\"O segredo do bonzo\", de Machado de Assis, lido em sua relação com quatro dos ensaios de Michel Eyquem de Montaigne

June 7, 2017 | Autor: J. Fleck | Categoria: Montaigne, Machado de Assis
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Universidade Tecnológica Federal do Paraná
Curso de Especialização em Literatura Brasileira e História Nacional
Disciplina de Machado e a filosofia moderna
Professor Zama Nascentes

João Cristiano Fleck (aluno)


O segredo do bonzo, de Machado de Assis, lido em sua relação com quatro dos
ensaios de Michel Eyquem de Montaigne

[...], todavia, como a verdade não
tem resposta que tenha eficácia,
viram-se forçados, apesar da sua
natural ufania e presunção, a
admitirem o que lhes disse o padre.
Fim da seção CCXIII da
"Peregrinação", de Fernão M. Pinto

0 - Introdução

Este trabalho visa a investigar possíveis correlações dos ensaios Que
a intenção julga nossas ações, Que o gosto dos bens e dos males depende em
boa parte da opinião que temos deles, Da força da imaginação, Do costume e
de não mudar facilmente uma lei aceita e É loucura condicionar ao nosso
discernimento o verdadeiro e o falso, ambos todos de Montaigne, com o texto
literário Machadiano de O segredo do bonzo.
De pronto, cabe destacar que não identificamos diálogo claro entre os
textos; não foi possível encontrar menção direta em Machado ao texto de
Montaigne. Nem excertos que justapostos pudessem revelar alguma espécie de
coincidência delatora de influência ou citação. O que foi possível
aproximar diz da apreensão global de ambas as produções, dos conceitos ou
noções abstratas das quais tratam os autores em tese. Destarte, uma
primeira constatação proveitosa seria de que a distinção dos gêneros
literários em que se inserem, ensaio e conto (ficção), não traça fronteira
irreconciliável entre eles, visto que os objetos abordados convergem –
sociedade, moral e o homem, em geral –, como tentaremos fazer ver.
No entanto, convém também inicialmente destacar o que nos parece,
sim, algo irremediável levando-se em conta uma análise encerrada, ou
cerrada, exclusivamente nos textos em tese, sem considerar o panorama
integral da produção de Machado e de Montaigne: enquanto o gaulês busca uma
construção conceitual, de referência pessoal, e, dir-se-ia, "edificante"; o
patrício utiliza da ironia para uma potencial desconstrução, e seu foco
está no outro, ou nos outros. Não descartamos obviamente um edifício
Machadiano, apenas entendemos que ele talvez se eleve depois, obrado pelo
leitor, sobre os escombros. Mas haverá mais pontos de contato do que apenas
entre este prédio fictício e aqueles ensaísticos.


1. Breve resumo estrutural de O segredo do bonzo

Logo após uma pequena introdução que identifica o conto como pastiche
do texto do viajante português às terras do Japão em meados do século XVI,
o narrador-protagonista passa ao tema principal. Inicialmente, em duas
esquinas encontrará tanto Patimau quanto Languru a defender teorias
defronte de aglomerado de pessoas que os passam a admirar e considerar em
vista dessas.
Ao estranhar-se com tais eventos, narrador e seu acompanhante (Diogo
Meireles) obtém de Titané, um manufatureiro de sandálias, a informação de
que aqueles oradores estavam a pôr em prática uma doutrina pregada por
determinado sábio de nome Pomada.
Seguem todos os três ao encontro deste, e dele ouvem a denominação da
doutrina: trata-se do conflito entre realidade e a opinião que se faz sobre
ela, vencendo ou importando apenas esta última frente à multidão. Ilustra
essa constatação o fato que Patimau e Languru estavam defendendo teses que
não correspondem à verdade ou à realidade, mas faziam valer a sua opinião
na turba, e recebiam disso os benefícios sociais.
Os três personagens tratarão de pôr em prática os ensinamentos
recebidos.
Titané utiliza-se de uma publicação de grande circulação para divulgar
informações falsas sobre suas sandálias, a despeito de pensar o contrário
sobre o que manda divulgar. E obtém com isso fama e lucro.
Fernão Mendes utiliza de recursos cênicos para fazer implantar
opinião na sua audiência de que se tratava ele de virtuose na arte da
flauta. Com sucesso e obtendo reconhecimento.
O último exemplo é considerado o mais significativo para o narrador.
Diogo Meireles, atuante na área de cura dos males à saúde, consegue à custa
de discurso e utilizando de um artifício com apelo à imaginação, em
detrimento dos sentidos, fazer valer sua opção de tratamento quanto a uma
doença que afeta os habitantes da região. Substituirá nariz adoecidos
(realidade) por narizes "metafísicos" (opinião), aos quais os habitantes,
tão convencidos de sua existência, até assoam normalmente.

2. Da força da imaginação, Do costume e de não mudar facilmente uma lei
aceita e Que o gosto dos bens e dos males depende em boa parte da opinião
que temos deles

Em se tratando de Da força da imaginação, embora seja sedutor
utilizar-se as conclusões indistintamente e aplicá-lo, por exemplo, aos
"narizes imaginários", não nos parece justo fazê-lo sem considerar o
conteúdo global do texto do francês; as considerações do ensaio são tecidas
sobre uma amostragem de eventos sobrenaturais: fenômenos religiosos,
feitiçarias e eventos místicos. E na ficção não temos qualquer menção a
eventos dessa natureza, apenas acontecimentos e raciocínios oriundos de
relações e contatos sociais, nunca uma figura do "desconhecido". Assim,
embora o reflexo racional possa ser comparado em seus efeitos, as origens
divergem de tal forma (divino, milagroso, extraordinário versus humano,
discurso, mundano) que, a bem da sinceridade do texto de Montaigne, convém
darmos bom desconto ao resultado das aproximações. Isso pode ser bem
constatado no excerto abaixo:
"É verossímil que seja por efeito da imaginação, agindo de
preferência sobre as almas da gente do povo, inclinada à
credulidade, que as visões, os milagres, os encantamentos e os
fatos sobrenaturais encontram quem neles mais acredite. Tanto
e tão bem os doutrinaram que chegam a pensar verem as coisas
que em verdade não vêem." (MONTAIGNE, Da força da imaginação)
[grifo nosso]


Assim, embora a aplicação do grifo pudesse se dar de forma literal ao
que ocorre com a doutrina do bonzo e aos narizes que existem apenas no
pensamento, deixamo-la apenas como registro de uma aproximação, guardadas
as devidas recomendações.
Já num aspecto mais convergente são as conclusões de ambos os textos.
Certo que Machado concluirá usando da ironia que mencionamos: "o que tudo
deixo relatado para glória do bonzo e benefício do mundo." O texto de
epílogo do ensaio:
"Plutarco poderia dizer-nos que se os fatos por ele narrados
em suas obras são todos inteiramente verdadeiros, cabe o
mérito a quem lhos forneceu; mas se são úteis à posterioridade
e se apresentam de maneira a pôr em evidência a virtude, a si
próprio os deve. Pouco importa seja um fato antigo contado
deste ou daquele modo; há nisso menor perigo do que em uma
receita errada." (MONTAIGNE, idem)


Versando já sobre uma conclusão generalizada sobre a produção dos
textos, em vez de sobre o tema (imaginação), é aqui que pensamos ver um
exemplo dessa auto-referência e do propósito de edificação de Montaigne.
Enquanto em Machado temos a "receita errada", mas que, denunciada pela
ironia, serve também a enriquecer o conhecimento do leitor.
Há, no entanto, um ponto em que a doutrina do bonzo poderia talvez
pôr alguma luz à compreensão de pensamento citado por Montaigne. Na
verdade, justo o aspecto social, a opinião contribuiria a esta análise:
Era por certo mais repugnante esse hábito do que se
desembaraçar de qualquer maneira como procedemos com as demais
sujidades. Achei que sua observação não pecava inteiramente
por absurda. O hábito impedira-me até então de perceber o
estranho da coisa, a qual nos repugnaria profundamente se no-
la apresentassem como sendo praticada em outro país.
(MONTAIGNE, Do costume e de não mudar facilmente uma lei
aceita)


Concorda-se quanto ao fato de se utilizar o estrangeiro como forma de
fazer raciocinar melhor sobre, no caso de Montaigne, os costumes e sobre o
comportamento, no caso de Machado. Referente aos hábitos praticados quanto
ao muco respiratório, que é ao que se refere o excerto, pensamos que o
francês deixou de considerar que o ato de livrar-se dele utilizando as
mãos, em vez de um lenço, somente é "repugnante" se há alguém (pessoa ou
multidão) presente para formar opinião, como diria o bonzo. Ora, igual asco
ocorre quando de qualquer evacuação em público, e não se cogita sobre, por
exemplo o hábito de guardar o bispote sob o leito, como se leva o lenço ao
bolso.
Considerando igualmente que o novo ensaio de que já estamos tratando
versa sobre "costumes", novamente faríamos aquela observação de cautela
quanto às aproximações. Como poderíamos ver no excerto que segue:
Tendo precisado outrora justificar alguns de nossos costumes,
aceitos como certos entre nós e nas regiões circunvizinhas, e
não desejando invocar apenas a força das leis e dos exemplos,
fui às origens deles e lhes descobri fundamentos tão fracos,
que mal me contive para não me desgostar nem ter de os refutar
em lugar de convencer os outros de sua valia. (idem)


É de se cogitar o que diria o ensaísta ao identificar os fundamentos
dos atos (não costumes, apenas analogia) dos protagonistas do conto
Machadiano, e de se verificar justo a distinção de foco: os sectários de
Pomada primam pelo convencimento, não pela fundamentação. Coisa que se
agrava ao longo do ensaio, dadas as proporções: [Tratando da Reforma e da
Contra-reforma] "E direi francamente que me parece sinal de excessivo amor-
próprio e grande presunção valorizar alguém sua opinião a ponto de tentar,
a fim de vê-la triunfante, subverter a paz pública em seu próprio país,
[...]" (idem).
Do último ensaio que dá nome a esta seção, pensamos que mais um
conceito pode ser utilizado de forma subjacente: "estamos bem ou normal
neste mundo segundo o que pensamos: contente está quem se acredita contente
e não aquele que os outros imaginam contente. Nossa crença é que faz seja
ou não seja real a felicidade." (MONTAIGNE, Que o gosto dos bens e dos
males...). Pois novamente o autor está tratando de assunto específico (a
indigência), mas a conclusão, pela sua própria construção, pode ser vista
de forma universalidade. Isso poderia ser utilizado para a compreensão ou
relativização, por exemplo, do caso radical de Diogo Meireles. Ou mesmo da
assistência do flautista Fernão Mendes (pois ela estava exultante com a
música). Mas tudo soa meio falso, frente à essência conhecida das
atividades por eles desempenhadas – da falsidade delas. As quais poderemos
melhor tratar na seção seguinte. Talvez fosse mais válido apenas a porção
em que "e não aquele que os outros imaginam contente", que é bem o caso do
narrador em relação aos aldeões.

4. Que a intenção julga nossas ações e É loucura condicionar ao nosso
discernimento o verdadeiro e o falso

Mesmo com o risco de parecer usarmos dois pesos e medidas (quando
argumentamos do sobrenatural e do mundano), pensamos que uma analogia entre
o texto literário, da forma que foi concebido, e a natureza do conteúdo
abordado por Montaigne no primeiro ensaio citado no título desta seção, é
adequada e pode nos prover de conclusões proveitosas. Assim, entendemos o
testemunho de "Fernão Mendes", de forma análoga ao testamento, que é um dos
temas do texto ensaístico. Diz o francês:
"Nossas obrigações são limitadas pelas nossas forças e os
meios de que dispomos; a execução e as conseqüências de nossos
atos não dependem de nós; somente a nossa vontade depende.
Nesta e nas necessidades assentam as leis que regulam os
deveres do homem." (MONTAIGNE, Que a intenção julga nossas
ações ) [grifos nossos]

Que ainda complementará na coroação do ensaio: "Na medida de minhas
forças, procurarei evitar de nada dizer após a morte que não haja dito em
vida, e abertamente." (idem).
Ao que responde um cínico personagem de Machado, sobre como e porquê
se aproximar do bonzo: "dizem que ele não a confia a nenhuma pessoa, senão
às que de coração se quiserem filiar a ela; e, sendo assim, podemos simular
que o queremos unicamente com o fim de a ouvir; e se for boa, chegaremos a
praticá-la à nossa vontade." [grifos nossos]
Aí os procedimentos diversos em relação à mesma (por analogia)
situação, foco de conflito entre os dois textos. Pois a doutrina do bonzo
começa por ser já "secreta", uma iniciação. E surge a problemática da
intenção das ações em Machado. Na analogia à abertura de um testamento,
que bela sensação teriam os habitantes de Fuchéu ao ler este testemunho
deixado pelo viajante português? Não estaria justo a revelar grande mal ao
sujeito que acolheu (como Henrique e o conde de Suffolk?).
O último ensaio que abordaremos dá alguma luz ao entendimento dos
figurantes do conto, de certa forma dando Montaigne (construtor) formato a
tijolos para o leitor de Machado:
Não é sem motivo que atribuímos à simplicidade e à ignorância
a facilidade com que certas pessoas acreditam e se deixam
persuadir, [...]. Quanto mais a alma é vazia e nada tem como
contrapeso, tanto mais ela cede facilmente à carga das
primeiras impressões. Eis por que as crianças, o povo, as
mulheres e os enfermos são sujeitos a serem conduzidos pela
sugestão. (Idem)

Bom ressaltar que, logo depois, Montaigne faz ressalva e recomenda
cautela. Não é uma afirmativa peremptória como a seleção em excerto pode
fazer parecer. Mas não se pode desconsiderar a conclusão quanto ao fato de
que eventualmente a ignorância cataliza o ato de se deixar conduzir por
figuras indevidas. A ponto de identificarmos, numa citação latina de Cícero
(apud Montaigne) um termo nosso contemporâneo em debates: "qui, ut rationem
nullam afferrent, Ipsa auctoritate me frangerent." ("ainda que não
trouxessem nenhum argumento razoável,eles me persuadiriam com a sua
autoridade"). Sendo necessário algum cuidado, então, quanto ao argumento de
autoridade, havendo de se verificar bem a ambos (autoridade e
argumentação), sob o risco de se finar sem o nariz, e ainda muito contente
por isso.

3. Conclusões

Dissemos na Introdução que o texto de Machado focava nos "outros". Na
verdade, devemos isso a uma passagem do próprio conto, nas palavras do
bonzo: "haveis de entender, começou ele, que a virtude e o saber, têm duas
existências paralelas, uma no sujeito que as possui, outra no espírito dos
que o ouvem ou contemplam" (ASSIS, p.). E tomamos isso também como uma
interpretação metaligüística do excerto; não se trata apenas dos discípulos
de Pomada, mas também dos leitores do conto.
Na verdade, a denúncia do embuste que há no conto nos parece quase
inquestionável. Tanto a abiogênese quanto a metáfora da vida futura
vinculada a uma gota de sangue seriam possíveis e passíveis de serem
cogitadas como verdade numa leitura ingênua – Platão menciona a primeira em
mais de um[1] escrito seu, e a analogia da segunda com o sangue de
Cristo[2] a tornaria até digna. Mas o próprio bonzo faz questão de dizer
que elas não passam de falácias. E para reforçar do que se trata e toda a
farsa, auxiliando o leitor, o autor ainda coloca uma "nota c" em que
revela, entre outras coisas, que "o bonzo do meu escrito chama-se Pomada, e
pomadistas os seus sectários. Pomada e pomadista são locuções familiares da
nossa terra: é o nome local do charlatão e do charlatanismo. ", não já
tivéssemos inferido isso no próprio texto, nas sutilezas: "[...]; enfim,
despediu-se de nós com a certeza (são palavras suas) de que abalávamos dali
com a verdadeira alma de pomadistas; [...]" (idem).
Acrescentássemos a esta nota a descrição do proceder do médico –
"[...], pois se lhe repugnava a metafísica do nariz, cedia entretanto à
energia das palavras de Diogo Meireles, ao tom alto e convencido com que
ele expôs e definiu o seu remédio" (ASSIS, p. ) [grifo nosso] – e teríamos
a mais perfeita caricatura do vendedor de tônicos milagrosos que viajava
entre as cidades na sua carrocinha.
Vale lembrar que este exemplo final é a coroação de uma série de
charlatães que passaram antes pela literatura – "ora, o nosso Titané não
quis melhor esquina que este papel, [...]" (idem, p.) – e pela música (a
charamela de Fernão Mendes).
Embora pudéssemos utilizar as leituras que fizemos de formas
subjacentes de entendimento dos textos de Montaigne para relativizar e
tentar compreender, por exemplo, a boa intenção (Que o gosto dos bens e dos
males depende em boa parte da opinião que temos deles) do médico ao livrar
de um mal (uma doença), e ver alguma "felicidade" na opinião que os
habitantes de Fuchéu passaram a ter sobre os próprios narizes (a ausência
deles), preferimos ficar com uma conclusão já citada de que, se o francês
faz construir ou encontrar e descrever virtudes edificando-se a si e ao
leitor colateralmente, Machado toma ' "receita errada", e a desmascara.
Sublinha o vício no "testamento" deixado por "Fernão Mendes", desvela as
más intenções, destaca a desonra e, se não constrói estátua de virtude,
pelo menos incendeia às cinzas o cavalo oco do vício egoísta e presunçoso.
BIBLIOGRAFIA

MONTAIGNE, Michel E. Ensaios – Livro I. Compilado por Roberto B.
Cappelletti. Disponível em:
http://www.4shared.com/get/iJkMeOJ1/ensaios_de_montaigne_-_livro_i.html.
Acesso em: 11.06.2012.

ASSIS, Joaquim M. M. O segredo do bonzo. Compilado por A biblioteca virtual
do estudante brasileiro. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000236.pdf. Acesso em
11.06.2012.

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[1] Na voz de Aristófanes, em O banquete, e ainda em O político.
[2] Clemente de Alexandria nos pareceu numa leitura superficial
mencionar coisas semelhantes.
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