O SAMURAI EM RUROUNI KENSHIN: a construção do mito e seu papel no Japão contemporâneo (1994-1999)

June 1, 2017 | Autor: Leonardo de Oliveira | Categoria: Manga and Anime Studies, Historia, History of the Samurai, Modernidade e América Latina, Japão Moderno
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Leonardo Rosa Molina de Oliveira

O SAMURAI EM RUROUNI KENSHIN: a construção do mito e seu papel no Japão contemporâneo (1994-1999)

Rio de Janeiro 2015

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Leonardo Rosa Molina de Oliveira

O SAMURAI EM RUROUNI KENSHIN: a construção do mito e seu papel no Japão contemporâneo (1994-1999)

Monografia submetida ao corpo docente do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Bacharel.

Nome do orientador: Ricardo Figueiredo de Castro Titulação: Doutor em História

Rio de Janeiro 2015

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AGRADECIMENTOS Agradeço seus meus pais, Valdelina e José, pela educação que me deram desde criança e pó nunca me deixarem longe dos estudos. À minha irmã Juliana, que sempre marcou em cima de mim para ver se eu estava estudando para o vestibular. Aos meus amigos que fiz antes da faculdade, trocando informações sobre o mundo e sobre os caminhos que nos levaria até o ensino superior. Aos amigos feitos dentro da faculdade e todos os truques e saídas que aprendemos para minimizar o peso da dificuldade que é estudar no ensino público brasileiro. Aos amigos que fiz durante meu estágio no Museu Nacional, sobretudo à bolsista Paula Rodrigues, que foi com quem trabalhei por quase um ano e aos colegas Vinicius Santanna, Renato dos Santos e Márcia Barros. Ao antigo pré-vestibular EFETA, que funcionava na favela Nova Brasília e que me levou até a faculdade, ainda no ano de 2009. À minha professora Luzia de Matos Cabreira, que me ensinou historia de 2007 a 2009 no ensino médio e que me deu muita força quando escolhi por este curso. Aos professores Nadson Souza (CEFET) e Giovanna Xavier (UFRJ) que me orientaram na construção de meu papel como professor e me apoiaram quando souberam de meu difícil tema de conclusão de curso. À minha co-orientadora Eli Aisaka Yamada, que sempre me ajudou na construção de minha pesquisa, dando sugestões e concedendo bibliografias. Ao meu professor Ricardo Figueiredo de Castro, que me orientou e teve paciência ao orientar uma monografia que não era muito de seu tema de estudo.

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RESUMO OLIVEIRA, L. R. M. O samurai em Rurouni Kenshin: a construção do mito e seu papel no Japão contemporâneo (1994-1999). Orientador: Ricardo Figueiredo de Castro. Rio de Janeiro: UFRJ / Instituto de História, 2015. Monografia (Bacharelado em História).

Trabalho realizado a partir da análise do mangá japonês ―Rurouni Kenshin‖, cujo autor se chama Nobuhiro Watsuki. O objetivo principal dessa pesquisa é observar como a figura do samurai é representada nesta obra literária japonesa. Antes de entrar no tema principal, a importância gráfica para a cultura japonesa será analisada. Busca-se dessa forma, a origem do mangá moderno e sua importância para o Japão. A partir disso, o samurai se torna o papel central da pesquisa, onde é analisada a trajetória desse personagem na história nipônica, sobretudo durante o período Meiji, contexto em que ―Rurouni Kenshin‖ é contada. A partir da pesquisa sobre o guerreiro japonês, o trabalho se volta para a representação desse personagem em ―Rurouni Kenshin‖, onde cada personagem samurai na obra será analisado. Para concluir, o contexto da década de 1990 é estudado, pois foi durante esse período em que a obra foi criada. Com isso, conseguimos encontrar as justificativas que levaram Watsuki às suas escolhas pessoais ao criar o samurai em sua obra.

Palavras-chave: Mangá, Rurouni Kenshin, Japão, Samurai.

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NOTAS SOBRE PALAVRAS JAPONESAS NO CONTEÚDO DO TRABALHO Durante a construção do trabalho, tive que utilizar termos japoneses que não estavam dentro da língua portuguesa. Para um maior entendimento de quais palavras são, estarão no decorrer do texto em formado itálico. Essa monografia busca trabalhar a imagem do samurai dentro do mangá nipônico ―Rurouni Kenshin‖. No decorrer de meu trabalho, percebi que o termo português ―samurai‖, referenciado ao típico guerreiro samurai que servia a um senhor no Japão feudal, possuía outro sinônimo em sua língua original, o termo ―bushi‖. Por ser o mais comum para os brasileiros também a principal figura analisada, optei pelo vocábulo da língua portuguesa. O termo português ―mangá‖ foi escolhido para fazer referência ao termo original japonês ―manga‖. Isso se justificou por entender que o primeiro também é muito conhecido dentro do cenário brasileiro. A cultura nipônica se espalhou por terras brasileiras principalmente na década de 1980 através dos animes, animações japonesas baseadas nos mangás daquele país, que eram semelhantes às histórias em quadrinhos que o norte-americano já exportava para o Brasil. Com a popularização do anime, os fãs brasileiros logo conheceram o mangá. Atualmente, é fácil encontrar bancas de jornal nas cidades brasileiras vendendo esse gênero literário japonês. Outras palavras, como ―shôgun‖ e ―shogunato‖ foram mantidas em sua versão original. O primeiro poderia ser trocado por sua versão portuguesa para ―Xogum‖. Não optei por porque o termo ―shogunato‖ não existia para no dicionário brasileiro e por tanto, poderia dar um mal entendido para os leitores, já que o shogunato faz referência direta ao governo do shôgun. Esses termos japoneses e outros que estão no decorrer do trabalho estão com pequenas notas para o leitor entender quais referências estão fazendo.

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ÍNDICE

ÍNDICE............................................................................................................................................ 6 1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 8 2. O MANGÁ E A FIGURA DO SAMURAI ...................................................................................... 12 2.1- A IMPORTÂNCIA DA IMAGEM NA CULTURA JAPONESA E O SURGIMENTO DO MANGÁ 12 2.2. O MANGÁ PÓS SEGUNDA GUERRA MUNDIAL ................................................................ 17 2.3. O SAMURAI E SEU PAPEL NA HISTÓRIA JAPONESA......................................................... 19 2.4. O SAMURAI NO MANGÁ ................................................................................................. 21 2.5. REFLEXÕES SOBRE O SAMURAI ....................................................................................... 25 3. REPRESENTAÇÕES EM “RUROUNI KENSHIN” .......................................................................... 26 3.1. O PERÍODO MEIJI: RÁPIDA ABORDAGEM SOBRE SUA IMPORTÂNCIA ............................ 26 3.2. RÁPIDA INTRODUÇÃO À TRAMA DE KENSHIN ................................................................ 29 3.3. A FIGURA DO GUERREIRO EM RUROUNI KENSHIN ......................................................... 31 3.3.1. Kenshin Himura ......................................................................................................... 31 3.3.2. Myōjin Yahiko ............................................................................................................ 37 3.3.3. Sanosuke Sagara........................................................................................................ 44 3.3.4. Jin’Eh ......................................................................................................................... 50 3.3.5. Aoshi Shinomori ........................................................................................................ 53 3.3.6. Itsuruji Raijuuta ......................................................................................................... 57 3.3.7. Saitou Hajime ............................................................................................................ 59 3.3.8. Shishio Makoto .......................................................................................................... 63 3.3.9. Soujirou Seta ............................................................................................................. 67 3.3.10. Tropa Shinsengumi .................................................................................................. 70 3.4. A CONSTRUÇÃO DO PERÍODO MEIJI EM RUROUNI KENSHIN ......................................... 72 3.4.1. A proibição do uso de espadas.................................................................................. 72

7 3.4.2. Medicina ocidental .................................................................................................... 74 3.4.3. O empresário Meiji.................................................................................................... 77 3.4.4. Ruptura com o passado ............................................................................................. 79 3.5. O SAMURAI DE WATSUKI ................................................................................................ 81 4. A MODERNIDADE NA CULTURA JAPONESA ............................................................................ 84 4.1. O JAPÃO DA DÉCADA DE 1990 ........................................................................................ 84 4.2. O JAPÃO MODERNO E O JAPÃO DE WATSUKI ................................................................ 86 4.3. OS MOTIVOS DE WATSUKI .............................................................................................. 88 5. FONTE ...................................................................................................................................... 90 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................... 91 7. CRONOLOGIA DA HISTÓRIA JAPONESA ................................................................................... 93

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1. INTRODUÇÃO Em 1868 teve início o período Meiji (1868-1912) no Japão. Ele marcou o início da fase moderna da história japonesa, quando o país passou por reformas internas, tais como a divisão das antigas terras feudais1 em prefeituras e o incentivo à industrialização japonesa. Antes da modernidade, o Japão passou por um longo período dividido em feudos, onde o imperador tinha poder figurativo e quem governava de fato o país era o shôgun 2. Os samurais tiveram destaque em grande parte da história japonesa (o governo samurai liderado pelo shôgun durou mais de sete séculos), conhecidos por seus ideais de bravura e lealdade para com seu senhor e constituíram uma classe social3. Segundo José Yamashiro (1993, p. 41), os samurais surgiram no século X como consequência da insuficiência ou inexistência de proteção policial, sobretudo nas áreas rurais. Um dos aspectos fundamentais para se entender essas figuras japonesas, seria o código de conduta desse guerreiro, conhecido como Bushidô4. Para o autor, esse atributo começou como a lealdade entre proprietários do shôen (terras originariamente doadas a nobres pelo governo central) e os lavradores que dependiam dessas regiões. Depois evoluiu e se aprimorou com o passar dos séculos. Com base na família, célula mater da comunidade rural, brotou assim o princípio do clã, que evoluiu para uma norma específica, na qual a lealdade e devoção para com seu senhor era o principal mandamento.

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Os regimes feudais japoneses se caracterizaram pela importância da vida no campo e a descentralização do poder do Imperador para as mãos do shôgun e a importância do daimyô como um agente com influência política, comparado por Yamashiro (1964, p. 189) com o senhor feudal da Europa. O termo hôken jidai, que faz referência ao período feudal japonês não possui a mesma acepção em relação ao sistema europeu. Por isso, é importante frisar que, o ―feudalismo‖ japonês era diferente em relação ao europeu, onde cada um tinha suas características próprias. 2 Shôgun: generalíssimo; chefe do governo militar (bakufu) (YAMASHIRO, 1964, p.194). 3

Inicialmente houve a divisão de classes em samurai (shi), lavrador (no), artífice (kô) e comerciante (shô). (YAMASHIRO, 1964, p.108). 4

Caminho ético do guerreiro; código moral do samurai. (YAMASHIRO, 1993, p.267).

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Com o passar do tempo, os samurais chegaram ao poder, dominando de maneira segura as demais classes sociais e reduzindo à impotência política a nobreza metropolitana, até então senhora tradicional no comando do leme estatal. Marcada pela queda do monopólio de poder mantido desde o século VIII pela aristocracia da corte imperial e o surgimento de novas instituições de autoridade política e controle da terra, essa classe chegou ao poder na figura do shôgun e o poder Imperial foi diminuído. Porém, quando iniciou o período Meiji, houve o fim dos samurais como classe social. Mas é inegável sua influência na cultura japonesa até os dias de hoje onde esses guerreiros são vistos como heróis pelo povo nipônico. Uma das formas mais comuns de se representar a figura desses elementos é através da literatura nipônica, por exemplo, o mangá, uma versão similar às histórias em quadrinhos encontrada no ocidente. Sonia Bide Luyten (1999, p.57) afirma que os heróis do mangá têm como característica recorrente em seu comportamento, um caráter estoico, austero, de personalidade rígida herança direta do bushi5. Além de estórias de autossacrifícios, típicas dessa classe. A figura do samurai como herói será exaltada no mangá nipônico ―Rurouni Kenshin‖. A importância que tal obra transmite ao guerreiro samurai será o principal objeto desta pesquisa. Nobuhiro Watsuki6, criador do mangá ―Rurouni Kenshin‖, procurou inspiração em vários personagens históricos japoneses, principalmente em antigos espadachins do fim do período Edo (1603- 1868). A série apareceu pela primeira vez como um par de pequenas estórias publicadas de forma esporádica, ambas intituladas ―Crônicas de um Espadachim do período Meiji‖ publicadas entre 1992 e 1993 na revista ―Weekly Shōnen Jump Special‖ da editora ―Shueisha‖. Em 1994, esse autor criou uma versão definitiva que foi publicada na ―Weekly Shōnen Jump‖ e concluída em 1999. A trama de ―Rurouni Kenshin‖ se passa dez anos depois do início do período Meiji e tem como personagem principal Kenshin Himura, um guerreiro da classe samurai que lutou a favor do imperador contra as forças do shôgun, às vésperas de 1868

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Bushi: Sinônimo de Samurai. (YAMASHIRO, 1964, p.188). Nobuhiro Watsuki (26 de maio de 1970) é criador de mangá japonês (Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Nobuhiro_Watsuki. Acesso em 5 de julho de 2015). 6

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e seu caráter como veremos mais adiante, será de um guerreiro marcado pela honra e o respeito pelos adversários. Durante a trama, o passado do protagonista é contado. Depois da guerra Boshin7 e da Restauração do poder imperial, Kenshin decide seguir como andarilho, como uma forma de ―expurgar‖ a própria alma, até então, abalada pelo conflito japonês, principalmente por ter causado a morte de diversas pessoas. Utilizando uma espada, fica conhecido por retalhar seus adversários. O exemplo deste mangá é importante para entendermos até que ponto uma obra ficcional pode trazer resquícios de memória histórica, no caso em questão, da história japonesa, onde o Japão deixou de ser um país que buscava se distanciar do Ocidente, para entrar na corrida imperialista do século XIX, adotando modelos políticos, como o regime parlamentar, vindos dos EUA e da Europa. Desta forma, o objeto desta pesquisa é a construção do papel do samurai em ―Rurouni Kenshin‖, levando em consideração as influências do período Meiji representadas na obra. De que forma o autor, inserido no fim do século XX verá a figura do herói samurai, partindo do princípio de que tal personagem ainda é muito representado nas mídias japonesas, em especial no mangá, como dito por Luyten (1999, p.57). Portanto, para analisar o caráter do samurai em ―Rurouni Kenshin‖, além da leitura do mangá, teremos que ter consciência de seu papel na cultura japonesa e também o que essa figura poderia representar para o autor quando a obra foi criada. Para esses fins, será importante também levar em consideração o contexto no qual o trama é criado e as influências de Watsuki, um autor inserido na década de 1990, na construção da obra tal como ela é. Dessa forma, esse trabalho será dividido em três capítulos. No primeiro capítulo será discutida como se dá a construção do mangá: sua origem será analisada, apresentando também seus mecanismos literários e como se relacionam com aspectos da cultura e história japonesa. Um desses aspectos e o

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Guerra civil japonesa travada entre 1867-1868 entre tropas imperiais e simpatizantes do shôgun.

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principal objeto nessa pesquisa, a figura do samurai, demanda por uma breve explicação de sua trajetória na tradição e história do Japão. No segundo capítulo será analisada a figura do guerreiro em ―Rurouni Kenshin‖. Como os métodos provenientes do mangá trazem essa figura cultural e histórica do Japão. Para isso, será necessário levar em consideração os simbolismos dentro da trama de ―Kenshin‖, mas também abordar como o contexto da estória, o período Meiji será apresentado, levando em consideração suas influências nos principais personagens. Será indispensável falar sobre o período Meiji nesse trabalho pelo fato de que tal período marca o início da modernidade japonesa e o fim da classe samurai, referências diretas no mangá estudado. Essa questão será discutida abordando traços do período moderno utilizados em ―Kenshin‖, ou seja, trabalhando com uma historiografia sobre o contexto. No terceiro capítulo, abordaremos sobre as questões sobre o período no qual a obra é criada. Além disso, será importante trazer para a discussão o conceito de modernidade. Sua definição, suas características e suas influências no povo japonês, mostrando o que mudou para a sociedade nipônica com o advento do ―progresso‖. Com isso, poderemos definir quais as principais intenções de Watsuki ao criar sua obra e o que ela representou em relação à situação japonesa.

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2. O MANGÁ E A FIGURA DO SAMURAI

2.1- A IMPORTÂNCIA DA IMAGEM NA CULTURA JAPONESA E O SURGIMENTO DO MANGÁ

Na segunda metade do século XX, a cultura japonesa se popularizou fora da Ásia. Um dos aspectos mais conhecidos dessa cultura foi o mangá, semelhante a uma ―história em quadrinhos‖, já existente em tal período no Ocidente. A partir do mangá, o Ocidente ficou conhecendo parte da literatura japonesa. Como gênero literário, está impregnado em sua construção aspectos provenientes de seu país de origem, sendo o alvo do autor de um mangá, o público japonês. Dessa forma, as questões debatidas e provenientes na sociedade nipônica, tais como a figura do samurai e sua honra, foram levadas através desse gênero textual quando exportadas para outros países. Nesse sentido, mesmo em estórias onde aspectos exteriores formavam a base para a trama, prevaleceu a cultura japonesa como maior influência em uma estória de mangá. Na obra de Masami Kurumada8, por exemplo, Saint Seiya (Cavaleiros do Zodíaco, no Brasil), a religião grega foi a principal referência para o contexto dos protagonistas. Porém, tanto personagens que possuem suas origens longe do Japão, quanto os deuses helenos representados, trazem características tanto físicas quanto psíquicas semelhantes aos atributos nipônicos. Desses últimos, por exemplo, a questão da lealdade para com a autoridade ou a honra foi modelo para os heróis. Na figura 1 9, podemos perceber como o deus grego Hades foi representado: com os típicos olhos grandes e o estilo oriental gráfico, características marcantes dos mangás japoneses.

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Masami Kurumada (06 de dezembro de 1953) é um criador de mangá Japonês (Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Masami_Kurumada. Acesso em 5 de julho de 2015). 9 Disponível em: . Acesso em: 27 abr. 2006.

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Imagem 1: Representação do deus grego Hades, no mangá Saint Seiya.

Os países ocidentais mantém contato com a cultura oriental, principalmente a japonesa. A partir da década de 1980, através dos mangás e dos desenhos animados, essas relações irão se aprofundar cada vez mais. Para Craig Norris (2009, p.237), a circulação desses bens culturais é tão importante quanto a presença dos carros e aparelhos eletrônicos nacionais dentro do mercado internacional. Seria uma forma de estabelecer uma espécie de ―Soft Power‖ japonês no planeta. Mas qual seria a origem do mangá japonês? Traçar um histórico sobre o mangá pode ser considerado uma tarefa complexa. Afinal, quando surgiu tal literatura e como ele interagiu com outras formas culturais japonesas? O mangá é caracterizado principalmente pela presença da imagem. Essa importância gráfica está enraizada na cultura japonesa. Por exemplo, em 1935, durante a reforma nos templos de Toshodaiji e Horyuji10, foram encontrados nos tetos e paredes desses lugares, algumas pinturas datadas do século VII. Eram desenhos mostrando animais e pessoas, com características exageradas e que buscavam representar humor. 10

Templos localizados na região japonesa de Nara.

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Essa arte ainda estaria longe do mangá no qual conhecemos hoje, porém, já fica dessa forma exemplificado como a pintura era utilizada no Japão antigo para relatar um simbolismo. Os e-makimono, datados dos séculos XI e XII, eram pinturas em um rolo, este que era desenrolado a partir do desenrolar da história contada. Um dos mais famosos do gênero, o Chôjûgiga, de provável autoria de Kakuyu Toba (1053-1140) mostrava animais que assumiam caráter humano, satirizando dessa forma a sociedade da época (Figura 2). Segundo Gustavo Furuyama, diversos animais eram representados nessas artes gráficas. Porém, os mais comuns eram as lebres, os sapos e os macacos. Para esse autor, os sapos e as lebres faziam referência a algum extrato social importante ou representavam tipos de caráter da época (FURUYAMA, 2008, p.10).

Imagem 2: E-makimono conhecido como Chôjûgiga (FURUYAMA, 2008, P.10).

Durante o período Tokugawa (1603-1867), o Japão se isolou do mundo através da política shogunal (GORDON, 2003, p.18). Dessa forma, a arte nacional se desenvolveu. Os ukiyo-ê, ―pintura do mundo flutuante‖, típicas de Edo11, com a adoção pela cor colorida e produção em massa, se tornaram populares e eram compradas principalmente por comerciantes e pela população pobre (FURUYAMA, 2008. p. 16). A temática dessas obras costumava ser a vida urbana, dando ênfase nas atividades relacionadas ao entretenimento, como a luta de sumô, estilo de arte marcial japonesa. 11

O período Tokugawa também é conhecido como período Edo, em referência ao nome da capital do governo: Edo.

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Ainda sobre esse estilo de pintura, temos Katsushita Hokusai (1760-1849) como artista que primeiro utilizou o termo ―mangá‖, além de ter sido o pioneiro na técnica de sucessão de imagens, característica própria desse gênero em relação aos outros tipos de obras gráficas (Idem, p.17). Durante o período Meiji em 1901, Rakuten Kitazawa cria a primeira história em quadrinhos japonesa, chamada ―Tagosaku to Mokube No Tokyo Kenbutsu‖ (traduzida como ―A visita a Tokyo de Tagosaku e Mokubei‖). Essa obra é conhecida como pioneira por apresentar personagens regulares e com falas, faltando apenas à introdução dos balões modernos. Dessa forma, sem esquecer a importância da imagem na cultura japonesa, foi durante o século XX que o mangá se expandiu na sociedade japonesa. Para Luyten, a revolução industrial japonesa teve suma importância nesse processo de disseminação do mangá na cultura e sociedade japonesa no século XX. Segundo a autora: Pessoalmente, encaro as histórias em quadrinhos ligadas a um fenômeno de comunicação de massa, em que as condições técnicas da Revolução Industrial foram um fator preponderante na sua disseminação. No Entanto, acredito que, sem dúvida nenhuma, deva-se considerar a imensa herança do passado, principalmente a categoria das artes narrativo-figurativas, como contribuição da evolução da linguagem quadrinizada. (Luyten, 1999, p. 75)

Ou seja, para Luyten, tivemos a expansão do mangá como fenômeno de comunicação de massa no Japão, como foi dito no início do capítulo, por ser um gênero literário que buscou um público-alvo. Essa expansão se deu com a industrialização nipônica durante o período moderno japonês, mas a partir de uma prática tradicional, já enraizada no país de se voltar para a imagem. Portanto, a experiência das antigas artes japonesas, tais como o e-makimono ou o ukiyo-ê, foram importantes para o nascimento de uma tradição de representar o pensamento nipônico não só através de textos, mas também através de imagens. Outro exemplo para mostrarmos como a imagem foi fundamental para a cultura japonesa é o exemplo da sua linguagem. Segundo Nanette Gottlieb (2011, p. 42), o idioma muitas vezes desempenhou um papel importante na mudança histórica e social e é, naturalmente, parte integrante de processos sociais que estão em curso na sociedade. Ainda segundo Gottlieb, ao longo do período de reconstrução nacional moderno do

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Japão, a língua nipônica - especialmente na escrita, com o uso do dos ideogramas (caracteres chineses, usado no Japão, figura 312)- foi visto como um marcador fundamental da identidade nativa.

Imagem 3: Exemplos de Kanjis. O número desses símbolos pode ultrapassar a casa de dois mil. Uma sociedade que não fosse "treinada" e "acostumada" com a imagem, conseguiria conviver com tantos símbolos linguísticos?

Voltando para o mangá, notamos a importância deste último para a sociedade japonesa se levarmos em conta o papel da literatura para uma sociedade. Segundo Toshiko Ellis (2009, p. 199), o ato de escrita não é um processo de gravação. As obras literárias interagem com nossa realidade sociocultural; elas desafiam, perguntam, ou, por vezes, reforçam nossos valores e suposições cotidianas. Ler a literatura nacional japonesa significaria para esse autor, perceber as experiências dos escritores individuais e suas interpretações multifacetadas da sociedade e da cultura nipônica. Estamos testemunhando, segundo Ellis, a expansão significativa da literatura, misturando-se positivamente com a cultura popular. Naturalmente, a extensão desta última é a sua relação com o mundo do mangá. Apesar de o público ainda ser majoritariamente de uma geração mais jovem, esse gênero em um sentido amplo encontrou com sucesso um meio de sobrevivência no atual Japão consumista, por meio dos quadrinhos.

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Disponível em: http://www.coscom.co.jp/japanesekanji/ . Acessado em 29/12/2014.

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2.2. O MANGÁ PÓS SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Com a derrota na Segunda Guerra Mundial, o Japão enfrentou muitas dificuldades. Justamente nesse período foi quando o mangá teve expansão. Segundo Gustavo Furuyama (2008, p.22) essa expansão estava ligada a necessidade de uma forma de entretenimento para a população japonesa ainda em choque com a derrota na guerra. Daí a justificativa para o produto ter sido vendido barato e passar a ser produzido em massa. A importância do quadrinho ainda se daria nas décadas posteriores, com o avanço do crescimento econômico e o aumento da pressão em cima de uma sociedade cada vez mais competitiva. Um dos grandes nomes dessa nova fase do mangá foi Osamu Tezuka, conhecido como o ―Deus do Mangá‖. Em 1946, esse autor lançou sua primeira obra, a ―Shin Takarajima‖ (A Nova Ilha do Tesouro), vendendo milhares de exemplares. Tezuka atualmente é visto como um dos maiores nomes do quadrinho japonês já que seu estilo revolucionou o gênero e até hoje encontra apreciadores. Usando de humanismo e humor, Tezuka levava alguns temas de seu contexto histórico para seus trabalhos. Entre esses temas, estavam memórias da Segunda Guerra Mundial, bem como os problemas da sociedade no pós- guerra. Um dos mecanismos do mangá, a modelagem de protagonistas em suas obras a partir de figuras históricas, como o caso do personagem Sasaki Kojiro (inspirado em um samurai de mesmo nome) foi um recurso utilizado por Tezuka, segundo Power (2009, p. 72). Esse método, utilizar uma pessoa real como base para uma figura fictícia, será encontrado na produção ―Rurouni Kenshin‖. Quando começou a ser popular no Japão, o mangá era basicamente voltado para um público infantil. Porém, com esses leitores se tornando adultos, foi importante criar outros gêneros, evoluindo para outras temáticas como: romance, mistério, aventura, fantasia, horror, ficção científica, artes marciais, esportes, histórias de trabalho (profissional e colarinho azul), contos de militares, histórias de vida de estudante, tramas históricos, comédias, erotismo etc. Essas categorias estão inseridas em diversos tipos de quadrinhos, entre os quais podemos citar: o shonen mangá (para meninos

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jovens), o shojo mangá (para meninas jovens), o seijin mangá (para adultos), o nichijó mangá (mangá sobre cotidiano) e o josei mangá (para mulheres). Tem se discutido sobre as influências que o gênero recebeu durante seu nascimento e desenvolvimento. Debate-se se o mangá japonês teve origens no passado das artes plásticas nipônicas ou possuiu influências maiores nos quadrinhos ocidentais. Essa última justificativa poderia ter sentido se lembrarmos de que esse tipo de quadrinho foi um produto contemporâneo e surgiu em uma sociedade moderna com suas próprias problemáticas, esta última diferente das antigas sociedades japonesas com suas artes e suas próprias questões. Para Scott McCloud (1995, p. 81), por exemplo, no mangá japonês temos um detalhe gráfico mais realista em comparação com o quadrinho ocidental. Esse autor defenderá a ideia de que o mangá japonês é um estilo de arte. Ou seja, para o autor, o quadrinho nipônico está localizado em outra categoria em relação às obras ocidentais, estes últimos vistos quase sempre como formas de entretenimento. Para defender a primeira hipótese, de que o mangá teve suas raízes da arte nacional antiga, podemos citar a exportação da cultura japonesa, que começou antes de 1880, precisamente através das migrações japonesas para o exterior e o interesse de pessoas que visitaram o Japão com o fim do isolamento nacional. Segundo Harumi Befu (2009, p.28), impressionistas franceses, por exemplo, demonstraram interesse pela arte japonesa, especialmente pelo ukiyo-ê, ou pelas impressões de xilogravura do período Tokugawa. Ou seja, fala-se de influências ocidentais na cultura japonesa, mas também podemos fazer o exercício oposto e falar das influências da arte nipônica em outras culturas. Não buscamos nesse trabalho o aprofundamento de questões relacionadas ao mangá. Entretanto, esse breve histórico desse gênero literário foi preciso para entrarmos no ponto central dessa pesquisa: o papel do samurai dentro do mangá ―Rurouni Kenshin‖. Esse mangá pode ser considerado dentro do gênero “seijin Mangá” (mangá para adultos) por seu conteúdo violento. Tal obra foi criada na década de 1990, cujo cenário socioeconômico era a recessão que parecia ser interminável, começada com o estouro da ―bolha‖ econômica no início da mesma década. Essa situação de adversidade no qual se passou o povo japonês explica o surgimento de obras, cujo teor foi mais

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―sombrio‖. Ou seja, produções onde os temas eram voltados para os adultos, onde os protagonistas dessas estórias costumavam ser representados na figura desse guerreiro. Passemos agora para a análise da figura do samurai dentro da história japonesa: seu surgimento, sua evolução no campo social nipônico, sua dissolução com o período Meiji e sua relação com outros aspectos culturais japoneses, em especial, o mangá moderno.

2.3. O SAMURAI E SEU PAPEL NA HISTÓRIA JAPONESA

Um dos aspectos abordados no mangá japonês é a figura do samurai, guerreiro típico da cultura nipônica. Além do exemplo dos quadrinhos, tais figuras influenciaram uma série de outros produtos como animes (animações japonesas), filmes (o cinema ocidental também criou obras com esse personagem como protagonista) ou brinquedos. Para tratar da origem desses guerreiros, é preciso levar em consideração o Japão às vésperas de se tornar feudal, precisamente no século VII. Um país ainda dividido entre clãs13, onde a maioria da população vivia nos campos. Com o crescimento da agricultura, algumas facções passaram a ter mais poder político do que outras. Com o poder político figurativo do imperador, sangrentas batalhas entre clãs estouraram. Algumas dessas famílias refletiam a partir dos conflitos, a necessidade de centralizar o poder nas mãos do governo Central. As Reformas de Taika (646) foram a forma de possibilitar uma maior concentração de força política na figura do imperador. Essas reformas foram postas em práticas pelo príncipe Naka, recém-ascendido ao trono japonês que sentira a fragilidade política e econômica do seu governo. Tais leis buscaram uma maior arrecadação de impostos, fortalecendo o poder político do imperador por todo o território nacional. Além disso, o monarca deixar de ser representante de apenas um único clã e torna-se autoridade absoluta do povo nipônico. 13

Na antiguidade, grande parte da população se dedicava à lavoura. Com o progresso da cultura, apareceram homens mais habilidosos que confeccionavam finos objetos de barro e joias rústicas, feitas de pedras comuns ou semi-preciosas. A maioria dos homens não servia diretamente ao governo. Cada localidade tinha um chefe que governava a população local e controlava as terras. As pessoas da mesma linhagem constituíam os clãs ("uji") e algumas delas recebiam o título de "kabane". Entre esses clãs, haviam aqueles que desempenhavam determinadas funções na corte. Por exemplo, os Soga eram encarregados do Tesouro, enquanto os Ohtomo e Monobe cuidavam da Guarda Real. Tais funções eram sempre hereditárias, transmitindo-se de geração a geração numa mesma família.

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A reforma Taika foi expressiva porque marcou o início do processo de feudalização japonesa. Com impostos altos, os camponeses não podiam pagar pelas terras rurais, vendendo essas propriedades para os grandes senhores, os daimyô. Esses ―senhores feudais‖ passaram a ganhar cada vez mais poderes e influência política em suas regiões. Foram os grandes beneficiários de tais reformas imperiais. Os samurais surgem durante esse período. Desprovidos de riquezas materiais, esses personagens aparecem com o objetivo de protegerem seus senhores. Por isso, é interessante e válido relacionar o surgimento desses guerreiros como produto das reformas de Taika. Contudo, para José Yamashiro (1993, p. 41), a origem e o crescimento desse setor da sociedade japonesa será consequência direta da falta de policiamento, sobretudo nas áreas rurais. Importante salientar que tal situação não se manteria por muito tempo. Eles obtiveram prestígio político. A dominação dessa classe em relação às outras, reduzindo, por exemplo, o imperador à impotência política, levou consequentemente a redução do poder da coroa novamente e o início dos governos militares, centralizado na figura do shôgun. O sistema feudal japonês fora praticamente todo governado por samurais, embora houvesse conflitos e tentativas de restaurações do poder imperial. O período Kamakura (1185–1338) foi o primeiro onde eles de fato governam. O regime feudal no Japão só terminaria em 1867, com o início do período Meiji em janeiro de 1868 e o fim desses guerreiros como classe social. Foram mais de 600 anos a frente do poder político nipônico. Mesmo com o fim da classe, não seria correto afirmar que houve uma decadência generalizada. Para Yamashiro (1993, p. 215), os próprios guerreiros do século XIX, percebendo a necessidade da reforma, lideraram e participaram ativamente do movimento reformador que culminou com o início do período Meiji. Além disso, muitas famílias capitalistas que surgiram durante o período Meiji eram descendentes das grandes famílias samurais. Segundo Yamashiro (1964, p.174), os chonin14 não tinham o espírito empreendedor apesar de terem ascendido socialmente no fim do governo Tokugawa. As próprias famílias Mitsui e Sumitomo, que descendiam de tradicionais e abastados representantes dessa classe, se desenvolveram graças a

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Classe dos negociantes e artesãos, "gente da cidade".

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ligações de parentesco com antigos guerreiros, por meio de casamentos. Estas grandes famílias constituíram mais tarde os chamados "zaibatsu‖

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que os países EUA

aniquilaram logo depois da ocupação do Japão em 1945. Ou seja, mesmo com o fim dos guerreiros como classe social, as famílias mais privilegiadas continuaram a frente do Japão, dessa vez no setor econômico. Ou seja, a classe samurai, surgida primeiramente com homens sem riquezas materiais, ajudaram a formar (junto com outros aspectos, como o confucionismo) os principais aspectos sociais e políticos japoneses. A influência de tais elementos na vida japonesa como um todo, justifica o peso que tal figura possui na cultura nipônica mesmo com o fim da classe.

2.4. O SAMURAI NO MANGÁ

Como foi dito, o mangá é um gênero literário que faz sucesso dentro e fora do Japão. Suas estórias podem servir para crianças e até adultos. No nosso caso, abordamos uma obra de gênero adulto: ―Rurouni Kenshin‖. O trama de ―Rurouni Kenshin‖ se passa dez anos depois do início do período Meiji com o protagonista Kenshin, um samurai que lutou pela Restauração monárquica durante o bakumatsu16, tentando encontrar um novo papel na sociedade japonesa. Depois da derrota das forças do shôgun, Kenshin desaparece, abandonando sua vida de assassino, passando a viver como andarilho pacífico. Ainda não entraremos na abordagem sobre esse mangá especifico. Entretanto, é importante observar os principais aspectos desse gênero em geral, onde temos o samurai como figura principal, levando como referências os aspectos que essa figura vista como herói costuma possuir nas histórias em quadrinhos japonesas. 15

A classe dos chonin, que se desenvolveu durante a época Tokugawa, perdeu seus privilégios e proteções oficiais e teve de enfrentar um mundo de concorrência livre durante o período Meiji. Os chonin tinham o espírito de poupança e sabiam entesourar com avidez, mas, em geral, não dispunham de espírito empreendedor. Grandes capitalistas, que surgiram no decorrer do governo Meiji, eram todos "descendentes de samurais": Shibuzawa, Iwasaki, Fujita, etc. As próprias famílias Mitsui e Sumitomo, que descendiam de tradicionais e abastados chonin, puderam desenvolver-se, graças a ligações de parentesco com samurais, por meio de casamentos. Estas grandes famílias constituíram mais tarde os chamados "zaibatsu" — trustes econômicos — que os EUA aniquilaram logo depois da ocupação do Japão em 1945. 16 Período correspondente aos últimos anos do período Edo, entre 1853-1867.

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Sobre os heróis do mangá japonês, diferentemente dos protagonistas ocidentais, são concebidos a partir de um mundo real, servindo dessa forma de uma maior aproximação do público-alvo. Enquanto o personagem ocidental ganha seus poderes a partir de um experimento científico e traz em sua base um teor fantástico e idealizado, a figura nipônica será alguém que surge da própria história japonesa, trazendo traços mais humanos. Ou seja, alguém que está inserido nessa cultura, tanto é que suas principais características não costumam ser a "super-força" ou outra habilidade sobre- humana. Os principais aspectos dos heróis japoneses costumam ser o comportamento ―estoico, austero, de caráter rígido; herança direta do samurai‖ (LUYTEN, 1999, p. 57). Além de estórias de autossacrifícios conhecidas da classe. A perseverança é outro traço do comportamento do protagonista do mangá, que tenta obstinadamente chegar à meta estabelecida. Os personagens guerreiros são retratados como pessoas comuns que desejam tornam-se os melhores naquilo que estão empreendendo. A ação das estórias esta voltada para como deve ser o desempenho do protagonista para alcançar o sucesso: treinos exaustivos, força de vontade e muita paciência. Outra característica muito prezada pelos nipônicos é a sinceridade emocional, onde os protagonistas voltam suas ações para seu interior. Quando pensamos no samurai como figura comum nos mangás japoneses, devemos lembrar os heróis dos quadrinhos ocidentais, pois estes nos ajudam a entender a relação entre samurai e mangá ao passo que os personagens ocidentais estão inseridos em sua sociedade de origem, impregnados dessa forma com a cultura, questionamentos e demandas dessas sociedades. Criados a partir do imaginário cultural da Segunda Guerra Mundial, alguns desses heróis americanos povoaram as mentes dos leitores, continuando fazendo sucesso até os dias atuais. O Super-Homem, personagem principal da DC Comics, um refugiado alienígena que passa a viver na Terra, serve de símbolo norte-americano para toda uma geração que vive sobre o impacto do conflito mundial em um primeiro momento e com a Guerra Fria, em seguida. As cores de seu uniforme mais comum, o vermelho e o azul, são símbolos de um patriotismo estadunidense transmitido em forma de histórias em quadrinhos. Na Marvel Comics, outra empresa de quadrinhos norte-americanos, teremos o Capitão América, personagem criado durante a Segunda Guerra Mundial. Ele combatia

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os nazistas em suas histórias e a própria origem do personagem já demonstra uma pitada de patriotismo: Steve Rogers, um jovem magricelo queria servir seu país contra o inimigo alemão. Sem chances de ser aceito no exército, se inscreve no programa para criação de supersoldados, onde será posto em uma experiência científica que o torna apto para a guerra. Tanto o Super-Homem quanto o Capitão América, possuíam uniformes com as cores da bandeira nacional. Além disso, ambos tentam passar a ideia de que lutam pela liberdade, no caso, a liberdade americana, simbolizada como a ideia honesta e verdadeira de um país de heróis contra um mundo cheio de vilões (Figura 4).

Imagem 4: Super-Homem e Capitão América contra Hitler. Edições de 1942 e 1941, respectivamente.

Em ambos os casos analisados, tivemos um contexto histórico comum dando espaço para a criação de protagonistas para quadrinhos americanos: a Segunda Guerra Mundial. Em ambos, os personagens são patrióticos, vestem cores nacionais e enfrentam vilões internacionais, além é claro, de representarem a liberdade americana. Tal como os personagens americanos são símbolos para o povo daquele país, os samurais são vistos como heróis pelos japoneses. Seus feitos são lembrados até hoje pelos nipônicos através de monumentos a alguns desses personagens (Figura 5).

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Imagem 5: Estátua de Saigô Takamori, considerado como o último samurai.

Por sua importância histórica e nacional, os samurais viraram protagonistas em tramas de mangás japoneses. Essa cultura de transformá-los em personagens da literatura nipônica se torna comum com a industrialização japonesa, onde o crescimento do consumismo e aspectos de uma sociedade cada vez mais voltada para o mercado e produção em massa trouxe críticas a esse modo capitalista, esse último acusado muitas vezes de derrubar a tradição japonesa. O papel dessa figura seria então a tentativa da manutenção de uma tradição não se perder com a fase consumista japonesa pós-guerra. Tem-se então a necessidade de se voltar para uma figura nacional, o samurai, personagem de outro contexto histórico, onde a honra e a lealdade ainda existiriam. Tanto os heróis ocidentais quanto os samurais defenderiam uma noção de ideia nacional. Se um sentido de liberdade americana está sendo vendido através dos heróis ocidentais, nos mangás japoneses a figura do samurai poderia transportar o leitor para um Japão anterior à modernização, na qual os costumes nacionais ainda estariam sendo vividos em uma época ―heroica‖.

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2.5. REFLEXÕES SOBRE O SAMURAI

Resumindo as questões desenvolvidas até o momento, observamos que, primeiramente, os samurais possuem importância fundamental na história japonesa, afinal governaram o país por mais de 600 anos. Suas características e ações influenciaram o Japão e o tornou o que ele é hoje. Por outro lado, temos a importância da imagem na cultura nipônica, desde as pinturas nos templos japoneses até a impressão dos primeiros mangás no século XX. Ou seja, tanto o guerreiro nipônico quanto a importância gráfica na arte nacional, são características tradicionais japonesas que não se perderam durante a fase moderna da história do Japão. Esse ponto será importante porque segundo Yutaka Tazawa (1973, p.2), têm-se falado no próprio Japão sobre a cultura japonesa estar sendo destruída com a entrada do país no período moderno. A globalização carrega aspectos culturais de diversos países para outros campos do mundo. Muito se tem observado como a cultura norte-americana e europeia entraram na América Latina ou na Ásia. Porém, o Ocidente também tem contato com a cultura oriental, seja pelos meios de comunicação, filmes ou através da imigração desses povos. Essa pequena discussão foi trazida para finalmente entrarmos no segundo capítulo desse trabalho, onde abordaremos as questões referentes ao mangá ―Rurouni Kenshin‖, tentando observar a importância do guerreiro na cultura e na história japonesa através de uma observação da obra. Tentaremos através da análise, identificar também quais simbolismos e intenções do autor ao traçar tais abordagens para o papel desse elemento no início do período Meiji.

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3. REPRESENTAÇÕES EM “RUROUNI KENSHIN”

3.1. O PERÍODO MEIJI: RÁPIDA ABORDAGEM SOBRE SUA IMPORTÂNCIA

Em 1868, o imperador voltou a governar o Japão e teve fim o regime feudal japonês, este último marcado pela centralização do poder nas mãos de um líder militar, o shôgun. Esse restabelecimento do poder imperial é conhecido como Restauração Meiji. O novo governo marcou o fim do poderio militar, com os samurais no poder político, caracterizado por um sistema econômico ―feudal‖ e de relativo isolamento nipônico17 em relação aos países do ocidente. A partir de Meiji, o Japão buscou se aproximar mais de países ocidentais. O envio de japoneses para países como os EUA e a Inglaterra se tornou comum, com o objetivo de se estudar a maneira cultural e, principalmente, a política e a economia dessas nações. Dessas experiências, viu-se o surgimento de personagens que passaram a pensar o Japão a partir do que foi visto nos países ocidentais. Um desses nomes foi Yokoi Shonan18, que apresentou opiniões profundas para a dimensão moral japonesa. Suas principais ideias foram: - Promover o conhecimento da ciência e da tecnologia ocidental, combinando o desenvolvimento comercial com proezas militares; - Unificar a nação no nível moral, com importância para o patriotismo; - As mudanças tinham que estar de acordo com a cultura japonesa mais tradicional, por isso, cristianismo não seria adotado como religião (SWALE, 2009, p. 33-34). A partir desses três pensamentos, podemos tirar algumas conclusões. A importância do conhecimento ocidental, sobretudo as ciências e tecnologias nascentes, 17

Relativo porque o governo insistia no isolamento do país, porém mantinha relação com navios holandeses, em Nagasaki. 18 Intelectual que promoveu ideias para os rumos do governo japonês (SWALE, 2009, p. 34).

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foi de suma importância para o Japão Meiji. Ainda mais se levarmos em conta a necessidade de se expandir economicamente. Esses pensadores costumavam passar meses em países ocidentais e levaram para o Japão as novas práticas econômicas e novos descobrimentos científicos, características das nações ditas como civilizadas. A ―inspiração‖ japonesa para com as potências ocidentais se torna perceptível ao continuarmos a análise a partir do primeiro tópico e a importância das proezas militares. Os países que serviam de ―escolas‖ para esses viajantes japoneses eram nações que estavam se lançando para a corrida imperialista. Os EUA com sua forte influência na América Latina de um lado, e a partilha da África pelos países europeus do outro, poderiam ser exemplos de expansionismo aos olhos nipônicos. Por tanto, depois de séculos de isolamento, o exemplo dos países ocidentais ditos como civilizados foi fundamental para o Japão Meiji. E isso nos leva ao segundo tópico: sobre o patriotismo nacional. Um sentimento que começou a surgir com a própria derrubada do regime feudal, onde o shôgun passou a ser visto pelos grupos samurais como alguém que abriria as portas para o estrangeiro (STEELE, 2004, p.1). Ou seja, Meiji seria uma resposta à influência estrangeira em solo nipônico. Foi uma situação paradoxal: tínhamos o estudo das artes e ciências ocidentais fazendo parte do projeto do novo Japão, porém o período moderno japonês era o produto de um nacionalismo crescente. Um nacionalismo que traria a necessidade de se expandir para o exterior, com o imperialismo japonês na Ásia. Essa expansão não seria possível sem o desenvolvimento tecnológico nacional e um exército unificado e regular, atributos esses de um país moderno no qual o Japão buscou se tornar a partir de 1868. Por último, tínhamos a importância das práticas tradicionais para os novos projetos. É discutível se a modernidade marcou o fim do tradicionalismo nipônico. Segundo Yutaka Tazawa (1973, p.1), a cultura japonesa não se perde com a entrada da influência estrangeira. Para esse autor, os hábitos nacionais contemporâneos devem ser definidos como produto do encontro da cultural tradicional japonesa, com os comportamentos estrangeiros, onde estes últimos foram ―importados‖, absorvidos e misturados de forma harmoniosa à primeira. Houve dessa forma, possibilidade de aberturas flexíveis para práticas estrangeiras. Portanto, a cultura ocidental teve papel importante na construção da identidade nacional moderna no Japão. Porém, não se teve a perda da identidade nacional com a entrada das culturas alienígenas.

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É correto dizer que o modelo de modernização adotado no Japão foi uma espécie de hibridismo entre cultura estrangeira e cultura nacional. Morris Low (2009, p.132), defende que o confucionismo japonês teve um papel fundamental na nova política nipônica. Para esse autor, tal prática do Japão diferia do confucionismo na China. O último teria sido humanista ao passo que o primeiro era nacionalista. Combinado com o xintoísmo, a doutrina de Confúcio proporcionou uma regra poderosa que ajudou a impulsionar o país em um caminho desenvolvimento. Para Swale, todos os fatores acontecidos durante a crise do shogunato19 conspiraram para gerar uma profunda inquietação entre os elementos mais conservadores da elite militar japonesa. Para esse autor, o ideal do governante moderno durante o período Meiji foi processado usando em conjunto de termos e enquadrado em referência a uma variedade de tradições religiosas e filosóficas japonesas, tais como o budismo, xintoísmo e confucionismo (SWALE, 2009, p. 134). O resultado foi a de que os japoneses foram capazes de manter a sua cultura, seu modo de vida, a relação específica entre sua estrutura familiar superior e inferior, e, ainda, simultaneamente, construir uma nação moderna dotada de poder que seria comparável à América e à Europa. Podemos resumir a importância do período Meiji para o Japão por marcar o início da fase moderna da história nipônica. O país é conhecido hoje por suas inovações tecnológicas, sobretudo no campo da robótica e da computação. Além de ser uma das maiores economias mundiais. E foi a partir de Meiji e de suas reformas internas que esse impulso de desenvolvimento japonês teve início. Cremos que esta rápida abordagem sobre o período Meiji seja necessária por ser o contexto da estória na qual se passa o trama de ―Rurouni Kenshin‖, o mangá estudado. Mesmo com os samurais como personagens principais, o contexto da trama será os dez anos iniciais do Japão moderno, onde tais figuras não teriam mais espaço na sociedade japonesa.

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Governo de "shôgun". (YAMASHIRO, 1964, p.194).

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3.2. RÁPIDA INTRODUÇÃO À TRAMA DE KENSHIN

Em ―Rurouni Kenshin‖ temos a trama de um samurai andarilho, Kenshin Himura, em busca de uma vida tranquila e pacífica depois de viver por dez anos desaparecido, fato que o acaba tornando como uma lenda dentro da sociedade japonesa. Já foi dito que Kenshin era um samurai. Suas ações foram realizadas durante a guerra contra o shogunato, travada pelas forças imperiais na década de 1860. Ele não fazia parte das elites guerreiras da época. Não possuía títulos ou posses. Pelo contrário, o herói era um rônin, um samurai sem mestre20 que via na volta do Imperador ao controle político, a saída para o momento complicado do Japão. Durante o bakumatsu, Kenshin agiu como um shishi21, um patriota. Assassinatos políticos a favor do imperador era o principal trabalho do nosso herói, conhecido com o decorrer de sua ―carreira‖ como battousai, e visto como uma lenda dentro do Japão, por ser considerado o maior assassino durante os tempos de guerra civil. Com o período Meiji em curso, Kenshin reaparece como um andarilho pobre, tentando não viver mais como assassino e procurando esquecer as mortes que causara. Se junta dessa forma com Kaoru, uma jovem líder de um dôjô de luta na cidade de Tóquio. A relação entre esses dois personagens é importante durante a trama porque a menina irá representar uma espécie de ―equilíbrio‖ para o protagonista diversas vezes em que este último ficará entre a fronteira da vida pacifica com a de assassinatos, pensando em voltar a matar se for preciso. Além de Kaoru, os principais amigos de Kenshin se resumem ao garoto Yahiko, jovem descendente de samurai, cujo fim da classe não o deixa de sonhar em ser um espadachim; Megumi, uma jovem mulher vinda de uma família de médicos abalada diretamente pela queda do bakufu22 e, Sanosuke Sagara, um lutador de rua que se mostra contrário ao governo Meiji durante grande parte da história. Com o decorrer dos acontecimentos, outros personagens vão aparecendo. Muitos deles são samurais sobreviventes da Restauração Meiji. A maioria desses guerreiros 20 21 22

A partir do desenrolar da série será mostrado que Kenshin tinha um mestre. Homens decididos, patriotas prontos a morrer pela causa que abraçam. Governo militar do shôgun (YAMASHIRO, 1964, p. 194).

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esteve nas guerras civis e principais acontecimentos que derrubaram o governo do shôgun. Cabem aqui dois exemplos de figuras dessa classe: Hajime Saitou, um soldado que lutou a favor do shogunato e passa a viver como policial durante o novo governo. Saitou tem uma personalidade firme e mesmo com a derrota de sua unidade militar, o Shinsengumi, continua lutando ―a favor da justiça, contra o mal‖, como o próprio personagem gosta de dizer. Ele será analisado mais adiante, e um dos pontos mais importantes será sua rivalidade com Kenshin. Embate que nasce durante a guerra civil, quando ambos lutavam em lados opostos. Outro personagem que deve ser destacado em um primeiro momento será Shishio Makoto. Essa figura será conhecida como o principal vilão e maior inimigo de Kenshin. Shishio assume o cargo de assassino pró-Imperador depois que Kenshin desaparece. Com a vitória de Meiji, agentes do novo governo tentam matar o sucessor do herói. Mas ele consegue sobreviver ao atentado e planeja uma vingança contra o novo regime, este último visto como traidor e fraco pelo vilão. O exemplo desses personagens é suficiente para dar um panorama sobre o caráter de ―Rurouni Kenshin‖. Ao todo, o mangá foi publicado em 28 volumes, dividido em vários arcos23. Nesse trabalho, utilizarei até o chamado arco de Kyoto, equivalente até o volume 18. Portanto, adiante focaremos no ponto principal: a representação do samurai em tal mangá. Para isso será necessário analisar uma série de personagens, sejam heróis ou vilões e relacionar os aspectos e principais características que cada um traz com o caráter que o autor dará para o período Meiji construída na obra.

23

O Arco vem do termo "arco de esstória", e é usado para determinar determinada parte da história, ou sub-historias que se juntarão para formar a esstória no sentido geral.

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3.3. A FIGURA DO GUERREIRO EM RUROUNI KENSHIN

Depois de uma introdução à obra, chegamos ao momento de analisar nosso objeto: a representação da figura do herói nacional. Para essa tarefa, alguns personagens do trama serão focalizados. A maioria deles são samurais, outros possuem referências bem próximas a essas figuras e precisamos analisá-los também.

3.3.1. Kenshin Himura

Como já foi dito antes, Kenshin é o protagonista de ―Rurouni Kenshin‖. Depois de consumada a Restauração Meiji, este personagem desaparece em meio à conquista imperial para viver como andarilho pacífico. Essa ação do personagem de sumir com a vitória do novo governo já demonstra uma forma do autor tratar o samurai com marginalização, afinal, com a modernidade essas pessoas não seriam mais ―úteis‖. O pacifismo de Kenshin encontrará na personagem feminina Kaoru uma relação mútua, já que essa última é líder de um ginásio de lutas onde a violência dessas artes marciais será deixada para trás durante a modernização japonesa. É com base na menina, que o protagonista irá, durante o trama, desistir de matar pessoas, pois diversas vezes ele mostrará seu lado frio que possuía em tempos de guerra. Com o fim do período Edo, o Japão passará por profundas mudanças, desde a área política até a área social. Na imagem 6, vemos como o fim do período Edo mexeu com os estilos de lutas no Japão. Com o início do período Meiji, o pai da personagem Kaoru funda uma escola de artes marciais onde segue o lema da ―Espada que protege a vida‖. A katana24, antes vista como arma mortal, passa a não ser mais encarada como instrumento para a guerra. Com o período Meiji, a cultura das espadas, típica dos tempos dos samurais, enraizada na tradição japonesa, não seria abandonada, mas sim ―reinventada‖ para os novos tempos.

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Termo designado para referenciar a espada japonesa.

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Imagem 6

Segundo Miho Koishihara (2009, p.317), desde a Restauração Meiji o exercício físico tradicional tem sido praticado em estreita relação com rituais xintoístas ou o código Bushidô. Estas atividades incluem a luta de Sumô, Kyūdō (disparo com arco japonês cerimonial), Kenjutsu (esgrima tradicional japonesa) e o Jiu-jitsu. Dessa forma, Kenshin não deixa de ser um samurai, entretanto, adota uma nova filosofia de vida, apoiando o estilo de luta de Kaoru e dando fim a seus anos de assassino. Com o desenrolar do trama, Kenshin diz que lutou pela Restauração achando que estava lutando por um Japão mais justo. Nessa visão temos um ideal da classe guerreira e um princípio próprio partindo do personagem. Além disso, o herói possui um senso de justiça pessoal.

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Essas características foram comuns nos samurais legalistas do período, os chamados patriotas (Ishin Shishi). Segundo Andrew Gordon (2003, p.52-53) esses guerreiros praticavam o terror político visando inimigos internos ou externos. Para o autor, os legalistas eram na maioria das vezes jovens revoltados do escalão mediano ou inferior da classe daquela classe militar. Eles se juntaram a um número de membros politicamente engajados da elite rural e urbana, incluindo mulheres ativistas. Foram figuras cruciais da história revolucionária de ideias e ação política no Japão. Os ishin shishi eram pessoas orgulhosas que se entendiam em virtude de nascimento e treinamento para serem servos de seus senhores e de um reino maior e vagamente definido de Estado simbolizado pelo imperador. Na tradição do funcionalismo Tokugawa, eles combinaram cultivo civis e militares. Tinham contato com clássicos confucionistas enquanto treinavam a luta de espadas. Refletindo essa dupla formação, eles sentiram que tinham a responsabilidade de pensar e de agir: propor soluções para os problemas do momento e para realizá-los de forma abnegada na prática. Outra questão relacionada à Kenshin é sua atitude para com o fim de sua própria classe. Segundo José Yamashiro (1993, p. 215), algumas famílias samurais assumiram o controle sobre a Restauração Meiji. Sabiam que o fim daquele extrato social era algo inevitável e mesmo assim, apoiaram a volta do poder monárquico como base da vida política japonesa. No caso do herói, ele nunca deixou de ser um samurai, porém, tal como um membro de Satsuma25, percebe seu destino e o aceita, acreditando com isso, que um de período de paz e prosperidade viria.

25

O clã Shimazu foi um clã daimyô da região (han) de Satsuma, que se expandiu pelas províncias nipônicas de Satsuma, Ōsumi e Hyūga. Foi um clã envolvido na liderança da Restauração Meiji.

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Imagem 7

Na figura 7, teremos outro exemplo de como o herói aceita a nova Era. Nela, vemos a personagem Kaoru se lamentando por perceber que seu dojô26 de luta perdeu estudantes. Mais abaixo, temos Kenshin fazendo tarefas caseiras. Podemos reparar na fala de Kenshin ao saber da perda de alunos: ―isso porque vivemos numa época de cultura e inteligência.‖ É como se o Japão das lutas e dos estilos marciais tivesse desaparecido. Além disso, quando o protagonista usa essa frase como resposta a fala da menina, parece que está opondo as duas Eras japonesas: o período Edo, marcado pela barbárie e confrontos marciais; e Meiji, vista como uma fase de cultura, onde a luta não era mais o principal interesse da sociedade nipônica. Para Kenshin, servir o imperador foi a forma mais correta de se lutar por um Japão mais justo. Tal atitude o fez abandonar seu mestre e se tornar dessa forma um 26

―Sala do caminho‖. Sala de treinamento para as artes marciais onde também acontecem as competições. (FRÉDÉRIC, 2008, p.227).

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rônin (samurai sem mestre). Historicamente, era comum que esse tipo de figura fosse visto como mercenário, e isso os tornava maus vistos pelos próprios samurais. Tornando-se um rônin, o protagonista acaba ―aceitando‖ uma futura marginalização, em nome do próprio país. Abraçando dessa forma, um ―sacrifício‖ a favor do futuro da nação.

Imagem 8

Na figura 8, temos a conversa entre Kenshin e seu mestre, Hiko Seijuro. Percebemos que em vista dos acontecimentos durante o período Edo, Himura tem uma posição totalmente oposta a seu mestre. Enquanto o sensei27 não quer saber dos

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Sinônimo japonês para professor ou mestre.

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conflitos, o herói acredita que lutar por um dos lados na guerra, é livrar pessoas do sofrimento. Ainda na imagem, vimos que Kenshin fala de uma escola de artes marciais, a escola do ―Hiten Mitsurugi‖ e a defende como uma escola que protege as pessoas. Se tratando de tal argumento, podemos afirmar que, a imagem deixada por Watsuki seria a caricatura de um samurai que acredita na mudança do Japão, lutando contra os tiranos e protegendo pessoas. Ou seja, em Kenshin vemos um guerreiro herói, digno de homenagens pelo povo nipônico. Durante todo o trama, percebemos que Kenshin não traz consigo uma das principais ideias do Bushidô: o suicídio. Além de evitar que muitos personagens a sua volta cometem esse princípio, ele próprio prefere viver ao praticar tal ato, como se os princípios antigos fossem esquecidos ou abandonados durante o período Meiji (Figura 9).

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Imagem 9

Apesar de o personagem ser pobre, os atos de Kenshin estarão mais próximos às atitudes dos líderes da Restauração, já que estes, mesmo sendo samurais, apoiaram o fim da classe. Além disso, ele continuará lutando a favor do novo governo durante o desenrolar do trama, o que tornará o personagem como alguém que ainda acredita estar agindo por uma causa justa.

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3.3.2. Myōjin Yahiko

O garoto Yahiko não é um samurai. Porém, entendemos que sua citação neste trabalho se justifica por se tratar de um descendente direto dos guerreiros nipônicos e que continuará possuindo características próprias dessa classe mesmo durante o período Meiji. A introdução como um ladrão de rua a serviço da Yakuza28 será a forma na qual Watsuki irá introduzir o personagem no trama. Portanto, o autor irá trabalhar com a noção de marginalização do samurai mais uma vez. Na imagem 10, há um dialogo entre três personagens: Kenshin, Kaoru e o garoto Yahiko. Durante a conversa, percebemos a tentativa de Kenshin tratar o menino como simples criança. Mas Yahiko não quer ser tratado dessa forma e se revela filho de samurai, como se esse fato ainda lhe desse uma posição superior aos demais indivíduos.

Imagem 10

28

Máfia Japonesa.

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Na figura 11, Kenshin afirma que o garoto teria sido um grande samurai, em um ―mundo melhor‖. O uso do termo ―teria‖ nos ajuda a perceber que Kenshin já aceita o fim de sua própria classe. Além disso, ao se referir ao passado como ―mundo melhor‖, significa que o personagem sente nostalgia em relação ao período em que os samurais ainda eram considerados como classe social.

Imagem 11

Notemos nessas duas sequências a percepção de, mesmo estando o Japão inserido em uma nova Era, as lembranças do ―ontem‖, especificamente o passado do país militar, vem à tona e ainda sobrevive nos filhos daqueles que viveram aquela época.

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Essa permanência do tradicional durante a modernidade tem forte relação com o conceito de cultura japonesa no qual utilizamos nesse trabalho. Segundo Yutaka Tazawa (1973, p.1), a modernidade japonesa irá se desenvolver a partir de uma espécie de ―hibridismo‖ entre culturas tradicionais japonesas e ocidentais, assimilando parte essa última sem perder a primeira. Na figura 12, vemos um membro da Yakuza falando com Yahiko. Notemos que ao se referir o período Meiji, o personagem trata tal período como uma ―Era onde a honra não existia mais‖. Além de se referir ao destino que samurais tiveram depois de 1868.

Imagem 12

A forma de o autor tratar o nascimento da modernidade nipônica a partir da marginalização dos guerreiros japoneses indica dizer que Watsuki quer lembrar aos seus leitores pelas mazelas que aquelas pessoas passaram com a modernização japonesa. Dessa forma, podemos perceber a obra como uma crítica ao período Meijii.

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A próxima sequência de imagens nos ajudará a perceber como os costumes samurais ―sobrevivem‖ em Yahiko. Durante uma das fases do trama, o garoto adoece vítima de envenenamento, causado a partir de ordens do empresário Takeda Kanryu29. Uma personagem feminina, Megumi Takani, salva o menino por conhecer técnicas médicas ocidentais. Com a menina em perigo, vítima de sequestro dos capangas de Takeda Kanryu, Yahiko decide arriscar sua vida para proteger a garota (Figura 13).

Imagem 13

A justificativa do garoto é uma dívida que teria com a moça, por ter sido curado e sobrevivido ao veneno. A questão da honra, já trabalhada nesse trabalho como característica essencial do samurai estará dessa forma enraizada naquele personagem. 29

Personagem inspirado no samurai histórico Takeda Kanryûsai, quinto capitão da Tropa Shinsengumi.

42

Em seguida, vimos que Kenshin sendo adulto, não impede o menino de ir para a luta. Dessa forma, Himura não vê Yahiko apenas como uma criança. Enxerga a noção de moral de sua antiga classe no garoto e por isso, não o impede de pagar sua dívida (Figura 14).

Imagem 14

Durante a batalha contra Takeda Kanryu, existe uma representação simbólica. A figura 15 mostra Yahiko ―vencendo‖ uma arma de fogo ocidental utilizando técnicas tradicionais japonesas. Temos então mais uma forma do autor representar a supremacia da cultura tradicional nipônica em relação ao mundo do ―oeste 30‖.

30

O termo ―oeste‖ faz referência aos países ocidentais, em especial os Estados Unidos e à Inglaterra, países em constante aproximação com o Japão durante a queda do regime Edo.

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Imagem 15

Para concluir essa discussão sobre Yahiko, notemos sua vontade de se aperfeiçoar na luta (figura 16), típica característica samurai retratada no mangá segundo Sonia Luyten (1999, p.59). Para a autora, a perseverança é um traço do comportamento do protagonista das obras, que tenta obstinadamente chegar à meta estabelecida. Os heróis são retratados como pessoas comuns que desejam tornar-se os melhores naquilo que estão empreendendo. A ação das histórias está voltada para como deve ser o desempenho do ―mocinho‖ para alcançar o sucesso: treinos exaustivos, força de vontade e muita paciência.

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Imagem 16

3.3.3. Sanosuke Sagara

O terceiro personagem a ser analisado, Sanosuke Sagara, foi inspirado em um samurai real: Harada Sanosuke. Segundo Mike Wagner (2005, p.7) Harada teria sido um dos capitães da Tropa Shinsengumi, uma força pró-shôgun que visualizaremos mais adiante. A primeira aparição de Sanosuke em ―Rurouni Kenshin‖ (figura 17) remete aos primeiros movimentos por direitos civis no Japão Meiji. Segundo S. N. Eisenstadt: ―Assim, os movimentos de protesto que se desenvolveram no Japão moderno, sob o impacto dos vários processos de modernização, eram, na aparência, em larga medida, muito semelhantes àqueles que se desenvolveram na Europa. Isso é válido, particularmente, para os movimentos pelos direitos dos

45 cidadãos, bem como para os vários movimentos trabalhistas e socialistas, a fim de aumentar a participação na arena política.‖ (Eisenstadt , 2010,p.32-33)

A fala de Sanosuke na figura é curta. Porém, o autor Watsuki passa a ideia de que o personagem possui uma definição do que seriam direitos civis: um mecanismo para defender a liberdade dos mais ―fracos‖. Devemos também fazer um paralelo com o movimento feminino que se iniciou em Meiji. Pois ao apresentar seu argumento, Sanosuke acabara de defender uma moça. Dá a entender tal alegoria como uma espécie de simbolismo usado pelo autor. Sagara cita os direitos civis e a proteção dos mais fragilizados, e ao mesmo tempo está segurando uma mulher, passando a ideia de que na modernidade, a mulher passaria a ser defendida.

Imagem 17: Introdução do personagem Sanosuke Sagara

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Em seguida, temos que levar em consideração a primeira relação de Sanosuke com Kenshin: este último por ter sido um assassino a serviço do imperador faz com que Sagara queira matá-lo (Figura 18). Essa situação será justificada mais adiante, quando o passado de Sanosuke for revelado.

Imagem 18

Sanosuke tinha um mentor, o capitão Sagara (figura 19). Líder do grupo Sekihoutai31, Sagara luta a serviço do imperador, achando que o novo governo traria uma nova Era para o Japão. Sua relação com Sanosuke é mostrada como a relação de um pai para com um filho. Com a morte do Capitão Sagara pelas forças imperiais, Sanosuke cresce vendo o novo governo como traidor. Essa raiva será descontada em Kenshin, visto como um 31

No mangá, o Sekihoutai foi um grupo formado por fazendeiros que buscavam apoiar as tropas imperiais em troca de favores se o Imperador chegasse ao poder.

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remanescente dos dias de guerra civil, consequentemente, Himura é visto como um inimigo.

Imagem 19

Durante o período Meiji, Sanosuke se torna um lutador por encomenda, sempre atrás de uma luta que lhe seja interessante. Isso é explicado porque, tendo vivido o período Tokugawa, o personagem não consegue deixar de lutar. Ele representa o samurai marginalizado durante esse novo governo: alguém que não consegue esquecer seu passado e não encontra nenhuma ocupação que não seja com lutas e, vive em um ―submundo‖ na cidade de Tóquio. Além de ser mostrado como um sujeito crítico em relação ao governo nipônico. O entendimento com Kenshin só chegara até Sanosuke, quando este perceber que o primeiro é um grande guerreiro e fizer essa comparação com a lembrança de

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quem foi o capitão Sagara. A partir dessa experiência, Sagara e Himura se tornam grandes amigos. A marginalização dos samurais em ―Rurouni Kenshin‖ é muitas vezes tratada através do ódio dos personagens para com o governo. Durante todo o trama, Sanosuke se mostrará com receio em relação ao período Meiji, como na figura 20. Quando chamado para uma missão em defesa de Meiji, Kenshin escuta de Sanosuke palavras de desprezo para o governo. Sua principal justificativa é ter sido membro do Sekihoutai.

Imagem 20

Uma característica da classe social analisada nesse trabalho, a vontade de aprender, novamente aparece em ―Rurouni Kenshin‖, dessa vez com Sanosuke. Procurando se aperfeiçoar, Sagara pede ao Monge Anji para treiná-lo (Figura 21).

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Imagem 21

Sanosuke não chega a ser referenciado como samurai. Além disso, luta a maior parte das brigas sem espada. Porém, possui traços característicos daquele guerreiro japonês, como a noção de perseverança e a necessidade do treinamento como aperfeiçoamento. Portanto, foi necessário trazê-lo para a discussão por se tratar de uma figura inspirada em um personagem real, este último, morto durante os conflitos contra as forças pró-imperador, logo depois da queda do Castelo Edo, segundo Mike Wagner (2005, p.17). Construir personagens inspirados em pessoas reais da história nipônica é um traço comum na obra de Watsuki. A descrição de algumas dessas figuras históricas nos

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dará um suporte para que conheçamos os interesses do autor com as representações fictícias.

3.3.4. Jin’Eh

O Primeiro vilão da série, Jin’eh (figura 22) foi um assassino de ishin shishi durante a primeira década do período Meiji. Seu passado durante o bakumatsu foi de oposição ao governo imperial. Mesmo com a vitória do imperador e o fim da classe, esse personagem é retratado como um samurai que nunca deixou de matar.

Imagem 22

Diversas vezes durante o trama, o autor utiliza seus personagens para criticar o governo Meiji. Com a representação de Jin’eh como um assassino de sangue frio, Watsuki procurar dizer que, o período Meiji corrompeu os antigos guerreiros. Ao contrário de Kenshin, Jin’eh continua matando pessoas durante o novo governo e, essa

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atitude do personagem, é mostrada como uma perda de consciência do vilão, corrompido depois de tantas mortes que causara durante a fase de transição do poder nipônico. A atitude de continuar assassinando os ishin shishi simboliza na figura de Jin´eh, todos os descontentamentos dos agentes sociais remanescentes do período Edo que ainda viviam durante o governo Meiji. Como afirma Andrew Gordon (2003, p.67), justamente em 1877 eclodiu a rebelião Satsuma, considerada a última rebelião samurai do Japão. Voltaremos a falar sobre esse evento mais a frente quando formos analisar o papel do vilão Shishio Makoto e sua rebelião contra o governo Meiji. Parece que Watsuki quer ignorar essa ―última rebelião‖, já que seus personagens continuam com revoltas durante o período Meiji. Como afirma Swale (2009, p.8-9), o governo imperial não possuía em seus primeiros anos de vida, base sólida. E isso pode ser exemplificado como na própria rebelião Satsuma ou no assassinato, no ano seguinte a esse evento, de um dos líderes da Restauração Meiji, o político Okubo Toshimichi, também do clã do Satsuma. Esse último evento será retratado em ―Rurouni Kenshin‖. Dessa forma, percebe-se que o autor retrata a pouca solidez do regime Meiji e a grande ameaça e insatisfação dos últimos samurais, marginalizados durante a modernização japonesa. Além de cometer o Bushidô, prática tradicional de sua classe, o vilão Jin´eh prestes a morrer, confessa para Kenshin, que agia a mando do governo imperial, onde o personagem deixa claro sua opinião sobre o contexto japonês do início da nova Era. Ele diz: ―tem muita discussão sobre esse novo governo, mas no fundo é só a mesma briga sangrenta por poder‖ (figura 23). Ou seja, se o período Edo deveria ser visto como um contexto de opressão e barbárie, Meiji não poderia ser vista de forma diferente segundo Jin’eh e, para simbolizar essa provar sua conclusão, o vilão confessa a Kenshin que o próprio governo o contratou para assassinar seus antigos aliados.

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Imagem 23

Para concluir a análise sobre esse personagem, é importante levar em conta o que o autor está querendo dizer com ele. O trama de Kenshin se passa dez anos depois da Restauração Meiji sair vitoriosa. Devemos afirmar então que os acontecimentos tratados no mangá se passam em 1878. Vimos que um ano antes, em 1877, aconteceu a rebelião de Satsuma, a última rebelião liderada pela antiga classe dirigente do Japão. Porém, o autor retrata esses guerreiros ainda trabalhando para o governo e isso é interessante para se tentar traçar um perfil para o contexto histórico no qual se trabalha na obra. Com a modernização, o Japão cria um exército regular. Armas de fogo serão comuns e as espadas deixadas de lado. Porém, no período Meiji construído por Watsuki em ―Rurouni Kenshin‖, o samurai ainda terá importância. Vemos isso com Jih’eh e veremos mais adiante com a revolta de Shishio Makoto e a importância de Kenshin para derrotar o vilão.

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3.3.5. Aoshi Shinomori

Mais um personagem com base em uma figura real, Aoshi Shinomori, foi inspirado em um dos lideres da tropa Shinsengumi, um samurai chamado Hijikata Toshizô32, que segundo Mike Wagner (2005, p.6), foi vice-comandante do grupo. Apresentado como um vilão, Aoshi é representado em um primeiro momento como um mercenário, trabalhando para o empresário Kanryu Takeda. Líder da gangue Oniwabanshuu33, Aoshi nunca se mostra submisso ao capitalista. Mesmo assim, podemos notar que essa representação do guerreiro, trabalhando por dinheiro, seja uma forma de Watsuki trazer novamente a questão da marginalização daquela classe.

Imagem 24 32

Samurai vice-comandante da Tropa Shinsengumi. O Oniwabanshu foi um grupamento existente durante o período Edo. Era formado por ninjas e espiões, atendiam basicamente aos interesses dos daimyô. 33

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Além da marginalização da classe, o personagem Aoshi mostra conhecer a definição do samurai ―ideal‖. Quando assiste Kenshin lutar, Shinomori mostra que não esqueceu os princípios que um grande guerreiro deve trazer. Isso fica exemplificado com os elogios que estabelece a Himura. O personagem diz que se o protagonista tivesse como intenção o lucro, teria se tornado um oficial do exercito japonês. Devemos tirar disso uma crítica ao aparelho militar do período Meiji e suas motivações por parte do autor. Segundo Aoshi, faltaria um princípio nobre durante o período moderno japonês (figura 24). Outra característica presente nesse personagem será sua lealdade aos seus subordinados. Isso fica esclarecido na figura 25. Com o fim do período Edo, Aoshi fora chamado para ser funcionário do novo governo, mas rejeitou o cargo porque não queria abandonar seus amigos. Depois de ver seus amigos sendo mortos, Shinamori decide que quer matar Kenshin, pois assim, conseguiria ser o guerreiro mais forte, podendo dar esse título à memória de seus antigos companheiros. E como já foi dito no capítulo 1, a lealdade é uma das características mais importantes do samurai.

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Imagem 25

Característica comum nos personagens de Watsuki, Aoshi possui sua visão sobre os acontecimentos que levaram à Restauração Meiji. Segundo o personagem, o shôgun fora covarde ao não lutar pelo poder. Para Shinamori, a batalha poderia ter sido ganha se houvesse a resistência por parte do governante, principalmente com a força que o grupo Oniwabanshuu possuía na visão de Aoshi (Figura 26).

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Imagem 26

Concluindo as análises sobre os personagens, ressaltamos a característica muito presente nos samurai de Watsuki. Além da marginalização dos samurais, seus guerreiros não são neutros em relação aos acontecimentos políticos da época, ou seja, cada um tem uma opinião a respeito sobre o contexto no qual estão inseridos. Kenshin, Sanosuke, Jin’Eh e Aoshi possuem suas visões políticas, tanto sobre o período Edo, quanto sobre a Meiji e essa característica serve para dar mais trama e mais complexidade (já que nem sempre as visões serão iguais) à forma na qual o contexto histórico é construído no trama.

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3.3.6. Itsuruji Raijuuta Prosseguindo com as análises sobre os personagens de ―Rurouni Kenshin‖ teremos mais um vilão samurai, representado na figura do espadachim Itsuruji Raijuuta. Em sua primeira aparição (figura 27), percebemos o temor de um líder de dojô: o fim do estilo Kenjutsu, uma modalidade de luta japonesa. Isso está relacionado com a visão de que, durante o período Meiji, conhecida como o ―período da cultura e iluminação‖, as práticas tradicionais nipônicas se perderam com o passar do tempo.

Imagem 27

Na imagem 28, temos um diálogo entre Raijuuta e Kenshin. A conversa é sobre o Kenjutsu e seu enfraquecimento durante o período Meiji. A opinião do vilão é uma visão comum durante o Japão contemporâneo. Segundo Elise K.Tipton (2002, p.56), a

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crítica à modernização japonesa encontra base na perda de identidade cultural, propiciada principalmente com a modernização nipônica. Uma linha de pensamento já presente no início da modernização japonesa e que, com a década de 1990, veio à tona novamente, principalmente por causa da crise econômica, essa última na qual ainda abordaremos nesse trabalho. Ou seja, Watsuki constrói a trama de ―Rurouni Kenshin‖ com base em uma discussão de seu próprio contexto pessoal: a perda da tradição japonesa como resultado da modernização que começou em 1868 com o período Meiji e estaria em seu ápice na década de 1990, com a crise econômica que surgiu depois do rápido crescimento nipônico. Na mesma imagem, a fala do vilão sobre ―Os fracos devem ser retirados‖ já seria um indício de uma ―modernização‖, pois se aproxima do darwinismo social34. Watsuki, dessa forma, está dizendo que a identidade nacional estava sendo perdida com o período Meiji. E isso é mostrado a partir de Raijuuta. O vilão pensa querer defender a cultura nacional. Porém, seu discurso não é tipicamente de um samurai, mas subjetivamente, de um homem ocidental. Não estava no código moral daquela classe social desrespeitar os inferiores na hierarquia. Uma das características principais desse tipo de guerreiro era a sua lealdade para com seus superiores e seus subordinados também. Havia uma espécie de respeito entre as partes. A própria ideia de rejeitar o chonin, era por uma questão de que, estes homens se interessavam por posses e lucros, conquistados sem esforço, enquanto o samurai não via essas ambições com mesmo entusiasmo (YAMASHIRO, 1964, p. 120).

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Segundo Maria Augusta Bolsanello (1996, p. 154), o darwinismo social pode ser definido como a aplicação das leis da teoria da seleção natural de Darwin na vida e na sociedade humanas e seu grande mentor foi o inglês Herbert Spencer (1820-1903).

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Imagem 28

3.3.7. Saitou Hajime

Mais um personagem inspirado em uma pessoa real, Saitou Hajime em ―Rurouni Kenshin‖ possui o mesmo nome do samurai histórico, que segundo Mike Wagner (2005, p.6) foi capitão da terceira unidade do grupo Shinsengumi, posição que Saitou também possuía no trama. Na figura 29, Saitou é mostrado primeiramente como alguém que possui uma rivalidade com Kenshin. Essa dualidade estaria mergulhada no passado, com o processo que culminou no fim do período Edo e início do período Meiji. Sendo o herói um

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patriota a serviço do imperador, Saitou foi um de seus antagonistas, membro de uma unidade pró- shôgun.

Imagem 29: Saitou Hajime, à direita.

Esse embate entre Kenshin e Saitou será uma das principais formas de relacionar os dois personagens antagonistas durante o bakumatsu. Além disso, essa dualidade também refletiria a rivalidade entre samurais a serviço do shôgun de um lado e entre os guerreiros a favor do Imperador. Durante a luta entre Kenshin e Saitou (figura 30), o personagem Sanosuke Sagara analisa o confronto não como algo típico da modernidade, mas sim um embate característico do período Edo, chegando a dizer que os dois personagens ao viverem tal confronto, não ―estão mais no período Meiji‖ e que só alguém que viveu tal período poderia parar a luta.

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Portanto, Saitou e Kenshin seriam ―elos‖ entre os dois períodos nipônicos. Essa forte rivalidade entre os dois personagens revela como o Japão ainda se mostrava em momentos de tensão durante o início do período Meiji, onde o Estado ainda não era instável.

Imagem 30

Mais adiante será revelado que Saitou na verdade estava testando as habilidades de Kenshin. O antigo capitão estava a serviço do governo Meiji e diferentemente da maioria dos samurais mostrados no mangá, Hajime conseguiu um posto como policial durante o período Meiji. Segundo Wagner, com a vitória das forças imperiais, o Saitou histórico teria passado a ser policial depois de 1868. Seria a forma em que o guerreiro teria encontrado para lutar contra as injustiças no país, mostrando dessa forma uma espécie de lembrança dos tempos de guerra.

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Na figura 31, Saitou explica suas razões para servir ao governo Meiji, mesmo estando do lado oposto durante a Restauração do poder monárquico. Aparentemente, suas justificativas estão ligadas aos velhos hábitos como samurai e a noção de lutar contra as injustiças. Mas na percepção do personagem, o período Meiji também deve créditos às pessoas vindas do bakufu, pois estas também ajudaram a construir o novo Japão. Ele próprio seria um exemplo desse tipo de pessoa.

Imagem 31

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3.3.8. Shishio Makoto

Considerado o maior vilão de ―Rurouni Kenshin‖, Shishio Makoto, tal como o protagonista, foi um patriota a serviço do Imperador. Quando Kenshin se retira para a vida de andarilho, Shishio se torna seu sucessor como principal assassino a serviço das forças imperiais. Quem faz a própria apresentação do personagem na trama é Okubo Toshimichi, figura inspirada no histórico Okubo, político japonês e um dos patriotas que ajudou a fundar o novo país com a Restauração monárquica. Com o desenrolar da conversa, fica esclarecido que o próprio governo tentou assassinar Shishio, mesmo esse último tendo sido um grande aliado (figura 32). A personalidade agressiva de Shishio e o temor do novo governo em ter alguém tão ambicioso por perto, foram as justificativas para a tentativa de assassinato do antigo aliado.

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Imagem 32

Não podemos ignorar a representação de Meiji como um governo desleal em relação aos seus antigos parceiros. A definição desse período por Watsuki, como um governo traidor está presente em todo o trama. Nesse sentido, o autor não concebe a modernidade nipônica como uma época de luzes ou cultura e quando usa esses adjetivos na história de Kenshin, serve para ironizar aquele período japonês. Mas a traição do novo governo para com os samurais nos faz perceber no novo regime um tom cruel e maquiavélico35. Na sequência (imagens 33 e 34), o vilão revela seus planos para o Japão. Segundo Shishio, o novo governo é fraco e incapaz de reagir a uma nova rebelião. Dessa forma, Makoto pretende derrubar o imperador e subir ao poder, guiando o país para um futuro promissor. 35

De acordo com Maquiavel (considerada como a negação de toda moral): política maquiavélica.

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Shishio queria ser um novo shôgun, mesmo que não diga isso. Além de não criticar o período Edo, esse personagem procura assumir o controle do país na base da força, uma das características dos antigos líderes em determinados momentos de crises internas nas quais o Japão passou.

Imagem 33

Imagem 34

Durante a série, Shishio costuma dizer que acredita na lei da ―sobrevivência do mais forte em detrimento do mais fraco‖ (figura 35). Até certo ponto, essa ideia é semelhante com a teoria da seleção natural de Darwin. Assim, Makoto como samurai, teria entrado em contato com ideias ocidentais e escolhido abraçar ao seu modo a teoria ocidental. Algo semelhante com o vilão Raijuuta. Esse tipo de pensamento presente nos vilões é uma forma de Watsuki dizer que o Japão Meiji, além de ter ―importado‖ ideias positivas, como a democracia, também conheceu ideologias negativas que levaram o país ao abismo da ganância imperialista, ou seja, a procura pela expansão econômica e política além das próprias fronteiras nacionais.

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Imagem 35

Os países colonizadores no ocidente são para o personagem, exemplos de países poderosos. Dessa forma, só seria possível fazer o país nipônico ser uma potência, subjugando outras nações, consideradas mais fracas (figura 36).

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Imagem 36

3.3.9. Soujirou Seta

Soujirou Seta é mais um personagem criado por Watsuki a partir de um personagem real: Okita Souji, membro da tropa Shinsengumi. Segundo Wagner (2005, p.9), Souji foi um prodígio no manuseio da espada e seu nascimento teria sido no ano 1844. Segundo esse autor, o espadachim morreu com 25 anos, vitima de tuberculose (2005, p.15).

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Souji está representado em Runouni Kenshin. Sua pequena aparição na obra de Watsuki será lutando ao lado de Saitou Hajime, outro membro do grupo Shinsengumi. Na figura 37, vemos o jovem representado como alguém que possui tuberculose, doença na qual Wagner, citado anteriormente, teria matado o samurai.

Imagem 37

Sobre Soujirou Seta, sua introdução na trama é vista na imagem 38. Graficamente, esse personagem será retratado idêntico ao antigo espadachim da Tropa Shinsengumi, Okita Soujirou. A figura desse personagem será apresentada como o assassino do político Okubo Toshimishi, fato que aconteceu no dia 14 de maio de 1878, produto de bushi radicais descontentes com a política de Okubo, segundo Swale (2009, p. 127-128).

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Na mesma imagem, percebemos que o jovem estará a serviço do vilão Shishio Makoto, no qual este último contará com o rapaz como principal aliado para conseguir realizar suas ambições.

Imagem 38

Seta não é tão crítico quanto os outros guerreiros. Pelo contrário, se mostra como alguém frio e sem emoções, nos quais as ações estarão voltadas apenas para os desejos de seu mestre Shishio. Seta representa, dessa forma, a figura do servo leal ao seu senhor. Alguém que não mostra suas emoções e que, ao mesmo tempo, transmite confiança para seu sensei. Essa relação entre Shishio e Soujirou lembra a lealdade da tropa Shinsengumi para com o shôgun. Por isso, a importância de representar um samurai histórico na figura de um guerreiro leal ao seu mestre, como vemos na obra estudada.

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3.3.10. Tropa Shinsengumi

Em ―Rurouni Kenshin‖ temos a representação de uma força militar em defesa do shôgun. Esse grupo foi a tropa Shinsengumi. Segundo Mike Wagner (2005, p.4) este era um grupo de espadachins poderosos que foi formado pelo governo Tokugawa para proteger as cidades japonesas daqueles que queriam ver o retorno do poder para as mãos do imperador. Esse bushidan36 foi formado no fim do período Tokugawa, durante o período conhecido como o bakumatsu. Ainda segundo Wagner, eles não só lutaram contra os revolucionários que queriam derrubar o poder do shôgun, mas também foram atribuídos por esse governo para proteger o povo japonês e derrubar a corrupção onde quer que ela fosse encontrada. Segundo Rosa Lee (2011, p.168), a tropa Shinsengumi tem sido retratada na literatura japonesa constantemente. Para a autora, a atuação desses homens na história japonesa foi limitada. Porém, podemos explicar a contínua lembrança desses personagens com a identificação com quem as lê. Para isso, Lee citando Antonio Gramsci, diz que os protagonistas de uma literatura popular são capazes de ―atrair‖ os leitores porque suas estórias e narrativas refletem os ideais das massas. Dessa forma, o público encontraria nos heróis da Shinsengumi, a reflexão de suas filosofias pessoais. Devemos, mais adiante, perceber como o sentido de autonomia das personagens de ―Rurouni Kenshin‖ pode dialogar com a década na qual o mangá foi escrito. Mas seguimos com a análise sobre a representação da tropa Shinsengumi em ―Kenshin‖. Como já foi dito, a Shinsengumi foi criada para enfrentar os restauradores do poder monárquico. Voltando à figura 37, temos a primeira referência à tropa em ―Rurouni Kenshin‖. Essa alusão mostra dois membros diante de Kenshin: Saitou Hajime e Okita Souji, ambos já analisados nesse trabalho. Como Rosa Lee escreveu, a Shinsengumi foi diversas vezes romantizada na literatura japonesa. Isso acontece também em ―Rurouni Kenshin‖. Na imagem 39, vemos Kenshin falando sobre o grupo. Para o protagonista, além de dizer que esses 36

Grupo ou legião de samurais (YAMASHIRO, 1993. p.267).

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homens formaram o último grande grupo de espadachins do Japão, quem os derrotou não foram outros guerreiros, mas sim o armamento moderno, ou seja, se de um lado os membros da Shinsengumi são vistos como heróis, as armas modernas ocidentais são culpadas pela derrota desses sujeitos. Ainda sobre a imagem 39, percebemos que a forma gráfica na qual Watsuki traz os membros da Shinsengumi são as mesmas onde representa seus personagens fictícios em ―Rurouni Kenshin‖. Dessa forma, dos dez capitães representados na imagem, além de Saitou, podemos identificar outros três membros que servem de inspiração para personagens na história de Kenshin. Sanosuke Harada, Takeda Kanryûsai e Okita Souji serviram de base para a construção dos personagens fictícios Sanosuke Sagara, Kanryu Takeda e Soujirou Seta, respectivamente.

Imagem 39: graficamente, os capitães das divisões estão representados tais como os personagens fictícios que Watsuki cria para o mangá.

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3.4. A CONSTRUÇÃO DO PERÍODO MEIJI EM RUROUNI KENSHIN

Analisado os principais personagens samurais em ―Rurouni Kenshin‖, devemos agora nos focar no contexto onde eles estão inseridos: os dez primeiros anos do período Meiji. Devemos perceber como o autor cria esse período histórico japonês para podermos, mais adiante, concluirmos quais as intenções de Watsuki com a obra. Buscando uma maior compreensão, faremos essa análise comparando com a historiografia moderno

sobre

japonês,

percebermos historiográficas

o a

contexto fim

algumas

de

questões

empregadas

pelo

autor em sua obra. Quais pontos estudados na historiografia o autor utilizará

ou

ignorará.

Essas

comparações nos ajudarão a perceber o caráter que o período Meiji terá no trama.

3.4.1. A proibição do uso de espadas

Com o período Meiji assistiuse o fim dos samurais como classe social. Esse fato, além de jogar muitos guerreiros na marginalidade, traz ao público uma das leis que

Imagem 40

simboliza o fim de tal segmento: a ordem proibindo o uso de espadas. Segundo Swale (2009, p.67), Mori Arinori, membro do clã Satsuma, foi o primeiro a propor que o uso da katana devia ser proibido. A princípio, essa ideia foi rejeitada pelos outros políticos japoneses, porém a proibição acabou se tornando realidade, mas de forma gradual. Os primeiros atingidos pela nova lei foram aqueles que

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teriam recebido o direito de usar as espadas como símbolo de reconhecimento por um serviço excepcional e não faziam parte da classe por nascimento. Mas logo, a ordem de proibição chegaria a todos os guerreiros e os únicos que ainda poderiam usar a arma seriam os funcionários do governo e os oficiais de elite. Essa questão será lembrada por Watsuki em sua obra. Na figura 40, Kenshin é questionado por um policial por utilizar aquele artefato em público. Será essa a primeira vez em que o autor da obra expressa através de ―Rurouni Kenshin‖ algo que prejudica diretamente a classe samurai. Com o desenrolar da estória, através do personagem Itsuruji Raijuuta, o autor dirá que as artes marciais japonesas foram prejudicadas pelo governo Meiji. Além disso, ainda na imagem 40, esta mostra também um policial recebendo propina, o que nos leva a perceber uma forma de dizer que tal regime não possuía ―homens com honra‖. E isso é importante porque o ideal de um membro daquela classe é justamente o contrário. Um ―verdadeiro‖ guerreiro teria essa característica, que seria a base para todas as suas atitudes. Dessa forma, Kenshin, uma pessoa que quase morreu pelo país, é abordado e questionado por alguém ―sem honra‖. Portanto, Watsuki quer nos passar uma ideia de ―governo Meiji‖ onde seus funcionários são ―corruptos‖ e perseguem os ―justos‖. Ainda sobre o uso de espadas, mais adiante aparecerá um grupo de policiais onde sua principal diferença em relação aos demais oficiais será o uso de espadas. A justificativa para isso será que, aqueles homens serão uma ―elite policial‖ (imagem 41). O uso da espada era uma das principais características do samurai. Com a proibição do uso desse elemento, representar a elite policial utilizando a katana nos remete a ideia de que, além de os homens que trabalharam para Meiji serem corruptos, eles se apoiavam numa forma tradicional de cultura para legitimarem suas ações, nesse caso, o uso das espadas. Segundo José Yamashiro (1964, p.174), um limitado grupo de guerreiros liderou o processo para a derrubada do shogunato e o fim da própria classe. Mas esses guerreiros faziam parte de clãs poderosos dentro do Japão. Não foram prejudicados pela transição de governo e nem pelo fim da ordem. O próprio Yamashiro afirma que essas

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famílias irão se aproveitar do processo de industrialização nipônica, ganhando vantagens a partir dos chamados zaibatzu. Devemos ressaltar que essas famílias vinham de uma situação considerável. A maioria dos samurais sofria com a decadência da classe e se encontravam marginalizados com o início do período Meiji. Dessa forma, a existência de um grupo policial de elite, utilizando espadas seria uma forma de o autor criticar aquelas famílias que conseguiram tirar proveito da situação precária na qual os seus pares se encontravam anos depois de 1868.

Imagem 41

3.4.2. Medicina ocidental

Durante o período Meiji tivemos ideias ocidentais entrando e modificando estruturas nipônicas. Isso foi notado, sobretudo, se levarmos em consideração os anos de isolamento nos quais o país viveu em relação ao Ocidente. Porém, com a entrada na modernidade, veremos um projeto estatal onde era preciso importar práticas ocidentais, cuja finalidade seria o desenvolvimento da nação.

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Com a abertura do país, obras literárias foram traduzidas para o idioma japonês e excursões de estudiosos nipônicos foram feitas com o objetivo de se estudar os países ocidentais. A medicina estrangeira entrou definitivamente durante esse período. Porém, segundo Gordon (2003, p.44), esse campo de estudo ocidental já poderia ser encontrado no Japão durante o período Tokugawa. Para esse autor, o bakufu proibiu a importação de "livros cristãos", começando na década de 1640, porém, as obras sobre temas práticos, como a cirurgia ou a navegação eram permitidas, e um fluxo de livros ocidentais , bem como traduções chinesas, chegou ao país durante as décadas seguintes. Essa proibição foi relaxada em 1720. Uma tradição modesta de estudos do ocidente criou raízes, principalmente em Nagasaki, onde as pesquisas sobre as ciências naturais, medicina e botânica estrangeira eram praticados. A imagem 42 trata sobre a família da personagem Megumi como sendo uma família de médicos que tratariam a medicina como ―subordinada à vida‖. A existência da medicina ocidental estará presente nessa figura, onde a família da garota buscará tal conhecimento, mesmo que para isso fosse preciso a mudança de residência.

Imagem 42

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Continuando com o tema, um ancião dirá que a guerra Boshin causou o fim da família de Megumi, uma família que buscava a medicina para o ―bem‖ das pessoas, independente da classe social, como é dito na imagem 43.

Imagem 43

Concluindo este tópico, percebemos que na imagem 42, temos a influência da medicina ocidental presente dentro do Japão feudal e a representação de uma família de médicos que a busca para se aprimorar. Já a imagem 43, temos o autor colocando novamente o governo Imperial como ―vilão‖ do trama quando um dos personagens relata que ―uma guerra causada principalmente pelas forças de repressão imperial, chega a uma região que não aceita tal governo‖.

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Com isso, toda uma família de médicos tradicional é destruída, sobrando apenas uma criança. Portanto, é possível afirmar que, Watsuki não coloca apenas os samurais sendo prejudicados em sua obra, mas também outros personagens, como Megumi. Começamos a pensar em um caráter negativo sobre o período Meiji em ―Rurouni Kenshin‖. Uma negatividade que será analisada mais adiante com outros tópicos trazidos nessa pesquisa.

3.4.3. O empresário Meiji

Durante o período Meiji, o Japão entrou no surto desenvolvimentista. O capitalismo ganhou espaço de vez no país nipônico. As indústrias cresceram e, consequentemente, surgiu a classe operária japonesa. Em ―Rurouni Kenshin‖, essa fase capitalista será simbolizada na figura do vilão Takeda Kanryuu. Sua representação será de um homem sem nenhum interesse que não seja o lucro através da venda do ópio37 (imagem 44).

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Substância que pode causar alucinações ou morte.

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Imagem 44: o empresário, figura marcante na nova Era japonesa será trazida na figura de Takeda.

Sendo Takeda homem de negócios, ele não entende o código de um guerreiro samurai. ―Um homem capaz de morrer por suas crenças‖, é assim que Aoshi se refere à Kenshin, quando questionado por Kanryuu (imagem 23). Além disso, Shinamori sendo um guerreiro fará uma analogia: diz que Himura ―não liga para lucros, pois se ligasse, seria um oficial do exército durante o período Meiji‖. Ou seja, um guerreiro virtuoso, característico do período Tokugawa, cedeu espaço para um militar apenas interessado no dinheiro durante o período Meiji. A visão de Watsuki sobre o capitalismo japonês não é complexa. O autor cria Takeda para representar aquela fase nipônica, um homem que busca o lucro com a venda de ópio, tem poderio bélico moderno e desconhece as tradições nacionais de seu país. Uma crítica o período Meiji através do sistema lucrativo é encontrada em ―Rurouni Kenshin‖ dessa forma. Para Watsuki, tal contexto histórico representou o surgimento de homens incapazes de pensar como os antigos samurais, verdadeiros guerreiros de honra

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na visão do autor. O novo homem japonês, segundo esse autor, apenas ligaria para ganância e lucro.

3.4.4. Ruptura com o passado

Uma das características principais do período Meiji de Watsuki será a ruptura com o passado tradicionalista do período bakufu. Essa questão já foi abordada diversas vezes nesse trabalho através da figura do samurai. Contudo, esse pretérito sendo esquecido será representado de outras formas também. Dessa forma, na imagem 45, o fim das desigualdades entre classes será criticado por um dos personagens. O tom agressivo que tal figura possui nos faz pensar que nem sempre Watsuki quer criticar o período Meiji como algo ruim, pois durante tal contexto, não existiria mais desigualdades hierarquizantes, com a classe bushi acima das demais.

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Imagem 45

Já na imagem 46, teremos um garoto falando sobre as novas atividades de seu pai, antigo guerreiro. Para o personagem, seu pai ―desonra‖ sua família por se dedicar ao comércio. Como já foi dito, os samurais durante o período Edo não viam os comerciantes com respeito. Essa representação de um ícone nacional fazendo justamente aquilo que ele despreza é no mínimo, uma forma de mostrar esse sujeito em uma posição constrangedora durante o período Meiji.

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Imagem 46

3.5. O SAMURAI DE WATSUKI

Analisado os samurais e o período Meiji em ―Rurouni Kenshin‖, cabe agora uma visão geral e apontar alguns pontos importantes para a finalização do trabalho, no próximo capítulo. Com a abordagem sobre esses sujeitos no mangá, percebemos algumas características semelhantes entre eles. Por exemplo, tanto os heróis, quanto os vilões estão em uma posição semelhante em relação ao período Meiji: todos (exceto Saitou) se encontram excluídos da sociedade Meiji, marginalizados e alguns chegam a ser tratados como vagabundos ou mercenários, como Sanosuke ou Aoshi. Além disso, os personagens de Watsuki são críticos em relação ao período Meiji. O autor não cria uma estória contada sob o ponto de vista dos lideres da Restauração,

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como Okubo Toshimichi, mas a trama de Kenshin é centrada justamente nos samurais marginalizados e críticos ao novo governo. Para completar a situação, o período Meiji, além de ser mostrado sem um governo de base sólida, é também criticado em outros aspectos, como ―a Era em que o homem da honra deixa de existir para dar lugar àquele que seria interessado apenas no lucro pessoal‖, ou seja, o capitalismo teria corrompido o homem japonês durante a modernização. Esse personagem histórico seria preocupado com sua riqueza individual e não com a prosperidade da comunidade japonesa. Esse novo indivíduo está representado no trama como o empresário Kanryu Takeda. Essa crítica ao capitalismo nascente no Japão será importante para análise no próximo capítulo. Contudo, cabe percebermos os principais eixos da crítica do ―Rurouni Kenshin‖. . Os samurais são os principais personagens; são críticos e marginalizados durante o período Meiji. A personalidade cruel de alguns deles está apresentada como produto do novo governo e a situação em que este último os deixou; Exemplo disso seriam as performances de Jin’Eh e Raijuuta, onde o primeiro seria um assassino incontrolável, e o segundo buscaria vingança contra a situação em que o novo regime político deixou as artes marciais tradicionais nipônicas. . O governo Meiji é construído na obra como corrupto e formado por homens sem honra. A representação de uma polícia autoritária e as ações de Jin’Eh a serviço do novo regime (imagem 47) são justificativas para tal afirmação em relação ao período moderno construído na obra.

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Imagem 47

Com as características do trama de ―Rurouni Kenshin‖ analisadas, voltemos nossa atenção para os motivos que teriam levado Watsuki a criar tal obra. Para isso, será necessário analisar o contexto no qual o mangá foi escrito.

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4. A MODERNIDADE NA CULTURA JAPONESA

Para concluir esse trabalho, será necessário perceber as intenções e motivos que levaram Watsuki se voltar para a figura do samurai e representá-lo da forma que está representada em ―Rurouni Kenshin‖. Para isso, procuraremos fazer uma análise sobre o contexto no qual a obra foi escrita: a década de 1990. Quais as questões e problemas estão sendo impostas para o povo nipônico durante esse período? Em seguida, levando em conta o período Meiji como início da fase moderna da história japonesa, será discutido o que se define como modernidade e como esse conceito se aplica ao Japão, levando em consideração reflexos que essa fase produziu para o povo nipônico. Portanto, com base nas informações debatidas nos tópicos acima, será discutida a importância do herói nipônico para aquele país dentro dessa perspectiva moderna. Com isso, perceberemos os motivos de Watsuki em criar o ―seu‖ samurai e ―seu‖ período Meiji.

4.1. O JAPÃO DA DÉCADA DE 1990

Para analisarmos o Japão da década de 1990, será necessário voltarmos um pouco, precisamente no processo de expansão econômica no qual o país passará logo a seguir do fim da Segunda Guerra Mundial. Depois desse conflito, houve a fase de ocupação americana quando se assistiu uma influência desse país ocidental na constituição japonesa e consequentemente, a tentativa da criação de uma democracia em solo japonês nos moldes americanos. Segundo Gordon (2003, p.231), era esse um momento de renovação política e, ao fim dessa ocupação por parte dos ocidentais, o controle do governo foi entregue aos políticos conservadores. O surgimento do Japão como uma nação próspera, confiante e tranquila foi um desenvolvimento marcante da história mundial do pós-guerra. Nos lares japoneses, a partir da década de 1970 até os anos 1980, algumas pessoas se encheram de orgulho por causa das conquistas nacionais. Eles se irritavam com as

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críticas dos países estrangeiros em relação ao desenvolvimento nipônico. Outras pessoas falaram com nostalgia do desaparecimento de formas mais antigas de vida. Eles temiam que a geração mais jovem tivesse perdido o compromisso focalizado dos idosos. Outros defenderam uma maior abertura para o mundo, mais tolerância pela variedade, ou mais igualdade no mundo de homens e mulheres. O que ficou conhecido como ―milagre econômico japonês‖, que elevara o país a potência mundial, foi controverso. Pois se o desenvolvimento era real e visível, a distribuição desigual pelos frutos do desenvolvimento e o impacto ambiental se tornaram imensos. Gordon afirma também que houve nesse período uma padronização do estilo de vida japonês, com a exposição de programas e eventos deixando claro que a vida japonesa fazia parte de uma cultura moderna dentro do mundo capitalista (Gordon, 2003, p.265). Com essa sociedade em auge, houve também a critica a esse sistema. Uma corrente de pensamento da esquerda japonesa baseou-se em teóricos sociais europeus da Escola de Frankfurt. Ela atacava duramente a versão japonesa de "sociedade administrada" e lamentou as formas em que os meios de comunicação, juntamente com os empregadores de empresas e instituições estatais, como as escolas, prescritos no curso normal da vida de um cidadão correto, vinham esmagando impulsos e as diversidades individuais. Eles criticaram a exaltação do crescimento do PIB em detrimento da construção da solidariedade social, a proteção do meio ambiente e o cultivo da cultura local. (Gordon, 2003, p.268). Durante a década de 1980 a esquerda japonesa culpou os militares e burocráticos pela guerra: essas elites junto com políticos não liberais e capitalistas monopolistas, para o expansionismo e conquista militar, não teriam levado em conta os custos humanos. A manipulação do sistema de ensino e meios de comunicação seriam as causas para o apoio popular à guerra. Em 1990, a bolha especulativa da década de 1980 estourou de forma espetacular, inaugurando mais de uma década de estagnação econômica. Tanto no contexto global e do espírito nacional da década de 1990, mostram diferenças bastante acentuadas em relação aos anos 1980.

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Segundo Tipton (2002, p.211), a década de 1990 costuma ser chamada como a ―década perdida‖. Portanto, quando Watsuki publicou sua obra, o Japão estava passando por tempos incertos. Depois de um desenvolvimento na década de 1970, a crise econômica abateria o país na década de 1990. A seguir de uma padronização e de um estilo de vida consumista, gerando criticas vindas da esquerda japonesa, a estagnação econômica atingira o povo nipônico. Foi nesse contexto que foi escrito ―Rurouni Kenshin‖. Em um período onde tivemos um povo a mercê de uma crise nacional. A justificativa de se voltar para uma figura tradicional, como a do samurai, será encontrada dessa forma. Porque como citamos Sonia Luyten (1999, p.20), no início do trabalho, com a expansão do desenvolvimento japonês, teremos o crescimento do gênero mangá dentro da sociedade japonesa. E esses leitores, já acostumados em ler os quadrinhos nacionais, estariam procurando algo no qual deveria servir-lhes para o esquecimento dos problemas pessoais.

4.2. O JAPÃO MODERNO E O JAPÃO DE WATSUKI

Vimos que o capitalismo e a expansão japonesa vinham sendo criticados pela esquerda japonesa desde a década de 1980 por causa de sua padronização para com o estilo de vida nipônico. Seria a obra de Watsuki uma crítica ao contexto nacional japonês da época? Isso seria válido já que o trama se passa durante o período Meiji? Se o autor queria criticar o Japão contemporâneo, por que então se voltar para Meiji? Qual a importância de tal período para a história japonesa e suas repercussões atuais? Já vimos que é comum definir o Japão Meiji como o início da modernidade japonesa. Mas o que devemos definir como ―modernidade‖? Como esse conceito se aplica com o Japão Meiji? Segundo Giddens (1991, p.8) o que se define como modernidade seria um estilo, costume de vida e organização social que surge a partir do século XVII na

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Europa, mas logo irá se espalhar pelo mundo todo. Dessa forma, não é difícil perceber que o autor trata como modernidade justamente a fase histórica onde a burguesia toma o poder durante as revoluções europeias. Até porque esse estilo de governo burguês será patrocinado por um capitalismo crescente cuja demanda será se espalhar pelo globo. Para Giddens, o modo de vida moderno irá possuir características próprias, pois com a modernidade teríamos o afastamento dos tipos tradicionais de ordem social (Giddens, p.10). Esse caso pode ser exemplificado com o fim da ordem samurai em Meiji: com a vitória do governo imperial, aquela classe será abolida em prol de um ―futuro melhor‖ ou ―inteligente‖ como Watsuki traz em ―Rurouni Kenshin‖. A própria ideia de se voltar para a figura do guerreiro japonês seria uma característica desse novo contexto. Segundo Giddens, o advento da modernidade possibilitou a rotinização da vida cotidiana sem relação com o passado. Porém, para o autor, o tradicional terá importância na relação com a integração da modernidade com a sociedade (Giddens, p.39). Durante a análise do mangá, percebemos algumas avaliações de Watsuki ao desenvolvimento japonês. Além disso, analisamos nesse último capítulo a crítica de autores da esquerda japonesa sobre o consumismo e ao capitalismo das décadas de 1970. Esse julgamento do autor, além de estar dentro de um contexto de críticas ao sistema capitalista, deve ser justificado se levarmos em consideração uma fala de Giddens. Segundo este autor. “O empreendimento capitalista, podemos concordar com Marx, desempenhou um papel importante no afastamento da vida social moderna das instituições do mundo tradicional” (GIDDENS, 1991, p. 57). Ou seja, se o samurai (um bem tradicional que encontra seu fim com a modernidade) deve ser lembrado como herói, a modernidade japonesa e o início do capitalismo nipônico devem ser vistos com críticas negativas. Um dos aspectos da modernização seria a globalização, definida por Giddens como a intensificação das relações sociais a nível mundial, ligando localidades de tal maneira que acontecimentos locais são influenciados e modelados por acontecimentos muito distantes. O capitalismo seria dessa forma, visto como principal agente dessa globalização (Giddens, p.60).

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O início dessa integração mundial foi retratado algumas vezes em ―Rurouni Kenshin‖. Falamos, por exemplo, do personagem Kanryuu Takeda, empresário sem nenhuma ligação com o espírito tradicional japonês. A forma de esse homem demonstrar a falta de conhecimento por sua cultura nacional sugere que a globalização em forma de capitalismo já entrou no período Meiji de Watsuki. Devemos destacar, ainda, que o período Meiji foi alvo de críticas durante os anos 1980. Mesmo com a queda do comunismo ortodoxo, Tipton (2002, p.37) afirma que as imagens dos períodos Tokugawa e Meiji eram representadas de formas parecidas para vários dos chamados historiadores progressistas, permeando também entre a literatura popular e da imprensa. Esses estudiosos condenaram o período Edo como feudal e opressivo. Em relação ao período Meiji, a visão negativa era justificada porque os restos feudais mantiveram-se fortes e impediram o desenvolvimento histórico do Japão para o socialismo. Muitos pensadores permaneceram preocupados em encontrar as raízes das políticas e o sistema de governo que levaram o país a uma desastrosa guerra e ocupação estrangeira. Os motivos muitas vezes caíram em cima do governo Meiji, visto como ―absolutista‖. Ou seja, Watsuki não é o único a criticar aquele período. Sua obra está dentro de um contexto no qual a própria modernidade foi colocada em xeque.

4.3. OS MOTIVOS DE WATSUKI

Watsuki muitas vezes critica a modernidade japonesa durante a trama de ―Rurouni Kenshin‖. Sua visão se apega principalmente à perda de valores tradicionais, simbolizados pela figura do samurai, para criticar o Japão Meiji, pois como mostrado nesse trabalho, foi durante essa fase da história nipônica em que se desenvolveu o capitalismo japonês, carro-chefe da modernização e globalização, atacados pelos pensadores nipônicos durante a década de 1980-1990, principalmente depois do início da crise econômica nipônica. Em um contexto histórico em que a sociedade japonesa estava passando por crise, se perguntando por seus valores pessoais e precisando de uma ―inspiração‖ para seguir em frente, esse herói nacional, ganha importância dentro desse período, pois

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representaria uma volta aos sentimentos tradicionais e uma chance de representar os sonhos dos leitores, abalados pelos problemas do país. Watsuki não cria seus protagonistas como sendo guerreiros idealizados ou invencíveis. Pelo contrário, eles foram derrotados por um governo moderno, que daria origem a um Japão de desigualdades e de crises, onde as pessoas esqueceriam seus heróis nacionais e iriam se apegar ao consumo desenfreado. Se Watsuki não cria heróis idealizados, então sua intenção será justamente lembrar ao povo japonês os seus ―mártires‖. Porque o Japão não deveria ser conhecido como um gigante asiático que se desenvolve de forma avassaladora depois da década de 1970. Nem conhecido como um país onde o capitalismo ocidental derrubou as tradições nacionais. Mas para o autor, o país deveria ser lembrado pelos samurais, vistos como representantes da cultura nacional japonesa. É por esses fatores, que o samurai de ―Rurouni Kenshin‖ é um sujeito que deu a vida pelo seu país. Um guerreiro que abriu mão de sua condição social por um povo. Porém, o governo o traiu, negando papel no novo período, destruindo sua classe, corrompendo alguns deles e os jogando na marginalidade. Kenshin, o protagonista de Watsuki, é um samurai que aceita seu destino: abrir mão da própria classe social para salvar o país. É no Japão moderno do período Meiji que Kenshin irá se encontrar com outros samurais. Todos, inclusive o protagonista, estarão desacreditados com o novo governo, visto como fraco por Shishio Makoto e como opressor por Sanosuke Sagara. ―Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas‖ (MARX, Karl e ENGELS, 2005, p. 43). A frase de Marx sobre a modernidade resume de forma completa o que esperamos dos samurais de Watsuki. O sólido que se desmanchou no ar foi a confiança no governo imperial que Kenshin e outros personagens, como Sanosuke, possuíam durante a queda do shogunato. O sagrado que foi profanado se relaciona com a situação privilegiada que a classe samurai possuía antes de sua extinção e como ela perdeu esse status com a modernidade. E finalmente, as novas relações sociais, tais como a posição social do indivíduo na sociedade, deveriam ser vista com serenidade, mesmo se o papel desse sujeito fosse afastado dos centros políticos ou marginalizado, distante e sem conseguir encontrar uma função na nova sociedade.

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5. FONTE WATSUKI, Nobuhiro. Kenshin Kaiden. Tokyo. Shueisha Inc. 1999. Disponível em: . Acesso em: 11 de junho de 2015.

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7. CRONOLOGIA DA HISTÓRIA JAPONESA

Até 8000 a.C. - Período "Pré-Cerâmico" ou "Período Paleolítico"

8000 a.C. a 300 a.C. - Período Jomon- população vivendo em pequenas comunidades, dedicadas à caça e desenvolvendo técnicas agrícolas.

300 a.C. a 300 d.C. - Período Yayoi- contato com coreanos e chineses; desenvolvimento do plantio do arroz e do trabalho com metal( bronze e ferro).

300 d.C. a 593 d.C. - Período Yamato ou Kofun- a arte de cerâmica desenvolveu-se e a escritura chinesa entrou no país para fins comerciais; unificação do Japão como nação e da introdução do budismo no país (538 d.C).

593 d.C a 710 d.C- Período Asuka- mudanças (Política, Filosofia, Arquitetura) que se deveram, principalmente, ao budismo e ao confucionismo. Em 604 d.C, o regente Shotoku cria a primeira constituição do país.

710 d.C a 794 d.C - Período Nara- este período inicia-se com a transferência da capital para Nara; a escrita chinesa (Kanji) foi adaptada para o japonês. A sociedade em sua maioria era agrícola e dividida em aldeias; crescimento do poder centralizado no país.

794 d.C a 1192 d.C - Período Heian- com o Imperador Kammu, a capital muda para Heian; as guerras pelo poder que opuseram alguns clãs nipônicos trouxeram instabilidade política e o aparecimento dos samurais. 1192 d.C – 1333 d.C- Período Kamakura- a capital imperial passa a ser em Kamamura. Nesta era, destaca-se Minamoto Yoritomo, o shôgun, que inicia uma época dominada pelos samurais cujo código de honra é a base do governo. É nesta altura que se cria o regime militar conhecido como shogunato (ou bakufu). Em 1274, o exército Mongol tenta conquistar o Japão, mas é derrotado pelos samurais.

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1333 d.C a 1573 d.C - Período Muromachi- Ashikaga Takauji estabelece o shogunato Muromachi, em Kyoto. Apesar de violento, este período foi marcado por grande evolução econômica e cultural (arquitetura, pintura, poesia, música, a cerimônia do chá, o Ikebana (arte de arranjar flores) e o teatro. A chegada dos portugueses ao Japão que trazem as primeiras armas de fogo e o cristianismo (graças ao jesuíta Francisco Xavier). O poder econômico passa para as mãos dos daimyô e ocorrem batalhas pela posse de territórios.

1573 d.C a 1603 d.C - Período Azuchi-Momoyama- com a ajuda das armas de fogo, Oda Nobunaga conquista o poder, mas morre assassinado, antes de unificar o Japão num único governo - ação que só o seu general, Toyotomi Hideyoshi, conseguiu levar a cabo. O Japão conhece então uma grande evolução econômica e social e até faz duas tentativas (falhadas) para conquistar a Coreia. 1603 d.C a 1868 d.C - Período Edo- Pela batalha de Sekigahara, Tokugawa Ieyasu conquista o poder e o controle total do país, estabelecendo-se na cidade de Edo ( atual Tóquio). Em 1633, o Cristianismo é proibido e perseguido. O país fecha-se, apenas comunicando com o exterior através do porto comercial de Nagasaki. Apesar disso, o Japão conhece um florescimento comercial. Em finais do século XVIII, o shogunato enfrenta contestações políticas internas. Devido à Revolução Industrial do Ocidente e a pressão estrangeira, o Japão muda a sua política e reabre as portas a outras culturas; fim dos samurais como classe social e a restauração do imperador como figura central no cenário japonês, com a Dieta nacional (parlamento) controlando a vida política. 1868 d.C a 1911 d.C -Período Meiji- com o Imperador Meiji deram-se grandes mudanças que trouxeram liberdade religiosa, igualdade social, a abolição do feudalismo e um grande nacionalismo. Foi nesta época que foi criada a primeira Constituição moderna. O Japão venceu duas guerras territoriais contra a China (1895) e contra a Rússia (1905). Em 1910, o Japão ocupa o território coreano. 1912 d.C a 1925 d.C - Período Taisho- neste período, o governo democrático ganhou força, o que permitiu que as mulheres fossem socialmente mais participativas. Mercê de

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tratados anteriormente firmados, o Japão entrou na Primeira Guerra Mundial, ao lado dos Aliados. O fim da Guerra e o terremoto de 1923 agravaram a situação econômica do país. 1926 d.C a 1988 d.C - Período Showa- A crise econômica mundial de 1929 impeliu os militares de tomar grande parte do poder e a conquistar novos territórios, o que implicou a sua retirada da Liga das Nações (1933). Na Segunda Guerra Mundial, o Japão alia-se à Alemanha e à Itália e ataca a base americana de Pearl Harbor no Havai (1941); os EUA lançam as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, com o intuito de demonstrar força militar perante seus rivais no cenário mundial. Cerca de dois milhões de japoneses morreram, parte do país ficou destruído e a economia ficou em ruínas. O Japão foi ocupado pelos EUA e foi criada uma nova Constituição (1947). O imperador Hirohito perdeu o poder e surgiu uma nova forma de governo- a monarquia constitucional, controlada por um parlamento. As relações exteriores são reatadas em 1951. O Japão tornou-se rapidamente numa das principais potências econômicas do mundo. Em 1973, a crise de petróleo leva a que o Japão insistisse nas indústrias de alta tecnologia.

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