O SEGREDO DA APORIA SOCRÁTICA

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O SEGREDO DA APORIA SOCRÁTICA

Jean D. Soares Mestrando em Filosofia pela PUC-Rio e bolsista FAPERJ

Resumo: O personagem da Apologia tem uma peculiar relação com a verdade. Ele a deseja tanto e alcança tantas aporias. Uma relação difícil. Este texto procura apresentar alguns dilemas que encontramos na leitura deste texto clássico. Dilemas incipientes, um pouco vacilantes e, quem sabe, ingênuos sobre possíveis cálculos e segredos presentes no recurso à aporia de nosso personagem. Até que ponto a verdade suporta a incorporação? – eis a pergunta, eis o experimento. Friedrich Nietzsche, A gaia ciência, §110

Entre os mistérios desse texto emblemático, o primeiro nó da Apologia é o de saber até que ponto Sócrates foi homenageado por Platão e até que ponto Platão transforma Sócrates em um personagem. Nó impossível de desatar na escrita platônica (porque morta não responde questões para além do texto), ele pode ser somente notado, descrito e mantido como condição para adentrarmos na narrativa. O personagem da Apologia guarda essa ambiguidade: é um personagem platônico, enquanto participa de um discurso ficcional; e, historicamente, ao render homenagem a uma figura que parece ter existido, Platão escreve seu testemunho de uma figura histórica que nada escreveu, permanecendo viva pelos gestos que perduraram na escrita através dos tempos1. Ao personagem Há outros registros conhecidos de Sócrates: em Xenofonte, (Cf. XENOFONTE. Memoráveis.), na comédia de Aristófanes, que não serão estudados neste trabalho (Cf. ARISTÓFANES. As nuvens.). A escolha de Platão se dá por uma questão de ordem prática, de foco sobre detalhes da Apologia. A leitura e o confronto entre os personagens elaborados a partir de Sócrates pareceme muito interessante (por exemplo, por ter protagonizado diálogos trágicos, um diálogo cômico e um relato histórico). Pretendo explorar essa relação em um trabalho posterior.

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Sócrates de Platão ou ao testemunho de Platão na Apologia de Sócrates me referirei ao longo do texto, sem procurar descrever um nó que a tradição de leitura destes textos busca desatar. Corromper a juventude e não reconhecer os deuses da cidade são as duas acusações feitas a Sócrates, levadas ao tribunal por Meleto, Ânito e Lícon. Após o processo de acusação, Lísias, um sofista, se oferece em defesa de Sócrates. Além de apresentar-nos este cenário antecedente ao discurso em seu prefácio à Apologia2, Pinharanda Gomes interpreta o ato apologético de Sócrates: Era possível que Lísias, treinado nas lides forenses, conhecedor das psicologias heliásticas, mais ajustado aos modos de reagir de tais assembleias, detivesse o segredo – não necessariamente a arte de demonstrar a verdade – do ínfimo persuasivo, pelo qual fosse possível mover a comiseração dos Quinhentos e Um. No entanto, se Sócrates fosse beneficiado, o benefício iria a crédito, não da sua palavra, não da sua arte, não do seu pensamento, mas da palavra, da arte e do pensamento de um Sofista. Nesse caso, a filosofia calava-se cedendo o lugar3. A partir dessa situação limite, Sócrates assumiria todos os riscos de seu método. Ele se dava à morte, porque não fazê-lo seria ignorar toda uma vida dedicada à filosofia e fazer calar aquele que até ali não havia negligenciado sua responsabilidade para com a verdade. Ou Sócrates dava seu destino ao cálculo sofista – que conhece como persuadir, como pedir comiseração, como usar o lógos e seus segredos para convencer o outro – sendo assim irresponsável; ou fazia jus a sua arte, a seu método que buscava “a verdade”, assumindo a responsabilidade de seu discurso. E é ele quem nos diz da sua decisão, antes da decisão da Assembléia: “prefiro morrer depois dessa apologia do que viver depois de uma defesa de outra espécie”4. O cálculo sofista levaria em consideração o secreto segredo, o ínfimo persuasivo - estaria entre o sacrifício da linguagem e o que ela recalcou. Sócrates denega o segredo com o qual flerta o sofista para se defender através da clara argumentação lógico-filosófica. Cf. PLATÃO. Apologia de Sócrates. Cf. PLATÃO. Apologia de Sócrates, p. 13. 4 PLATÃO. Apologia de Sócrates, p. 64, [38e]. 2 3

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Pelo cálculo que postula com clareza dissimulada o que é a verdade, Sócrates toma a palavra: “Qual é a impressão que, cidadãos de Atenas, os meus acusadores vos causaram não sei, mas, quanto a mim, quase cheguei a esquecer-me de mim próprio, tão persuasivos foram os seus argumentos. E, não obstante, é difícil achar no que disseram uma palavra verdadeira”5. Sócrates salienta nesse início de discurso que sempre almejara a verdade, mas parece também ironizar (e detectar) o poder do discurso persuasivo do sofista de fazer com que se esqueça de si ainda que se padeça na ausência de sentido, na falta de compromisso com a verdade. O cálculo discursivo entra em embate com a sedução discursiva dos sofistas. Cálculo que seduz epistemologicamente à sua maneira pela promessa da verdade contra a sedução persuasiva de um discurso descompromissado. “Repito, o que eles disseram tem pouco ou nada a ver com a verdade. Da minha boca não ouvireis, todavia, senão a verdade”6. Aqui, o que diferencia a economia do discurso de Sócrates do discurso sofístico é que o primeiro sacrifica as diferenças em nome da sensação de segurança que a verdade carrega. De Sócrates, só ouviremos algo que sacrifica o contraditório, o diferente, o que os denegada em nome da não-contradição. A busca pela não-contradição representa o sacrifício das diferenças, dos pontos de vista que diferem. Dizer “busca pela não-contradição” é o mesmo que dizer “busca pela verdade”, única e idêntica a si mesma, nos caso em que eventualmente ela possa aparecer. Nunca poderá haver duas verdades sobre a mesma coisa que se contradigam entre si. Não há graus. Ou algo é ou não é. O privilégio absoluto da identidade para dizer da verdade surge e governa o discurso de Sócrates. E, tão logo apresenta os motivos pelos quais está sendo acusado, Sócrates ironiza Eveno7 para, pela primeira vez, declarar que se soubesse de tantas coisas como sabe Eveno, sentiria orgulho e vaidade. No entanto, Sócrates lamenta-se: “Mas, para falar a verdade, cidadãos de Atenas, não as sei”8. Toda a economia discursiva da figura de Sócrates gira em torno da incorporação desse saber não-saber. Sócrates quer provar a todo custo, o tempo todo que a única coisa que se sabe com clareza – ou seja, de maneira calculável, separada, distinta – é que nada se sabe. Ele dá o saber à morte, ciente de que o 7 8 5 6

PLATÃO. Apologia de Sócrates, p. 23, [17a]. PLATÃO. Apologia de Sócrates, p. 23, [17b]. Eveno de Paros, poeta e sofista (séc. V. a.C.). PLATÃO. Apologia de Sócrates, p. 29, [20c].

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sacrifício do saber resultará sempre em um não saber. A morte do saber é assim um nada saber. Mas disso sabe Sócrates, esse é o seu cálculo. Esta é a aporia constante do discurso socrático que ele parece não esconder, porque torna esse sacrifício do saber pelo nada saber a finalidade de sua argumentação. A teleologia do discurso de Sócrates é mostrar a todos que nada sabe através de uma economia sacrificial do saber que ele capitaliza a todo tempo em seu favor. Para provar a veracidade dessa economia sacrificial do saber, ele vai ao encontro dos outros homens com fama de sábios e procura mostrar-lhes que, apesar de julgarem-se sábios, eles não o eram9. Todo esse processo, porém, foi motivado por uma resposta do Oráculo de Delfos, que teria dito a Querofonte, seu amigo na juventude, que não haveria ninguém mais sábio do que Sócrates10. Essa economia sacrificial do saber levada a cabo por Sócrates, em nome da verdade, tem como um dos motores um anúncio do Oráculo: o que diz a verdade em enigmas – obscura, divina, segredada, misteriosa. A responsabilidade em dizer a verdade, mesmo que a verdade seja esta de que não detemos a verdade, é motivada por um todo outro, que Sócrates desconhece por completo, mas no qual acredita. A sua responsabilidade é um ato irresponsável, na medida em que ele acredita na veracidade do Oráculo que diz que o homem mais sábio entre todos é Sócrates, aquele que nada sabe. Não importa se se trata de uma ficção ou um testemunho da parte de Querofonte. É fato que Sócrates crê em um todo outro, em um Oráculo que diz que ele é o mais sábio de todos os homens. Mesmo que ele insista em dizer que ficou “perplexo, sem atinar com o significado do oráculo” já que estava cônscio de que não era sábio “nem muito nem pouco”11, Sócrates vai aos outros para provar que nada sabem e comprovar os dizeres do Oráculo, seu desígnio. Por acreditar em seu saber não-saber, Sócrates seria o mais sábio entre todos os homens. Há uma falsa humildade por detrás desse gesto. Aquele que se diz menos sábio se inquieta e vai aos outros porque, já que o que nada sabe é o mais sábio por nada saber, ele deve assumir a responsabilidade de provar a verdade sobre a aniquilação das falsas crenças dos outros. Replicaria Sócrates: Penso, no entanto, Atenienses, que o verdadeiro sábio é o deus, que, em seu oráculo, significou o seguinte: “a sabedoria humana é de pouco Cf. PLATÃO. Apologia de Sócrates, p. 31-5, [21c, 23e]. Cf. PLATÃO. Apologia de Sócrates, p. 30, [20e, 21a]. 11 Ambos os trechos de PLATÃO. Apologia de Sócrates, p. 30, [21b]. 9

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ou de nenhum valor”. E julgo que não queria referir-se exactamente a Sócrates, mas que se valeu do meu nome a título de exemplo, como se dissesse: “Ó homens, o mais sábio de vós é aquele que, como Sócrates, sabe que, afinal de contas, o seu saber é nulo”. Prossigo assim esta indagação, segundo o desígnio do deus, continuo a interrogar quem, cidadão ou forasteiro, me pareça sábio12. A incorporação dessa aporia de saber requer justificativa em um todo outro que Sócrates desconhece, mas em quem confia: o todo outro seria o verdadeiro sábio. Sócrates apareceria só como ilustração porque nada sabe, como qualquer um. Sócrates dissimula sua importância. Ele parece acreditar, humildemente, que recebeu um desígnio. No entanto, assumir essa responsabilidade dada por um todo outro, de maneira calculada e dedicada, não é algo espontâneo. Ele quer provar o dito do oráculo, quer para si o saber nada saber que esse todo outro diz e parece possuir, quer incorporar em si uma parcela do saber desse todo outro. Não seria uma irresponsabilidade crer em um todo outro por detrás da responsabilidade de averiguar os dizeres do todo outro? Mesmo que Sócrates mostrasse a todos os homens que pouco ou nada sabem, ele nunca poderia interrogar o oráculo sobre as condições de possibilidade da verdade que ele enuncia. O oráculo é um todo outro. Sócrates, por mais que pergunte, questione, desconstrua os argumentos dos outros, nunca terá as garantias da verdade desse todo outro. Uma das tensões que atravessa a Apologia estabelece-se entre a promessa de dizer a verdade assumida por Sócrates no início do discurso (o que pressupõe cálculo, não-contradição, supressão das diferenças e paradoxos) e o saber como sacrificar o saber pelo não saber: finalidade paradoxal do discurso socrático que salienta e incorpora um segredo oracular, na contradição de saber não-saber, na plena diferença que esta contradição é obrigada a instaurar. O que surge então é uma grande aporia secreta na postura de Sócrates: a verdade que governa toda a sua economia discursiva é a negação da verdade, cuja motivação e justificativa se encontram em um todo outro. Ele exige encontrar, no entanto, a falsidade de qualquer outro discurso que não assuma a impossibilidade do saber, mas não se pergunta sobre se o desígnio dessa “outridade” PLATÃO. Apologia de Sócrates, p. 35, [23a-b].

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é falso. Sócrates acredita que há a verdade graças ao todo outro e acredita simultaneamente que só se sabe que nada sabe. Ele denega o segredo do sofista e ao mesmo tempo põe algo em segredo: a aporia resultante entre a crença na verdade, no cálculo, na não-contradição e a crença no saber não-saber, na impossibilidade de estabelecer qualquer verdade para além dessa verdade. Enfrentamos um dilema ético com Sócrates. Ele julga aqueles que se comportam como se algo soubessem e quer mostrar-lhes que nada ou muito pouco eles sabem. O que governa essa economia sacrificial do saber é uma vontade de verdade. Não é um respeito à vida, às potências e às perspectivas, nem é a avaliação de como os saberes podem servir a situações circunscritas. Não há outro critério senão a verdade demasiada verdadeira, radical e absoluta de que nós, homens, nada sabemos e de que só o todo outro detém o verdadeiro saber. A vontade de verdade de Sócrates motiva e nutre seu espírito de vingança, com a prerrogativa de uma tarefa designada por esse todo outro. Digo vingativo, porque, após a condenação13, ele insiste, através de um vaticínio, em uma profecia, que aqueles que o condenaram seriam colhidos por um outro castigo, “ainda mais severo, por Zeus! do que esse” a que lhe condenaram. É o seu verdadeiro compromisso com a verdade (e não com a vida) que o leva a tal conseqüência dramática. Nesse ponto Sócrates é incapaz de pensar em algo entre a fé e a verdade, entre o anaeconômico e o econômico, entre o dar a verdade à morte e a morte da verdade – ele é obcecado pela verdade, é incapaz de pô-la à prova, mesmo quando sua vida está em risco, porque os deuses não lhe contrariaram, aquela voz profética de seu demônio não havia lhe falado e a morte pela verdade parecia ser um bom destino14. Como bem diz Nietzsche: Sócrates, Sócrates sofreu da vida! E ainda vingou-se disso – com essas palavras veladas, horríveis, piedosas e blasfemas! Também um Sócrates necessitou de vingança? Faltou um grão de generosidade à sua tão rica virtude? - Ah, meus amigos, nós temos que superar também os gregos!15 E é talvez o próprio Sócrates quem dá uma anuência a isso, quando, ao final da Apologia, dá a última mostra de como seu saber não-saber incorporado Cf. PLATÃO. Apologia de Sócrates, p. 65, [39c-d]. Cf. PLATÃO. Apologia de Sócrates, p. 65, [40a-c]. 15 NIETZSCHE, F. “A gaia ciencia”, p. 230, [§340]. 13 14

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o fazia duvidar da vida e acreditar que somente os deuses é que sabem: “Chegado é o tempo de partirmos. Eu para a morte, vós para vida. Qual dos destinos é o melhor, a não ser o deus, ninguém o sabe”16. Ele não sabia qual dos destinos seria melhor e nem queria decidir-se por dizer a vida. Era a racionalidade a todo custo, uma vontade radical de verdade, a mais extrema economia do sacrifício que o motivava a abandonar a vida. “Guardemo-nos de dizer que a morte se opõe à vida.”17 Exercício de perspectivismo que Sócrates, apesar da sua coragem, renegou em nome da verdade, da “razão” na linguagem: “oh, que velha mulher enganadora! Receio que não nos livremos de Deus, porque ainda cremos na gramática...”18 Sim! Sócrates acreditava na verdade da gramática, na não-contradição e morreu, em parte, porque foi incapaz de pô-las em causa, de desincorporá-las.

PLATÃO. Apologia de Sócrates, p. 69, [42a]. NIETZSCHE, F. “A gaia ciencia”, p. 136, [§109]. 18 NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com um martelo, p. 33, [CI, 2, 5]. 16 17

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REFERÊNCIAS

ARISTÓFANES. As nuvens. Tradução de Márcia da Gama Keny. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. DERRIDA, J. A farmácia de Platão. Tradução de Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005. _____. Donner la mort. Paris: Galilée, 1999. _____. Dar la muerte. Barcelona: Paidós, 2006. _____. Morada: Maurice Blanchot. Lisboa: Vendaval, 2004. LOPES, R. Elementos de Retórica em Nietzsche. São Paulo: Loyola, 2006. NIETZSCHE, F. A gaia ciência. In: Obras Incompletas. Tradução de Rubens R. T. Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1999. _____. A gaia ciência. Tradução de Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2001. _____. Crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com um martelo. Tradução de Artur Morão. Lisboa: 70, 1988. _____. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução de Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2008. PLATÃO. Apologia de Sócrates. Tradução de Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães editores, 2009. XENOFONTE. Memoráveis. Tradução de Ana Elias Pinheiro. Coimbra: CECH, 2009.

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