O Sangue e a Capacidade de Diálogo das Almas do Hades na Nekyia de Ulisses (Odisseia, Canto XI) (Pôster)

June 15, 2017 | Autor: Erike Lourenço | Categoria: Classical philology, Homeric poetry, Antiquity, Odyssey, Ancient Greek Language
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O Sangue e a Capacidade de Diálogo das Almas do Hades na Nékyia de Ulisses (Odisseia, Canto XI) Erike Couto Lourenço (UFMG) Introdução

Relação entre φρένες, θυμός e Sangue

No décimo primeiro canto da Odisseia há a descrição do ritual que Odisseu executa com o objetivo de

A consciência em Homero era um processo que geralmente ocorria na φρήν (ou nas φρένες, no

atrair para si as almas que estão no Hades para, então, conseguir consultar o adivinho Tirésias

plural), mas que era identificada também com o próprio θυμός (Od. I:294). Apesar do debate sobre o

(Odisseia XI:23-39). Eis o trecho abaixo (original grego e tradução nossa):

que seriam as φρένες (ONIANS, 1951, p. 23) Onians empreende uma detalhada análise (ONIANS,

ἔνθ᾽ ἱερήια μὲν Περιμήδης Εὐρύλοχός τε ἔσχον: ἐγὼ δ᾽ ἄορ ὀξὺ ἐρυσσάμενος παρὰ μηροῦ βόθρον ὄρυξ᾽ ὅσσον τε πυγούσιον ἔνθα καὶ ἔνθα, ἀμφ᾽ αὐτῷ δὲ χοὴν χεόμην πᾶσιν νεκύεσσι, πρῶτα μελικρήτῳ, μετέπειτα δὲ ἡδέι οἴνῳ, τὸ τρίτον αὖθ᾽ ὕδατι: ἐπὶ δ᾽ ἄλφιτα λευκὰ πάλυνον. πολλὰ δὲ γουνούμην νεκύων ἀμενηνὰ κάρηνα, ἐλθὼν εἰς Ἰθάκην στεῖραν βοῦν, ἥ τις ἀρίστη, ῥέξειν ἐν μεγάροισι πυρήν τ᾽ ἐμπλησέμεν ἐσθλῶν, Τειρεσίῃ δ᾽ ἀπάνευθεν ὄιν ἱερευσέμεν οἴῳ παμμέλαν᾽, ὃς μήλοισι μεταπρέπει ἡμετέροισι. τοὺς δ᾽ ἐπεὶ εὐχωλῇσι λιτῇσί τε, ἔθνεα νεκρῶν, ἐλλισάμην, τὰ δὲ μῆλα λαβὼν ἀπεδειροτόμησα ἐς βόθρον, ῥέε δ᾽ αἷμα κελαινεφές: αἱ δ᾽ ἀγέροντο ψυχαὶ ὑπὲξ Ἐρέβευς νεκύων κατατεθνηώτων.

1951, pp. 23-65), concluindo que se referia aos pulmões (ONIANS, 1951, p. 24), a “localização física”

Ali, as vítimas Perimedes e Euríloco seguraram: eu, porém, puxando a espada afiada da coxa, uma vala escavei, do tamanho de um côvado aqui e ali e, em sua volta, derramei libações a todos os falecidos: primeiro, de mel misturado; depois, de delicioso vinho; à terceira vez, de água: sobre isso espalhei cereal branco. Muito implorei às cabeças sem vigor dos mortos, retornando à Ítaca, uma vaca estéril, aquela mais nobre, a fazer uma pira no palácio e enchê-lo de preciosidades, e para Tirésias, à parte, um carneiro a ele ofertaria, Completo negro, que se distingue em nossos rebanhos. A eles, então, votos e súplicas à companhia dos mortos, Orei. E, as ovelhas tomando, degolei-as Sobre o fosso. Escorreu sangue negro. Elas se ajuntaram, As almas, desde o Érebo, dos falecidos mortos.

do θυμός (NAGY, 1992, p. 89). É interessante que o adjetivo πεπνυμένος, “(estar) consciente" (aplicado a Telêmaco), inicialmente pode ser entendido como "o que respirou”: um homem é sábio porque ele respira (ONIANS, 1951, p. 58), mais uma vez correlacionando a inteligência à respiração, isto é, a inspiração de θυμός (ONIANS, 1951, p. 59). Penélope expressa que "um tear construir inspirou-me um dos deuses (ἐνέπνευσε φρεσὶ δαίµων)". (Od. XIX:138) (ONIANS, 1951, p. 56). É dito que a alma de Tirésias, consultada por Odisseu no Hades, encontrava-se consciente pois possuía as φρένες intactas (Od. XI:476) (ONIANS, 1951, p. 59). Por isso, era o único entre as almas que πέπνυται, que “respira” e tem fôlego, isto é, pode ter consciência, a inteligência que exprime (ONIANS, 1951, p. 59), diferentemente do que ocorreu com as demais almas, que não a possuíam.

O ritual descrito acima equivale a uma νέκυια (tradicional consulta aos mortos) (CLAY, 2009, p. 95).

O Sangue e a Fala das Almas

Sobre ele, Karl Reinhardt diz o seguinte: “Há um consenso sobre a forma da Nekyia [de Odisseu]: ela não é uma jornada ao Hades como aquelas de Orfeu ou Heracles. Ela é um elevamento de espírito situada no fim do mundo habitado, isto é, uma convocação aos mortos, ainda que não guarde também de perto esse formato. [...] De fato, inicialmente Odisseu não está no Submundo, mas em sua entrada, e são os mortos que vêem à vala do sacrifício, mais do que ele se misturando com os mortos. [...] A ânsia delas [das almas] por sangue significa o desejo delas por vida. [...] Pelo beber do sangue eles sentem a sua condição, percebem que eles estavam uma vez vivos e são capazes de falar novamente.” (REINHARDT. In: SCHEIN, 1996, pp. 119-120) Tirésias avisara ao herói que o sangue seria o causador da fala nas almas (Od. XI:147–149). Mas, além desse dado indicado pelo texto, haveria outras informações em âmbitos diferentes – como no filológico e literário, por exemplo -, que apontassem relações entre o sangue e a recuperação da cognição e da fala das almas do Hades? Exporemos esses outros níveis, que foram extensamente analisados por diversos pesquisadores, dentre os quais destacamos Jan N. Bremmer, Gregory Nagy

As φρένες aparece também como o pensamento expresso pela fala. Após citar algumas passagens dos textos homéricos (Il. II:36, III:366, V:190, VIII:498, XII:106, 165, XVII:90-106 e Od. V:284, 298), Onians afirma que “pensar é descrito como ‘falar’ e está localizado algumas vezes no coração mas, usualmente, está na φρήν ou φρένες” (ONIANS, 1951, p. 13). Formado o quadro geral entre ψυχή, θυμός e φρήν ou φρένες (intelecto), por um lado, e o sangue, a respiração, a inspiração e a fala, por outro, Onians conclui o seguinte sobre Tirésias e as demais almas: “O profeta Tirésias, apesar de morto, aparentemente não havia sido cremado e retinha seus órgãos e inteligência [...]. As ψυχαί, podemos notar, de Elpenor e Pátroclo, cujos corpos permaneceram sem cremação, tinham consciência e falavam com Odisseu e Aquiles, do mesmo modo que Tirésias o fez com Odisseu, apesar de as outras ψυχαί, cujos corpos tinham sido presumivelmente cremados, não falassem ou mostrassem sinal algum de reconhecimento em relação a Odisseu, até que provassem do sangue e então recebessem o fôlego, o θυμός, para aquela ocasião. Pois, como temos visto, o fôlego, θυμός, era concebido como um vapor em conexão com o sangue." (ONIANS, 1951, pp. 60–61).

e Richard B. Onians. Um antigo comentário sobre a νέκυια de Odisseu, atribuído a Porfírio (filósofo grego do séc. III) pelo

Termos para “Alma”

antologista João Estobeu (século V d.C) (JOHNSON, 2013, p. 333-334), antecipa Onians em vários séculos. Sobre as almas que estão no Hades, o texto diz que (original grego e tradução nossa):

Segundo Jan N. Bremmer, os termos gregos para “alma” usados em Homero são diversos: ψυχή, θυμός, μένος, νοός e alguns órgãos do corpo, como “coração” (ἦτορ) e “pulmões” (φρήν ou φρένες) (BREMMER, 1966, p. 1). Por ora, analisaremos somente duas delas: ψυχή e θυμός. A palavra θυμός homérica pode ser compreendida como “acima de tudo, a fonte das emoções: amizade e sentimentos de vingança, alegria e dor, fúria e medo – tudo procede do θυμός” (BREMMER, 1983, p. 54). Já ψυχή “designa o transportador desencarnado da identidade da pessoa morta, às vezes representado como um homúnculo, que é uma visão em miniatura do falecido como ele foi visto em vida” (NAGY, 1992, p. 88). Richard B. Onians e Gregory Nagy confirmam isso, ao dizerem que a palavra θυμός é cognata (NAGY, 1992, p. 116) de fumus (latim) e dhûmá (sânscrito), ambas significando “fumaça” (ONIANS, 1951, p. 44). A partir disso, Onians define que "não é preciso fazer um grande salto para sugerir que o próprio θυμός é o fôlego, que pode ser sentido sempre como vaporoso e algumas vezes visível” (ONIANS, 1951, p. 44).

ῶν δ' ἐντὸς τοῦ ποταμοῦ καὶ ἀφῃρημένων τὸν λογισμὸν τὸν ἀνθρώπινον μόνος ὁ Τειρεσίας καὶ τοῦτον ἔχει παρόντα· οἱ δὲ ἄλλοι ἀλλήλους μὲν γιγνώσκουσι κατ' ἰδιότητα φρονήσεως ἣν ἐν Ἅιδου κέκτηνται, τοὺς δὲ ἀνθρώπους οὐκέτι· οὐδ' ἂν φθέγξαιντο περὶ τῶν ἀνθρωπίνων τοῖς ζῶσιν ἔτι ἀνθρώποις, εἰ μὴ ἀτμοῦ μεταλάβοιεν αἵματος καὶ τούτῳ φρενωθεῖεν τὰ ἀνθρώπινα, ἃ δὴ οἱ ἔξω καὶ μὴ πιόντες τοῦ αἵματος φρονοῦσι, κατάστασιν ἔχοντες τῆς ἐξ αἱμοποσίας τῶν θνητῶν ταῖς ψυχαῖς γιγνομένης γνωρίσεως. (STOBAEUS, 1862,

Entre esses que estão no rio [Estige], e foram privados do senso humano, somente Tirésias possuía isso consigo presente. Os demais conheciam uns aos outros conforme um próprio conhecimento que no Hades possuíam, mas nunca aos homens. Nem podiam falar sobre as coisas humanas com os que ainda viviam exceto se recebessem o vapor do sangue e assim pensassem em coisas humanas, sobre as quais esses que estão fora pensam sem ter bebido do sangue, pois possuem o estabelecimento do conhecimento, vindo a partir da bebida do sangue, que acomete nas almas dos mortais.

p. 312).

Conclusão Concluímos que o sangue do sacrifício da νέκυια odisseica desempenha um papel preponderante na cena, pois encerra representativamente as dinâmicas e faculdades da vida corpórea pregressa das

Onians contrasta as funções de θυμός e ψυχή da seguinte forma: “É dito sobre o θυμός como esse sentindo e pensando, como ativo nos pulmões (φρένες) ou no peito (στῆθος) de uma pessoa vivente, e partindo na morte, mas não é dido sobre a conexão dele com o estado subseqüente. A ψυχή por outro lado, está ‘na’ pessoa mas não é ditto como estando nos pulmões ou no peito ou pensando ou sentindo enquanto a pessoa vive. Ela parece ser mais um ‘princípio vital’ ou uma alma desinteressada com a consciência ordinária e ser o que persiste, ainda que sem a consciência ordinária, na casa de Hades, onde é identificada com εἴδωλον, o visível, mas impalpável, semblante de alguém que fora uma vez vivo” (ONIANS, 1951, p. 94).

almas, como o θυμός, as φρένες, a consciência e a fala, possibilitando que elas retornem, mesmo que temporariamente, possibilitando assim o diálogo entre as personagens.

Glossário

Bibliografia • BREMMER, J. N. The Early Greek Concept of Soul. Princeton: Princeton University Press, 1983. • _______________. The Rise and Fall of the Afterlife. Routledge, 2001. • CLAY, J. S. A Companion to Greek Religion. Wiley-Blackwell, 2010. • HOMERO. The Odyssey with an English Translation por A.T. Murray, 2 vol. Cambridge: Harvard University Press; London: William Heinemann Ltd, 1919. Disponível em http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.01.0135 (último acesso: 1 de novembro de 2015).

• JAEGER, W. The Theology of the Early Greek Philosophers, 1936. ▪ JOHNSON, A. P. Religion and Identity in Porphyry of Tyre: The Limits of Hellenism in Late Antiquity. Cambridge University Press, 2013. ▪ LIDDELL, Henry George & SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon. Revised and augmented. Oxford: Clarendon Press, 1940. Disponível em:

http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0057 (último acesso em 1 de novembro de 2015).

•NAGY, G. Greek Mythology and Poetics. Cornell University Press, 1992. • ONIANS, R. B. The Origins of European Thought: about the Body, the Mind, the Soul, the World, Time, and Fate. 8a ed. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1951. • REINHARDT, K. The Adventures in the Odyssey. In: SCHEIN, S. L. Reading the Odyssey: Selected Interpretative Essays. New Jersey: Princeton University Press, 1996. • STOBAEUS, J. Eclogarum Physicarum et Ethicarum Libri Duo, v. I. Leizing: Augustus Meineke, 1860. Disponível em: http://heml.mta.ca/lace/sidebysideview2/4821569 (último acesso: 1 de novembro de 2015).

Termo Grego

Transliteração e Significados

εἴδωλον

eídôlon: imagem, fantasma

ἦτορ

êtor: coração, desejo

θυμός

thymós: espírito, alma

μένος

ménos: força, espírito

νέκυια

nékyia: necromancia, rito fúnebre

νοός

noós: mente, senso, intelecto

πεπνυμένος

pepnyménos: consciente, sábio

φρήν

frên: mente, vontade

φρένες

frénes: mente, pensamento, senso

ψυχή ψυχαί Johannes Stradanus, “Odisseu na entrada do Hades, o submundo” cerca de 1600-1605 (detalhe)

psychê: vida, alma imaterial psychái: almas imateriais, Fonte: (LIDDELL & SCOTT, 1940)

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