritmo dentro do qual estes acordes devem ser executados (exemplo 4). O músico popular simplesmente detém esse conhecimento desde o momento histórico em que o sintetizou, pois, em paralelo a sua formação técnica de conhecedor das “alturas” musicais e suas combinações, ele deve conhecer todos os códigos rítmicos de cada peça que for participar, condição sine qua non para uma correta atuação. Exemplo 4

Assim, gradativamente esse ambiente cultural popular e informal produziu, na década de 1930, músicos profissionais da mais alta qualidade, que se constituíram em autênticos intermediários entre o universo da cultura de elite e da popular urbana, entre o formal e o informal e entre o espaço público e o privado (MORAES, 2000, p. 252).

Pode-se observar ainda que essa variedade de escutas, bem como uma formação sintética e híbrida, pode gerar, como realmente faz, músicos da mais alta qualidade. E, pelos exemplos acima, percebe-se que o tipo de formação musical 29

Esse recurso, na linguagem de arranjo, é denominado “convenção” .

49 depende da linguagem de cada instrumento. E quanto mais ligado ao ritmo, menos explícito e mais cifrado se apresenta o texto musical.

1.4 A casa da Tia Ciata Muito disso pode ser visualizado através de uma analogia com a casa da Tia Ciata. Os autores já citados, entre outros, acordam que: A economia semiótica da casa, isto é, suas disposições e táticas de funcionamento, faziam dela um campo dinâmico de re-elaboração de elementos da tradição cultural africana (SODRÉ, 1998).

O samba é uma re-elaboração de elementos de origens diversas. Os sujeitos agentes dessa tinham de estar num ponto privilegiado da casa. Talvez não social, mas musicalmente. Era um “lugar” rico em “escutas”, de onde se ouvia tanto a sala quanto o terreiro. Seu nome: cozinha. Enquanto agentes, tinham necessariamente um ouvido na sala. Precisava incorporar em seu repertório estrutural e harmônico as modinhas, as valsas, enfim, toda uma forma de combinar os sons baseados nessa herança tonal e formal européia. Essa, como se sabe, é até hoje a bagagem cultural empregada no samba em sua condição de canção. O outro ouvido, entretanto, estava atento e sendo impregnado, ou emergindo desde uma memória coletiva, pelo ritmo no seu sentido mais puro, livre da canção. Essa “escuta” merece atenção. Para que se compreendam diálogos, é básico que se conheçam as várias matérias primas que fazem parte do mesmo. Na maioria dos casos em que a Casa aparece na bibliografia sobre o samba, os autores citam Muniz Sodré (1979). Mas talvez quem mais se dispôs a aprofundar suas análises, ainda que partindo do modelo proposto por Sodré, foi Wisnik: “A riqueza da metáfora admite a tentativa de tomá-la como base de um mapa da vida musical da capital do Brasil no começo do século, pois a tensão entre o salão e o terreiro, entre o que se mostra e o que se esconde, separadas por biombos que vazam sinais nas duas direções, é significativa do próprio processo de interpenetração de culturas que vinha ocorrendo” (WISNIK, 1982, p.155).

50 Wisnik também é quem propõe uma analogia do caminho que se inicia no terreiro, e segue em direção à sala. Elege então, como marcos da polaridade social, o “ritual religioso popular” e o “ritual estético burguês”, respectivamente. Como expressão da marginalidade dos grupos dominados, a ocupação de lugar através de biombos corresponde a uma estratégia popular de resistência onde, procedendo por avanços e recuos, escaramuças e escamoteamentos, reage-se à exclusão e firma-se uma identidade polarizada pelo seu ponto mais encoberto: a prática religiosa (Id. Ibid., p.160).

Partindo daí, qual seria a descrição do que acontece no terreiro? Em primeiro lugar, a idéia de “resistência” já pressupõe um olhar ideológico que advém do dominador. Não se trata de resistência, e sim, conforme De Certeau, de um saber não sabido. Há, nas práticas, um estatuto análogo aquele que se atribui as fábulas e mitos, como os dizeres de conhecimentos que não conhecem a si mesmos. Tanto num caso como no outro, trata-se de um saber sobre o qual os sujeitos não refletem. Dele dão testemunho sem apropriar-se dele. São afinal os locatários e não os proprietários do seu próprio saber fazer (DE CERTEAU, 1994, p.143).

Destaca-se do ritual religioso, a proeminência do ritmo, um saber não sabido por excelência. Sem autor, de propriedade ‘étnica’, representa essa prática que organiza descontinuidades. Mais que isso, dada sua natureza, tende a expressar essa mescla na qual a própria estrutura musical engendra e é engendrado pelos receptores/transmissores da informação sonora. Transmissor e receptor se convertem na própria informação advinda do som (SODRÉ, 1979, p.20).

Pode-se dizer que na direção da sala ao terreiro sobrepõe-se uma forte carga ideológica. Porém, independentemente do ideológico do tipo “conciliatório” do samba, vale destacar que no atravessamento do terreiro ao salão, não havia nada mais do que o ritmo negro, essa “síntese de sínteses” (Id. Ibid). Na construção do universo social formal, de ideologia que se confunde com a realidade, pressupõe-se que da camada mais alta para a mais baixa o trânsito é livre, e que os biombos aparecem muito mais marcados no sentido contrário. Falsa premissa.

51 Em primeiro lugar, no lugar da idéia de que os negros “dominados e perseguidos” escondiam-se para realizar seus rituais, muitas vezes acontecia o oposto. Sempre houve rituais “interditos”, onde não era aceita a presença do branco. A posição de dominados é uma circunstância histórica que não deve pressupor que todo negro andava por aí ansiando por aceitação social. Em segundo lugar, essas táticas utilizadas para transpassar os biombos, de aparência sutil, podem ser muito mais pungente do que se quer aceitar: “Manobra delicada”, diria De Certeau, que consiste em encaixar a exceção “etnológica” num vácuo do sistema sociológico. Exatamente por não saber o que fazem, o que fazem tem mais sentido do que se dão conta. O próprio ritmo pode ser visto assim. Quando participa da síntese, é objeto de mediação cultural. Quando simplesmente influencia, não media nada, e sim impõe, toma o espaço através de uma eficaz “inconsciência”. Essa, não entendida de forma bruta, mas sim com todas as escaramuças e subterfúgios, agindo nos interstícios da cultura do dominador, eficazmente astuta. Segundo De Certeau, “inconscientes, entretanto coerentes” (Id. Ibid., p.124). É prioritário para a elaboração de uma visão mais técnica do objeto musical, que o ritmo, enquanto expressão artística desinteressada (Mario de Andrade), tenha como arquétipo exatamente a potência funcional da sua origem interessada. Funcional no seu âmago, servia a um contexto antropológico realmente desconhecido para a sociedade moderna. Essa funcionalidade, essa origem interessada, faz com que procedimentos quase técnicos, didáticos, no contexto de sua própria cultura, sejam mal interpretados. Por exemplo, as atribuições “perversamente sexuais” aos ritos e danças afrobrasileiros. Numa simples leitura de Mukuna, percebe-se que havia, em parte desses rituais na África, uma função iniciática, com o intuito de preparar os jovens para o casamento. Deve-se notar também que a iniciação aqui não é a da puberdade, mas, sim, a que precede o casamento; razão pela qual o principal assunto é a educação sexual (MUKUNA, 2000, p. 92).

Esse é apenas um exemplo, entre inúmeros, dos mal entendidos gerados quando se procura compreender uma cultura com olhos de outra. Ainda a título de exemplo, pode-se encontrar, nos poucos livros sobre a capoeira, um olhar que,

52 transmitido via oralidade pelos próprios jogadores/lutadores/dançarinos, não se encontra nos livros da história oficial30. Assim, Nestor Capoeira, em seu livro “Capoeira, os Fundamentos da Malícia”, trabalha com a idéia de que de 1810-1830, período que compreende a independência, houve uma guinada nas estratégias dos negros em lidar com o sistema dominador. Por seu lado, os negros, comprovada e aceita a impossibilidade de uma vitória militar, voltam-se para o lado cultural, que se torna fundamental: a cultura se torna uma arma (CAPOEIRA, 2000, p.28).

Ainda que se corra o risco de interpretar tais colocações como oriundas de um “autor menor”, o interesse da citação é o de não se atribuir sempre uma posição passiva à figura do negro. Pelo contrário, nota-se

que havia certos níveis de

organização, embora as notícias acerca desses fatos só existam no plano da oralidade, ou por via de poucos indivíduos que se arriscaram a escrever sobre o assunto. Pode-se inclusive identificar o que De Certeau chama tática ou astúcia, com o que, no âmbito popular brasileiro, denomina-se malícia ou ginga. A noção musical de ginga será aprofundada adiante, na tentativa de se propor uma visão mais técnica de um assunto tão avesso a tal tipo de abordagem. Aqui as colocações se restringem a procedimentos sócio-culturais de certas camadas sociais, e mais exatamente, a alguns indivíduos inseridos nas mesmas. O assunto acaba por desembocar na figura do malandro. Largamente discutida por diversos autores, esse personagem toma vulto como mediador e influenciador de certos processos musicais. Personalidade que só pode vir a existir quando há suficiente “diversidade social” num determinado aglomerado urbano, pode ser considerado um dos mediadores anônimos. Sujeito que se sente à vontade em não seguir determinações sociais vigentes, nem estar submetido à esfera sagrada da liturgia africana, acaba sendo, em sua aparente indisciplina, um verdadeiro pontifex entre planos culturais distintos.

30

Tanto os “livros” quanto a “história oficial” são considerados ferramentas de controle e dominação.

53 Afinal, o capadócio se expressa melhor exatamente nos pontos onde as fronteiras podem ser maleáveis. De fato, sua astúcia (De Certeau) ou malícia (Capoeira), é que torna os biombos flexíveis. Sua singularidade acaba por devassar essas fronteiras. A exposição cabal dos cômodos contíguos da vida musical dependia de momentos mais acentuados de verdadeiro devassamento dos biombos culturais, quando as restrições que separam as práticas musicais de grupos e classes são suspensas e as diferenças expostas de maneira simultânea (WISNIK, 1982, p.162).

Acrescente-se à citação que, além de momentos particulares, sempre houve indivíduos que, dados seus atributos ímpares, transpassavam os biombos: A fartura dos convites é evidente sintoma da popularidade do capadócio, possivelmente mesmo junto a pessoas de melhor situação econômica (SANDRONI, 2001, p.159).

Ainda sim, Sandroni traça sua trajetória desde malandro até compositor. Não parece necessário que, para sua consagração, esse tenha de chegar a compositor. E o músico? Sua importância está exatamente em, uma vez tendo acesso desde o terreiro até a sala, poder estar com o violão no primeiro, ou a percussão no segundo. Essas escutas diferenciadas são os pré-requisitos que possibilitam os diálogos que originam a música popular. Melhor ainda, são como catalisadores amalgamando esses diversos materiais sonoros.

1.5- Ritmo e gesto Visto que o presente trabalho procura restringir-se as estruturas rítmicas do samba, evitou-se a todo momento discutir méritos que fossem alheios a fenômenos musicais propriamente ditos. Ao se trabalhar com qualquer outra esfera de expressão conectada a isso, poderia se por em risco essa necessária delimitação. Entretanto, não se pode negar que, num dado momento, toda a bibliografia visitada menciona as relações ritmo/gesto. Existem aqueles que não conseguem aceitar um sem o outro. E, é claro, vertentes que isentam o ritmo dessa correlação tão estrita. Segue então um pequeno panorama da situação, no intuito de trazer à tona tais elementos para uma reflexão sobre o assunto. Mukuna descreve a situação na África como um conjunto interligado, colocando que uma expressão não existe sem outra. Portanto, é um conjunto de

54 elementos funcionais ritualísticos, que vai mostrar que dança e música são expressões inseparáveis. Entretanto, embora a associação música dança deva ser considerada como a “expressão total” de um dado ritual, somado inclusive aos “adereços corretos e o celebrante tradicionalmente designado”, Mukuna acrescenta: Quando um informante enfatiza o fato de que o padrão rítmico apenas determina o passo da dança, ele quer dizer que por si mesmo o padrão é não funcional (MUKUNA, 2000, p.187).

Na história da música afro-brasileira, em especial nesse momento de início dos processos de urbanização (1870) e do estabelecimento de uma mínima diversidade, Tinhorão vai definir sua visão das relações música/dança/gesto. Nascido da maneira livre de dançar os gêneros de música em voga na época – principalmente a polca, a schotish e a mazurca -, o maxixe resultou do esforço dos músicos de choro em adaptar o ritmo das músicas à tendência aos volteios e requebros de corpo com que mestiços, negros e brancos do povo teimavam em complicar os passos das danças de salão (TINHORÃO, pequena, p. 59).

Como se sabe, até hoje nos rituais religiosos afro-brasileiros, os movimentos e danças são sempre definidos ou dirigidos pelos “pontos”, ou seja, os ritmos básicos de cada entidade ou orixá . Continua a dúvida: o gesto define o ritmo, como quer Tinhorão, ou o ritmo define o gesto? Squeff concorda com Tinhorão afirmando que “os ritmos afro-brasileiros nada mais são do que a temporalização dos gestos das danças” (1982 p.44). Independente de ser verdade ou não, o autor mostra certo preconceito embutido em suas palavras: “nada mais são”. Isso é um reducionismo em relação ao que se quer mostrar aqui, que esses ritmos são formas musicais mais elaboradas do que parecem a primeira vista. Nesse contexto é fundamental que se isente a música da dança. É fato que a dança não existe sem música1 , mas a recíproca não é verdadeira. Assim, Sandroni coloca:

31

De novo, excluam-se aqui formas de dança moderna e/ou contemporânea.

55 Em teoria, não se pode dizer que uma música qualquer determine de modo intrínseco a coreografia correspondente, nem deduzir um estilo musical de uma necessidade coreográfica.(2001, p. 137).

Difícil saber a que “teoria” se refere o autor, mas parece mais improvável que uma herança gestual fosse capaz de gerar um ritmo do que o contrário. O ritmo pode convidar indivíduos a realizar certos movimentos. Lembrando também que no transplante da África para o Brasil, os negros só trouxeram seus corpos. Juntos com seus corpos, seus ritmos e gestos. Esses gestos já eram uma síntese dos gestos da África ocidental, dada a mistura de etnias trazidas ao país. Vale lembrar também que, olhando os números de mortes, durante a espera na África, no transporte e nas difíceis condições de vida como força de trabalho em terras brasileiras, pode-se seguramente afirmar que houve uma seleção forçada de melhores espécimes. Ou seja, os que sobreviveram a todas essas dificuldades são o que há de melhor na raça negra. O gesto leva uma vantagem sobre o ritmo, ele é observável em qualquer relação social. Sua influência é inevitável. Apenas a presença do negro na vida social do país é suficiente para que o movimento de trabalho ou qualquer outro seja visto pelo atores sociais que ali se encontram. E a música, por sua vez, é a condição primordial senão para o gesto, ao menos para a dança. O fato é: ritmo e gesto podem estar sempre juntos, dado que os corpos negros são os veículos dessa herança. Talvez por isso sejam as influências mais marcantes da cultura africana.

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Capitulo 2

Pode-se dizer que o populario (sic) musical brasileiro é desconhecido até de nós mesmos. Vivemos afirmando que é riquíssimo e bonito. Está certo. Só que me parece mais rico e mais bonito do que a gente imagina. E sobretudo mais complexo Mario de Andrade

Premissas musicais para a análise do “ritmo”

Este capítulo trata de questões que envolvem o fato do samba nascer do diálogo entre as culturas brasileira e africana, e que, portanto, não pode ser analisado através de outras premissas musicais que não suas próprias. Na ausência desses instrumentos, procurou-se enumerar e justificar uma série de fenômenos musicais que não são em geral vistos como relevantes pela música erudita, mas podem ser entendidos como alicerces da música popular. O próprio ritmo, no caso de qualquer expressão musical dita popular, desempenha função tão fundamental, que se torna responsável pela determinação do gênero. Seja numa bateria de escola de samba, numa canção de João Nogueira, ou num grupo de samba-jazz, podem-se encontrar figuras e células rítmicas similares que permitem a classificação dessas diferentes expressões musicais dentro de um mesmo gênero. Apreciando o fato de que existe um desenho melódico, uma estrutura harmônica e uma linguagem rítmica, essa última é a responsável pela determinação da “linguagem” que denomina o gênero. Deve-se lembrar também que, embora exista a possibilidade de se empreender uma abordagem analítica da melodia e harmonia pelas ferramentas convencionais, o ritmo esta presente também nesses

57 elementos. Vale dizer, no caso de uma canção, o ritmo da melodia e harmonia estão, na sua estrutura rítmica, dentro da linguagem do samba. E ainda que se observe a diversidade de figuras rítmicas, que aparecem de forma mais ou menos recorrente em diferentes situações ou formações musicais, os fenômenos aqui tratados englobam essa variedade, referem-se a um espectro mais amplo do que detalhes de variações. Todos os itens enumerados poderiam se referir, até mesmo, aos ritmos32 em geral, mas a título de delimitação, considera-se como objeto o universo rítmico do samba. Carlos Sandroni (2001, p.131) em seu trabalho “Feitiço Decente”, buscou compreender “Essa separação do samba em dois tipos, que teria ocorrido no final dos anos 1920”, tentando apontar quais foram estas mudanças. Neste trabalho interessa mais sua colocação, quando afirma logo à introdução que “a batida não é um simples fundo neutro sobre o qual a canção viria passear com indiferença. Ao contrário, a primeira nos diz muito sobre a segunda” (Id. Ibid., p.14). Para o enfoque proposto aqui, mais do que aprofundar questões sobre mudanças no samba, pretende-se avaliar qual é a importância do ritmo para a música popular. E, se possível, mostrar que o ritmo realmente não é um simples “pano de fundo”. Para isso, a idéia é trabalhar esse ritmo afro-brasileiro como uma prática musical em si mesma. Ou seja, o foco dessa análise não é um ou outro samba, mas o “samba”, enquanto conjunto de células rítmicas características e simultâneas. A hipótese é que o samba se apropria de canções para transpassar biombos sócio-culturais e, assim, chegar à escuta de um público maior. É como se a canção fosse o pano de fundo, ou a máscara de frente do samba. Olhando assim, o ritmo toma um vulto maior do que o que lhe tem sido reservado. Para justificar tal suposição, o primeiro aspecto a se considerar é que todas as canções do gênero têm o ritmo como unidade, como denominador comum. Caso fossem reduzidas a apenas ritmo, notar-se-ia o mesmo, dentro, é claro, do universo de variações que a grande família desse ritmo apresenta33, e que será trabalhado no capítulo 3. 32

O sentido de ritmo nesse trabalho é exatamente sua acepção popular. No caso apenas do Brasil, essa família é enorme, e conta, entre muitos outros, com o Baião, Xote, Xaxado, Maracatu, Congada, Afoxé, isso sem mencionar a própria família do samba, que conta com mais de dez denominações diferentes. 33 Na Enciclopédia de Música Brasileira da Publifolha, estão listados 13 tipos ou variedades de samba, embora nesse caso, estas especificações nem sempre são baseadas em critérios musicais, e sim sócio-culturais.

58 Na busca de uma definição, ainda que temporária, da idéia de ritmo, poderíamos dizer

que este é “um conjunto de células ou padrões rítmicos

simultâneos e suas variações34”. O problema desta definição é que se pode inferir que é possível “inventar”, compor, criar um ritmo. E isto não parece factível. Não é possível inventar um ritmo, dado que suas células

não são criadas de maneira arbitrária, mas sim transmitidas oralmente

dentro de uma determinada cultura, ou pelos encontros e diálogos entre mais de um universo musical. Pode-se até dizer que é possível inventar um ritmo, mas esse jamais teria o fundamento necessário para ser considerado como tal. Qual seria o seu lastro cultural? Como se dariam seus efeitos nos ouvintes? Como esse poderia ser reconhecido? Outro argumento que reforça a idéia de que não é possível inventar um ritmo se refere ao fato de que esse é sempre fruto de uma criação coletiva e atemporal. Ninguém senta e compõe células rítmicas, a ponto de essas se tornarem claramente um ritmo. As células do samba têm, até certo ponto, origem em rituais e costumes de vários tipos na África e desempenhavam uma importante função dentro dessas cerimônias. E continuam desempenhando, em contextos sagrados e profanos. Assim Santos, em sua tese de doutorado acerca dos ritos Nagô, coloca: Os sons produzidos pelos instrumentos agem sós ou em conjunção com outros elementos rituais. Constituem formidáveis invocadores de elementos sobrenaturais (1976, p. 48).

No processo de transposição do enorme contingente de negros para o país durante a escravidão, esses sons foram para cá trazidos, preservados, adaptados e re-inventados através de um processo histórico ímpar. E, embora não interesse aqui a discussão sobre a “autenticidade” ou “pureza35” do samba, a escolha e o uso destes padrões são extremamente rigorosos. Mesmo considerando o fato de que estas linhas rítmicas podem ser modificadas, até mesmo o vocabulário dessas variações é herdado, aprendido,

34

Entenda-se por variações aqui as nuances, as pequenas modificações pelas quais, ao decorrer da execução, pode uma linha rítmica variar. 35 Essa discussão toma muito tempo de diversos autores e artistas ligados ao samba, inclusive Hermano Vianna. Como cientista, não toma posição, e sim discute o tema. Nesse trabalho, o fato é que não interessa a polêmica, já que o foco é conhecer melhor o samba e, se possível, seus próprios paradigmas musicais.

59 oralmente preservado. Esse é um dos fatores que dificulta tanto a aprendizagem de um ritmo por parte de um músico que não conheça a cultura na qual esse surge. O importante agora é enumerar as características diferenciadas através das quais o ritmo pode ser abordado e analisado.

2.1. Simultaneidade e polirritmia. O primeiro aspecto que cabe ressaltar acerca da literatura sobre o samba é que, nos poucos casos em que se explicita musicalmente suas células36 , as discussões são construídas sobre apenas uma linha rítmica. O estudo da música africana tem mostrado que a sofisticação de suas tramas rítmicas se caracteriza pela abundância de células rítmicas, somadas sempre a idéia de polirritmia, de células rítmicas simultâneas. Como maior componente inicial do ‘quente’ ritmo africano, então, nós temos as polirritmias percussivas (Waterman, 1943, p.25).

O que leva à conclusão de que o estudo do ritmo deve se dar através da análise não de uma célula, nem de um grupo de células, mas sim de um conjunto de linhas rítmicas simultâneas. Esse é um diferencial importante, pois inúmeros aspectos musicais têm sua percepção modificada quando células rítmicas, que em geral acontecem em diferentes registros, são ouvidas em conjunto. Um exemplo marcante de alteração da percepção é a própria acentuação, pois é necessário saber quais são os tempos, dentro de um compasso, que são marcados como fortes ou fracos, de acorde com o universo que se está considerando. Importante também lembrar que essa simultaneidade tem relação direta com o coletivo, pois, diferente de um baterista moderno que pode executar três ou quatro linhas rítmicas, cada uma dessas linhas é executada por, no mínimo, um músico, seja no contexto ontológico ou numa escola de samba atual. No caso dessas agremiações, um grupo de músicos toca os mesmos instrumentos e a mesma linha rítmica. Essa é definida nos ensaios sem nenhum uso de partituras. Do começo ao fim da peça, essas figuras rítmicas são executadas em uníssono, dentro de cada naipe. São idéias musicais bastante contramétricas, 36

Ver Sodré, 1998, Mukuna, 1975, Sandroni, 2001

60 transmitidas por um processo que se dá oralmente, ou seja, através da vivência de ensaios em grupo, sem nenhum auxílio de notação. Trata-se de um conhecimento tradicional, praticado presencialmente e, caso se pretenda realizar uma abordagem analítica, fundamental, que se leve em conta suas várias linhas simultâneas. Primeiro, por que isso é uma característica marcante da herança polirrítmica africana e, segundo, porque analiticamente uma linha pode ter uma leitura diferente caso seja compreendida sozinha ou em relação a outras.

2.2. A contrametricidade como regra no emprego da síncopa. Quando o ocidente (1320)37 alcança a técnica para a notação das durações dos sons, baseia-se no que se pode chamar literalmente de “divisão” rítmica. Uma breve descrição desta técnica é que todas as figurações rítmicas são definidas por relações matemáticas de super ou subdivisão de uma pulsação pré determinada. Assim, uma vez tomada tal marcação de tempo, constrói-se um conceito de duração que será de metade, dobro, e assim por diante, sempre baseado numa relação algébrica. Some-se a isto a definição de compasso, processo que “divide a música em pequenas partes de duração, igual ou variável”. Nesse, também aparece implícito quais são os tempos fortes e fracos, portanto onde seriam os pontos “naturais” de apoio dentro deste. Num compasso 4/4, por exemplo, existe uma pré-definição, no qual se considera o primeiro tempo forte, o segundo fraco, o terceiro meio forte e o último fraco.

37

Em 1320, Philip de Vitry publica o “Tratado Ars Nova”, em que pela primeira vez aparece organizado o sistema de notação de durações empregado até hoje.

61

Assim lê-se no Compêndio de Teoria Elementar da Música, de Osvaldo Lacerda: De acordo com sua maior ou menor acentuação na execução musical, os tempos são chamados fortes ou fracos. O primeiro tempo é tradicionalmente considerado forte. Os demais são considerados meio fortes ou fracos. Exemplo: c) compasso quaternário – primeiro tempo forte, terceiro tempo meio forte, segundo e quarto tempos fracos.

Exemplo 1

Quase desnecessário dizer que a concepção empregada para se compor ou executar qualquer tipo de peça que tenha como ponto de partida tais premissas será influenciado sobremaneira pela concepção que a cultura na qual esta foi gerada tenha. Ou seja, se um artista criado dentro de uma tradição escreve uma peça, o faz a partir de pressupostos rítmicos pré-definidos em termos de acentuação do compasso e nas formas de subdivisão da própria pulsação. Na tentativa de definir o conceito de síncopa dentro deste universo, Cooper and Meyer colocam: Como empregado nesse livro, o termo ‘sincopação’ se refere a uma nota que entra onde não há o pulso do nivel métrico primário (o nível onde o pulsação é contada e sentida) e onde o próximo pulso do nível métrico primário é também ausente (uma pausa) ou suprimido (uma ligadura) (COOPER at al. , 1960, p. 100).

62 Interessa aqui o conceito que todo o acento que reforça a pulsação é tido como primário. A idéia é que uma vez definido o pulso, se os ataques das notas coincidem com o pulso ou com divisões simples como da metade ou dobro, a natureza desses será cométrica. Em outras palavras, quando os acentos de um ritmo coincidem frequentemente sobre a própria pulsação, o nível métrico primário, esse ritmo é denominado cométrico. Em oposição, toda vez que a acentuação ocorre em tempos “fracos”, a princípio mais “inesperados” na medida em que não reforçam o pulso original, define-se a noção de síncopa. Nesse trabalho denomina-se sincopação essa forma de relacão que troca o apoio a marcação pelo ato de deslocar o acento e, de certa maneira, colocá-lo em um ponto que crie surpresa38. E, se num determinado tipo de música, os acentos tendem a ser constatemente colocados nestes momentos “inusitados”, como é o caso do samba, pode-se determinar o estilo como sendo de características contramétricas. Waterman concorda e coloca de maneira mais sintética a contrametricidade de fraseado “off-beat”, o que pode-se traduzir como “fora do pulso”. A música popular brasileira utiliza uma grande gama de metros múltiplos da polirritmia africana, e numa extenção mais ampla, a característica de um ritmo melódico de fraseado “off-beat (1943, p. 24).

Vale mencionar que na Àfrica, universo cultural e musical onde esses ritmos nasceram,

não havia nem mesmo a idéia de pulsação no sentido ocidental do

termo. Tanto cometricidade como contrametricidade são conceitos que só existem dentro de uma visão letrada e analítica de música. No exemplo 2, pode-se verificar que a escrita usual, quando utilizada para os ritmos de origem africana, resultam numa notação complexa, através de recursos tais como ligaduras de valor e pontos de aumento. Vale lembrar que, ainda assim, a escrita é apenas uma aproximação. A partitura completa consta no anexo IV.

38

Essa é uma definição do trompetista Wynton Marsalis, músico que no mesmo ano foi agraciado com dois prêmios Grammy, um em música erudita e outro em Jazz.

63 Exemplo 2

Note-se como no compasso 5 e 6, os únicos pontos que aparecem cométricos à pulsação estão no segundo tempo desses compassos, o que, como veremos adiante ao tratar acentuação no samba, faz sentido. Ainda sim, a figura é de síncopa, o que remete o acento para o segundo quarto de tempo. Somente nesses compassos pode-se observar muitos aspectos que caracterizam a rítmica do samba e, em especial, o uso que se faz da síncopa. Note-se que a figuração básica é exatamente a citada como sendo aquela que caracteriza a música brasileira, a figuração semicolcheia/colcheia/semicolcheia:

Nesses compassos cinco e seis, aparecem as duas opções citadas por Cooper an Meyer, a pausa primeiro tempo ( tempo forte, segundo Lacerda) do compasso cinco, e uma ligadura no primeiro tempo do compasso seis. No segundo caso, o que se nota

é uma prática usual na música popular, o chamado

“adiantado39”, cujo o procedimento é adiantar por um quarto de tempo a entrada do próximo acorde, junto com a melodia. Fica também caracterizado algo que em certos casos aparece de maneira ainda mais sistemática, um grupo ou seqüência de sincopas ligadas. 39

Existe, entre os músicos do cenário instrumental paulistano atual, toda uma terminologia ainda não formalizada, mas compreendida por todos.

64

Exemplo 3

O resultado desse tipo de figuração rítmica, muito característica do samba, é um sentido polirrítmico marcante, já que essa estrutura pode ser entendida como uma seqüência de colcheias, figuração a princípio mais cométrica e regular se vista fora de uma contexto. Exemplo 4

Porém, quando executada deslocada um quarto de tempo em relação ao pulso, exerce uma forte sensação de deslocamento, de sincopação, e de simultaneidade de eventos musicais que se deslocam uns em relação aos outros. Voltando à observação dos compassos 5 e 6, sabe-se que um músico formado nos moldes letrados habituais, terá dificuldade para executar tal tipo de divisão rítmica. E ainda que possa realizá-la, não a acentuaria de acordo com a linguagem do samba. Um músico popular brasileiro, que conheça o gênero, está habituado a este tipo de figuração. E, mais interessante, num naipe de escola de samba, essas figurações acontecem quase que ininterruptamente, e são aprendidas e ensaiadas por via oral, auditivamente, gerando efeitos musicais que “fariam inveja a Stravinski e Vila-Lôbos” (ANDRADE, 1980, p. 186).

65 Portanto, o assunto deve ser colocado por dois prismas que se somam. Um é o fato de que a escrita musical é, até certo ponto, inadequada para os ritmos africanos, inclusive porque os entende como contramétricos, ou seja, contra uma suposta métrica padrão. Outro aspecto é entender que, para a música brasileira em que o ritmo tem origem africana, a contrametricidade é regra. Acontece todo o tempo, é característica dela. O que não se deve deduzir apressadamente é que, pelo fato de ser transmitida por via oral esta música é menos complexa. Ela apenas deve ser analisada por outro viés, inclusive para que se possa dimensionar, dentro de seu próprio universo, quais são mais ou menos sofisticadas, ou de maior ou menor qualidade. Vale dizer que o uso ostensivo de síncopas caracteriza uma rítmica altamente contramétrica, mais fácil de ser aprendida por meio da oralidade, do que através da leitura musical propriamente dita. E assim, quanto mais contramétrica, mais interessante dentro desse universo sonoro. Essa questão se defronta com o fato de que esse conhecimento transita em meios sócio-culturais que muitas vezes não estão interessados em processos de análise, lembrando De Certeau, porque “trata-se de um saber não sabido”40 (1994, p. 143).

2.3. O sentido cíclico dos ritmos Uma síntese musical forjada a partir do diálogo entre diferentes culturais se dá de diversas formas. Assim, se é de comum acordo que, apesar de as variações e adaptações das células rítmicas do samba, essas têm uma origem afro-brasileira, é também facilmente demonstrável que a forma de organização dos sons numa canção de samba (em oposição apenas ao ritmo) é de herança luso-européia. Essa não é a única forma pela qual uma síntese musical pode se dar, mas é, com certeza, uma possibilidade. Sabe-se que o contexto erudito privilegia a questão das “alturas” musicais e suas combinações, e as formas africanas privilegiam o “pulso”, a natureza rítmica da música. Obviamente, esta é uma colocação um tanto

40

O professor Dr. Carlos Stasi, em sua pesquisa sobre o reco-reco nas festas populares do Brasil, certa vez, ao ouvir determinado músico amador tocando tal instrumento, ficou tão interessado naquelas células rítmicas que pediu autorização para visitá-lo no dia seguinte com o intuito de escrever aquelas figuras. Porém, durante a visita, o músico não conseguia repetir o que tocava no dia anterior. Indagado por que, o músico respondeu: não dá, eu só consigo com todos tocando junto. O fato me foi descrito pelo professor.

66 genérica, mas que serve no momento para discutir um pouco questões relacionadas a ciclicidade. Só a música e o ritmo hipnótico são catárticos, e só os ritmos que se repetem apenas com leves transformações são realmente hipnóticos (SQUEFF, 1982, p.44).

Novamente, não é intenção deste trabalho definir ou discutir a extensa gama de adjetivos empregados por inúmeros autores, acerca dos efeitos de figuras rítmicas de natureza cíclica e, até certo ponto, repetitivas. O ponto que parece inegável é que esse tipo de música tem claramente efeitos sinestésicos e dinamogênicos. Insistindo na comparação entre música européia e africana, de certa forma, pode-se afirmar que essas duas tradições musicais têm em sua natureza um arquétipo cíclico. Afinal, o que norteia o estudo formas musicais é, em primeiro lugar, como se dão as repetições das partes de uma dada peça. Pode-se observar no exemplo a seguir a “canção”, forma musical que aparece tanto na música erudita como na popular: Exemplo 5: a forma canção [A] [A] [B] [A]

Tradicionalmente, cada parte tem oito compassos, totalizando trinta e dois, num exemplo de métrica regular. Entretanto, na linha evolutiva da música erudita, cada vez mais o “desenvolvimento” foi sendo valorizado como uma destreza composicional41. Isso por que sob a ótica formal, é sempre mais fácil simplesmente repetir uma parte, do que criar um desenvolvimento, como faziam os grandes autores da música erudita. Nesse, alia-se imaginação musical e coerência estrutural, tarefa só possível a compositores do porte de Mozart, Beethoven, entre outros.

41

Como exemplo, pode-se observar o primeiro movimento de qualquer das nove sinfonias de Beethoven.

67 Assim, a forma sonata até certo ponto abre mão da ciclicidade para que se introduza um grande desenvolvimento em sua parte central, ainda que mantenha a volta ao tema no final dessa como característica cíclica. Já no início do século passado, os franceses escreveram “poemas sinfônicos”42 com um grau enorme de desprendimento em relação a ciclicidade ou mesmo aos conceitos de forma. Na música popular, a ciclicidade em termos formais acabou limitada pela herança tonal portuguesa, base do samba em seu formato canção. A influência portuguesa foi a mais vasta de todas. Os portugueses fixaram nosso tonalismo harmônico; nos deram a quadratura estrófica. (ANDRADE, 1980, p. 185).

Essa ciclicidade em nível formal faz com que a grande maioria das canções populares funcione na métrica cíclica de 32 compassos, a chamada forma canção, exemplificada acima. Faz-se necessário então diferenciar os conceitos de ciclicidade. A música ocidental erudita começa mais ligada a ciclicidade. Essa é devido a vários fatores, que sofrem modificações ao longo da história. Um desses é exatamente a sistematização do tonalismo, que, por muito tempo, esteve vinculado a uma obrigação de se concluir trechos musicais no acorde de tônica. Esse paradigma gera uma sensação de resolução que, caso não seja o fim da peça, propicia uma inevitável sensação de recomeço. Entretanto, sua evolução segue em direção a um desprendimento desse senso cíclico. A própria evolução da composição, principalmente do período barroco em diante, foi gradualmente propondo outras possibilidades mais abertas. E ainda o desenvolvimento de formas instrumentais mais “puras”, que não se prendiam a certas quadraturas necessárias às danças, contribui para a evolução das formas musicais. Na música popular, em especial na canção samba, vários fatores, tal como a quadratura estrófica, deixam-na realmente presa e limitada a um espectro restrito de possibilidades formais. Isso é um dado verificado até hoje, pois se nota que não existe praticamente nenhuma inovação formal nesse contexto.

42

O poema sinfônico é uma forma considerada moderna de composição, em que a liberdade de criação é tal que não é necessário que se repitam partes da peças, ou que se retome o tema ao final. Como exemplo, pode-se citar “La Mer”, de Claude Debussy.

68 A quadratura melódica do samba não me aprece derivar da formula métrica e estrófica dos textos. Tenho antes a convicção de que foi uma influência artificial, imposta exclusivamente pela melodia quadrada européia (ANDRADE., 1941, p.155).

Como se pode observar na citação, Mario também atribui essa pobreza maneira mais singela, limitada, que os negros foram capazes de interiorizar as influências européias e suas melodias “quadradas”. Entretanto, quando o ritmo é executado como um fim em si mesmo, num batuque, não existe tal tipo de metrificação fixa. Quando acontece essa prática musical, sem nenhuma obrigação de acompanhamento, o que se pode chamar de música instrumental puramente percussiva, não existe nenhum elemento que o obrigue a um reinício. O que acontece nesse caso, como se pode observar na primeira batucada analisada no capítulo 3, são dois processos. De um lado, a rítmica fechada do pequeno ciclo, em geral de dois compassos. Historicamente se convencionou que a escrita do samba é feita no compasso binário, provavelmente devido ao movimento da linha grave, executada pelo surdo, considerado o instrumento principal nessa música43. Entretanto, o instrumento que executa a clave do ritmo, o tamborim, tem uma fraseologia de quatro tempos. Daí a consideração que o menor metro possível é o de dois compassos. Tomando por base essa figuração do tamborim, a clave44 do samba, suas células rítmicas são sempre em frases de no mínimo dois compassos, pois existe uma convenção de escrever esse ritmo em 2/4. Observe o exemplo 3, a forma mais simples de escrita desta frase. Exemplo

6

A unidade cíclica mínima seria então de dois compassos. Difícil é compreender que o número de variações possíveis tende a infinito, entretanto as 43

Embora esteja se referindo ao samba rural paulista, Mario de Andrade observa: “instrumentos sistematicamente de percussão, em que o bumbo domina visivelmente”. Mais modernamente é que o bumbo veio a ser chamado surdo. 44 A clave, ou chave, é exatamente a linha rítmica que mais marca ou caracteriza determinado ritmo.

69 figuras rítmicas que aparecem nessas estão rigorosamente dentro do “idioma”, dessa linguagem. Eis alguns exemplos dessas variações: Exemplo 7

Exemplo 8

Exemplo 9

Segundo, ao lado desse pequeno ciclo de dois compassos, deve-se examinar o “período” longo, se é que se pode chegar a atribuir periodicidade a essa forma musical. O que se observa, de fato, é uma rítmica aberta discursiva, que procede por adição infinita. Só existe início por que alguém começa a tocar. E só existe fim por questões fisiológicas, ou seja, não se pode tocar para sempre. Fora isso, não existem amarras métricas. Tome-se como exemplo três percussionistas que estejam tocando juntos, ouvindo-se e improvisando. Muitas idéias rítmicas vão sendo propostas, executadas e variadas, de acordo com a competência musical e a extensão do vocabulário desses músicos. O tamanho, a duração ou a intensidade da execução vão depender apenas da disposição de seus executantes e do contexto (festivo, ritual, informal) no qual essa se realiza. Talvez um só elemento esteja ordenado na manifestação do samba, pelo menos dos que tenho observado, o ritmo. Os instrumentos de percussão reinam absolutos. Ora, isso dificulta ainda mais a colheita de sambas, textos e melodias, que são absorvidos pelo barulho dominador. O ritmo domina, e no grupo dançante um frenesi fisiológico que se manifesta por todo o corpo, com liberdade (Id. Ibid., p. 118).

70 Nesse processo, vão se criando ciclos e períodos que se tornam novos ciclos, e assim sucessivamente. Como tudo é improvisado, dentro dos rigores da linguagem, o resultado musical influencia e é influenciado pelo contexto humano onde acontece. Assim, os resultados variam de acordo com espaço e tempo. Assim, por questões fisiológicas, rituais, funcionais ou temporais, o ritmo pode se manifestar de diferentes maneiras. Isso não quer dizer que o contexto mude necessariamente as figurações rítmicas utilizadas. Mas como existe certa liberdade formal, dado que é uma manifestação musical que não está pré-determinada em partitura, existe uma variedade que se refere ao andamento, a intensidade e ao timbre. Os dois primeiros estão mais à mercê da disposição física dos executantes, e o terceiro se modifica dada a instrumentação disponível no momento.

2.4. A não linearidade como forma musical A idéia de construção de um todo linear, seja num livro, num filme, numa canção ou numa palestra é uma presença marcante em toda a “cultura ocidental”. Em geral parte-se do princípio de que algo bem construído tem que ser introduzido, desenvolvido, atingir seu ponto culminante, e finalmente chegar as suas conclusões. Ora, isso é um paradigma cultural que só a partir de meados do século passado começou a ser questionado. Será que a percepção é linear? O que pode se afirmar com tranqüilidade aqui, sem a pretensão de discorrer sobre áreas que não são objeto deste estudo, é que a percepção do ritmo é não linear. Ao contrário da música ocidental, porém, o ritmo africano contém a medida de um tempo homogêneo (a temporalidade cósmica ou mítica), capaz de voltar continuamente sobre si mesmo, onde todo fim é o recomeço cíclico de uma situação (SODRÉ, 1988, p.19).

Sem entrar na questão “mítica” mencionada pelo autor, o que se deve levar em conta por hora é que esta não linearidade influencia sobremaneira a maneira de ouvir, sentir e perceber esta música. Não existe no ritmo uma idéia de começo meio e fim, portanto de passado, presente e futuro. Não se trata de uma peça em que existe uma expectativa em relação ao seu ápice, ou a chegada do refrão. Nesse viés, o ritmo privilegia a noção psicanalítica do estar “aqui e agora”, um mergulho na temporalidade em si mesma, já que abre mão tanto de atingir um ponto culminante, como de funcionar dentro de uma estrutura lógica formal.

71 Então existem duas categorias no sentido de representação que a música pode fazer valer. Numa peça altamente estruturada, como, por exemplo, numa sinfonia de Beethoven, pode-se encontrar, uma relação estreita entre a organização da linguagem escrita e a construção da obra. Assim, a peça consta de várias partes que se concatenam através de uma lógica que ligada ao desenvolvimento da escrita. Introdução, apresentação, desenvolvimento do tema, “movimentos”que se assemelham a capítulos, com um uso de motivos recorrentes para que o “assunto” tenha unidade, e uma coda, que retoma o assunto e o conclui num grandioso final Nesse aspecto, a canção popular reflete, de maneira mais simplista, esse tipo de estrutura linear. É verificável, ainda que numa estrutura muito menor, essa ciclicidade. Dois motivos principais são responsáveis por essa composição cíclica: em primeiro lugar, a tradição tonal. Partindo de certo centro harmônico, a peça necessariamente retornará a esse tonos, proporcionando uma sensação de encerramento que, por vezes, será concomitante ao novo re-início. Tomando-se como exemplo a já exemplificada “forma canção”, a ciclicidade será demarcada exatamente por períodos de 32 compassos. Em segundo lugar, é inegável a presença da palavra cantada. E a métrica musical advém muitas vezes palavra cantada, da “poesia”. Considerando que essa “letra” é construída dentro de suas próprias características formais, em muitos casos a música se submete a ela. O universo formal destas canções é restrito devido, entre outras coisas, a métrica da poesia que constitui a canção e a métrica harmônica tonal utilizada pelas mesmas. Ao se avaliar o ritmo apenas como “pano de fundo”de uma canção, isto o insere numa espécie de amarra métrica, numa ciclicidade, portanto num conceito de linearidade que ele em sua origem não necessariamente tem. Não existe uma obrigação de que o ritmo esteja submetido aos conceitos europeus de antecedente e conseqüente, de pergunta e resposta, de quadratura, forma canção e outros elementos formais ou fraseológicos. É claro que estes parâmetros, enquanto parte de uma natureza musical primeira, ontológica e arquetípica, portanto comuns a todas as “músicas”, também aparecem no ritmo. Mas não com o restrito compromisso métrico que o samba, quando em seu traje canção, acaba se submetendo. E, nesse caso, também não há distinção entre o tipo de samba que se observe. Apenas as premissas citadas – seja

72 ele tonal, seja ele pano de fundo de um samba enredo ou bossa nova - já o submetem a essa perspectiva linear. O que é importante salientar aqui é que um ritmo existe muito além da canção, portanto mais livre do conceito formal fechado tonal europeu, ou mesmo de outras formas cantadas do samba mais “antigo”, tal como estrofe/refrão, solo/grupo, etc. Essa liberdade que o ritmo como um fim em si mesmo possui permite que sua percepção aconteça de forma não linear, e provavelmente é isso que dá margem ao grande leque de efeitos atribuídos ao mesmo, tais como hipnótico, catártico, entre outros. No ritmo do terreiro, na batucada, na música percussiva instrumental, não há tema. A clave não é o tema, é o micro-ciclo ao qual não se pode sequer atribuir começo e fim. Não há conclusão; se há disposição física, em principio ele poderia continuar infinitamente. Sua construção se inicia da mesma maneira que se desenvolve. Cada retrato é um fim em si mesmo, cada som convida a um mergulho no que vai se seguir, e assim não existe expectativa, apenas transe. Todo som que o indivíduo emite reafirma a sua condição de ser singular, todo ritmo a que ele adere leva-o a reviver um saber coletivo sobre o tempo, onde não há lugar para a angústia, pois o que advém é a alegria transbordante da atividade, do movimento induzido (SODRÉ, 1998, p. 21).

2.5. As conseqüências da oralidade na transmissão dos signos musicais Na história da música ocidental, descobriu-se uma maneira de escrever a variação das alturas antes de se sistematizar a notação de duração. Aceita-se como data o ano de 1320, quando é publicado o “Tratado Ars Nova”. A presença exclusiva dos intervalos de uníssono e oitava, mas o texto que servia como métrica de onde se construía a música, permitiam que a oralidade conseguisse dar conta satisfatoriamente da questão da divisão musical. Entretanto, como a evolução seguiu em direção a polifonia, pode deduzir daí que quanto mais polifônico, mais contrapontístico, mais necessária se faz a precisão das durações. A partir daí, todo o estudo da rítmica na música ocidental e sua

73 relação com a escrita se baseiam na proporcionalidade das durações. Assim, se uma semínima dura um tempo, a colcheia dura meio, e assim sucessivamente. No exemplo a seguir, nota-se que num compasso em 4/4, as figurações são construídas dentro desse sistema. Exemplo

10

Nas culturas orais, a aprendizagem da música não se dá pelo meio entendido hoje como educação musical formal. Antes de apontar as conseqüências musicais da transmissão oral no que se refere especificamente aos signos musicais, é importante recordar alguns fatores que refutam hierarquias equivocadas entre escrita e oralidade.

Agora se reconhece que a linguagem oral é um instrumento e uma riqueza fundamental da mente; a escrita, embora importante, é sempre secundária (OLSON, 1994, p. 25).

E ainda: Nós, usuários da escrita moderna, é que temos crenças especiais sobre a leitura e a interpretação que fazem com que outras orientações pareçam equivocadas ou primitivas (Id. Ibid., p.116).

Existe, a partir daí, uma margem para se afirmar que o fato de uma expressão artística se dar via oralidade não pressupõe nenhuma hierarquia em relação a outras, no que se refere a sua complexidade. Todavia, o grau de elaboração, também nesse aspecto, deve ser avaliado por um viés diferenciado. As culturas que não dispõem de escrita para preservar palavras não só têm recursos físicos para preservar a informação factual como também empregam recursos poéticos, inclusive recursos simbólicos, como a homofonia, a metonímia e a metáfora para tornar “memoráveis” as informações mediante a preservação de sua forma verbal (Id. Ibid., p. 116).

74

Essa referência serve para colocar não só que há preservação, mas também que, dependendo do tipo de conteúdo, o nível de precisão quiçá será maior. Esse parece ser o caso dos ritmos. Como suas células têm origem nesse passado arquetípico, sem nenhuma relação com a escrita, sua transmissão será mais eficaz via oral. Isso significa que toda a concepção das células rítmicas do samba aconteceu antes ou fora do conceito letrado de rítmica, de divisão musical, portanto livre de uma certa matematização destes padrões ou células rítmicas. Novamente a literatura sobre a música popular se constrói acerca de discussões sobre células rítmicas “escritas”, e por falta de fontes de outra sorte, até mesmo pesquisas sobre como deveria ser determinado ritmo em uma época específica foram feitas sobre arquivos musicais escritos. Isso pode até auxiliar na determinação de algumas das figuras básicas utilizadas, mas as sutilezas que caracterizam um ritmo não podem ser abarcadas pela escrita. A escrita não inclui as variações, o ritmo estava submetido à canção, não há notação polirrítmica, apenas para mencionar alguns parâmetros já citados. O que se percebe então é que, quando um processo de composição, bem como o de posterior leitura e execução, nasce dentro de um parâmetro matemático de tempo, como é o caso da musica ocidental e sua notação,o resultado terá um grau de vinculação muito grande a essa forma de conceber a divisão musical. Nesse sentido, a técnica influencia sobremaneira o resultado artístico. Já no caso da música transmitida de maneira oral, as figuras rítmicas, embora possam ser escritas de maneira aproximada, estão absolutamente livres de qualquer noção cartesiana de divisão do tempo em sua concepção primeira. Ao nascer numa cultura em que toda a aprendizagem se dá por via oral, o que se repete é o que se ouve, não sendo necessário que se decodifique, no sentido métrico ocidental, o que está sendo executado. As células rítmicas, os acentos e variações são pincelados sobre o tempo. Não se podia nem mesmo num contexto mais ancestral, definir algo como sendo a pulsação. Essas figuras musicais não estão necessariamente nem longe nem perto da escrita, apenas não a levam em consideração. A dificuldade enfrentada aqui só pode ser sanada através do anexo II da presente pesquisa, onde se poderá fazer a comparação entre uma mesma célula

75 rítmica do samba em três representações diferentes: escrita, executada de maneira matemática, ou seja, de acordo com a métrica “exata”, e, num terceiro momento, executada com todas as peculiaridades e sutilezas que só são preservadas pela oralidade, por quem as aprendeu de forma direta, ouvindo e vivenciado essas figuras. Mario de Andrade, embora se referindo a um cantador, demonstra bem certas conseqüências desse tipo de relação extra-formal que caracteriza a música popular: O cantador aceita a medida justa rítmica justa sob todos os pontos de vista a que a gente chama Tempo mas despreza a medida injusta ( puro preconceito teórico as mais das vezes) chamada compasso. E pela adição de tempos, talequal (sic) fizeram os gregos na maravilhosa criação rítmica deles, e não por subdivisão que nem fizeram os europeus ocidentais com o compasso. (1962, p. 36)

De qualquer forma a intenção aqui é apenas apontar algumas conseqüências musicais imediatas do fato de determinada linguagem musical, uma vez nascendo e existindo num contexto cultural que se baseia na oralidade tem características singulares, só perceptíveis via documento sonoro. Vale dizer que também nesse caso a técnica influencia diretamente o resultado musical.

2.6. A concepção de compasso na música ocidental Dentro da cultura européia, durante muito tempo, foi pequeno o espectro de fórmulas de compasso utilizadas. Novamente não se pode dizer em toda a música de concerto européia, dada as inovações introduzidas pela música contemporânea. Essa música se desenvolveu muito mais em direção à polifonia, bem como em seu desenvolvimento formal. Mas para que se verifique tal limitação, basta uma comparação dessa música, por exemplo, com a música indiana, tradição de mais de cinco mil anos, e que não se vale da harmonia, no sentido europeu. É de se imaginar, e facilmente verificável para quem se dispuser a estudá-la, que uma música tão antiga que não desenvolveu a harmonia nem a polifonia, tenha desenvolvido de maneira profunda suas concepções de melodia e ritmo. Assim, no caso dos ciclos rítmicos indianos, existem “talas” (denominação dos ciclos no contexto indiano) com uma gama muito variada de possibilidades, tais

76 como ciclos de 5, 7, 13, e outros, que na música ocidental seriam chamados de irregulares. Aceitando as premissas anteriores, e considerando a música popular brasileira, em especial a canção no samba, verifica-se que quase todo o repertório é escrito em 2/4, com as frases de tamborim em ciclos de dois compassos. Ora, num compêndio de teoria musical, como o já citado de Osvaldo Lacerda (exemplo 1, p. XXX), na aula sobre compassos será colocado que um compasso em 4/4 pressupõe tempos fortes e fracos a priori. Só que, no samba, é senso comum entre os músicos, e fato musical, que o segundo tempo é que se considera forte, já que esse segundo tempo é exatamente o acento mais constante e marcante nesse ritmo, executado pelo surdo, como fica claro no capítulo 3. A primeira vista não se pode medir as conseqüências em nível analítico, sinestésico, e mesmo paradigmático desta diferença. Para tal, seria necessária uma mudança significativa nas ferramentas de análise da educação musical formal. Toda a idéia de anacruse, de terminação masculina ou feminina, de cabeça de tempo, entre outros, estaria em posta em questão. A própria noção de divisão rítmica teria de ser considerada de outra forma. Colocando de maneira sucinta, o tempo forte numa é fraco na outra, e viceversa, o que impossibilita uma abordagem através dos mecanismos usuais de compreensão da métrica. E si a métrica das nossas danças obedece no geral a obsessão brasileira da binaridade, os ritmos, os movimentos são variadíssimos e com eles o caráter também (Id. Ibid., p. 67).

Entretanto, se não é possível mensurar tais desdobramentos, o mínimo que se deduz daí é que realmente é necessário, tanto num processo de análise quanto de ensino, que não se pretenda compreender o ritmo através dos processos usuais de análise. Insistência preventiva: na cultura em que o ritmo foi gerado não havia, obviamente, nenhuma concepção de compasso.

2.7. Autoria versus criação coletiva: temas em debate Tinhorão inicia assim sua “Pequena história da música popular”:

77 Por oposição a música folclórica (de autor desconhecido, transmitida oralmente de geração a geração), a música popular (composta por autores conhecidos e divulgada por meios gráficos, como as partituras, ou através da gravação de discos, fitas, filmes ou videoteipes) constitui uma criação contemporânea de aparecimento de cidades com um certo grau de diversificação social (1975, p. 5).

Em primeiro lugar, o ritmo é realmente transmitido de geração a geração, porém escrever “de autor desconhecido” parece supor que exista um autor, e esse é desconhecido. Pelo que foi visto até agora se pode dizer, no caso do ritmo, que esse é uma espécie de domínio público étnico. Assim, ninguém compôs “o” samba. As células rítmicas africanas e seu processo de mutação no desterro de seus portadores, são por assim dizer, recebidas, intuídas, trazidas à realização sonora pelos negros desde a África até o Brasil. Visto sob esse prisma, o “eu”africano só existe quando esta enquadrado por outros elementos ( sociedade, mito, terra, etc) que o completam; é o existente, que é um conjunto do ser com todos os elementos imaginários que constituem seu cosmo – é o conjunto de valores vitais de sua tradição que completam sua identidade (MUKUNA, 2000, p.200).

Pode-se notar que mesmo a noção de autoria individual é um paradigma, uma construção ocidental que hoje é mais homogênea no planeta, devido, entre outros, a interesses sócio-econômicos. A construção do eu individual é assunto complexo que não cabe no escopo desse trabalho, mas, em última instância, isso desemboca na historiografia do samba, em quem vai receber os direitos autorais. Do outro lado, em comunidades onde mais tempo vigoraram valores africanos de “ser”no mundo, e onde se cultivava o ritmo como expressão musical, houve dificuldade até de se instituir a noção de individualidade. Por isso, pode-se notar um processo gradativo, que se inicia na total ausência de autoria do ritmo em sua forma “pura”, ancestral. Advindo de um caráter étnico, reforça alguns dos argumentos colocados anteriormente como o fato de que não se pode inventar um ritmo.E, muito provavelmente, isso é um dos fatos que empresta a ele sua força, seu poder de expressão. Num segundo momento, como, por exemplo, nos encontros da Casa da Tia Ciata, o coletivo e individual têm delimitações mal definidas. Os processos de criação partiam de improvisos individuais alternados a estrofes e quadras coletivas, a ponto de não ser possível atribuir exatamente autoria a inúmeros sambas.

78 Desse ponto até hoje, com a mercantilização desse processo através do advento das gravações e sua divulgação por meios de comunicação em massa, a autoria é hoje algo claro. Entretanto, ao se observar um samba, pode-se notar com facilidade que esse contém o samba, determinante do gênero. Portanto, ainda que uma ou outra peça tenha esse ou aquele autor, há sempre algo de anônimo, de coletivo, o próprio ritmo. Vale dizer, em música popular existe sempre algo pronto sobre o qual vai se construir uma peça, o ritmo. Isso possibilita que um músico popular, ao se colocar diante elementos que constam numa partitura desse tipo de música, tais como melodia e cifra, saiba como se comportar diante da peça. Caso toque um instrumento melódico, acentua e ornamenta de acordo com gênero. Se sua participação é num instrumento harmônico, sabe como conduzir o ritmo na harmonia, e se toca instrumentos de percussão, executa as figurações do samba (vide exemplos no capítulo 3). Lembrando sempre que não existe apenas um samba, mas um grande universo de possibilidades, ainda que todos tenham a mesma denominação geral. Esse é um dilema interessante que perpassa, de certa forma, toda a discussão desse trabalho. Caso se eleja os contornos harmônico-melódicos como característica principal da autoria, o sistema atual está correto. Mas, se todos os sambas contém o samba, se o ritmo não é pano de fundo, e sim, o principal elemento dessa expressão artística, não é possível atribuir a ninguém os créditos por sua criação. Mais importante na citação de Tinhorão é a ressalva feita: “com um certo grau de diversificação social”. Por que é tão importante, para a realização da música popular, que exista tal diversificação? Porque essa é uma música de síntese. Porque sua existência só se tornou possível através de um processo de bricolagem musical, de diálogos culturais e confrontos e concílios étnicos. Talvez a melhor definição para música popular seja: uma forma musical que contém ritmo, no sentido abordado por esse trabalho.

79

2.8. A ginga e a questão da oralidade Em cada navio, invisível é lógica, embarcava a Rainha Jinga. (CASCUDO, 1999, p. 40). Nota-se, pela epigrafe acima, que Jinga era uma personalidade africana, meio histórica, meio lendária e, como mostra Cascudo, presente até hoje em inúmeras cantigas populares, principalmente as Congadas. Numa definição para suingue, lê-se: “Elemento rítmico do jazz, de pulsação sincopada, e que caracteriza esse tipo de música”. Nessa, como era se esperar, não há menção do que seja esse elemento, apenas que se refere a alguma característica rítmica peculiar. De fato, ginga, suingue, balanço, bossa, jogo de cintura, são todas expressões usualmente empregadas no Brasil em inúmeros contextos tais como futebol, música e, até mesmo, na maneira de lidar com a vida e as situações que ela oferece. Tem-se a impressão também de que existe uma compreensão disso. Principalmente entre os músicos populares, a expressão é empregada como sendo um fator objetivo: determinado músico tem suingue, outro não. Mas existe uma definição? O que é exatamente ginga? Será possível uma definição musical mais precisa? Tal como é empregado na música popular não temos de discutir o valor da síncopa. É inútil discutir uma formação inconsciente. Em todo caso afirmo que tal como é realisado (sic) na execução e não como está grafado no populario impresso, o sincopado brasileiro é rico (ANDRADE, 1962, p. 37).

Andrade já reconhecia uma distância entre a escrita e a execução, fato que quase pode ser utilizado como uma definição de ginga. Como? Ginga poderia ser colocada como a distância entre escrita e execução, no que tange aos ritmos populares. Mas isso não é o suficiente. Que distância é essa? Como mensurá-la? E no caso de ser apenas uma questão de acentuação, e não de métrica? Entretanto, não se pode concordar que é inútil discutir uma formação inconsciente. Inútil discuti-la com os parâmetros usuais da educação musical formal,

80 mas o que se propõe aqui é exatamente partir de outras premissas, para que se torne útil versar sobre o assunto. A questão da inconsciência é sutil: inconsciente é menos que consciente? Mario de Andrade a considera inconsciente pelo fato de ser domínio público ou étnico? Não se pode aprofundar questões relacionadas à consciência, pois essa é uma discussão fora do campo dessa pesquisa, mas inúmeros pontos podem ser frisados num viés musical. O primeiro aspecto a se considerar se refere à própria idéia de transmissão oral de figuras rítmicas. Como já colocado, se um indivíduo aprende música pelos moldes formais, via escrita, tenderá sempre a traduzir matematicamente as figurações rítmicas que tem de executar. Novamente, a técnica influencia diretamente o resultado. Portanto, se a aprendizagem da rítmica e a própria concepção da notação se dá por moldes métricos matemáticos, essa é sua referência técnica, seja no ato da escrita ou da execução dum texto musical. Em oposição, se outro indivíduo aprende via oralidade, não há qualquer preocupação rítmica com relação o ritmo. O que acontece é uma aprendizagem dessas figuras via imitação, e com isso, a preservação de qualidades sutis e ancestrais dessas células que simplesmente “acontecem” no tempo. A tentativa de escrevê-las será sempre uma aproximação. Um músico que conhece determinado ritmo, ao lê-lo, sabe transpô-la de volta à vida com seu “sabor” original. Caso contrário, restará apenas uma figura rítmica entre várias, provavelmente equivocada em sua acentuação, na duração de cada figura e na sua colocação em relação ao tempo. Vimos acima que este traço formal - a maior ou menor contrametricidade das varias versões de uma mesma melodia – pode ser relacionado à maior ou menor pertinência dos enunciadores à tradição oral ou erudita. Em outras palavras, as diferentes versões rítmicas não são socialmente neutras (SANDRONI, 2001, p.215).

A partir de um ponto de vista social, Sandroni atribui versões mais contramétricas a camadas mais baixas da população, onde o aprendizado tende a se dar muito mais por via oral. Numa abordagem menos sociológica o que se retém daí é que quanto mais oral, menos matemático, e se já é possível utilizar tal terminologia, com mais ginga. Outra questão diretamente ligada à ginga é o som quebrado. Esse é um som extra, obtido de várias maneiras de acordo como instrumento utilizado. Para que se

81 possa escreve-lo, é necessário um novo código de notação. Ainda assim, a forma como este som peculiar é utilizado engendra muitas variações não regradas, que resultam num certo tipo de casualidade aprendida via oral, tornando-o avesso à própria idéia de escrita. Novamente delimitando a discussão até o advento da música contemporânea, que incorpora o ruído de inúmeras formas, pode-se dizer que, no contexto da música erudita, esses sons seriam considerados imprecisões ou ruídos. Já nos ritmos populares, o chamado “som quebrado” é ferramenta fundamental para que o ritmo se expresse em todo o seu potencial. Assim, nas poucas tentativas que se fizeram no sentido de criar métodos de aprendizagem ou escrita dos ritmos para os instrumentos típicos na música popular brasileira, forjouse uma legenda na qual o som quebrado tem papel fundamental. Assim, o berimbau, por exemplo, tem três sons: a corda solta, a corda pressionada e a corda tocada de leve. Nesse último, deve-se encostar o dobrão na mesma, produzindo, assim, um som de altura indefinida e forte função rítmica. No exemplo 11, vê-se a legenda utilizada para tal som que, no caso das tradições relacionadas ao berimbau, é denominado escracho. Exemplo 11

Escracho: obtém-se o escracho encostando levemente o dobrão na corda e, ao mesmo tempo, batendo a vareta na corda (Junior et al., 1987, p. 5).

No caso do tamborim também se obtém, além do som da baqueta que percute o couro, um som por baixo desse com dedo médio da mão que segura o instrumento, fazendo marcações e células sutis que, somadas aos ataques mais claros, permitem a otimização de suas figuras e células rítmicas. Como já visto, apenas fatores como transmissão via oralidade, som quebrado e um alto grau de contrametricidade já seriam suficientes para limitar sobremaneira a

82 possibilidade de se escrever o samba, ou algumas de suas linhas rítmicas. Porém, existe mais um fator central, que é a questão das variações ou improvisações. Sob uma ótica erudita, a tendência é que se denomine um ritmo como ostinato. Vale dizer uma obstinação em repetir ininterruptamente cada uma das linhas rítmicas do samba. A diferenciação que deve ser feita é que, no caso de uma figura escrita inúmeras vezes em seguida, obtém-se um resultado praticamente igual. Não é possível considerar absolutamente igual, porque existe sempre um fator humano na execução que impossibilita que qualquer repetição seja completamente idêntica. Porém, no caso dos ritmos, o que acontece é que a cada nova repetição45 existem pequenas variações, cujo espectro de possibilidades é regido, como já visto, pela capacidade de seus executantes em ouvir seus companheiros e “conversar” musicalmente, bem como pela competência e repertório de figurações e possibilidades desses músicos. Em oposição, um músico competente, entretanto desconhecedor da tradição do samba, poderia, com certa facilidade, aprender as figuras padrão, as linhas mais básicas de cada instrumento ou naipe. Mas ensinar quando, como e onde essas variações são pertinentes é tarefa árdua. Possível, mas demanda anos de convivência, exatamente a premissa para que a transmissão de conhecimentos por essa forma fundamental de preservação da cultura humana, a oralidade, se dê de maneira eficaz.

45

Embora se possa verificar no capítulo 3 algumas dessas variações, seria uma contradição afirmar que essas seriam percebidas apenas via escrita, pois isso vai de encontro às afirmações feitas aqui. Já no anexo que contém as gravações, com acuidade auditiva, percebe-se tal fenômeno.

83

Capítulo 3 Estruturas rítmicas do samba: algumas análises

Este capítulo se propõe a analisar algumas questões sobre o ritmo brasileiro, em especial o samba, através das premissas que estão colocadas no capítulo 2. Pode-se enumerar como tópicos a simultaneidade, contrametricidade, ciclicidade, acentuação do compasso e ginga. Vai-se também sugerir outras ferramentas. Partindo do que autores relevantes para este trabalho afirmam acerca do assunto, pretende-se mostrar que, embora seja possível sintetizar grandes famílias de ritmos em algumas linhas rítmicas, deve-se ressaltar peculiaridades dessas linhas. Além disso, resumir um grande grupo de ritmos numa “time line” não é o suficiente, devido a premissa da simultaneidade. Mais um ponto onde cabe a leitura através dos parâmetros propostos no decorrer desta pesquisa. Existem outros, como por exemplo, a “ginga”, pois mostra que algumas “sutilezas” da execução são, de fato, impossíveis de serem escritas. A oralidade então se transfigura em forma precisa de transmissão de conhecimentos. Assim quer-se escapar da armadilha de prender tais manifestações em amarras de nomenclaturas, pois vale mais a pena investigar questões musicais propriamente ditas

do que denominações muitas vezes circunstanciais, dada a

natureza imprecisa da oralidade no que se refere a esse tópico. Em outras palavras, no quesito “estruturas rítmicas”, nota-se que a oralidade tem a capacidade de transmitir com acuidade as características mais marcantes de determinado ritmo. Por outro lado, denominações categóricas são sempre capciosas. Como determinar ritmos por suas nomenclaturas, se essas vivem constantes re-invenções de acordo com o espaço, o tempo, e o grupo cultural onde se manifestam? Para as investigações rítmicas, toma-se como ponto de partida o que Mukuna e Sandroni consideram as duas “time lines” básicas dentro do universo do samba. Acrescenta-se ainda mais uma figuração rítmica mencionada por inúmeros autores, mas poucas vezes vista sob uma ótica estritamente musical, o Partido Alto.

84 A inclusão desse cumpre dois objetivos: explicitar um ritmo muito citado que não foi descrito por nenhum deles e demonstrar, através dele, atravessamentos que se referem à hipótese central desse trabalho. Pelo Partido Alto pretende-se percorrer uma trajetória que se inicia no terreiro, no samba em seu estado batucada, somente percussivo, e que se apresenta como o denominador comum desse percurso. Daí, ele vai dialogar com a obra de Paulinho da Viola, num samba de

caráter “canção”. Num terceiro momento, nota-se a

presença dessas mesmas células rítmicas na obra de Tom Jobim, encerrando tal trajeto numa composição de música instrumental popular brasileira do Grupo Terra Brasil. Pesquisas

acerca

do

assunto

propõem

algumas

células

rítmicas

fundamentais dentro da música brasileira, em especial do samba. Mukuna (2000), em sua investigação acerca do que poderiam ser elementos musicais de origem Bantu presentes na música brasileira, detecta duas “time lines”: Exemplo 1

Exemplo 2

Essas figuras resumem uma parte dos ritmos brasileiros, em especial aqueles relacionados ao samba. E essa constatação independe da necessidade de averiguação da origem das mesmas. Quer dizer, para o que se pretende agora não é necessário determinar se são ou não oriundas da África.

85

3.1. Samba Antigo? Tratando então da primeira figuração, pode-se ressaltar uma série de aspectos relevantes ao interesse desse trabalho. Mario de Andrade atribui essa figuração exatamente ao samba rural paulista (1991, p. 151). Já Sandroni vai chamar essa figuração de samba “antigo”. Vai considerá-lo menos contramétrico que o exemplo 2 (p. 84), e entender que houve uma mudança de paradigma do primeiro para o segundo entre 1917 e 193046. De novo, o interesse musical não deve se basear no que se consagra mercadologicamente como sendo o samba “oficial”. O que se deve ter em mente é se tal ritmo continua vivo ou não. Essa figuração rítmica continua presente, sendo utilizada e executada por inúmeros músicos e compositores, independente do nome que estes lhe dão. Portanto, ciclicidade, simultaneidade, contrametricidade, acentuação de compasso e ginga devem ser considerados sempre. Essas ferramentas são necessárias pois através delas torna-se

possível verificar o que mais interessa

aqui: os atravessamentos e os diálogos culturais e musicais. Nessa direção, o “samba antigo” está presente hoje em inúmeras manifestações musicais, como por exemplo, na capoeira47. Embora seja uma forma de expressão que envolve não apenas música, jamais prescinde desta. Pode-se ouvir então, no anexo V, faixa 1, a figuração descrita no exemplo 1, num disco gravado em 1983. Como já mencionado, devido a imprecisões próprias da oralidade, os nomes atribuídos aos ritmos variam sobremaneira. Assim, uma mesma “levada” 48, pode ser chamada de Afoxé, Samba de Roda, ou Samba Baiano. A característica mais marcante desse ritmo é a presença de duas colcheias no segundo tempo. Isso vai caracterizar a maior discrepância musical com aquilo que Sandroni chama de paradigma da Estácio, que têm a presença da sincopa49 no 46

“(...) penso que o segundo paradigma demorou mais a ‘ pular a fronteira’ (por assim dizer) que separa a música folclórica da música popular, por ser muito mais contramétrico que o outro (Sandroni, 2001, p. 221)”. 47 Existem inúmeros “toques” de berimbau, inúmeras células rítmicas. Mas a maioria tem a colcheia no segundo tempo, característica marcante do chamado “samba antigo” ou rural. 48 Maneira habitual entre os músicos de se denominar um ritmo. 49 Já discutido no segundo capítulo a concepção de síncopa. Aqui o termo é usado genericamente para a figuração semicolcheia/colcheia/semicolcheia.

86 segundo tempo, com a ligadura da última semicolcheia ao próximo compasso (vide: exemplo 2, p.84). Em outras palavras, um divisor de águas

fundamental entre os dois

paradigmas é a existência, sempre no segundo tempo, num as duas colcheias, e noutro a síncopa com a ligadura. Num contexto de música popular, essa é exatamente a informação musical mais relevante para que o músico, ao tocar seu instrumento, não contrarie a natureza do ritmo em questão. Ou melhor, para que toque de maneira sincrônica e participe de forma adequada do arcabouço rítmico da peça. Um outro ponto é como mensurar um maior ou menor grau de contrametricidade das duas estruturas. Como já colocado, o próprio conceito se vale da idéia de que exista uma métrica padrão, para que algo seja definido como seu contrário. A primeira impressão que se têm é que realmente uma ligadura no último quarto do segundo tempo (exemplo 2, p. 84), é mais contramétrica do que as duas colcheias (exemplo1, p. 84). Entretanto, o acento na interpretação dessas duas colcheias é exatamente no tempo contra da segunda colcheia do segundo tempo.

Exemplo 3

Esse fato realmente põe em dúvida o grau maior ou menor de contrametricidade. Visualmente, na partitura, o uso de recursos gráficos sofisticados tais como a ligadura dá a entender novamente que o “Paradigma da Estácio” (assim Sandroni denomina o exemplo 2, p. 84) é mais contramétrico. Ora, pode-se encontrar a síncopa nas duas linhas rítmicas. A diferença mais marcante recai sobre e existência de colcheias ou de sincopas ligadas, no segundo tempo do compasso. Mas, ao se perceber que o acento mais proeminente no exemplo 3 recai no contratempo, por que afirmá-lo como menos contramétrico? A oralidade que permeia todos esses processos de transmissão não está trabalhando via consciência musical letrada. Portanto o grau de complexidade da escrita, embora possa revelar a inadequação desta aos ritmos brasileiros, não pode

87 explicitamente denunciar um maior o menor grau de contrametricidade, ao menos nessa comparação das duas linhas básicas. Existe mais um ponto importante que deve ser levado em conta no decorrer deste capítulo, e que também serve de argumento a essa polêmica questão de qual seria a “time line” mais contramétrica: a primeira linha (exemplo1, p. 84) acontece, na maioria dos casos, no grave. Em especial no segundo tempo, é padrão que ocorra nos instrumentos responsáveis por tais linhas. Em geral os instrumentos para isso são o surdo ou o treme-terra50. Já no que se refere ao samba dito “padrão” (exemplo 2, p. 84), a linha que o caracteriza, como veremos detalhadamente a seguir, é uma linha médio-aguda, em geral executada pelos tamborins. Para experimentar sensorialmente o grau de contrametricidade dessa primeira figura, basta então que se esteja batendo palmas (exemplo 4) numa roda de capoeira, para que se perceba essa sincopação. Afinal, além do segundo tempo se caracterizar como mais forte, o acento principal é ainda no contratempo desse segundo pulso. Exemplo 4

O que as mais das vezes caracteriza o desenho rítmico do bumbo é uma batida mais forte, na segunda metade do segundo tempo de cada compasso, ou de cada dois compassos:

ou

50

Não se pode deixar de observar que nomenclatura interessante para esse instrumento; treme-terra. Sua origem: um grande tronco oco ou uma barrica de navio com um couro esticado.

88

Mario de Andrade (1991, p.151) coletou tais figurações em 1931, no samba rural de Pirapora. A citação, textual e musical, visa apenas apontar onde se dá o acento dessa “time line”. Interessante também lembrar que ao se adentrar na arriscada esfera da oralidade em música tentando compreender analiticamente seus pormenores, correse o risco de esquecer como aquele que executa o ritmo o percebe. Assim, quem que participa de uma roda onde esse ritmo está sendo executado, entende que o tempo 2 é o primeiro tempo, ou ao menos o início da célula. Ao se solicitar que qualquer indivíduo que não seja músico letrado que execute as palmas, ele começa na figura do segundo tempo. Essa mesma figuração pode ser encontrada em inúmeros exemplos na literatura musical de épocas distantes. Note-se o ritmo do acompanhamento da segunda parte do choro “Odeon” de Ernesto Nazareth (exemplo 5), ou ainda numa faixa do CD “Olho de Peixe”, do compositor Lenine, de 1993 (anexo V, faixa 2).

Exemplo 5

Em suma, não cabe aqui discutir se isso era considerado ou não o ‘samba’ legitimado pela historiografia tradicional. Não existia um samba, mas uma gama de matizes diversos: marchas, maxixes ou lundus? Não se pode afirmar muito, em

89 especial quando as referências se remetem a uma época que antecede as gravações e o rádio. Curiosamente, esses veículos de registro e divulgação acabaram sendo os principais fatores de homogeneização, responsáveis pela existência hoje de uma idéia padronizada do que seja o samba. Doce dilema. Difícil afirmar categoricamente como era ou não o samba pois não havia registro sonoro. Depois, a possibilidade de registrar vai cristalizar uma versão como sendo o padrão. O rádio, a partir do momento em que atinge um grande contingente de ouvintes, passa a ter um poder de denominação de gêneros sem precedentes. Mas isso não quer dizer que, escondidos sob outros nomes e executados por outros agrupamentos, outros ritmos deixaram de ser cultivados. 3.2. Samba Novo? Existe realmente uma certa unanimidade do que passou a ser chamado e aceito como samba, ritmicamente falando. Localizado em especial no eixo Bahia/Rio de Janeiro, a célula do exemplo 2 (p. 84) é unanimidade no que se entende como sua “time line” mais inconfundível. O que parece necessário é então sublinhar suas peculiaridades, já que o universo de variações é extenso. Para começar, muito embora o samba se escreva, dentro da tradição brasileira, em 2/4, a time line, a clave do samba , completa seu ciclo num mínimo de dois compassos. Isso soa um tanto contraditório, mas existem nuances musicais que podem justificar tal fato.

90

3.2.1 A linha grave Em primeiro lugar, deve-se observar que a linha grave, dos surdos, tem seu ciclo em um compasso. Pode-se averiguar que o tempo forte é o segundo. Embora isso contradiga a tradição européia que supõe ser o primeiro tempo o mais forte, é realmente o que acontece no samba51. O primeiro tempo aparece como o abafamento da pele do instrumento depois do acento percutido no segundo tempo anterior, ou ainda como um ataque, porém sempre com o ‘couro’ abafado. Ainda não se chamou atenção para essa mudança de concepção do que é o tempo forte. E sua relevância se incrementa na medida em que essa acentuação muda a percepção da própria “time line”. Na faixa “Samba Quente”, por exemplo, transcrita na íntegra no anexo II (p. 120), e ouvida na faixa 3 do anexo V, pode-se observar do início ao fim da peça o acento da linha grave no segundo tempo.

Exemplo 6

O uso da clave de fá tem a intenção de fortalecer a noção de que esta linha é a mais grave. Também o uso do movimento de quarta (abaixo) não é gratuito. Essa tem sido a forma com que inúmeros músicos vêm transportando, para instrumentos de afinação definida, responsáveis pelas linhas graves, a sonoridade do surdo com o acento no segundo tempo52.

51

Aliás, não só no samba, mas esse é o caso do Jazz. Escrito em 4/4, todos os praticantes desse estilo musical sabem que os tempos forte são o dois e o quatro. 52

Em geral se atribui ao baixista Luizão Maia essa concepção, essa maneira de tocar o contrabaixo.

91

3.2.2 As semicolcheias Em segundo lugar, existem muitos instrumentos que fazem linhas de semicolcheias, como por exemplo o pandeiro. Inventam-se legendas com o intuito de descrever tais linhas rítmicas com o mínimo de propriedade. No entanto, o que se verifica é que a notação não se aproxima de forma nenhuma da realização musical. Nesse caso lança-se mão de uma das premissas colocadas no capítulo anterior: a ginga. Essa pode ser concebida aqui como um conjunto de minúcias tão sutis, que não podem ser expressas via escrita. O que se pode fazer é comentar algumas delas, e depois utilizar a faculdade apropriada para a apreensão de tais sutilezas, a audição. Em Pirapora, um tocador mais virtuose trazia na mão esquerda uma varinha agarrada pelos dedos mínimo, anular e pai-de-todos. Mantinha a estabilidade do bumbo com os outros dois dedos, segurando-o pela guarda de metal, e batendo com a varinha de couro, obtinha sons suplementares mais fracos, de excelente efeito (Andrade, 1991, p. 151). Dessa citação de Mario de Andrade, de novo sobre o samba rural paulista, pode-se inferir certos pontos. De fato, ele escreve a linha principal (vide: citação pg. 88), mas não esses “acentos fracos”.

Conhecedor de detalhes constitutivos da

música européia, repete a mesma abordagem de sua colocação feita à introdução desse trabalho: em troca de descrever com maior exatidão musical o que ouvia, apenas descreve o resultado sensorial desses sons suplementares: “de excelente efeito”. Isso mostra a necessidade de utilização dessas novas premissas analíticas. Nesse caso, o som quebrado, já colocado como um fator constituinte da ginga. No caso do pandeiro, por exemplo, existe um movimento de semicolcheias realizado pela mão direita (no caso dos destros). Nessas já existem pequenas diferenciações de sonoridade que dependem de que parte da mão percute a pele: o polegar, os dedos ou a base das mãos (Anexo V, faixa 4). Enquanto isso, a mão esquerda, que segura o instrumento, tem o dedo médio livre para abafar a pele por baixo, criando inúmeros toques mais delicados que a divisão contínua executada na parte de cima da pele. Além disso, ao mesmo tempo em que tudo isso ocorre, a mão esquerda balança o instrumento de tal forma

92 que as platinelas, pequenos pratos de ferro colocadas em pares ao redor do pandeiro, realizam mais uma linha, essa mais aguda. O pandeiro realiza ainda a linha grave, ou seja, os toques de primeiro e segundo tempo, com o segundo acentuado, em contraste com o abafamento do toque do primeiro tempo. Na linha mais aguda, o que se ouve é basicamente a acentuação de síncopa sobreposta às semicolcheias. O que acontece

é uma

acentuação nos segundos e quartos pontos da figuração contínua. Exemplo 7

Caso se exclua as cabeças de tempo, que têm por função executar a linha grave, o resultado é:

Exemplo 8

Ou então, não relevando a questão da duração:

Exemplo 9

Muitos músicos tocam essas conduções por horas, dias, meses e anos a fio. O grau de detalhamento que se pode alcançar nessa prática é impossível de ser escrito. E mais, quando a aprendizagem se dá na primeira infância, incorpora-se

93 sutilezas sem fim, que só mesmo a transmissão oral é capaz de efetivar. A título de ilustração, ouvir o anexo V, faixa 4. Sobre o último ponto, existe um paralelo interessante que pode ser traçado. Estudos médicos mostram que se o indivíduo é criado numa língua que não tem determinado som, além de não conseguir reproduzi-lo depois de adulto, não consegue nem mesmo reconhecê-lo. Talvez isso explique por que é tão difícil para um sujeito de outra cultura aprender esses atributos sutis do que está se chamando de ginga. A confusão que não deve ser feita é exatamente nas relações entre oralidade e grau de detalhamento. Numa concepção linear53, a escrita possibilita um grau de detalhamento formal estrutural geral que não seria possível sem ela. Em oposição, esses “sotaques”, essas minúcias, esses leves toques, são um componente fundamental do que se quer fazer demonstrar aqui: a complexidade de um ritmo. E nesse caso, isso só é possível via oralidade, onde a escrita se configura como registro quase caricato dessas estruturas. 3.2.3 A “Time Line” Faz-se necessário verificar questões relativas à própria “time line”. A observação inicial, quando se comparam os exemplos 1 e 2 (p. 84),

é que a

segunda não se dá na linha grave. É uma linha rítmica chave (clave), que aparece sendo completada pelo acento no segundo tempo no grave. Acompanhe a partitura “Tamborins”, anexo III (p.138). Ouvir faixa 5 do anexo IV. Na gravação e partitura, note-se que os primeiros compassos são , excetuando-se a ausência do acento do segundo quarto do segundo tempo, a “time line” do exemplo 2, p 84. Embora exista uma grande gama de variações, o que chama mais atenção como característica principal é a última semicolcheia ligada de um compasso a outro54. Isso justifica a necessidade de, no mínimo, dois compassos para se escrevê-la. Em todas as variações notadas por Sandroni, e nas batucadas pesquisadas neste, o fator comum é exatamente essa ligadura que se inicia no último quarto do segundo tempo.

53 54

Cf. introdução, 2.4. Sem mencionar a síncopa, que será tratada a parte no próximo item.

94

Exemplo 10

Até mesmo outras figurações de ritmos próximos colhidos na África, segundo Mukuna e outros estudiosos55, têm esse traço unificador. Essa é uma característica contramétrica. Através da audição nota-se que este acento não é um simples ligado, onde o apoio continua sendo no segundo tempo ou na cabeça do primeiro que vem a seguir. Não se pode ter uma visão de rítmica, no sentido cartesiano de divisão métrica do tempo, e sim uma concepção de ritmo. Essa ligadura caracteriza a célula. Não é, como no caso da música européia em geral, um recurso utilizado eventualmente. É uma propriedade desse ritmo, e pode ser entendida como uma transferência do ponto de apoio. Essa é a uma das definições de síncopa, mas aqui têm uma ênfase diferente. Na oralidade ela se transfigura realmente em ponto de apoio, inclusive por que nessa não existe a noção do que seria a pulsação referencial. Todos os músicos que tocam instrumentos harmônicos sabem que se a melodia aparece ligada dessa forma, deve-se adiantar inclusive o acorde do próximo compasso. Note o exemplo a seguir:

Exemplo 11

55

Mukuna menciona Kubik

95 O acorde no primeiro compasso é Dó, no segundo é Lá com sétima, e no terceiro, Ré com sétima, que já vigora a partir do último quarto do segundo tempo. Assim se adianta não só a melodia, como também o acorde do próximo compasso.

Exemplo 12

É possível

traçar algumas outras características, mas o primordial na

concepção desse trabalho é que se aceite a oralidade como forma legitima e eficaz de transmissão de determinados tipos de conhecimento musical. Pode-se se escrever, transcrever, enumerar características, mas a audição continuará sendo o sentido insubstituível para a aprendizagem de qualquer ritmo. 3.3 A síncopa por ela mesma. Quais são a perguntas que relacionam com propriedade a síncopa, essa controversa figuração musical, e o viés adotado aqui? Como se dão às relações entre síncopa e oralidade? Como construir um tipo útil de análise? Nesse capítulo, a discussão tem se baseado na idéia de que o maior diferencial musical entre as “time lines” principais no universo do samba é a presença síncopas com ligaduras ou de colcheias no segundo tempo. Entretanto, nota-se nas duas linhas rítmicas como um todo, seja de forma alternada ou subseqüente, a presença das figuras de síncopa. Em alguns ritmos afro-americanos, onde se podem sublinhar os norteamericanos, os cubanos, e os brasileiros, existe uma figuração que funciona como célula básica, como o mínimo elemento a que se pode reduzir aquela dada

96 linguagem56.

No

caso

do

samba,

essa

figura

é

a

síncopa

semicolcheia/colcheia/semicolcheia.

Colocando de outra forma, os dois tipos de samba até aqui analisados têm como menor fragmento que ainda detém a essência do todo, a figura musical acima descrita. Essa figura pode aparecer em inúmeras formas, de efeito similar. Exemplo 13

ou

Exemplo 14

E o efeito similar deve-se ao fato de que o exemplo 13 omite o acento tético, o menos importante. No ex. 14, além disso, despreza-se a duração, muitas vezes irrelevante no que se refere a instrumentos de percussão. Duas considerações devem ser feitas a partir daí, uma pelo aspecto estrutural e outra de caráter organológico. Sobre sua estrutura, o ataque nunca recai sobre a cabeça. Exceto, como já visto, nas linhas graves. A definição de contrametricidade, de sincopação e de fraseado “off-beat” baseia-se exatamente no fato de que os acentos não recaem sobre a própria pulsação. Isso explica porque a diferença entre a figura completa e a variação onde há ausência da cabeça de tempo (exemplos 13 e 14) é irrelevante. Quanto ao segundo, a questão das durações é emblemática, na medida em que, ao se originar num universo percussivo, o ataque é muito mais relevante do que a duração, do tempo que a nota se estende ou não. 56

Ao utilizar o termo “linguagem”, não existe nem intenção nem pretensão de adentrar em qualquer esfera semiológica ou lingüística, apenas utiliza-se o termo com freqüência no contexto de arranjo.

97 Já o segundo ataque, que ocorre no segundo quarto de tempo, é uma das marcas registradas dessa figura57. Na verdade, quando da passagem da escrita para a realização, existe um apoio sobre o próprio pulso (beat), que não acontece na esfera da oralidade. Quando o caminho se dá ao contrário, ou seja, da percepção da realização para a escrita, a denominação correta seria de uma transferência do ponto de apoio. O conceito de transferência de ponto de apoio deve ser entendido a partir da oralidade. Uma vez que essa não conhece a racionalização do conceito eurocêntrico de rítmica, as colocações musicais típicas do samba não são acentos “fora” do pulso, e sim, apoios próprios da natureza do ritmo. Nesses, enquanto criações coletivas arquetípicas, de ontologia perdida nos primórdios da humanidade, na há dúvida de que o fenômeno se dá da percepção para a escrita. E essa transferência de ponto de apoio não é, com já dito, um recurso ocasional, nem mesmo sistemático. É uma característica dos ritmos afro-americanos em geral, e do samba em particular. E, na didática da oralidade, se é que se pode utilizar tal terminologia, não existe uma progressão no ensino da rítmica onde se aprenda primeiro as figuras mais cométricas, até que se atinja as mais contramétricas. O vocabulário sincopado é, pelo contrário, repetido desde a idade mais tenra, quando dentro dos parâmetros que caracterizam essa forma musical. Quanto à última semicolcheia, pode-se separá-la em dois tipos: quando ela se dá no primeiro tempo do compasso, e quando ocorre no segundo. O primeiro caso denota a presença de mais uma nota num ponto inusitado, essa capacidade sem par do samba de estar sempre atacando notas que contrariam a pulsação. Além do último quarto do primeiro tempo do samba antigo (exemplo 15), o aparecimento de notas que aí ocorrem se dá, de maneira bastante constante no choro.

Exemplo 15

57

Adote-se a abreviatura asq (acento no segundo quarto de tempo).

98

A seguir, dois exemplos de acompanhamento de choro, sendo que muitos músicos chamam o segundo de samba-choro. Vale lembrar que não esta, nesse momento, se considerando a linha grave.

Exemplo 16

e

Exemplo 17

Nessas figurações ligadas ao choro, é menos usual e presença de ligaduras entre compassos. No segundo tipo de síncopa de último quarto de tempo, ocorre com freqüência é a ligadura com o próximo tempo. Mais característico ainda, no caso do samba, é quando essa acontece no segundo tempo, ligada ao próximo compasso. Essa transferência do ponto de apoio tem efeito pungente. Como já visto, literalmente adianta-se em um quarto de tempo a cabeça do próximo compasso. Isso ocorre não só em nível rítmico, como também melódico e harmônico, já que se adianta o acorde do acompanhamento. Aliás, a analise harmônico/melódica considera o fenômeno um adiantamento em um quarto de tempo da estrutura como um todo. Assim que esse último quarto de tempo, quando atacado, pode aparecer ou não ligado. Quando aparece, ocorre a transferência do ponto de apoio. Essa tem

99 efeito mais marcante quando aparece no segundo e último tempo do compasso, já que se adianta toda a estrutura. Faz-se apenas uma ressalva pontual, porém fundamental, em relação ao uso da estrutura melódica, em especial quando cantada, como ferramenta de análise: a divisão é por demais flexível, já que a melodia é criada e transmitida, na maioria dos casos, oralmente58. Assim, a análise tem caráter ilustrativo, e a transcrição é uma aproximação da execução. Por outro lado, essa técnica é de grande valia dado que a melodia é composta nos moldes rítmicos do ritmo sobre o qual ela é concebida. Insistência

necessária

ao

objetivo

desta

pesquisa:

não

é

possível

compreender aspectos fundamentais do samba via escrita. A execução real é fugidia a notação, brinca com ela, da mesma forma em que trapaceia59 com o tempo, sincopa-o! Não se deixa apreender em amarras da “rítmica”. Tudo acontece no universo do “ritmo”. Exemplo17

Legenda: asq: acento no segundo quarto de tempo. Obs: também é uma transferência do ponto de apoio.

58 59

Essa melodia foi transcrita por mim, baseada na interpretação do próprio autor. No sentido que De Certeau aplica ao conceito de trampolinagem.

100 ssl: síncopa sem ligadura no último quarto de tempo tpa: forte transferência do ponto de apoio (quando ligado e no último quarto do segundo tempo).

No segundo compasso, aparece no segundo tempo a figuração de sincopa. Só aí já existem duas transferências do ponto de apoio. O acento no segundo quarto de tempo (asq), e o acento do último quarto, sendo que este último, como já visto (exemplo 11), adianta todas as funções em relação ao próximo compasso (tpa). Já os compassos 5 e 6 devem ser entendidos como uma frase de dois compassos. Omitindo-se a ligadura entre os dois compassos, o motivo rítmico é idêntico:

Exemplo 18

e os pontos de apoio são o acento do segundo quarto dos primeiros tempos, bem como os últimos quartos dos segundos tempos.

Exemplo 19

Nos compassos 9, 10 e 11, respectivamente, não há nota no primeiro tempo do compasso. A presença de um grupo semicolcheias (tempo 2, compasso 9) é usual, e muita vezes justificada por motivos de prosódia, da quantidade de sílabas do texto. O que acontece, ao se ligar a ultima semicolcheia ao próximo compasso é uma acentuação que subentende a síncopa. Ocorre então o início de uma serie de 5 transferências do ponto de apoio. O que se resulta numa série de síncopas ligadas que dão uma sensação de polirritmia.

101 Isso por que são como que colcheias, deslocadas uma semicolcheia em relação à pulsação. Em suma, a análise quer mostrar uma serie de fatores já vistos, e que podem ser enumerados conjuntamente: Primeiro: a síncopa é a célula básica, o impulso motriz60, a figura mínima aonde ainda se pode distinguir aspectos da natureza do samba. Segundo: o alto grau de contrametricidade, dada a recorrência de acentos fora da pulsação, chamados então “transferências dos pontos de apoio”. Terceiro: tudo deve ser considerado com uma concepção sui generis de tempos fortes de compasso. Como já visto, o tempo forte característico é o segundo. Quarto: impossível de ser detectado via escrita, por inúmeros fatores já colocados aqui, a “ginga” característica é uma qualidade intrínseca desse tipo de universo ritmo. Pode-se considerar uma forma de detectar a ginga a distância entre a escrita e a execução. Com a partitura em mãos (anexo IV, p. 140), e a gravação do próprio autor (anexo V, faixa 7), observa-se à forma com a qual o autor interpreta o samba. O fator ciclicidade, e sua concepção “não linear”, não pode ser observado, pois o que se vê aqui é uma análise de características do samba através da estrutura rítmica da melodia. Como já visto, uma vez dentro de uma quadratura estrófica, das amarras de uma canção, não se pode notar esse aspecto peculiar, apreciável apenas quando o ritmo está em seu formato “batucada”. 3.4. O atravessamento pelo Partido Alto A abordagem do Partido Alto pode se dar em diferentes contextos. Às vezes, o enfoque se refere à maneira de se lidar com o texto, em outras ainda a questão é abordada de maneira mais sócio-antropológica. Por exemplo, quando indagado sobre a Casa da Tia Ciata, João da Baiana atribui o gênero aos fundos da casa ou seja, nem terreiro, nem sala de visitas. Como sempre há aqui uma preocupação com a inter-relação entre questões culturais e seus desdobramentos rítmicos, quer-se traçar um paralelo entre a idéia de samba antigo, partido alto e samba moderno.

60

Motivo, moto, movimento.

102 Num paralelo entre texto61 e ritmo, parte-se do que Mario de Andrade detectou para o samba rural. O canto

era improvisado, num processo que ele

chamava de “consulta coletiva”. Interessantíssima também, nessas improvisações longas, a evolução da linha melódica, que principiava sempre com decidido sabor eclesiástico, às vezes diretamente inspirado no cantochão. Ia se modificando, até adquirir um caráter mais negro, mais brasileiro e então o samba principiava (1991, p. 123).

Já no caso do samba “moderno”, sabe-se que existe uma forte relação entre a consagração dessa figuração (exemplo 2, p. 84) como sendo o samba geralmente aceito com tal, e a fixação da idéia de autoria. Os dois acontecimentos têm uma explicação comum: o início da era do rádio e das gravações. É um processo praticamente simultâneo, pois, se o alcance do rádio gera a homogeneização da idéia do que é o “verdadeiro samba”, os interesses econômicos desse novo veículo de comunicação implementaram a necessidade de fixação da autoria. Isso por que enquanto não havia formas de registro em áudio e tampouco sua conseguinte difusão, o processo de autoria se dava via edição de partituras, portanto pela música que se escreve. Mas agora, a possibilidade de gravar significava que se podia registrar qualquer evento sonoro. E alguém tinha de ganhar com isso. Um samba que fosse supostamente criado coletivamente, podia então ser gravado e ter sua autoria atribuída a quem a pleiteasse62. Entre esses dois extremos, domínio público e autor determinado, como se encaixa o Partido Alto? Segundo sambistas “tradicionais”, este se caracteriza por ser uma espécie de jogo, onde há uma parte fixa da letra, e outra improvisada. Uma espécie de desafio, onde um solista propõe e o coro improvisa. Esse tipo de traço pode ser atribuído não só a outros tipos de samba, mas até mesmo a música africana, responsorial63 por excelência. Se no procedimento em relação à letra, o Partido Alto está à meio caminho entre o samba “antigo” e o “novo”, é isso o que acontece em termos de estruturas rítmicas. 61

Texto, no sentido de como as “letras”, as palavras, eram dispostas nos diferentes tipos de samba detectados tratados aqui. 62 É famosa a frase atribuída a Sinhô “Samba é que nem passarinho, é de quem pegar”. 63 “O solista canta, canta no geral bastante incerto, improvisando. O seu canto, na maioria das vezes é uma quadra ou dístico. O coro responde. O solista canta de novo. O coro torna a responder” (Andrade, 1991, p.116)

103 Se a característica mais marcante do samba “antigo” é a presença das duas colcheias no segundo tempo, e do samba moderno a ligadura da última semicolcheia de um compasso a outro, o partido alto é a exata síntese entre tais características. O exemplo abaixo deve ser considerado a “time line” do Partido Alto.

Exemplo 20a

A mesma figuração com a tradicional variação de alturas da cuíca. A ligadura do compasso par para o ímpar deve estar sempre subentendida. Exemplo 20b

Segundo as ferramentas propostas, a análise dessa “time line” seria:

Exemplo 21

No segundo tempo dos compassos 1 e 3 (portanto os impares) acrescentouse uma nova legenda, “sbant” (samba antigo), denotando a presença de colcheias no segundo tempo, característica do “samba antigo”.

samba rural, ou ao que Sandroni chama

104 Já no segundo tempo dos compassos pares, 2 e 4, a presença da síncopa sem a nota menos importante, a cabeça de tempo. Então as duas transferências de pontos de apoio: o acento no segundo quarto de tempo, e o adiantado de semicolcheia, típico da ”time line” do samba moderno. Entretanto invertida na métrica dos compassos, pois aqui acontece do compasso par para o impar, e no samba moderno (exemplo 2, p. 84), acontece do compasso impar ao par. Pode-se notar também os acentos gerais principais, que coincidem com a linha aguda da cuíca:

Exemplo 22

Para facilitar a comparação e visualização, seguem abaixo as três “time lines” vistas até aqui, sempre com quatro compassos. Exemplo 23: Time line 1

Ex exemplo 24: Time line 2

E exemplo25: Time line 3

105 Na “time line” 3 existe uma alternância entre o que se determinou como os traços que mais marcam, ou particularizam, a diferença dos pontos de partida desse capítulo, os exemplo 23 e 24. Mas será que isso não é conflitante? Exatamente aquilo que marca, na opinião de Sandroni, a grande mudança de paradigma no conceito de samba, convivendo simultaneamente no que todos os autores mencionam, o Partido Alto, mas nenhum teve a curiosidade de transcrever? No que tange a nossa tese principal, será que no samba batucada existe esta forma? É resposta é sim. Verifica-se que essas figurações estão presentes no samba só percussivo, numa canção de Paulinho da Viola (1978), num arranjo da obra gravada de Tom Jobim (1987), e ainda numa gravação atual (1998) de música instrumental, de um grupo atuante no cenário musical paulistano hoje, o Terra Brasil( 1998). O samba, enquanto universo de figuras rítmicas, com seus arquétipos em ritos funcionais africanos, chega ao Brasil. Aqui dialoga, sofre transformações, mas preserva traços marcantes que o distingue da música européia. E através de “táticas”, como coloca De Certeau, usa canções que possam lhe dar credibilidade. Isso

lhe permite cruzar os biombos, realizar atravessamentos, que não seriam

possíveis sem esse diálogo entre as estruturas consagradas no terreiro e as formas europeizadas de organizar os sons. Nesse sentido, a própria canção faz as vezes de mediador cultural. Numa discussão se o ritmo é ou não um simples pano de fundo , ao se olhar essa problemática através do ritmo, o que se percebe é exatamente o contrário: a letra, as alturas e durações musicais, a melodia e harmonia tonais, a poesia, a forma, a quadratura estrófica, enfim tudo que possa definir “canção”, é pano de fundo, ou disfarce de frente, para o ritmo. E hoje, ao supor que se esta ouvindo, por exemplo, a gravação de uma música de Tom Jobim, com determinadas qualidades harmônicas e melódicas, se esta a mercê das sensações geradas por essas figuras rítmicas ancestrais. Ainda que modificadas, transformadas e adaptadas, preservam intactas algumas de suas qualidades e características principais, capazes de imprimir até hoje efeitos dinamogênicos e sinestésicos marcantes naqueles que as estão escutando. A exatidão das figurações, enquanto atravessam diferentes matizes, diferentes formas de se apresentar ou se combinar com outras organizações

106 sonoras, tem uma relevância parcial. O que se deve considerar primeiro é se tais configuram mudanças que aviltam a natureza das figurações ou são apenas outras possibilidades dentro de um determinado conjunto. Por exemplo, a ausência do acento na cabeça do tempo não tem nenhuma conotação importante. Também

as

características

mais

gerais

como

a

ciclicidade,

a

contrametricidade e a ginga, são mais marcantes do que a exata figuração. Claro que isso aproximaria demais o samba de outros ritmos afro-americanos. Mas muito do que foi pesquisado aqui se aplica também a eles, já que muito mais que as “time lines” específicas, o que se tem é um tipo de construção musical oriunda de âmbitos culturais similares. Além disso, a questão dos atravessamentos fica mais clara: um ritmo pode estar mais em evidência, outro pode ser considerado como o “verdadeiro”, mas, se os interesses recaem em preocupações musicais, o fato principal é que muitas dessas estruturas continuam ativas, vivas, e sendo cultivadas no universo sonoro brasileiro. O grau de sofisticação harmônico/melódico, bem como da poética empregada, não tem relação com o uso da figura rítmica. Ou seja, pode-se variar o primeiro enquanto se mantém a segunda. A seguir, a transcrição de trechos rítmicos desses quatro momentos, mostrando o uso das figurações rítmicas do Partido Alto, em contextos musicais muito diferentes. Interessante também acompanhar as gravações no anexo V, respectivamente faixas 6,7,8 e 9. 3.4.1. Bateria Nota 1000 Transcrição de um trecho da faixa 15, desse CD que têm um encarte pobre, sem nenhuma menção a quem são os músicos que tocam, sem data de fabricação. O único crédito é dado aos mestres de bateria que comandam cada faixa. Segue-se então a transcrição de alguns compassos da faixa denominada “Partido Alto”, e atribuída ao “Mestre Marq. Gandaia”, faixa 6 do anexo V.

107 Exemplo 26

Como se pode notar, a clave do tamborim é exatamente a mesma da descrita por Mukuna, porém invertida em relação à paridade de compassos. Isso porque no Partido Alto o início se inverte em comparação com o samba moderno. Optou-se também por escrever com anacruse para que as figuras façam sentido, pois pode-se entender que a “time line” nesse caso começa no terceiro compasso. Todas as ressalvas em relação às limitações da escrita feitas anteriormente se aplicam aqui. Por exemplo, a linha do pandeiro, que na escrita aparecesse apenas como uma seqüência de semicolcheias, é, como já visto, uma somatória impressionante de sutilezas. Alguns métodos e seus autores criam legendas sofisticadas na tentativa de descrever o fenômeno sonoro. A opção aqui é notar a divisão óbvia, e anexar um CD à pesquisa, para que se possa ouvir o que realmente acontece. Exatamente por que essa aprendizagem se dá na esfera da oralidade, e sua apreciação no nível da audição. A única exceção aqui feita em termos de legenda é a do tempo um dos compassos nas linhas graves. Nesses, o símbolo

significa que a pele do surdo é

abafada, e não ferida. 3.4.2. Paulinho da Viola A caminho de atingir um maior número de ouvintes, o primeiro passo inconsciente, porém coerente, do ritmo em a direção a “sala” (Tia Ciata), é se incorporar ao samba num contexto canção.

108 Nesse caso, vai-se transcrever um trecho do tantas vezes citado

samba

“Atravessou”, de Paulinho da Viola. Importante ressaltar que não necessariamente está se escrevendo os quatro primeiros compassos, mas sim o primeiro trecho onde o ritmo se encontra estabelecido. Essa música encontra-se gravada na segunda faixa do álbum intitulado “Paulinho da Viola” de 1978. A opção de se transcrever quatro linhas rítmicas em todos os exemplos deve-se às considerações feitas anteriormente. Afinal, num contexto polirrítmico, uma linha pode mudar a percepção de outra. Note a faixa 7 do anexo V. Sua partitura se encontra no anexo IV (p. 140).

Exemplo 27

A comparação com o exemplo anterior deixa claro que os pontos que interessam são absolutamente coincidentes. Destaque para as transferências de pontos de apoio em 3 linhas. 3.4.3 Tom Jobim O terceiro exemplo já se encontra inserido num contexto bem diferenciado. Embora o trabalho de Paulinho da Viola seja reconhecidamente de qualidade, ainda pode-se atribuí-lo a um contexto por demais relacionado às raízes do samba. Mas o exemplo seguinte se refere a uma faixa do disco Passarim, de Tom Jobim, gravado entre novembro de 1986 e março de1987.

109 A faixa é de autoria de Danilo Caymmi, mas o CD como um todo pertence à discografia de Jobim, e os outros músicos aparecessem como “The New Band”. A única menção de arranjo é a Jaques Morelenbaum, responsável pelas escrita das cordas e sopros. Ouça a faixa 8 do anexo V.

Exemplo 28

Aqui o número de observações aumenta consideravelmente. O surdo é substituído pelo bumbo da bateria moderna (drum set). A decisão da “cozinha”, ou seja, dos músicos responsáveis pela seção rítmica do grupo foi por omitir totalmente o tempo um. Optou-se por escrever oito compassos devido à figura rítmica do violão, de ciclo mais extenso, de quatro compasso. Entretanto somente no primeiro ciclo é que se faz a primeira figura de síncopa copa na cabeça do primeiro tempo. Isso pode ser considerado como um procedimento de músico letrado em relação ao ritmo. Na

110 oralidade tende-se a iniciar por uma anacruse64, pois nessa tende-se a ouvir o tempo dois como primeiro, e ainda porque iniciar assim comporta a transferência do ponto de apoio. Essa consideração vale também para os tamborins, que são usados de forma intermitente, um uso de “arranjador”, no sentido do que seria exatamente o mais adequado a cada trecho da peça. Na oralidade, a tendência é que simplesmente se mantenha a clave, a “time line”, do início ao fim da peça. Nesse arranjo, usa-se mais o tamborim como timbre, com figurações rítmicas ligadas ao samba, mas dispostas de forma linear65, com a intenção de se atingir pontos culminantes. 3.4.4 Terra Brasil O processo de transmissão de figuras, ritmos e suas combinações, se dá por atravessamentos notáveis. No quarto e último exemplo, vai se observar, num grupo de música instrumental paulistano, hoje ativo, produzindo um trabalho de composições próprias, as mesmas figuras de Partido Alto que se observaram até agora . Observe a faixa 9 do anexo V. O trecho é de uma faixa CD intitulado “Mestiço”, do grupo Terra Brasil, de 1998.

64

A definição escolástica de anacruse é: Notas ou notas que, no início da peça musical, se realizam no tempo fraco e antecedem o primeiro tempo forte do compasso inicial. Mas deve-se apontar o fato de que na oralidade, o próprio conceito de tempo forte esta em discussão. 65 No sentido discutido no capítulo 2.4.

111 Exemplo 29

A primeira observação é formal. Essa configuração rítmica não se estende a toda a peça, acontece apenas na parte A da mesma. O violão aparece substituído pela guitarra, e sua figuração é exatamente a mesma da cuíca do exemplo de Paulinho da Viola ou do exemplo 20 (p.103). Na linha grave, novamente opta-se por omitir os primeiros tempos do compasso, como no caso do Jobim. E ainda incrementa-se o grau de contrametricidade através da omissão da cabeça do segundo tempo. Em todos os exemplos, o que se tem então é um ritmo de “Partido Alto”. Desde sua versão mais percussiva, atravessando várias esferas de possibilidades musicais, até uma situação absolutamente atual, lá estão, intactas, as estruturas rítmicas. Onde quer que esses diferentes matizes do samba, essas diferentes formas de se apresentar em termos de combinações musicais estejam sendo executadas e ouvidas, provavelmente em seguimentos sócio/culturais distintos, estão todos profundamente ligados.

112 São todos variações de um mesmo tema. Têm um denominador comum, tanto em sua versão batucada, quanto numa versão recente. Atingindo um alcance surpreendente, lá esta ele: o samba em uma de suas possibilidades, dialogando com outras formas musicais, atravessando biombos e atingindo o mundo.

113

Conclusão

O samba é um conjunto de manifestações artísticas que engloba, entre outras, música, dança e canto. Ainda que o enfoque se restrinja a música, ele se apresenta de várias maneiras. Em sua gama de matizes estão incluídas diferentes combinações de sons com alturas “definidas”, as estruturas harmônicas e melódicas. Nota-se também, nesse escopo de possibilidades, células rítmicas. A forma de transmissão e preservação dessas é singular, dado que transitam na oralidade. Imprecisa quando é necessário fixar no tempo certas denominações, ela se mostra ao mesmo tempo meticulosa e eficaz no que se refere a tais estruturas. Para que se possa compreender melhor sua importância cultural, é necessário analisar essas figurações sonoras tão particulares através de parâmetros que ainda estão por ser criados e estabelecidos. Esse trabalho aponta algumas ferramentas de análise: ciclicidade, simultaneidade, acentuação, contrametricidade e ginga. Ao investigar essas estruturas rítmicas, aliando os parâmetros propostos aos já consagrados, percebe-se que transpassam intactas as inúmeras formas musicais em que o samba se apresenta.

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