O sentido do lugar a insustentabilidade ou a sustentabilidade da paisagem e do lugar no modernismo

July 23, 2017 | Autor: Mauro Campello | Categoria: Lugar, Paisagem Cultural, Paisagem Urbana
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O SENTIDO DO LUGAR: A INSUSTENTABILIDADE OU A SUSTENTABILIDADE DA PAISAGEM E DO LUGAR NO MODERNISMO. Prof. Dr. Hélio Novak (in memorium) e Prof. M. Sc. Mauro Santoro Campello 1. APRESENTAÇÃO A alguns anos eu e o Prof. Hélio Novak nos aventuramos a escrever em conjunto um artigo intitulado Paisagem e Lugar no Modernismo. O que nos motivou foram as boas e profícuas conversas que travamos sobre o tema, a meu pedido, pois na época estava eu a cursar disciplinas no curso de doutorado e o tema que eu propunha como investigação era como o lugar e a paisagem influenciaram o processo projetual de Affonso Eduardo Reidy, arquiteto modernista brasileiro que seria o estudo de caso da minha tese de doutoramento. Estas conversas foram motivadas pelos vários embates com alguns colegas do programa de doutorado. Para alguns os modernistas desconsideravam o lugar e a paisagem. Para outros os modernistas não construíram paisagens, salvo raríssimas exceções, em se tratando da arquitetura modernista brasileira. Mas o que me levou a travar estes embates? Foi a obra de Affonso Eduardo Reidy, a qual sempre esteve presente na minha trajetória como ser social que habita uma cidade e na minha trajetória profissional. Sua obra de maior impacto visual na minha vida cotidiana foi o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAMRJ), assim como o edifício serpenteante a montanha do Conjunto Habitacional Marquês de São Vicente, localizado no bairro da Gávea, o qual eu tive a tristeza de ver parte deste edifício ser demolida para dar passagem a uma autoestrada! A volumetria do edifício do MAMRJ, a sua relação com os jardins de Burle Marx, a integração com o projeto urbano do Aterro do Flamengo e com todos os seus pavilhões, projetos do mesmo Reidy, sempre me puseram a pensar. Como não é uma paisagem construída? Como não há uma estreita relação com o entorno natural? E para me provocar ainda mais a passarela que se situa a frente do MAMRJ. Não simplesmente um elemento de ligação entre dois lados de uma via de transito rápido. Era algo mais, ou como dito pelo motorista de taxi, numa crônica de Rubens Correia: “aquilo não é uma ponte, é um monumento” (apud BONDUKI, 2000: 138). Assim eu iniciei a pesquisa sobre a obra de Reidy, o seu pensamento, os seus escritos e com isto comecei a construção de minha hipótese. Com o modernismo morto, sempre atrelado a idéia da tabula rasa, como eu poderia levantar esta hipótese que se parecia tão absurda? E foi então que as conversas virtuais começaram com o Prof. Hélio Novak. Ele no Rio de Janeiro eu a 180 km de 1 distância, no interior do Estado de Minas Gerias, na cidade de Juiz de Fora . E estas conversas foram se alongando e um dia recebo um artigo que o Prof. Hélio havia escrito sobre a temática e solicitou a mim que o completasse e o revisasse.

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Ah a contemporaneidade! A era da informação nos permitiu que travássemos estas discussões via cyber-espaço!

Estas explicações iniciais são para posicionar o leitor sobre a construção do artigo que ora apresento e para que possam compreender que há um coautor, que infelizmente não pode ver o artigo finalizado e publicado, pois faleceu em 2008. 2. INTRODUÇÃO As idéias modernistas, que revolucionaram o mundo, virando as artes e o próprio pensamento de pernas para o ar, foram responsáveis por iluminar os caminhos da arquitetura e do urbanismo em dois terços dos anos 1900. Isto fez os arquitetos modernistas verem a si mesmos como agentes do novo, mas isto só foi verdade estrita no período de ascensão do movimento. Depois disso, uma parte do novo que havia sido criado esclerosou, passando a bitolar e escravizar a criação. Como em outras ocasiões na História, os fins tenderam a se confundir com os meios, o carro a ultrapassar os bois, o principal a se tornar acessório e o necessário, supérfluo. Assim, falando em nome do Homem, o mais humanístico dos conceitos, o despersonalizava na abstração de um homem médio, definido por traços obscuros de estatísticas anônimas. Também criara formas novas, reagindo a um academicismo que sentia insuportável, mas a dificuldade de renová-las logo as tornou tão acadêmicas e monótonas que acabaram por cansar a toda gente. E essas formas, que supostamente deveriam ser engendradas pela função das coisas, se revelavam – às vezes e sem pudor – contra a função, esquecidas do conforto ambiental ou dos aspectos econômicos e, às vezes – em especial no âmbito das cidades e dos pobres – até mesmo das mais básicas realidades sociais. Isto pôs o modernismo sob ataque, que cresceu com o tempo até que nos anos 1970 foi anunciado que morrera. É proposto aqui que, embora o ataque haja ocorrido devido à declarada esclerose dos princípios modernistas, o modernismo já estava além deles, e hoje é possível perceber isto. Quando o modernismo 2 “morreu”, os CIAM já pertenciam ao passado, o planejamento urbano “científico” estava em processo de desmistificação e o falecido modernismo estava ainda tão vivo que continuava sendo a principal referência do paradigma que pretendia substituí-lo. É o que indica até sua denominação de pós-modernismo. Quase meio século depois, reduzida a intensidade do incêndio crítico, é possível reavaliar muitas das “verdades” então descobertas. Um dos aspectos que está a merecer releitura é a afirmação sem ressalvas de que os arquitetos modernistas tinham o lugar como algo irrelevante para o projeto, sendo o objeto arquitetônico autônomo em relação a ele. Esta é uma alegação muito séria, pois agravaria a culpa mais óbvia do modernismo de – devido aos excessos fundamentados na quádrupla necessidade definida pela Carta de Atenas para o homem-modelo universal – ser incapaz de formar lugares urbanos agradáveis, pitorescos e acolhedores. A desvalorização do lugar, se verdadeira, impactaria as cidades ainda mais negativamente ao criar e difundir pelo mundo uma multidão de não lugares. 2

Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, realizados entre 1928 e 1956 nominalmente com o objetivo de debater os problemas da arquitetura moderna e lançar as bases do seu urbanismo.

Mas, alguém poderá argumentar o que tem a ver o título com tudo isto? A resposta é simples. Se o lugar e a paisagem eram irrelevantes para o processo de projeto, porque Le Corbusier, em 1929, ao sobrevoar a cidade do Rio de Janeiro, propõe que seja construído um edifício ponte que envolvesse as montanhas da cidade? Porque ele, e tantos outros, orientavam os seus edifícios sempre em função de proteger a edificação da grande insolação? Por que as aberturas eram direcionadas aos ventos dominantes, evitando-se o uso de ventilação artificial? Estas indagações em nenhum momento serão empregadas afirmativamente para dizer que eles, os modernistas já pensavam na sustentabilidade da arquitetura, o que não é verdade absoluta, mas hoje em dia quem pensa assim? Na tentativa de demonstrar que o lugar e a paisagem podem e devem ser estudados e considerados nos projetos arquitetônicos e urbanísticos o artigo é apresentado em duas partes. Na primeira se prepara a argumentação através de uma breve reflexão sobre as questões do espaço, do lugar, da paisagem. Só na outra se discute a certeza de que o lugar não importava ao modernismo e os limites desta afirmativa. Uns poucos exemplos históricos tentarão mostrar na prática a atitude real dos arquitetos modernistas face ao tema. 3. ESPAÇO, LUGAR E PAISAGEM. Será que aos arquitetos modernos não importava o lugar? E, se isto é fato, em que representa um problema? Pensar sobre estas coisas é complicado, por lidarem com temas difíceis de abordar como o lugar, a paisagem e o espaço, cujos conceitos são interdependentes e estão longe de ser límpidos e genéricos. Há uma escuridão à nossa frente, e apenas a perscrutando atentamente poderemos perceber alguma luz capaz de iluminar a reflexão subseqüente. Do espaço filosófico ao espaço social. A noção de espaço é contraditória, pois nos parece abstrato, mas num sentido diferente do de outras abstrações como o amor ou a justiça. Não é o nada nem o vazio, pois o percebemos, usamos e percorremos. Por outro lado, se for algo concreto, não é palpável como a de uma coisa sólida. Aliás, pode nem ser uma coisa, mas, como na avaliação das coisas, nossos processos internos de conscientização e interiorização dependem da sua percepção. Para abordá-lo, admitiremos perceber ou apreciar a natureza do espaço através de um contínuo de reflexões (RELPH, 1980: 08). No entanto, estas seguirão aqui sentido inverso às daquele autor, pois cronologicamente elas ocorrem na História primeiro como especulações intelectuais e só recentemente vêm a considerar a 3 experiência direta .

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Esta inversão histórica de teorizar primeiro e só depois estudar a realidade deve ter ocorrido porque a essência do espaço é tão difícil de capturar que até a questão da sua realidade divide os pensadores desde a Antigüidade Clássica (ABBAGNANO, 1982: 329).

Relph (op. cit.) determina seis tipos de espaço, que seriam primitivo ou pragmático, o perceptual, o existencial, o qual ele admite dois subtipos o sagrado e geográfico, 4 o arquitetônico e urbanístico , o cognitivo; e o abstrato. Desde modo examinaremos de início os dois últimos tipos de espaço, o cognitivo e o abstrato. O primeiro é entendido como o construto derivado da identificação do espaço como objeto de reflexão com a intenção de desenvolver teorias a seu respeito (Ibid: 24), e o outro é o espaço matemático, que é descrito sem a necessidade de qualquer observação empírica (ibid: 26). Para Platão, um dos primeiros a pensá-lo, o espaço é parte de uma complexa “explicação provável” sobre a produção e a constituição do universo: o mundo físico é modelado de acordo com formas eternas, mas há um terceiro fator “difícil de explicar e que só é vagamente percebido pela visão” (PLATÃO, 1952: 456), que tem uma “... terceira natureza, que é espaço e é eterna; que não admite destruição e provê um lar para todas as coisas criadas; que é apreendida sem o auxílio dos sentidos por um tipo de razão espúria; e que é pouco real“ (Ibid: 457). Aristóteles prefere o lugar ao espaço, dizendo “Estas considerações nos levariam então a supor que o lugar é algo distinto dos corpos, e que todo corpo sensível está num lugar” (ARISTÓTELES, 1952: 287). Mas afirma que Platão, seu mestre, havia identificado um com o outro, explicando: “Eu mencionei Platão porque, enquanto toda gente mantém que o lugar é alguma coisa, só ele tentou dizer o que essa coisa é” (Ibid: 288). Outros filósofos não têm a mesma cerimônia e contraditam as obscuras explicações de Platão. Newton, despreocupado disto, pensa o espaço como algo que compõe os intervalos vazios de matéria, já que esta existe em unidades descontínuas. Isto o leva a distinguir um espaço relativo de outro absoluto, mas supor dois tipos de vazio cria uma ambiguidade que Pascal tenta eliminar ao afirmar que há tanta diferença entre o nada e o espaço quanto entre o espaço e um corpo material. O espaço vazio ocuparia uma posição média entre eles (ADLER e GORMAN, 1952: 817). As concepções de espaço e de vazio se vinculam às da constituição dos corpos e da matéria, e a controvérsia gera inúmeros espaços puramente matemáticos. Einstein tenta resolvê-la, advertindo que, pela Teoria Geral da Relatividade, as propriedades geométricas do espaço são determinadas pela matéria. Logo, o caráter do espaço depende das pressuposições sobre a distribuição da matéria no Universo. É sempre finito, mas não pode ser plano e euclidiano, tendo forma esférica, elipsoidal, ou mesmo diferente (loc. cit.). Antes disto, na outra extremidade do planeta, Lao Tze, o fundador da filosofia contemplativa chamada Taoismo, prefere pensar na utilidade do vazio para os seres humanos: “Nós pomos trinta raios juntos e chamamos a isto uma roda; mas é do espaço onde há nada que a utilidade da roda depende. Nós moldamos a argila para fazer uma vasilha; mas é do espaço onde há nada que a utilidade da vasilha depende. Nós perfuramos portas e janelas para fazer uma casa; e é desses espaços onde há 4

Relph o chama de espaço arquitetônico e de planejamento, mas arquitetônico e urbanístico parece acordar melhor com o sentido dado pelo autor.

nada que a utilidade da casa depende. Portanto, do mesmo modo que tiramos vantagem daquilo que é, deveríamos reconhecer a utilidade do que não é”. (CHING, 1979:106). Lao Tze nos leva ao outro extremo do contínuo de Relph, onde estão quatro tipos de espaços oriundos da experiência, tão menos sofisticados quanto mais longe estiverem das especulações puramente intelectuais. O menos influenciado por estas é o espaço primitivo, com o qual nos relacionamos inconsciente e instintivamente no dia a dia, sem pensar nem refletir (RELPH, op.cit: 07). Já o espaço perceptual, que é o anterior, mas já estruturado por nós com base nas nossas práticas e necessidades imediatas (ibid: 10). Sua estrutura não é objetiva ou mensurável, e lida com distâncias e direções de forma grosseira, perto e longe, para as distâncias e por este ou por aquele lado, para as direções. É ainda um espaço pessoal, mas já não é concebido só dentro do indivíduo, pois muitas pessoas o vivenciam de modo bastante similar. É o caso das paisagens, por exemplo. Tal aspecto nos conduz ao terceiro tipo de espaço, que é o existencial ou vivido, com o qual nos relacionamos enquanto membros de certo grupo social. Este já é um espaço intersubjetivo e ao alcance dos membros do grupo que dividem as mesmas experiências de socialização, signos e símbolos (ibid: 12). Ele compreende dois subtipos: o espaço sagrado, cheio de simbologia e conteúdo emocional, e o espaço geográfico, especialmente significativo para uma certa cultura, que o humaniza através de um nome, especifica suas características e o refaz para que possa servi-la melhor (ibid.:16), ou seja, há uma relação fundamental entre o ser humano e o ambiente que o contém (Norberg-Schulz, 2000: 05). O último tipo de espaço é o arquitetônico e urbanístico, que quase ultrapassa o campo da experiência e invade o do intelecto. No entanto, os processos mentais envolvidos com ele se fundamentam no espaço existencial e visam transformá-lo, tanto funcional quanto simbolicamente, num lugar significativo (RELPH, op. cit.: 22). No pensamento ocidental foi Kant que começou a levar o espaço para perto do universo da nossa experiência. Percebendo claramente o espaço como uma realidade, o velho filósofo afirma: “Espaço e tempo, eles mesmos, puras como essas concepções são de tudo o que é empírico, e, certo como é que sejam inteiramente representadas a priori na mente, elas seriam completamente sem validade objetiva e sem senso nem significância se o seu uso necessário nos objetos da experiência não fosse demonstrado” (KANT, 1952: 66). Só após digerir esta ideia e a abordagem utilitária que ela supõe, a Geografia e as outras ciências sociais passam a dar importância ao espaço. É ela que abre caminho para pensar o espaço primitivo, o perceptual, o sagrado, o geográfico e o arquitetônico, aqueles que, daí por diante, passam a constituir o objeto das ciências sociais, sob o nome de espaço social. Este é um conceito recente, pois só na década de 1890 o pai da Sociologia, Émile Durkheim, o exprime como ideia pela primeira vez. O geógrafo Maximilien Sorre a desenvolve como um mosaico de áreas homogêneas em termos das percepções

dos habitantes dessas áreas, sendo tal conceito adotado pelo sociólogo-etnólogo Paul-Henry Chombart de Lauwe nos seus estudos empíricos (BUTTIMER, 1986: 66-69). A partir daí o espaço é percebido como uma realidade objetiva, produto social em permanente transformação e fora do qual a sociedade não pode operar. Depois disto, ainda que havendo variações, na sua conceituação usual, é o espaço social que articula os elementos físicos e sociais presentes num certo lugar. 1.2 As questões do lugar e da paisagem A última frase do capítulo anterior nos lembra que cada espaço ocupa um certo lugar. Dizendo de outro modo, ele é um certo lugar, pois devemos diferençar desde logo o lugar da localização.  Algumas considerações sobre os lugares Suzanne Langer, citada por RELPH (op.cit.: 29), diz que, enquanto o lugar é culturalmente definido, a localização, no sentido cartográfico do termo, é apenas uma qualidade incidental do mesmo. É o que mostram os exemplos do navio, do acampamento cigano e do circo, sem dúvida lugares autocontidos, ainda que 5 constantemente mudem de localização . A concepção de lugar é complexa, pois muitas de suas qualidades são intangíveis, difíceis de listar e até mesmo mutáveis no tempo, mas não há dúvida de que o espaço que o compõe é no mínimo do tipo perceptual, mais frequentemente existencial (sagrado, geográfico ou as duas coisas ao mesmo tempo). Está se tornando também cada vez mais arquitetônico ou urbanístico, pois a humanidade o urbaniza, e, para que um espaço constitua um lugar, ele deve sê-lo para alguém, uma pessoa ou um grupo em particular que o reconheça como tal. Na verdade o lugar é um fenômeno da experiência humana e se torna especialmente importante no seu relacionamento com alguma comunidade, pois um tem comprovadamente o poder de reforçar o outro (Ibid.: 34). A identidade de um lugar depende basicamente de três coisas (ibid.:45): o cenário fixo que o compõe, quer dizer, sua aparência, forma física visual ou paisagem; as atividades ali realizadas; e como estas precisam ser eventos significativos, o lugar deve ter um significado para quem o considera assim. Já para Norberg-Schulz (2000: 06 e seguintes) o lugar não é somente onde acontecem as ações do cotidiano da vida humana. É nele que se manifesta o habitar do ser humano “(...) cuja identidade depende o pertencimento ao lugar”. O lugar não seria uma localidade abstrata ou somente um ponto geográfico. É antes de tudo um conjunto de elementos existentes que ali se processam e que constituem “um caráter ambiental”. A essência do lugar seria composta por este caráter que o tornaria “um fenômeno total qualitativo”, ou seja, o lugar não pode ser analisado somente por uma única característica, mas sim pelo conjunto de caracteres que o compõe. O lugar seria a real dimensão da vida do ser humano e adverte que na realidade os arquitetos e os urbanistas deveriam se preocupar com esta real dimensão.

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Ainda que majoritariamente os lugares tenham localização fixa, e esta seja uma condição usual, ela não é nem necessária nem suficiente para defini-los.

Como características do lugar ele considera a sua condição local e geral, que é a característica fundamental da realização da existência da vida cotidiana; os elementos naturais que o compõe, normalmente descritos em termos geográficos, mas que devem ser preservados como elementos primordiais para caracterizarem os lugares naturais; e os elementos culturais como os assentamentos humanos em suas diversas escalas em conjunto com as relações afetivas que os unem.  Outras considerações sobre os lugares: a criação dos não lugares Muitas pessoas, profissionais do espaço ou não, têm uma forte sensação de que a variedade de lugares e paisagens que existia antes da industrialização do mundo e do surgimento da sociedade de consumo está em processo de redução ou desaparecimento. Se diz, por exemplo, que estamos trocando nós e marcos significativos pela visão de uma rala continuidade de gente, comida, energia e diversão, que formam “uma desolação universal... um caos com brilho de cromo” (CULLEN, 1971: 59). Obviamente o que este tipo de observação deseja atingir é o que presume ser uma perda do sentido de lugar causada pela conformidade cultural do nosso tempo. A questão, porém, vai, além disto, pois a conformidade cultural não é coisa nova na História, e, além disto, constitui apenas um aspecto do todo. Relph procura separar as duas coisas (op.cit.: 79 e seguintes), reconhecendo, além da conformidade, uma tendência específica à banalização do lugar como resultado dos melhoramentos nas comunicações, do aumento da mobilidade e do desejo humano de imitar. Essa banalização tende de per si a gerar atitudes não autênticas 6 face aos lugares, o que leva a criar paisagens falsas e similares por toda parte. Não discutiremos ainda este ponto de vista, limitando-nos por enquanto a examinar estas atitudes. As atitudes que Relph entende como não autênticas em relação aos lugares resultariam da não percepção dos significados desses lugares e da não apreciação das suas identidades. Algumas ele classifica como desembaraçadas, advindas da 7 aceitação acrítica dos valores de massa e gerando coisas como o paisagismo kitsch, os parques temáticos, o esvaziamento emocional da ideia de lar e o turismo massificado. As outras, que ele chama de tímidas, traduzem a crença em técnicas objetivas de busca de eficiência, comuns principalmente no planejamento urbano e regional. Toda essa mídia ou conjunto de formas de comunicação de massa estaria assim remetendo a humanidade a uma geografia de não lugares, ou seja, a “um padrão sem significado de edifícios” (ibid: 117). MONTANER (1998:46 e seguintes) informa, por sua vez, que os não lugares são “espaços da supermodernidade e do anonimato, definidos pela superabundância e o excesso”, relacionados ao transporte rápido, ao consumo e ao ócio, se contrapondo “ao conceito de lugar das culturas baseadas numa tradição etnológica localizada no tempo e no espaço”. Especifica-os por excelência nos grandes hotéis 6

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Ele toma emprestada esta expressão a Heidegger e ao existencialismo, para quem a autenticidade é um modo de vida em que o homem assume a responsabilidade pela sua própria existência, enquanto a não autenticidade a transfere a outrem (Deus, o Destino, os ditames da História, do Ambiente, da Economia, da Moda ou do que seja). Que, não se confundindo necessariamente com os da cultura dominante, seria fenômeno distinto da conformidade cultural.

e nos aeroportos e estações intermodais de transporte, onde “se é obrigado a assentir com uma carteira de identidade e provar sempre a inocência (que não se é vigarista, ladrão ou terrorista)” e também em lugares que se pretende deixar o mais rápido possível, como, por exemplo, os aviões. Ele adiciona a esses não lugares, que pelo menos são reais, duas virtualidades: a potencial do que chama espaço midiático, cuja arquitetura se dissolve para deixar aparecer os objetos, as máquinas e as imagens que tem por finalidade exibir e a efetiva do ciberespaço, na qual espaços reais dos mais variados tipos se conectam eletronicamente sem necessidade dos tradicionais elementos físicos e de comunicação ao vivo.  Ainda sobre os lugares: a questão da paisagem. Não se deve confundir a ideia de paisagem com a de lugar. Na verdade, a paisagem é, ao mesmo tempo, o contexto dos lugares e um atributo destes. O seu caráter deriva, é claro, da associação das suas características originais com as construídas e ainda com o significado que seus observadores atribuem às partes e ao conjunto. Na maior parte do tempo quase ninguém lhe presta atenção e ela funciona basicamente como pano de fundo para as atividades que ocorrem num dado momento. Só eventualmente a atenção se volta para ela, suas formas, características e significados que lhes atribuímos. E é importante salientar a expressão que lhes denominamos, tanto porque elas não têm significado intrínseco, como porque o significado é variável de acordo com o tempo, o local e a cultura. Um aspecto que a preocupação com a cultura e a geografia dos não lugares enfatiza é o temor de que estejamos nos alienando da paisagem, pois os não lugares são entendidos, não só, como o contexto das paisagens de hoje, mas como uma parte essencial das mesmas, produzida exatamente por eles. Se a não 8 atribuição de significância aos lugares, a atitude que Relph chama placelesness , for hoje tão dominante quanto ele teme, então criamos um mundo em que os lugares simplesmente não importam mais. Como, por outro lado, é inegável que a nossa espécie necessita estar associada a lugares significativos, qualquer tendência à placelesness é anti-humana. Relph adverte que podemos superá-la e desenvolver uma ambiência de lugares que reflitam e realcem a nossa experiência (op. cit.: 147). Fazê-lo ou não depende só de nós, mas parece positivo o fato de estarmos aqui, investigando a responsabilidade da arquitetura e do urbanismo modernistas no problema. 4. MODERNISMO, LUGAR E PAISAGEM. Deve ser lembrado que o Movimento Modernista não foi adstrito à arquitetura e ao urbanismo. Generalizando a conhecida análise historiográfica das ideias 9 urbanísticas nos últimos dois séculos (CHOAY, 1965) , fica claro que duas tendências ideológicas disputaram a orientação do pensamento em toda essa época.

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Placelesness, a rigor, deveria ser traduzido como a qualidade, talvez a sensação de ausência de lugar. Choay se ocupa apenas do pensamento urbanístico, mas se entende aqui que, na verdade, ele é apenas o reflexo de uma ideologia muito mais geral ou total como prefere MANHEIM (1972).

Uma se fundava no saudosismo de uma suposta e mítica organicidade social, perdida num passado que a pressão da industrialização destruiu. Ela corresponde à tendência que no urbanismo Choay denominou culturalismo (ibid: 21), mas suas sementes podem também ser encontradas na arte romântica e, paradoxalmente, no niilismo político anarquista e na violência do fascismo. A outra visão do mundo, progressista na inspirada denominação de Choay (ibid.: 16), se pauta por uma ilimitada confiança na ciência e no progresso técnico, armas que supõe à disposição do seu otimismo racionalista para resolver os problemas humanos. O Modernismo foi a cristalização desse pensamento na arquitetura e no urbanismo. Mesmo sem exclusividade, é a visão que predomina dos meados do século XIX até hoje, não obstante o esforço crítico a que tem sido submetida nos últimos quarenta ou cinqüenta anos. 2.1 A ascensão e a queda do modernismo A modernidade lato senso extrapola o alcance deste texto, e nos limitaremos a considerar dela apenas a arquitetura e o urbanismo e basicamente no que tange ao seu envolvimento com as questões do lugar e da paisagem. Não obstante, parece inevitável surgir algo como o Movimento Modernista num mundo dominado pelo pensamento progressista. Em conseqüência, muitas responsabilidades atribuídas à arquitetura e ao urbanismo modernistas seriam antes da ideologia que determinou o seu surgimento e o seu sucesso. HUBBARD (1995: 58) entende que o sucesso do modernismo na arquitetura e no urbanismo ocorreu porque o que era racional para a análise arquitetônica, o mercado via como um item quente. E isto durou enquanto durou. Esta visão em nada conflita com a clássica síntese das explicações do modernismo em arquitetura e urbanismo (ZEVI, 1959: 15), “que junta a evolução natural do gosto, o progresso tecnológico da construção, o surgimento de novas teorias de visão estética e a radical transformação social havida desde os anos 1800” A primeira traçou a estrada que levou os princípios técnicos e artísticos do modernismo ao encontro do público e criou um mercado para eles. Já a revolução técnica, ou melhor, sua atrasada incorporação pela arquitetura, forneceu os meios necessários à construção dessa estrada. Quanto às novas teorias estéticas, cubismo, purismo, neoplasticismo e futurismo, elas foram a terraplenagem do percurso para permitir que a mudança do gosto tivesse lugar. Mas, como tudo mais na História, era preciso existir um impulso social que colocasse todo o processo em movimento, e este impulso já havia sido claro e determinantemente fornecido pela eclosão da Primeira Revolução Industrial. Fica claro, pois, que mesmo como simplificação é um erro datar o começo do Movimento Modernista nos anos 1910 ou 1920, pois ele tem raízes profundamente plantadas no passado, advindo de movimentos antecipatórios, como Arts and Crafts, Art Nouveau, Associação das Cidades Jardins, etc., vinculados por sua vez a esforços ainda mais antecedentes. Além disto, jamais, nem mesmo na época dos CIAM, foi um movimento monolítico, e, ainda que muitas ideias convergissem para o que se chamou Racionalismo, Funcionalismo e até Expressionismo e Arquitetura

Orgânica, nem todas se aproximavam e principalmente nem todas ao mesmo 10 tempo . Também é preciso considerar que boa parte do sucesso do Movimento foi posterior 11 a Segunda Grande Guerra, pois não podem ser esquecidas as reações clássicas ocorridas na primeira metade do século XX principalmente na União Soviética, na Itália fascista e na Alemanha nazista, mas também nos Estados Unidos e em projetos esparsos como o da sede da Liga das Nações em Genebra, Suíça (1935) e de parte da Exposição de Paris, em 1937 (MONTANER: 1997: 17). No pré-guerra não havia condições para evoluir, lembra ZEVI (op.cit: 312) ao afirmar: “A terceira geração de arquitetos modernos, no mais afortunado dos casos, não fez outra coisa que resistir:” Excetuando algumas “ilhas de salvação”, entre as quais o Brasil, “onde se aplica rigorosa e a miúdo escolasticamente a temática de Le Corbusier”, nada de importante viu ocorrer então. Sobre a participação brasileira no modernismo, não é demais recordar que a positividade racionalista da arquitetura na Europa impõe o racionalismo como um dos pólos do olhar moderno. Entre nós, ao contrário, como o Modernismo emerge caoticamente do imaginário, a abstração técnica da arquitetura fica isolada e meio alheia ao todo artístico. “Ela não consegue sustentar a tensão da brasilidade porque afirma claramente outro real – o sistema produtivo, a indústria, a internacionalização do mercado”, coisas que pouco têm a ver com o Brasil dos anos 1920 (TELLES, 1983: 20). Em compensação os anos 1960 mudam tudo, e nesse momento “O urbano se instaura como questão de planejamento...” fazendo de Brasília “... o último gesto de um modernismo às avessas: a internacionalização do capital pensada a partir do Brasil” (ibid.: 24). Se, levando em consideração seus inúmeros predecessores, não se pode estabelecer com segurança o início efetivo do Movimento Moderno, em compensação a sua queda tem data e hora marcada: 15:32 h de 15 de Julho de 1972, no horário de St. Louis, Missouri, USA. Ou assim pensa MONTANER, (1997: 101) que aceita a data proposta por Charles JENCKS (1978: 09), igualando simbolicamente o falecimento do modernismo à implosão do conjunto residencial Pruitt-Igoe, construído de acordo com os preceitos dos CIAM, premiado pelo Instituto Americano de Arquitetos em 1951 e posto abaixo por terem seus proprietários preferido essa solução a mantê-lo como abrigo de vândalos e criminosos. Tal juízo pode provavelmente ser revisto, e as responsabilidades pela equivocada descrição da problemática habitacional e da sugestão de meios também equivocados para resolvê-la, muito mais diluídas pela sociedade do que até hoje. Mas a versão da morte do modernismo só é, de fato, tangencial a este fato, sendo a implosão não mais que uma metáfora da crise. O que se alega, em outras palavras, é terem a arquitetura e o urbanismo modernistas deixado de vender bem nos anos 1970, sendo seus princípios abandonados em busca de algo melhor 10

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Conforme MONTANER (1997:13), o movimento promocional para divulgar o Estilo Internacional o teria apresentado falsamente como unitário pela marginalização e silenciamento das experiências dos futuristas, dos construtivistas russos, dos expressionistas alemães, da Escola de Amsterdã e até dos arquitetos orgânicos. A rigor, ecléticas e néo-clássicas, que foram os estilos imediatamente anteriores ao modernismo.

aceito pelo mercado. Daí o grande estardalhaço na reintegração da decoração ao repertório arquitetônico, na renovada permissão à fachada renegar a estrutura e até na tolerância do uso de uns materiais para fingir outros. Sob o nome genérico de pós-modernismo, a arquitetura teria voltado a aceitar quase tudo o que antes criticava, e abandonado a racionalidade modernista em troca de um irracionalismo sem limites. No entanto, pode ser feita uma leitura mais amena do que ocorreu, lembrando que simplesmente continuavam em ação os quatro fundamentos ou justificativas da construção modernista e, como já decorrera mais de meio século desde o auge do racionalismo arquitetônico, mudanças seriam de esperar. O gosto continuara em renovação o tempo todo, afetado pela agora permanente revolução tecnológica, pelo aperfeiçoamento estético trazido pelas novas ideias que surgiam cotidianamente e pelo substrato de contínua transformação social trazida pela guerra, pelo pós-guerra, pela segunda e terceira revoluções industriais, pela exacerbação da sociedade de consumo, pela globalização da economia e pelo fenomenal crescimento do mercado de massas. Nessa leitura, a arquitetura modernista não morre. Parece abandonada por um tempo, mas depois retorna aperfeiçoada, transparecendo em grande parte da produção contemporânea. Para vê-la é preciso apenas olhar além dos adereços formais, que podem ser bastante enganadores. Examinando os projetos, se consegue reconhecer velhos cânones modernistas em roupas novas, ainda que à superfície tudo pareça diferente. Mesmo no urbanismo o racionalismo não foi descartado, e não podia ser. Foram desmoralizadas sim as ideias exóticas, como a de que o homem pode ser reduzido a um modelo estatístico, ou que a vida humana se resume a quatro atividades. Foi abandonado o exagero de segregar essas atividades e agrupá-las infinitamente num zoneamento primário e absurdo, e não se perseguem mais soluções integrais e integradas. De fato, ainda que parecessem importantes, foram abandonados os anéis, ou seja, o supérfluo, mas ficaram os dedos, como a base racional e a perseguição dos objetivos fundamentais. Esta discussão também extrapola o nosso objetivo presente, mas alguns de seus aspectos serão retomados no último capítulo. 2.2 Terá sido o lugar irrelevante para o modernismo? Esta pergunta se coloca a partir da peremptória afirmação de Montaner (1998: 31) de que “Na arquitetura moderna ... a sensibilidade pelo lugar é irrelevante: todo objeto arquitetônico surge sobre uma indiscutível autonomia”. Pretende ele que a 12 busca do espaço pela arquitetura modernista se opõe à busca do lugar, pois a arquitetura só teria começado a ter sensibilidade para com este em tempos recentes. E explica que a concepção de espaço do modernismo, aquele suportado por estruturas de aço e concreto e fechado com cristal “a concepção internacional de espaço conformado sobre um plano horizontal livre com fachada transparente” (Ibid: 29) é uma concepção platônica: o espaço seria limitado, mas a sua essência o faria tender à não limitação e ao infinito, noção contraposta à do lugar aristotélico 12

Que ele chama, com certa razão, de antiespaço.

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, que seria um espaço substantivamente limitado, definido pelas qualidades das coisas e dos valores simbólicos e históricos que contenha. Este lugar se diferenciaria do espaço modernista por ser ambiental e fenomenologicamente relacionado ao corpo humano (Ibid.:32). Daí a ideia de haver algo mesmo capaz de fazer aflorar preexistências ambientais, o genius loci ou espírito do lugar. Este seria algo que emanava dos templos gregos, entendidos como manifestações genéricas da possibilidade de reconciliar homem e natureza, cada um dedicado a um aspecto desta, uma divindade, ocupando certo lugar e manifestando seu significado através de uma certa forma (NORBERG-SCHULZ, op. cit.: 18). Devido à peculiaridade dos lugares, generalizar afirmativas a eles referentes é procedimento de risco, mesmo com o apoio de conceitos ontológicos e da fenomenologia da percepção e experiência do mundo pelo corpo humano. É que não se pode generalizar a subjetividade, mesmo coletiva, que dá significado ao lugar e às atividades nele realizadas, e, para evidenciar isto, basta evocar os cemitérios. Em geral a vizinhança destes é desvalorizada para local de moradia, mas convém 14 não esquecer que nem sempre é assim . Outro exemplo é o do local onde funcionou o campo de concentração de Bergen Belsen, na Alemanha (fig. 01).

Fig. 01 – Bergen Belsen, onde a única atividade é lembrar (acervo de Hélio Novak).

O recinto do campo, conservado como memória, é sem dúvida um lugar aristotélico, como Relph o define. Hoje se reduz a um grande gramado, pintalgado por raros marcos que homenageiam pessoas mortas ali. A paisagem é bucólica, a única atividade efetiva ocorrendo é lembrar, e o genius loci está, sem dúvida presente. Mas que preexistência ambiental é transmitida? A da ordem nazista? A da revolta pelo tratamento desumano dado às vítimas? Ou a da tristeza pelo desperdício de tantas vidas, a mais famosa das quais foi a menina holandesa Anne Frank? A resposta, é claro, depende da finalidade da pergunta e também de quem dá a resposta. Isto posto, voltemos à tese aqui defendida, de que, exceto talvez no período pioneiro, quando o interesse se centrava antes na destruição da visão clássica que na revisão dos valores intrínsecos à nova visão, o lugar jamais foi fator tão 13 14

Vide o capítulo 1.1, na página 3 deste texto. Em Boston (USA), por exemplo, os cemitérios históricos são um traço urbanístico importante e até atrações turísticas da cidade, tendo sido os responsáveis pelo reconhecimento científico do processo de cristalização tanto por parte da “Ecologia Urbana” como pelos geógrafos “progressistas” dos nossos dias (Por ex. LOBATO,1993: 37 e seguintes).

desprezado pela arquitetura modernista como se quer fazer crer atualmente. E um primeiro argumento neste sentido é fornecido pelo próprio Montaner, que, para excetuar os arquitetos orgânicos da tendência à placelesness, lembra que no modernismo sempre houve duas tradições quanto à relação arquitetura x paisagem. De um lado havia a Cidade-Jardim de Howard e as “primeiras Siedlugen alemãs integradas á paisagem” e, do outro, a que era “representada pelo racionalismo, a nova objetividade e Le Corbusier em seus primeiros planos urbanísticos”, que se baseava “na onipresença da arquitetura e o pouco respeito pelas circunstâncias ecológicas” (ibid.: 36) e foi dominante durante um período. Aliás, contrariando a sua própria informação, lembra ter o mesmo Le Corbusier começado, já em 1929, após sua viagem ao Rio, São Paulo e Buenos Aires, a considerar no seu trabalho o valor da natureza e as características do lugar (ibid.:33) (fig. 02).

Fig. 02 – Proposta do Edifício Ponte para a cidade do Rio de Janeiro (CZAJKOWSKI, Jorge. Le Corbusier – Rio de Janeiro: 1929–1936. Rio de Janeiro: CAU/IPP. 1998).

Esta contradição tem um leve odor de preconceito, que se torna transparente quando é feita a comparação de dois projetos: no que considera pós-moderno, o arquiteto teria gerado “uma solução tipológica e empiricamente ajustada ao lugar”; no outro, que qualifica de “tardiamente moderno” entende ter sido aplicada “uma tipologia prévia e repetível” (ibid.: 44). Mesmo descontada a possibilidade duma tipologia prévia ser bem ajustada ao local, é óbvio que um único exemplo dicotômico não deveria ser passível de generalização. Com a discussão deslocada para a questão da paisagem, ela passa a girar em torno da dicotomia proposta por GIEDION (1958), relativamente às duas maneiras de relacionar arquitetura e paisagem: por contraste, ou por amalgamação. Ainda que possa parecer, não se pode demonstrar ser o amalgamento da arquitetura com a paisagem a melhor solução paisagística ou ecológica. Não faltam exemplos de que espalhar uma construção por áreas vegetadas as destrói mais que a limitação da área a desmatar, pois, além do espaço ocupado pela obra pronta, há que considerar o terreno devastado pela construção, pelos caminhos de acesso e de saída, pelos canteiros de obra, etc. Agredir menos à ecologia é, aliás, uma justificativa costumeira em projetos modernistas de torres soltas e lâminas estreitas. É óbvio que escolher a solução menos invasiva não é questão a ser resolvida genericamente, devendo ser apreciada caso a caso. No entanto, se pode suspeitar que, muitas vezes, a ecologia entra na discussão arquitetônica como Pilatos no Credo e serve antes para justificar o partido adotado como o seu fundamento real.

É tão equivocado supor melhor o projeto capaz de salvar a maior porcentagem de paisagem existente, quanto o inverso. O que vale, ao fim e ao cabo, é o resultado geral da implantação, e, para julgá-lo, é fundamental estabelecer critérios adequados. Para que estes sejam conceitualmente similares aos que são usados para julgar outros aspectos da arquitetura, vêm à mente os seguintes: funcionalidade, no que concerne às condições de uso; adequação, no que concerne à ecologia e aos custos econômicos de implantação; e princípios de ordem, escala, proporção, hierarquia, simetria, dominância, contraste e etc., no que concerne aos valores arquiteturais. Escala e proporção, por exemplo, são pontos absolutamente fundamentais, como exemplifica a Torre do Shopping Rio Sul, na cidade do Rio de Janeiro (fig. 03). Ela se ergue acima das montanhas tanto na visão de Botafogo quanto na de Copacabana, agredindo a paisagem urbana. Trata-se de um prédio tardo-modernista, mas, para evidenciar que a desproporção não é culpa do modernismo, basta lembrar que a imensa Torre Eiffel (fig. 04), um dos primeiros e mais fortes ícones da modernidade, é paisagisticamente bem ajustada. Sua centralização no enorme Campo de Marte ajustou competentemente sua própria escala à da cidade, permitindo um casamento definitivo das duas, ainda que tenha sido projetada como edificação provisória.

Fig. 03 – Torre do Shopping Rio Sul (acervo Mauro Campello)

Fig. 04 – Torre Eiffel (acervo Mauro Campello)

A acusação ao modernismo de insensibilidade ao lugar deve vir de uma leitura excessivamente estrita dos princípios que originalmente dirigiram o movimento. Mas esta não terá sido a leitura feita pelos arquitetos modernistas, pelo menos os 15 da terceira geração . Mesmo tendo que resistir às revivescências do ecleticismo e do neoclassicismo, (vide pg. 9), foram eles que iniciaram a crítica ao formalismo e ao maneirismo do estilo internacional, enquanto enriqueciam as formas da arquitetura moderna, na opinião do próprio Montaner (1997: 37), que ainda é obrigado a reconhecer que com eles “O contexto urbano vai adquirindo maior transcendência, sendo entendido de maneira mais complexa e dialética do que contemplava a Carta de Atenas. De 15

Segundo MONTANER (1997:36) são os nascidos entre 1907 e 1923, que desenvolveram suas obras a partir de 1945 ou 1950. Trata-se de nomes como, entre outros, John Ützon, Aldo van Eyck, Louis Barragán, Afonso Eduardo Reidy e Lina Bo Bardi e considera ainda alguns arquitetos mais velhos, cuja obra eclode junto com a deles, como é o caso de Louis Kahn, Ernesto Nathan Rogers e Carlo Scarpa.

certo modo se vai deixando de tratar os edifícios isolados na cidade para utilizar a expressão ambiente urbano de preexistências ambientais, pensando os edifícios integrados ao contexto topográfico e urbano” (loc.cit.). Não é difícil mostrar exemplos de que os famosos princípios do modernismo nem sempre conflitavam com a percepção e valorização do lugar na obra dos arquitetos que os seguiam. Os projetos orgânicos seriam paradigmáticos, pois a implantação e o lugar sempre foram pontos fundamentais para eles. Por isto mesmo Montaner os excetuou do seu libelo, mas, assim mesmo, lembraremos aqui dois conhecidos aspectos da arquitetura de Frank Lloyd Wright. O primeiro é que baseava seus projetos em tramas geométricas e poligonais tanto para moldar o espaço ao programa funcional como para relacionar a obra ao entorno natural. O outro é que não via contradição entre máquina e natureza, aliando as duas para produzir obras primas como a Casa da Cascata (1931 a 1939) (fig. 05), em que imensas plataformas de concreto em balanço, uma solução de alta tecnologia, qualifica e melhora um entorno de grande beleza natural (MONTANER, 1998: 38 e 39). Incidentalmente, numa casa implantada num rio, deve ter havido certa agressão à ecologia, mas que importa isto face ao resultado?

Fig. 05 – Casa da Cascata – Frank Lloyd Wright – 1931 / 1939 (acervo Mauro Campello).

Para encerrar a argumentação, foram escolhidos projetos famosos de arquitetos modernistas da terceira, segunda e primeira geração: Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Richard Neutra e os mais racionalistas de todos, Walther Gropius e Ludwig Mies van der Rohe.  Lúcio Costa e o Plano de Brasília Este projeto (fig. 06), embora produzido após a superação dos exigentes postulados dos CIAM, foi escolhido por se ter mantido fiel aos mesmos. Mas, como evidencia o seu memorial, o partido se fundamenta no respeito ao lugar. Assim, o projeto implanta a cidade em consonância estrita com a topografia, advindo desta preocupação, em larga medida, a famosa forma em avião da planta. A topografia leva também o sistema viário a um desenho natural, e é o uso judicioso da mesma que permite a frequente solução dos cruzamentos em desnível. Um terceiro ponto é a localização e a forma do lago exigido pelo concurso, mais organicamente integrado ao tecido urbano que nos outros projetos classificados. Apesar das muitas ressalvas que lhe podem ser feitas, o plano de Brasília é quase um manifesto em favor da paisagem. Se ela era antes tão inóspita e sem significado como a de qualquer cerrado brasileiro, o projeto lhe deu a personalidade marcante que a torna inconfundível.

Fig. 06 – Plano Piloto de Brasília (acervo Mauro Campello)

 O jovem Oscar Niemeyer. Apesar de se ter sempre distanciado do international style, a condição de Niemeyer como arquiteto modernista nunca foi contestada, e obviamente não poderia ser. É interessante, portanto, usar a sua obra para mostrar a importância concedida ao lugar pela Arquitetura Modernista, bastando para isto pinçar um projeto como o do Museu de Arte Contemporânea de Niterói, por exemplo, cuja implantação, num promontório que lhe dá como back ground uma vista magnífica da cidade do Rio de Janeiro, é estratégica. Bastaria uma foto, mostrando a mínima interferência do projeto com a paisagem para evidenciar a preocupação do arquiteto com a mesma e a valorização do lugar com a introdução do prédio ali. No entanto, este é um projeto tardio, e parece preferível remontar aos primórdios, quando o ideário modernista talvez influísse mais sobre ele, e selecionar projetos como os feitos para a Pampulha (Belo Horizonte), ou a casa destinada à sua família, no alto das Canoas (Rio de Janeiro). Nesses projetos há um forte sentimento de lugar, que é demonstrado através dos cuidados com o sítio pela arquitetura. Mesmo seguindo Le Corbusier de perto, o Palácio de Cristal, projetado como cassino, mas usado como museu, enfatiza as fachadas envidraçadas como óbvios convites a usufruir o entorno. Já a Casa de Baile, além de estar situada numa ilha artificial ligada ao continente por uma ponte pitoresca, se caracteriza por fachadas sinuosas, que chegam a sugerir uma continuação da lagoa. Finalmente, não é difícil procurar nas formas curvas das abóbadas autoportantes da Capela de São Francisco sua obra mais marcante da época, - uma macrorreferência às montanhas de Minas Gerais. No que tange à Casa das Canoas (fig.07), o partido tirado do rochedo que havia no terreno para ancorar a piscina no salão de estar é uma clara homenagem ao sítio, que foi ricamente favorecido pela arquitetura nele implantada.

Fig.07: - Croquis de Niemeyer para a casa das Canoas ({ HYPERLINK "http://www.vitruvius.com.br" }).

 A Paisagem e o Lugar na obra de Affonso Eduardo Reidy. Reidy foi o arquiteto modernista brasileiro que mais fortemente foi influenciado pelas idéias de Le Corbusier. Apesar disto incorporou incondicionalmente a paisagem tropical no seu trabalho. Esta influência é mais explícita nos seus projetos para habitação popular, como o famoso Conjunto Habitacional Prefeito Mendes de Morais (1946), popularmente conhecido como Conjunto do Pedregulho. 16 O partido adotado, assim como para os outros dois conjuntos habitacionais se baseou na forma topográfica do terreno. Entre o projeto do Conjunto do Pedregulho e os outros dois, Reidy desenvolve o projeto urbanístico do Aterro do Flamengo (1948), resultante do desmonte do Morro de Santo Antônio. O desenho é francamente inspirado no contorno da cadeia de montanhas que circundam a Baia de Guanabara e ele projeta todos os edifícios que passaram a compor o Parque do Flamengo (1962-64), resultado do aterro. Entre todos os edifícios o que mais se destaca é o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAMARJ) (1954-58) (fig. 08). Reidy assim se refere ao projeto do museu: “Se a correspondência entre a obra arquitetural e o ambiente físico que o envolve é sempre uma questão da maior importância, no caso do edifício do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro essa condição adquire ainda maior vulto, dada a situação privilegiada (...), em pleno coração da cidade, no meio de uma extensa área que num futuro próximo será um belo parque público, debruçado sobre o mar, frente à entrada da barra e rodeada pela mais bela 17 paisagem do mundo” (BONDUKI, op. cit.: 164) . Não há como negar que o conjunto resultante foi impregnado pela paisagem natural e pela aquela que já era latente na sua mente criadora. Deve-se destacar que a época do projeto do MAMRJ o aterro ainda não havia sido construído, ou seja, o edifício surge das águas. É a pura manifestação do genius loci.

Fig.08: - Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (BONDUKI, Nabil, 2000: 165).

 O favorecimento paisagístico dos projetos de Richard Neutra A grande preocupação do arquiteto com a paisagem é evidenciada pelos grandes panos de vidro no fechamento das suas construções. Tendo trabalhado no

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Foram o Conjunto Habitacional da Gávea, que teve somente o bloco principal construído e o Conjunto das Catacumbas que ficou somente no projeto. Nestes dois conjuntos os edifícios principais seguiam o mesmo partido do Conjunto do Pedregulho. Os grifos são meus.

escritório de Wright em Taliesin, foi influenciado pela maneira como o mestre implantava seus prédios. A valorização dos traços do sítio pode ser chamada de orgânica, mas sua arquitetura não comporta este rótulo, pois é sempre visto como 18 um mestre do racionalismo . No entanto, a individualidade característica dos espaços que projetava não deixa dúvida de que era fundamentalmente um criador de lugares, na acepção mais aristotélica do termo, como este é entendido por Relph. Pelo cânone, as estruturas de suas obras eram independentes do fechamento, que experimentou com vários tipos de material. Mesmo cultuando a pré-fabricação, os edifícios em que a usa resultam tão individuais como se ele fosse o único usuário. Já em 1929, sua Casa de Saúde Lovell tem uma estrutura metálica independente e grandes janelas envidraçadas, mas a construção se distribui pelo terreno levemente íngreme como se nascesse dele. Na Casa Kaufmann (1946), a famosa Casa do Deserto (fig. 09), as montanhas parecem existir só para servir de fundo e contraponto à leveza da construção. No entanto, “A casa não tenta re-encenar o drama do deserto; ela é ligada a ele apenas por pedregulhos e plantas nativas da região. A casa não é plantada: é construída. Disto Neutra está bem ciente. Ele escreveu: ‘Uma planta dinâmica que cresce de raízes que absorvem umidade e nutrientes do solo é uma coisa; um peso estático estrutural, apoiado em fundações de concreto à prova d’água é outra’“ (Mc COY, 19 1960:17) .

Fig.09 - Neutra, 1946: a Casa do Deserto (desenho de Hélio Novak com base em CHING, 1979: 101).

Diz-se que na Casa Tremaine (1948), termina sua busca pela perfeição, pois “o esqueleto de concreto reforçado é tão pouco exigido que a estrutura parece um dossel aberto no espaço”. É ali que Neutra cria um detalhe que depois explorará a fundo: o canto de vidro intrometido no espaço existente sob um vasto teto em balanço. Ele vai usar este detalhe com discriminação e sempre “para atrair para um quarto uma vista distante ou um jardim íntimo” (loc.cit.). 18

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Durante a 2ª.grande guerra, foi um dos responsáveis por manter vivo os CIAM, conservando sua documentação nos Estados Unidos (MONTANER, 1997:29). A citação feita por Mc Coy é de NEUTRA, R. Survival Through Desin, Oxford University Press, New York, 1954: 89.

É de tais ingredientes, não resta a menor dúvida, que os lugares são feitos.  Walter Gropius, o príncipe de prata. Ainda que jamais tenha chegado ao exagero de definir a casa como máquina de morar, Walter Gropius forma com Mies van der Rohe e Le Corbusier o trio responsável pela imagem universalmente divulgada da arquitetura modernista de ortogonalidade severa, cores esmaecidas e elegância refinada. A elegância parece, aliás, ter sido a marca registrada de Gropius, que deve a ela e à cabeleira branca que manteve até a morte o apelido de “príncipe de prata”. Ele é hoje mais lembrado por sua obra de educador, pois, o enorme prestígio de ter fundado a Bauhaus e a dirigido por longo tempo jamais o abandonou. Ainda que o tenham acusado tanto de procurar estabelecer um estilo e desse estilo ser ruim, Gropius sempre manteve que apenas ensinava uma metodologia básica de projeto. Já na sua primeira declaração quando chegou aos Estados Unidos em 1937, negou a intenção de introduzir lá um “estilo moderno”, mas sim um método de abordagem que permitisse enfrentar cada problema arquitetônico de acordo com suas peculiaridades (FITCH, 1960: 13). Democrata de coração, preocupado com as questões sociais e advogado incansável do trabalho em equipe, é difícil vê-lo impondo ditatorialmente as questões de um estilo. Mais fácil vê-lo como disse que queria ser, num discurso ao completar 70 anos, uma. “... árvore em que pássaros de muita cores e formatos pudessem sentar e sentir-se seguros... Eu sei que sou uma figura coberta por muitas etiquetas...’Estilo Bauhaus’, ‘Estilo Internacional’, ‘Estilo Funcional’ – etiquetas que quase tiveram 20 sucesso em esconder a figura humana por trás delas” (op. cit.) . Como arquiteto ele usou muito bem o receituário da nova arquitetura, em especial no concernente à separação entre estrutura e fechamento. Pode até ser responsabilizado pela arquitetura consequente, pois já no projeto da Fábrica Fagus (1911) teria inventado a redução do fechamento a uma tela transparente de vidro e metal, que, pendurada por fora das colunas de sustentação, se tornava explicitamente inútil do ponto vista estrutural. “Depois, movimentando a coluna de canto para trás de sua localização histórica, balanceando a laje de solo não apoiada e encerrando este canto aberto com uma tela de vidro, foi capaz de dramatizar a leveza do esqueleto e a graça de todo o sistema”. (ibid.: 19). Ainda que fosse possível mostrar muitas obras em que Gropius se teria preocupado com o lugar e a paisagem, vamos citar aqui apenas o seu projeto de 1953 para a Universidade de Bagdá (fig.10), produzido com seu escritório “The 21 Architects Collaborative” . Trata-se de um grande plano diretor – a Universidade foi projetada para doze mil alunos --, que envolve uma grande quantidade de construções, sendo notável a preocupação de criar lugares de encontro nos e entre os edifícios, através de, entre outros recursos, o uso de uma linguagem plástica reminiscente da cultura árabe. Não é difícil perceber que isto leva o projeto a alcançar sua identidade de Universidade árabe, situada em Bagdá. 20 21

A citação feita por Fitch é de GROPIUS, W. Scope oTotal Artchitecture, New York, Harper: xvii ff. Em sociedade com Louis A. e Robert S. Mc Millen.

Fig. 10 - Gropius, 1953: pátio acadêmico na Universidade de Bagdá (http://alexita292821.blogspot.com/2008/08/walter-gropius.html).

 Mies van der Rohe, o apóstolo do absoluto imaginário. A descrição do trabalho de Mies nos Estados Unidos como um combate com a realidade por conta de um absoluto imaginário é do seu biógrafo Arthur DREXLER (1960: 24). Trata-se de uma metáfora bastante apta daquilo a que o arquiteto se propunha, pois, ainda que discursasse contra o formalismo, era um formalista inveterado, que perseguia incansavelmente a perfeição formal que se ocultava atrás de uma simplicidade aparente. Onde ele usava diversos elementos metálicos para produzir um certo efeito visual, outro arquiteto usaria algo menos complicado e mais barato, mas certamente menos efetivo visualmente. Como foi universalmente imitado, e como os imitadores geralmente não estavam preocupados em imitar bem – nem fosse provável que seus clientes desejassem pagar o custo de perseguir a perfeição – essas imitações acabavam sem significado, como ocorreu nos prédios com montantes para fixar os vidros nas fachadas imitando os das torres de apartamentos de Lake Shore Drive, 860 (1951) 22. em Chicago A busca de Mies pela forma perfeita o tornou o apóstolo dum absoluto imaginário, um espaço totalmente livre e limitado apenas pelas atividades ocorrendo ali, indiferenciado porque indiferente às necessidades programáticas e contido numa caixa de vidro e aço a ser usada horizontal ou verticalmente para conformar edifícios altos ou baixos. “A entrada é por baixo, um arranjo que preserva a uniformidade das elevações e proporciona uma preparação adequada à grande escala” (Ibid.:30). Segundo seu biógrafo, o próprio arquiteto imaginava que. “... o edifício Seagram de escritórios e as casas de apartamentos da Lake Shore Drive eram intercambiáveis. Como eles, o teatro de Manheim ia além do funcionalismo pela evitação da limitação de qualquer função particular dada pelo programa: em vez disto oferecia o que tem sido chamado ‘espaço universal’” (loc. cit.). A consistência das ideias de Mies é inegável, pois “Ao contrário dos últimos trabalhos de Le Corbusier, os seus confirmam em vez de repudiar a dedicação do projetista a uma arquitetura de ordem racional e comunicável” (Ibid.: 32). Deveria então seu arquetípico modernismo não valorizar o lugar? Não estaria ele mais que 22

Tais torres são gaiolas de vidro e aço totalmente uniformes, implantadas obliquamente à rua, mas em esquadro uma em relação à outra. Fora as proporções clássicas e o soberbo tratamento das entradas, o maior refinamento do edifício é a variação da densidade visual dos montantes. Dependendo do ângulo de visão, eles podem ocultar o vidro, ou, ao contrário, se tornarem invisíveis.

todos, na busca cega pelo espaço - como deseja Relph - condenado a produzir apenas o anti-espaço? Não necessariamente, podemos argumentar. Ele se importava com o lugar, malgré lui même. Examinemos, por exemplo, o caso do edifício Seagram (vide fig.11), em New York, 1954-1958. Antes de dar o projeto a Mies, a filha do presidente da Seagram, Phyllis Lambert, teria consultado os arquitetos mais importantes do tempo, de Gropius e Louis Kahn a Saarinen, Wright e Le Corbusier, procurando aquele capaz de outorgar uma nova imagem a um edifício de escritórios no coração de Manhattan, onde disputaria a atenção com dezenas de edifícios parecidos. Em vez de dar ao prédio a tradicional forma em Zigurat, Mies, coerente consigo mesmo, propôs um paralelepípedo perfeito de trinta e nove pavimentos, complementado atrás por dois 23 corpos mais baixos . O mais importante, porém, foi afastar o prédio uns tantos metros do alinhamento da Park Avenue, graças ao que criava uma praça frontal para dar evidência à torre e, ao mesmo tempo, a tornava um lugar característico na indiferenciada paisagem nova-iorquina.

Fig. 11 – Mies Van der Rohe - 1954/1958 – Seagram Building (http://alexita292821.blogspot.com/2008/08/walter-gropius.html).

5. À GUISA DE CONCLUSÃO A reflexão feita aqui nos conduziu desde os pouco concretos conceitos de espaço, lugar e paisagem à apreciação do seu uso na arquitetura e no urbanismo modernistas. Parece ter ficado demonstrada a hipótese inicial que contradita a negação do lugar pelo modernismo, levando a tomar esta afirmação com cautelas e ressalvas. Ao mesmo tempo, este texto defendia a idéia de que o modernismo não morreu e que, despido de certos acessórios que um dia pareceram fundamentais a ele, ainda é o grande paradigma, ou, para repetir Gropius, a grande metodologia projetual na arquitetura até hoje. Não foi possível dedicar a este tema a atenção que merecia, mas deve ter ficado claro que, independente de cânones ou de estilos, a boa arquitetura sempre considera a paisagem e o lugar. Lembremos que “Acontecimentos como o Movimento Moderno em arquitetura, ainda que pareçam rupturas no decorrer da História, são na verdade traços de união entre o passado e o presente, ou entre o passado e o futuro. É um processo de fluxo constante, e ser

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Este projeto teve a colaboração de Philip Johnson, cujos atritos com Mies, parecem ter desgastado a admiração deste pelo outro.

moderno consiste em participar ativa e conscientemente desse processo” (STROETER, 1986: 113). 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1982. ADLER, M. J. e GORMAN, William. The Great Ideas, vol. II. Chicago: Chicago Univ. Press / William Benton, 1952. ARISTÓTELES. Phisics, book IV. Chicago: Chicago Univ. Press / William Benton, 1952. BUTTIMER, Anne. “O espaço social numa perspectiva multidisciplinar”. In SANTOS, Milton e SOUZA, Maria Adélia A. de (coords.) O espaço multidisciplinar. São Paulo: Ed. Nobel, 1986. CHING, F. D.K. Architecture: Form, Space & Order. New York: Van Nostr. Reinhold, 1979. CHOAY, Françoise. L’urbanisme en question. In CHOAY, F. L’urbanisme – utopies et realités – une anthologie. Paris, Éd. du Seuil, 1965. CULLEN , Gordon. The Concise Townscape. London, The Architectural Press, 1971. DREXLER, Arthur. Ludwig Mies van der Rohe. New York, George Braziler, Inc. 1960 FITCH, James M. Walter Gropius. New York, George Braziler, Inc. 1960 GIEDION, Siegfried. Architecture, you and me. Cambrige (Mass.) Oxford University Press, 1958. HUBBARD Jr. Bill. A Theory for Practice: Architecture in Three Discourses. Cambridge (Mass),The MIT Press, 1995. JENCKS, Charles. The Language of Post-Modern Architecture. London, Academy Ed, 1978 KANT, Immanuel. The Critique of Pure Reason. Chicago: Chicago Univ. Press / William Benton, 1952 LOBATO CORRÊA, Roberto. O espaço urbano. São Paulo: Editora Ática S.A., 1993. MANHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Rio de janeiro, Zahar Ed., 1972 Mc COY, Esther. Richard Neutra. New York, George Braziler, Inc. 1960 MONTANER, Josep Maria, Después del movimiento moderno. Barcelona, Ed. Gustavo Gili, 1997. ______________________, La modernidad superada. Barcelona, Ed. Gustavo Gili, 1998. NORBERG~SCHUL, Christian. Genius Loci: Paesaggio Ambiente Architettura. Milão, Electa Elemond Editori Associati, 2000. PAPADAKI, Stano. Oscar Niemeyer: Works in Progress. New York, Reinhold, 1956. PLATÃO. The dialogues – Timaeus. Chicago: University of Chicago Press / William Benton, 1952 RELPH, E. Place and Placelesness. London, Pion Ltd., 1980.

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