O SENTIDO DO TERMO CÉU NA FILOSOFIA NATURAL

June 14, 2017 | Autor: Edmilson Barbosa | Categoria: Filosofia de la Naturaleza, Filosofía natural, Cosmologia, Céu
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O SENTIDO DO TERMO CÉU (ou)rano/j) NA FILOSOFIA NATURAL

Para todas as artes que são grandes, há necessidade de conversa e discussão sobre as partes da ciência natural que tratam das coisas suspensas no ar, pois parece ser essa a fonte que inspira a magnanimidade e a eficiência em todas as direções. PLATÃO, Fedro, 270a1

Antes de tudo, é conveniente ter uma idéia do estado atual dos debates em torno da relação entre filosofia antiga e céu e que desde já pode ser confirmada pelo trecho de Fedro que aqui utilizo como epígrafe: ele traduz o valor e a importância que os primeiros filósofos gregos imputavam “às coisas suspensas no ar”, nas quais, é claro, o céu se inclui. De acordo com Jaeger, o que se evidencia de imediato na atitude destes primeiros filósofos é a indiferença e a aparente cegueira deles em relação às coisas que aos demais homens pareciam importantes, tais como dinheiro e honra, suscitando tanto estranhamento e tanta admiração ao povo que as suas figuras passaram a ser consideradas como extravagantes, misteriosas e desajeitadas, se erguendo acima de todos e de tudo para se consagrar a estudos através de um impulso que lançava-os inevitavelmente na direção do céu: “O sábio Tales, absorto na contemplação de um fenômeno celeste qualquer, cai dentro de um poço, e a sua criada trácia faz pouco dele, por querer saber as coisas do céu e não ver o que está sob os seus pés. Pitágoras, quando lhe perguntam para que vive, responde: para contemplar o céu e as estrelas. Anaxágoras, acusado de não se interessar pela família nem pela Pátria, aponta com a mão o céu e diz: eis minha Pátria. É comum a todos aquele incompreensível devotamento ao conhecimento do cosmos, a meteorologia, como então se diz num sentido mais vasto e mais profundo, isto é, à ciência das coisas do alto.”2

Esta “ciência das coisas do alto” é aquela que se voltava para “as coisas suspensas no ar” e este foi o caminho que invariavelmente as especulações destes primeiros filósofos tomaram pois lá era o lugar privilegiado onde os deuses moravam e cujo governo, por vezes caprichoso sobre o mundo dos homens, suscitava tal temor e tal fascínio a ponto desta situação demandar, a partir do século VI, uma melhor compreensão, gerando uma série de investigações cujo caráter é tomado boa parte das vezes como “científico”. Mas teriam mesmo tais especulações algum caráter “científico”? É o que se pode depreender quando se vê Burnet comentando, por exemplo, que “a ciência do século VI estava pois principalmente preocupada com aquelas partes do mundo que estão no ar (ta\ mete/wra), as quais incluem

“ Πᾶσαι ὅσαι μεγάλαι τῶν τεχνῶν προσδέονται ἀδολεσχίας καὶ μετεωρολογίας φύσεως πέρι· τὸ γὰρ ὑψη λόνουν τοῦτο καὶ πάντῃ τελεσιουργὸν ἔοικεν ἐντεῦθέν ποθεν εἰσιέναι”. Tradução: John Burnet, 1994, p. 207. 2 JAEGER, 2003, p. 194. 1

coisas como as nuvens, os arco-íris e o relâmpago, bem como os corpos celestes”3. No entanto, Jaeger adverte que o interesse fundamental destes primeiros filósofos “era, na realidade, o que na nossa linguagem corrente denominamos metafísica. É certo que foi do mesmo movimento que nasceu a ciência racional da natureza. Mas a princípio estava envolta em especulação metafísica, e só gradualmente se foi libertando dela.”4 Vê-se, assim, que a investigação promovida por estes primeiros filósofos, muito embora contivesse o gérmen que viria a determinar o aparecimento da ciência racional da natureza, isto é, da ciência que concebemos como “física”, já estava envolta em certas especulações de caráter metafísico que jamais permitiriam que ela pudesse ser classificada como eminentemente ou exclusivamente científica. Gomperz5, em artigo sobre o assunto, observa que não há uma linha fronteiriça que geralmente se assume para separar a “filosofia” dos antigos pensadores de suas “atividades científicas” e que, quanto ao conteúdo de suas especulações, se este pudesse ser discriminado deste modo, isto só se faria através de um critério extremamente vago. Lloyd6 chega a advertir que a distinção entre ciência e filosofia é uma distinção que se esboroa quando se tem que considerar a obra destes primeiros filósofos e que, sob o olhar de um historiador de ciência e das categorias por este conhecidas, muito da riqueza contida neste movimento intelectual corre o risco de sofrer uma razoável e infeliz redução: “Quando perguntamos quais categorias e conceitos os gregos antigos usaram em suas próprias investigações, encontramos uma variedade em jogo. Os termos que convencionalmente traduzimos por médico (iatrós), matemático (mathematikós), filósofo (philosophós), físico ou filósofo natural (physiologós), músico (mousikós), arquiteto (architektõn), engenheiro (mechanikós), todos tem ponto de contato um com o outro mas todos divergem em maior ou menor grau, tal como estes títulos convencionais talvez sugiram. Além disso, nenhum desses termos demarca uma pesquisa ou atividade única de que os gregos mesmos tivessem uma visão clara e unânime. Cada uma na antiguidade já fora objeto de desacordo e de disputa, com indivíduos ou grupos rivais implicitamente adotando ou explicitamente defendendo concepções divergentes. (...) As implicações destas disputas para o nosso entendimento da posição daqueles que insistiram na importância do “inquérito sobre a natureza” são claras: embora muito da pesquisa que passou por este nome é de fato investigação em um ou outro domínio que, para nós, constitui a ciência natural, não há como tomar que este estudo não tenha sido problemático e controverso. Ao contrário, a grande insistência de que havia um domínio da natureza a ser estudado foi um grande passo na oferta de um novo estilo requerido por esta sabedoria para superar seus rivais de outras tradições. No entanto, como este estudo teve que proceder, seus objetivos e metodologia, tudo isto foi calorosamente discutido entre aqueles que concordavam, pelo menos, que era válido levá-lo adiante. (...) A 3

BURNET, 1994, p. 34. JAEGER, 2003, p. 196. 5 GOMPERZ, 1943, p. 161. 6 LLOYD, 1992, pp. 564-577. 4

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dificuldade que os filósofos da ciência têm encontrado para definir ítens quer de conteúdo ou de método, quer de teoria ou de prática como constitutiva da ciência como um todo, deve apenas reforçar a nossa resolução a este respeito. (...) [Nossos exemplos] devem ser familiares o suficiente para qualquer um que venha para o mundo antigo com as idéias convencionais do século vinte sobre ciência. (...) Há perigos óbvios de anacronismo tão logo nós comecemos a julgar o mundo antigo pelo critério da ciência moderna. (...) Deveríamos nós então abandonar toda essa conversa sobre ciência inteiramente e limitarmos a discussão àquelas amplas categorias da medicina, da matemática, do inquérito sobre a natureza, e de tudo que falamos? Ou deveríamos nos contentar com as categorias antigas, mesmo que mais amplas, tais como sabedoria (sophía) ou mesmo conhecimento (epistéme)? Ambas as soluções sofrem de suas próprias desvantagens. O problema, se nos limitarmos a medicina e a matemática e assim por diante, é que estes estudos tão definidos talvez não dêem conta das interações entre estas áreas. (...) De modo oposto, o uso de tais categorias que abraçam tudo, tais como sabedoria e conhecimento, correm o risco de incluir muito”.

Para Lloyd, fica claro que o estudo de tais fronteiras é necessário, bem como dos métodos, dos objetivos, das práticas e das teorias de que cada conhecimento lançou mão e que, já em meados do século V, não era unânime - mas que a maior dificuldade a ser enfrentada por um pesquisador reside no fato de compreender o quanto cada saber já havia conquistado de específico dentro de um amplo universo onde ainda vigorava um conceito caro ao homem antigo: a sabedoria (sofi/a)7. Algra8 também compartilha da opinião destes comentadores e esclarece que, assim como as atividades destes primeiros filósofos não podem ser rotuladas como filosóficas em nenhum sentido moderno da palavra, tampouco devem ser chamadas de científicas; porém, para fazer justiça ao movimento intelectual que iniciaram e a sua posição na história da Grécia, podemos considerá-los como “proto-cientistas” cujas reflexões sobre a composição física do mundo se davam junto a especulações filosóficas – especulações que, de acordo com Lloyd, contemplavam a sabedoria e que, de acordo com Burkert, procuravam abarcar o mundo como um todo:

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Como Guthrie esclarece (GUTHRIE, vol. II, 1986, p. 457) e como veremos mais adiante, a sabedoria caracterizava o saber típico dos poetas, profetas e figuras semelhantes que tinham acesso direto a fontes sobre-humanas de conhecimento, aos quais boa parte das vezes se reputava poder divino. Ele chama como prova para sua tese o fato de que a doxografia de Pitágoras já admitia que ele foi o primeiro a se chamar de philo-sophós, “amante da sabedoria” e que “nada era sábio, exceto Deus” (Diógenes Laércio, I, 12); e que Demócrito acreditava que os poetas escreviam sob inspiração divina e dominados por um espírito sagrado, sobretudo porque havia uma série de imagens que chegavam aos homens e anunciavam o futuro, das quais o deus eterno não se encontrava apartado (DK. A 75-79 e B 17-18, B 166). Kahn lembra (KAHN, 2009, pp. 260263) que dos quatro fragmentos de Heráclito que se referem ao termo, três deles mencionam uma sabedoria que é única, divina e fora do alcance dos homens, com fortes implicações cosmológicas: os fragmentos D. B 32, B 41 e B 108. 8 ALGRA, 2008, p. 113.

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“a filosofia surge com a tentativa de dizer simplesmente o que é correto igualmente para tudo. (...) Assim, os objetos favoritos destas explicações começam por ser as coisas do céu, metéora, as coisas debaixo da terra e o início, arché, partindo do qual tudo se tornou o que é. (...) A ordem que a realidade parecia começar a pôr em causa vai ser restaurada através de um projeto intelectual global.” 9

Sob este ponto-de-vista, subentende-se que a totalidade da realidade - demarcada por uma moldura que vai desde a altura celeste até a profundidade da terra – deu, ao filósofo desta época, o escopo necessário para enfim poder aferir o que é igualmente correto para tudo. Seria, pois, esta “aferição de caráter universal” aquilo que também caracterizaria a investigação promovida por estes primeiros filósofos, além da sua busca por sabedoria como sustentara Lloyd? Para Long10 que escreveu um capítulo chamado Caracterizar Tudo no livro por ele organizado, sim: “O projeto não é falar de ou explicar literalmente tudo mas o de oferecer uma caracterização de caráter universal, mostrar como é o todo do universo, tomar o todo – o mundo como um todo – como objeto de análise”.

O próprio Jaeger11, ao analisar a Teogonia de Hesíodo, subscreve tal ponto de vista ao afirmar que não há nenhuma razão para duvidar de que esta obra constitui uma das etapas preparatórias da filosofia que estava pronta a emergir e que a sua visão de mundo continha certos elementos para os quais os primeiros filósofos voltaram a sua atenção, tais como a origem a partir da qual tudo foi gerado, bem como o processo através do qual tudo acabou tendo o seu devido lugar. Ademais, ao longo desta gênese, percebe-se nitidamente que a Terra e o Céu acabam tendo um papel privilegiado pois é a partir da união destas duas divindades que se inicia toda uma linhagem importante na estruturação e organização do mundo, de modo que a maior parte dos deuses gerados serão considerados como estando dentro do mundo e não fora. Estariam, pois, sujeitos ao que se poderia chamar de uma lei natural, mesmo estando esta lei representada por um deus entre os demais e não tendo tomado ainda a forma de “um princípio governador de todas as coisas”. Na concepção hesiódica encontra-se, para Jaeger, o gérmen da busca de “um princípio natural único” com que tropeçariam os primeiros filósofos naturais gregos. Tal idéia talvez se apóie no fato de que, tanto Platão12

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BURKERT, 1993, pp. 583-584. LONG, 2008, p. 53. 11 JAEGER, 1998, pp. 19-22. 12 PLATÃO, Crátilo, 402b; Teeteto 152e e 180c/d. 10

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quanto Aristóteles13 disseram – talvez ironicamente - que Homero e Hesíodo foram os pais da filosofia antiga. Seria, pois, a investigação de uma sabedoria e de um princípio que governa o todo da realidade aquilo que demarcaria a especificidade da filosofia emergente? Seria este o propósito da investigação que havia se voltado para “as coisas suspensas no ar e debaixo da terra”, na qual os âmbitos propriamente astronômicos e meteorológicos não se encontravam ainda diferenciados? Afinal, boa parte das vezes, a formação do mundo e de sua estrutura final era explicada em função de fenômenos meteorológicos, ou seja, em função de fenômenos nitidamente físicos e visíveis aos olhos humanos14, de modo que eles eram tomados como o termo de comparação necessário para fazer com que certas coisas distantes no tempo e no espaço se tornassem visíveis e compreensíveis, se transformando portanto num dos termos de uma analogia que era estabelecida, como explica Gomperz15: “Explicar um fenômeno significa mostrar que, mesmo que à primeira vista ele pareça muito pouco familiar, já sob análise ele deixa de ser inteiramente desconhecido uma vez que exiba certas analogias com outro fenômeno, familiar a nós por pertencer a uma experiência comum. E o fenômeno funciona deste modo como uma analogia explicativa, no estilo de um pensamento-padrão. Deste modo, nós podemos dizer que os métodos de explicação adotados pelos mais antigos cientistas gregos consistia quase que exclusivamente no uso de certos pensamentospadrão. Tanto quanto pude ver, os pensamentos-padrão usados por eles eram principalmente em número de quatro: 1) o primeiro destes pode ser designado pelo pensamento-padrão biológico. Isto quer dizer que o fenômeno era considerado ao ser comparado com os processos de crescimento e declínio, com os resultados de uma concepção; 2) o segundo pensamento-padrão pode ser designado por político. O mundo é compreensível na medida em que é semelhante a uma cidade: as regularidades da natureza correspondem às regras que regem a vida civil; 3) o terceiro pensamento-padrão pode ser designado através da criatividade artística. O cientista toma a atitude de um arquiteto que funda uma cidade ou estabelece um templo. Ele considera que determinadas formas, medidas e proporções são requeridas pelas circunstâncias e daí ele imediatamente conclui que os fatos realmente se conformam a estas; 4) Finalmente, há o pensamento-padrão mecânico onde muito frequentemente um fenômeno é compreendido por ser equiparado a um procedimento utilizado no artesanato.”

Gomperz ainda explica que, enquanto na cosmogonia o padrão biológico será utilizado sem reserva, já na cosmologia o padrão político e artístico parece ser o dominante. Já para 13

ARISTÓTELES, Metafísica, 983b-27. Para Burnet, a formação do mundo na escola jônica era demonstrada pela “analogia de um redemoinho na água ou no vento, um di/nh (ou di/noj), e parece-nos que estamos autorizados a encará-la como a doutrina de Anaximandro e de Anaxímenes”. É tendo em mente este vórtice ou redemoinho que se concebia que as coisas mais pesadas na formação do mundo se dirigiram para um centro enquanto as coisas mais leves ocuparam a periferia. BURNET, 1994, pp. 61-62. 15 GOMPERZ, 1943, 165-167. Tradução do autor. 14

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explicar os “paradoxos da natureza”, isto é, os fenômenos irregulares tais como terremotos, tempestades e eclipses, o padrão mecanicista é o que será utilizado para ordenar tais oscilações. Mas em todo e qualquer caso, a analogia será aduzida com a intenção evidente de transmitir convicção, ilustrando um estado alegado de coisas, chegando a ser recomendada como um “método de descoberta” pelo autor do tratado Sobre a Medicina Antiga e a ser referenciada por Heródoto como um “modo de inferência”, como lembra Lloyd16. Algra17 concorda com alguns destes pontos defendidos por Gomperz. Primeiro, que as teorias dos primeiros filósofos eram altamente especulativas: afinal, estes se perguntavam sobre a origem e o processo que gerou o cosmo – coisas que sequer podiam ser observadas clara e diretamente. Segundo, que o recurso utilizado por eles para se obter conhecimento era a analogia: ela funcionava como um modelo explicativo que lançava mão de fenômenos observáveis e familiares para explicar outros – de modo que muitos destes antigos investigadores que poderiam ser tomados exclusivamente como “físicos”, na realidade eram ao mesmo tempo cosmólogos, astrônomos e meteorologistas, demostrando um interesse por todos estes assuntos em conjunto. Kahn18, ao analisar a meteorologia da época, observa que ela era uma expressão alternativa para “a investigação da natureza” e que tal investigação não compunha ainda um tema distinto: ela incluía não só o estudo de fenômenos propriamente meteorológicos mas também de fenômenos que hoje distinguimos e chamamos de geológicos e astronômicos, tais como terremotos e cometas, e isto porque tais domínios eram considerados como fisicamente contínuos19. No entanto, como a investigação empreendida tinha o mesmo escopo e como os princípios e as forças dominantes que estavam em jogo eram aqueles mesmos que se revelavam entre a parte mais superior do céu e as regiões mais profundas da terra, tal situação acabou por gerar uma expressão marcante para se referir a um objeto de estudo que se mostrou como o mesmo: “ta\ mete/wra kai\ ta\ u(po\ gh=j” que significa “acima no ar e abaixo da terra”20. Mas – e isto é o mais importante - como estes antigos investigadores também dirigiram sua atenção para tudo que se encontrava na terra, “as coisas vivas” que aí estavam,

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LLOYD, 1992, p. 417. Os trechos referenciados por este comentador são: Sobre a Medicina Antiga, 22-24 e HERÓDOTO, Histórias, 2, 33. 17 ALGRA, 2008, pp. 110-113. 18 KAHN, 1994, p. 104. 19 O escopo da meteorologia é definido por Aristóteles e abarca o estudo dos cometas, do brilho das estrelas, dos ventos, raios e terremotos. ARISTÓTELES, Meteorológicas, 338a 26. 20 Expressão, aliás, utilizada por Platão na Apologia de Sócrates (23d-5) e pelo autor do tratado Da Medicina Antiga I, 15-21.

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sobretudo o homem, foram abarcados no escopo da pesquisa, de modo que o tratamento dispensado a todos acabou por ser inevitavelmente o mesmo. Desse modo, cabe notar desde já que uma das características fundamentais deste emprendimento intelectual promovido a partir do século VI é a de que ele compreendia, com um único golpe de olhar, tanto os fenômenos físicos quanto os astronômicos, bem como aqueles que se referiam às “coisas vivas” sobre a terra. Divisão e classificação em assuntos tão específicos se desenvolveram somente no curso do tempo, como continua explicando Kahn, quando o volume de conhecimento acumulado impôs necessidade de especialização. Originalmente, existia somente um mundo natural, bem como uma simples ciência da Natureza e, se esta ciência pode sempre ser referida como meteorología, é porque o interesse pelas “coisas do alto” era particularmente aguçado, e os seus resultados de especial importância. A estas observações, ainda acrescenta que: “Talvez nenhuma obra de Aristóteles esteja tão diretamente dependente dos seus predecessores Jônios como está a sua Meteorologica. Páginas inteiras poderiam ter sido escritas por Anaxágoras ou Demócrito. É possível mostrar que todas as teorias meteorológicas da antiguidade representam somente uma pequena variação da doutrina do sexto século de Mileto, e que esta doutrina representa, tal como foi, o coração da antiga visão da natureza, a ligação vital entre o estudo dos céus e daquelas coisas vivas sobre a terra.”21

Poderíamos, pois, aceitar a hipótese de que a meteorologia representasse o coração da antiga visão que se tinha da Natureza, e que ela fora então o objeto de especulação destes primeiros filósofos que se interessaram sobretudo pela ligação vital entre o céu e as coisas vivas sobre a terra? Taub22, apesar de discordar que as teorias meteorológicas da antiguidade apresentassem somente uma pequena variação, como afirma Kahn, concorda que elas compartilhavam de certos temas, tal como, por exemplo, a ligação entre o céu e a terra. Ao longo da sua obra, procura demonstrar que, dada a importância da lavoura na sociedade antiga, o interesse no tempo era uma necessidade, não sendo portanto nem um pouco surpreendente que em muito do que foi escrito sobre o assunto se veja retratado o modo como o homem lidava e respondia ao tempo, a sua crueldade e benignidade. Sua literatura, produzida por alguns dos mais influentes escritores da Antiguidade, se divide, de acordo com Taub, em duas tradições distintas: uma explanação na maior parte das vezes filosófica que procurava descrever as implicações de um mundo governado por certas leis, e outra em grande parte preditiva, associada à observação e ao cômputo dos fenômenos que incluía 21 22

KAHN, 1994, p. 99. Tradução do autor. TAUB, 2003, pp. 2, 5, 8-10.

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eventos astronômicos e até mesmo o comportamento de animais, demonstrando, ambas, o laço vital que liga o céu e a terra. Portanto, a meteorologia não era de interesse somente para lavradores, e nem tão somente utilizada para questões práticas, como salienta Taub. Poetas e filósofos demonstraram grande interesse por ela e usaram o tema para levantar questões importantes sobre a natureza do cosmo: se ele é uma unidade ou não, de que partes afinal se compõe, especulando também as relações existentes entre certos eventos meteorológicos e o divino. Afinal, nos poemas homéricos e hesiódicos, os fenômenos meteorológicos já estavam associados às atividades dos deuses. Muitos destes fenômenos aparecem como personificações ou epifanias de deuses, ou sendo enviados diretamente por Zeus que, algumas vezes, é descrito como um cúmulo de nuvens23. Os poemas homéricos nos dão uma ligeira evidência da relação entre os fenômenos astronômicos e as estações relacionadas à agricultura, bem como o seu significado para os homens: o outono é referido como a hora da estrela conhecida como Cão de Órion, indício de grandes desgraças24; a vinha frutuosa do verão permite que se forme uma cama perfeita de suas folhas, o lugar onde Laertes, pai de Odisseu, sofre a ausência do filho, sendo esta ausência também o motivo pelo qual a sua mãe, Anticléia, morreu, sendo “colhida pelo Fado”25. Entretanto, a ligação entre um calendário baseado em eventos astronômicos e a atividade da agricultura não é bem desenvolvida em Homero - certamente não com a extensão que aparece nos Trabalhos e os Dias de Hesíodo, cuja seção final26 pode ser considerada como o primeiro “almanaque de agricultura” do Ocidente, visto que Zeus aparece concedendo riqueza infinita aos que trabalham de acordo com os eventos celestes. A previsão do tempo, ademais, não era só útil para lavradores como também para médicos, como lembra Taub: o autor do Tratado Hipocrático Ares, Águas e Lugares27 indica já na sua abertura que os médicos devem estar familiarizados com as diferenças entre as estações, não só para saber que mudanças pode se esperar do tempo, como também para prever os efeitos sobre a saúde dos homens. Taub, no entanto, não se aventura a fazer um 23

HOMERO, Odisséia, A 63; E 21; I 67; M 313, 384; N 139, 153; W 477. Ilíada, A 511, 517, 560; D 30; E 764, 888; H 280, 454; Q 38, 469; L 318; X 293, 312, 341. 24 HOMERO, Ilíada, C 29. 25 HOMERO, Odisséia, L 192. 26 HESÍODO, Trabalhos e Dias, 381-617. A edição portuguesa, com tradução de Ana Elias Pinheiro e José Ribeiro Ferreira traz um anexo interessante: um quadro (elaborado com a ajuda do Doutor João Manoel Barros Fernandes, professor de astronomia no departamento de matemática da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra) que associa as passagens em que a obra faz referência à relação entre os eventos celestes com as atividades agrícolas. 27 TRATADOS HIPOCRÁTICOS: Ares, Águas e Lugares, I, 1.

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estudo etimológico do termo μετεωρολογία, mas reconhece que ele pode ter tido significados distintos para os diversos autores antigos que o utilizaram; já Brisson, ao analisar a etimologia do termo e tendo a obra platônica por referência, chega a afirmar que a própria meterorología caracteriza a dimensão filosófica: “O sufixo -ia indica uma qualidade, a de meteorológos, um composto formado, no segundo termo, de lógos, ‘que fala de, que estuda, que se interessa por` e, no primeiro termo, de metéoros. O primeiro termo, que se liga ao verbo aeíro, ‘elevar, soerguer, manter suspenso`, designa, de maneira bem geral, ‘aquilo que se encontra no ar`. Um meteorológos é, portanto, ‘alguém que se interessa pelo que se encontra no ar`. Compreende-se, então, que a meteorología seja indissociável do ouranós, do céu, em sentido amplo... (...) O interesse referente ‘ao que se encontra no ar` deve, entretanto, ultrapassar as aparências sensíveis para atingir as explicações causais que apenas interessam aos filósofos. (...) Subordinando tudo à atividade filosófica considerada como a aquisição libertadora de um saber relativo ao céu, ao que ele contém e mesmo ao que se encontra para além dele, Platão conduz a suas conseqüências últimas uma idéia partilhada pela maioria das pessoas na Grécia antiga: a meteorología caracteriza a dimensão filosófica. (...) Quer se trate de Tales, dos sofistas, de Anaxágoras, de Sócrates, de Platão e dos membros da Academia, a atividade filosófica é caracterizada, para a maioria dos atenienses, desde os séculos V e IV, por ‘um interesse pelo o que se encontra no ar`”28.

Talvez a afirmativa de Brisson seja muito geral e até mesmo precipitada, sobretudo por não ter tido o mesmo cuidado de Taub em supor a diversidade de sentidos que este termo pôde ter na obra de cada um dos autores antigos que o utilizaram, dado que esta “ciência das coisas do alto” já devia enfocar e abordar o todo de que se compõe a Natureza – a phýsis - por perspectivas e sentidos bastante distintos. Desse modo, a análise deste termo, phýsis (fu/sij), se mostra obrigatória, ainda mais se pensarmos que houve uma “descoberta da Natureza” e que isto constitui uma pista fundamental para se compreender o caráter da investigação promovida por estes primeiros filósofos gregos. De acordo com Cornford29, a descoberta da Natureza se refere à descoberta de que todo o mundo que nos cerca é um todo natural - e não em parte natural, em parte “sobrenatural” como se vê, por exemplo, em Homero. A filosofia natural, aliás, tem início quando se compreende isso: que o universo é um todo natural, com comportamentos imutáveis e próprios que estão para além do controle da ação humana. Assim, tão logo o conceito de Natureza é ampliado e passa a incorporar o que até então havia sido o domínio do “sobrenatural”, a concepção de mundo, tal como se manteve ao longo de toda tradição poética, começa a ser abalada: não existe mais, tal como existia antes, um mundo povoado de deuses e entidades acessíveis por meio da prece, do sacrifício e da magia, mas, sim, como 28 29

BRISSON, 2003, pp. 175-176, 180, 184. CORNFORD, 2001, pp. 9, 14-19.

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adverte Burnet30, um mundo povoado de “forças naturais”, cujos atributos passam a ser tomados como divinos (qeo/j) e, boa parte das vezes, recebem os mesmos epítetos com que os deuses eram referenciados: perene (a)gnh/rwj) e imortal (a)qa/natoj). Seria portanto de se imaginar, como adverte Jaeger31, que todos os filósofos antigos que tiveram semelhante ponto de vista haviam lavado as suas mãos perante tudo aquilo que concebemos como “teológico”, confinando-o no reino do imaginário. Aliás, o fato de se chamar a estes novos investigadores de “filósofos naturais” ou “físicos” pode parecer a expressão mesma de uma definição de interesses que eliminaria automaticamente todo interesse por divindades, de modo que, ao confinar a própria inteligência nos limites impostos pela natureza, tais investigadores teriam tomado uma posição que seria francamente não teológica. Mas os testemunhos conservados mostram claramente que esta maneira de interpretar a atitude intelectual dos primeiros filósofos é, como adverte Jaeger, uma falsa modernização. Através da análise da evolução semântica do termo deus (qeo/j) e tendo por referência um fragmento de Anaximandro, este comentador esclarece que: “A expressão o divino não se apresenta simplesmente como o predicado mais aplicado ao primeiro princípio; ao contrário, a substantivação do adjetivo com um pronome neutro mostra que ele se introduz como um conceito independente, de caráter essencialmente religioso e identificado agora com o princípio racional, o Ilimitado. Que esta expressão é de uma importância que faz história na filosofia grega resulta claro pela freqüência com que encontramos expressões semelhantes tanto nos demais pré-socráticos quanto nos filósofos posteriores. Tomando o mundo natural por ponto de partida, desenvolveram todos estes filósofos a idéia de um sumo princípio... e em seguida procedem a afirmar que ele tem que ser o Divino. Até onde se tem podido ver na documentação existente, o conceito do Divino como tal não aparece antes de Anaximandro. Mais tarde, em tempos de Heródoto e dos poetas clássicos, chegará a ser um freqüente substituto da expressão oi( qeoi/ (os deuses), tal como no mesmo período tropeçaremos freqüentemente com o singular o( qeo/j (o deus ou, talvez melhor, simplesmente Deus). Por tudo isto, é superlativamente digno de nota a primeira aparição da expressão o Divino”32.

Kahn faz uma advertência que segue a mesma linha de raciocínio: “A perspectiva racional do mundo não surgiu por mera negação, por ter-se levantado algum véu primitivo com o objetivo de revelar os fatos. Ao longo da história da Grécia, a Natureza se tornou permeável à inteligência somente quando as inescrutáveis personalidades da religião mítica foram repostas por poderes bem definidos e regulares. O selo lingüístico da nova mentalidade é a preferência por 30

BURNET, 1994, pp. 21, 24. JAEGER, 1998, p. 26. 32 JAEGER, 1998, pp. 36-37. Tradução do autor. A primeira aparição do termo o divino (to\ qei=on) se dá na doxografia de Anaximandro (DK. A 15), cujo comentário é de Aristóteles (Física, G 4, 203 b7) e que será analisado no capítulo 1. Vide também os seguintes fragmentos: Empédocles (DK. B 133) e Heráclito (DK. B 86). 31

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formas neutras, no lugar dos animados masculinos e femininos que são a matéria do mito. Os Olímpicos nos forneceram desde então to\ a(/peiron, to\ crew/n, to\ perie/con, to\ qermo/n, ta\ e)nanti/a”33.

Ademais, como acrescenta Jaeger34, a afirmação de Tales de que “tudo esta pleno de deuses”35 aparece empregando o termo qeo/j num sentido um tanto distinto daquele em que até então empregava a maioria dos homens: em contraste com a concepção corrente da natureza dos deuses, o filósofo declara que tudo está pleno deles. Esta afirmação não pode referir-se àqueles deuses de que Homero havia falado. Os deuses de Tales não vivem à parte, em alguma região remota e inacessível, senão que todo este mundo que nos rodeia de modo familiar está repleto de deuses e dos efeitos do seu poder. Assim, ao restringir nosso conhecimento àquilo que encontramos bem diante de nós mesmos, não estamos forçosamente obrigados a abandonar o divino visto que o próprio conhecimento da Natureza nos dota de uma nova fonte para o conhecimento do Divino. Não há mesmo razão alguma para lamentar, por exemplo, que o deus de Anaximandro não seja um deus ao qual se possa rogar, ou que a sua “especulação física” não seja verdadeira religião: afinal, a idéia que desenvolveu sobre o cosmo implica uma recriação da religião em termos de que a idéia de Deus – e de seu governo divino – são tais como se revelam na natureza. Por isso, para Jaeger, a filosofia é, antes de tudo, a suprema etapa de uma nova confiança em si mesmo por parte do homem, por parte da sua atividade racional, frente à qual se encontra vencido um exército selvagem de forças tenebrosas – aquelas mesmas forças divinas de representação meteorológica mencionadas por Taub. Para Jaeger, a visão muito própria que Anaximandro desenvolveu sobre o cosmo assinala “o triunfo do intelecto” sobre todo um mundo de ruídos e poderes informes que ameaçavam a existência humana como um perigo ancestral, num momento mesmo em que a antiga ordem de vida, a ordem feudal e mítica que somente nos é conhecida na primeira fase da cultura grega através da épica homérica e que já havia alcançado seu apogeu, acabou por ruir em pedaços. Por isso, há de se considerar que este novo modo de entender o mundo jamais deixou de interessar-se pelo problema do divino como se tem suposto com freqüência; pelo contrário, aceitou este problema como uma das heranças essenciais do período anterior ao mesmo tempo em que o representou sob forma racional – uma forma ainda muito geral, é claro, sem contudo deixar

33

KAHN, 1994, p. 193. Tradução do autor. Os termos citados em grego significam: o infinito, o necessário, o que envolve e abarca, o quente, o oposto ou contrário. 34 JAEGER, 1998, pp. 23, 27-29, 38, 42. 35 ARISTÓTELES, De Anima, A 5, 411-a7: “pa/nta plh/rh qew=n ei)/nai.”

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de ser radical, constituindo propriamente a forma que viria a caracterizar este movimento conhecido como filosofia natural. Vemos, assim, que esse novo modo de entender o mundo parecia não só compreender - com um único golpe da inteligência – a dimensão cosmológica, física e biológica, mas também a teológica, compondo, todos, o escopo da sabedoria que passou a se buscar e que implicava no conhecimento de um princípio que governava o todo cósmico. Porém, se atentarmos para o fato de que esta sabedoria compunha uma verdadeira “teologia natural”36 que tinha como foco de interesse compreender o governo que exerciam tais forças, perceberemos desde já outras implicações inerentes a estas investigações: elas tinham caráter político. Nadaff37 lembra que estes filósofos concebiam que tanto o universo quanto a humanidade tinham como causa o mesmo processo imanente e ativo na natureza, de modo que o cosmo, os homens e a cidade se encontravam intimamente conectados. Para eles, o universo era composto de forças cuja estrutura unificada acabou por tomar a forma de uma comunidade de adversários vivendo juntos sob a mesma lei, de modo que a ordem natural dos eventos implicava numa norma cuja validade recaía também sobre a ordem social. A ordem natural dos eventos se mostra, portanto, como o paradigma de tais investigações e suas implicações são de ordem tanto política, quanto biológica e teológica. São estas investigações que geraram tratados de cuja maior parte só tomamos conhecimento por comentários e fragmentos e que, por fim, foram intitulados de perí phýseos historía (peri\ fu/sewj i(stori/a), isto é, pesquisa ou inquérito sobre a natureza. Os autores de tais tratados

foram reconhecidos como physikoí (fusikoi/) ou physiologoí (fusiologoi/), ou seja, “aqueles que dissertam sobre a phýsis”, compondo uma tradição que o tempo se encarregou de chamar de Filosofia Natural38. Hadot, no seu Ensaio sobre a História da Idéia de Natureza39, adverte que o sentido da palavra phýsis mudou bastante desde a tradição poética: em seu primeiro emprego, realizado por Homero na Odisséia, ela designava mais o “aspecto” que a coisa tomou em função de um processo; já nos tratados hipocráticos de medicina do século V a.C, a palavra 36

Termo utilizado por Jaeger e de que me aproprio: há “base suficiente para sustentar os direitos da filosofia pré-socrática de modo a considerá-la como teologia natural”. JAEGER, 1998, p. 42. Tradução do autor. 37 NADAFF, 2005, pp. 1-9 e 74-106. 38 Como Kirk & Raven explicam, “os antigos biógrafos e historiadores da filosofia supuseram que todos os PréSocráticos escreveram um ou mais livros... [cujo] título era Sobre a Natureza. Este título foi regularmente atribuído às obras dos pensadores que Aristóteles e os Peripatéticos designaram por filósofos da natureza e não pode ser considerado como necessariamente autêntico em todos os casos”. “O fato de Aristóteles aplicar uma única e rígida análise aos seus predecessores, ao mesmo tempo em que salienta justa e utilmente certas semelhanças entre eles, é também uma fonte de confusão”. KIRK & RAVEN, 2005, PP. 88, 190. 39 HADOT, 2004, pp. 38-39.

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viria a corresponder muitas vezes à constituição física própria de um paciente, aquilo que provém de seu nascimento, ampliando-se pouco a pouco para enfim, com Platão e Aristóteles, designar aquilo que concebemos como a natureza de uma coisa. Já Vlastos lembra que, em Heródoto, a palavra era usada para designar “aquele feixe de características estáveis pelas quais podemos reconhecer essa coisa e antecipar os limites dentro dos quais ela pode agir sobre outras coisas ou receber a ação delas. (...) Assim, é da phýsis de um crocodilo ter um rabo, mas (...) ele pode têlo perdido numa briga ou de qualquer outra maneira. A única coisa certa para Heródoto é que, exceto pela intervenção do sobrenatural, sempre que as coisas interagem, as suas phýseis estabelecem os limites do que pode acontecer”40.

De acordo com Vlastos, a palavra phýsis era usada para designar os limites dentro dos quais tudo podia acontecer – limites que até então eram quebrados pela intervenção divina e que os physiologoí já não reconheciam mais. Afinal, a phýsis, para estes, passa a explicar tudo, ou melhor: ela própria passa a carregar os predicados que até então eram atribuídos aos deuses que não podem mais ser tomados como uma “causa explicativa”. Por isso é que a phýsis se torna, para Vlastos, o termo-chave para compreender a transição de mundo que se opera entre o mundo de Homero e o mundo descoberto pelos physiologoí: um mundo cuja natureza passa a ser regida por uma ordenação a que se deve dar atenção, tal como se encontra formulado neste fragmento do tragediógrafo Eurípides41: “ὄλβιος ὅστις τῆς ἱστορίας ἔσχε μάθησιν, μήτε πολιτῶν ἐπὶ πημοσύνην μήτ' εἰς ἀδίκους πράξεις ὁρμῶν, ἀλλ' ἀθανάτου καθορῶν φύσεως κόσμον ἀγήρων, πῇ τε συνέστη καὶ ὅπῃ καὶ ὅπως. τοῖς δὲ τοιούτοις οὐδέποτ' αἰσχρῶν ἔργων μελέδημα προσίζει”. “Feliz daquele que da investigação recebeu conhecimento, sem instigar o sofrimento dos cidadãos, nem ações injustas; mas, observando a ordenação da sempre-nova natureza imortal, uniu o onde e o como. Para esses, jamais o estudo se aproxima das obras vergonhosas”.

40 41

VLASTOS, 1975, pp. 21-23. EURÍPIDES, fragmento 910. Tradução: BURNET, 2006, p. 27.

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Já Nadaff42 aponta para o fato de que existem, em linhas gerais, quatro interpretações diferentes em relação ao que os filósofos naturais entendiam por phýsis que foram consagradas por comentadores modernos: 1) no sentido de matéria primordial, proposta por Burnet; 2) no sentido de processo, proposta por O. Gigon; 3) no sentido de matéria primordial e processo, proposta por Jaeger; 4) e no sentido de origem, processo e resultado, proposta por Heidel, Kahn, Barnes e ao qual ele adere. Para justificar sua adesão, ele se apoiará em Benveniste e Chantraine, explicando que, no grego antigo, uma ação substantivada e aquilo no que ela resulta podem ser derivados de qualquer tipo de verbo por meio do sufixo –sis e que o sentido geral das palavras assim terminadas é o de “uma noção abstrata de processo concebido como uma realização objetiva” e que, portanto, fu/sij pode ser definida como a completa realização de algo que está se transformando, ou seja, a natureza da coisa tal como é realizada, com todas as suas propriedades. Afinal, o verbo do qual ela deriva, fu/w, vem de uma raiz que indica crescer, produzir, desenvolver, com particular referência ao mundo vegetal, de modo que o termo phýsis só pode significar o processo inteiro de crescimento de uma coisa desde o nascimento até a maturidade. De acordo com Jaeger43, uma visão de mundo racionalista como esta só pode se desenvolver mais amplamente e com mais vigor na Jônia, isto é, no entorno e na periferia de uma Grécia cuja visão de mundo se encontrava profundamente marcada pela poesia e pela tragédia. É para esta região que estes pensadores migraram44 a partir do século V, onde as palavras de Homero e Hesíodo tinham quase o peso de lei e onde a visão de mundo era marcada por um nítido recorte que separava a morada dos deuses (o céu) da morada dos homens (a terra): cenário no qual não só os deuses apareciam intervindo explicitamente na vida humana, mas onde também os homens figuravam oferecendo sacrifícios e preces aos deuses para ganhar os seus favores. Por conseqüência, é nesta Grécia que a investigação empreendida pelos Jônios acaba por soar como um atentado que afrontava as instituições estatais, firmemente alicerçadas no divino: nunca é por demais se lembrar, como o faz Burkert45, de que os deuses bem como tudo o mais que lhes dizia respeito eram veneráveis 42

NADAFF, 2005, pp. 11-21. JAEGER, 1998, p. 129. 44 Vide Anexo 2. 45 BURKERT, 1993, pp. 520-521. 43

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tanto quanto o costume dos antepassados e a lei da cidade o eram, sendo que a todos se devia prestar culto, devoção, respeito e zelo, constituindo aquilo que se denominava eusébeia46. De acordo com Burkert, a eusébeia orientada para a lei – para o nómos - era um dever cívico e por isso o seu contrário, a asébeia47 “atraía a fúria dos deuses sobre toda a comunidade e, consequentemente, era um crime público. Evidentemente, entre a eusébeia e a asébeia existia um vasto domínio intermédio de especulação. Censurar os deuses não era certamente uma atitude piedosa e, contudo, os heróis mais sublimes de Homero faziam-no. (...) A asébeia evidente e condenável só surge na transgressão ativa contra o culto ou o santuário, o sacerdote ou os iniciados, portanto, no caso de pilhagem do templo, de perjúrio, violação do asilo ou do repouso do deus. (...) Quando Protágoras pôs em questão a própria existência dos deuses, surgiu uma nova forma, ainda mais perigosa, de asébeia, o ateísmo teórico. É então enfatizado o theoùs nomízein48 como dever cívico...”49

Portanto, se é em solo religioso que se assentavam os costumes e as leis, compreendese porque a investigação empreendida pelos Jônios acabou soando como um atentado: a eusébeia já não estava mais voltada para o nómos mas, sim, para a phýsis, para uma natureza que passa a ser sacralizada em uma concepção de mundo que até então diferenciava fortemente o céu e a terra. Aliás, esta antítese entre céu e terra, entre superior e inferior era tão elementar que ela própria emergiu na estrutura religiosa dos gregos, como explica Burkert50: de um lado, havia os ritos voltados para a terra e, de outro, aqueles voltados para o céu. Sacrificar em honra dos deuses celestes chamava-se ‘consagrar”, hiereúein (i(ereu/ein.), e sobretudo “fumigar”, thýein (qu/ein), pois o fumo da gordura sobe para o céu, enquanto o sacrifício em honra dos mortos designava-se “devotar”, enagízein (e)nagi/zein), ou “cortar para dentro do fogo”, entémnein (e)nte/mnein.). Aos deuses celestes podia-se sacrificar bois ou ovelhas brancas; aos subterrâneos, bois ou ovelhas pretas. A especificidade da tradição grega consistia, pois, na radicalidade e na conseqüência com que o antagonismo dos domínios dos deuses e dos mortos eram apresentados: “Os deuses são os imortais, athánatoi. Este epíteto transforma-se em definição. (...) Os homens, pelo contrário, estão destinados a morrer, pois são mortais, brotoí, thnetoí. Enquanto vivem, eles dependem dos deuses que lhes dão coisas boas, que os podem socorrer e salvar, mas a fronteira imposta pela morte permanece. (...) Os deuses olímpicos e os mortos não têm nada a ver uns com os outros. Os deuses odeiam a casa 46

eu)se/beia = piedade, veneração, respeito e amor aos deuses, reputação de piedade filial. a)se/beia = impiedade, sacrilégio. 48 Qeou\j nomi/zein = Acreditar nos deuses. 49 BURKERT, 1993, pp. 523-524. 50 BURKERT, 1993, pp. 388-389, 392. 47

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de Hades e mantêm-se afastados. Obviamente este contraste só foi acentuado e aperfeiçoado ao longo da história. (...) A realidade cultual, porém, permaneceu um conglomerado de elementos olímpicos e ctônicos com muitas e sutis gradações. O antagonismo entre o ctônico e o olímpico é uma polaridade em que um não pode existir sem o outro e só adquire o seu sentido pleno através de outro. Superior e inferior, céu e terra, constituem o universo”.51

Mas se o domínio celeste até então correspondia ao domínio divino e se as divindades foram naturalizadas tal como a natureza fora divinizada, é de se notar outra conseqüência deste empreendimento movido pelos filósofos naturais: eliminou-se a diferença e o recorte que até então existia entre o céu e a terra, passando ambos a compor um mesmo domínio - o domínio da natureza recém-descoberta - e a receber o mesmo tratamento investigativo. Para Brague, no entanto, tal empreendimento intelectual teve uma conseqüência de outro porte, assaz interessante: “A distinção entre o céu e a terra simbolizava até então a distinção entre o domínio do que está ao nosso alcance e do que nos domina implacavelmente. A partir deste momento, é a natureza inteira que herda o estatuto do céu. Aquilo que é natural, mesmo que esteja ao nosso alcance, mesmo que o possamos orientar na direção que escolhemos, ou até contrariar os seus efeitos, escapa-nos no que tem de mais fundo, justamente porque conserva uma natureza, um curso que ele segue sem a nossa intervenção e que retomará assim que cessar a nossa ação. (...) O mundo é identificado com o céu... e por assim dizer, absorvido pelo céu. (...) Vemos assim perfilar-se como que um programa: interpretar o mundo a partir do céu e, se assim se pode dizer, uranizar o kosmos”52.

Mas, em qualquer um dos casos, o que se vê é que o estudo da natureza acabou por determinar o estudo do âmbito celeste e, por isso, não é nem um pouco fortuita a relação que boa parte dos physiologoí manteve com “as coisas suspensas no ar”. No entanto, mesmo revelando um profundo interesse por este âmbito, não havia ainda em seus fragmentos uma conceituação clara de todos os elementos de que ele era constituído - não havia ainda uma terminologia unívoca para denominar as partes de que ele se compunha. Pereira53, ao analisar o termo cosmo (ko/smoj), alude a uma possível evolução semântica formada por noções que até então se exprimiam vagamente por ou)rano/j (céu), to\ pa=n (o todo) e to\ o(/lon (o conjunto). Burnet54 chega a observar que não há nenhuma palavra apropriada para exprimir o que os gregos inicialmente chamaram de ou)rano/j e que seria conveniente utilizar a palavra

51

BURKERT, 1993, pp. 392-394. BRAGUE, 1999, pp. 37-38. 53 PEREIRA, 1995, p. 217. 54 BURNET, 1994, p. 34. 52

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mundo para isso; mas, em seguida, lembra que ela não se referia exclusivamente, ou mesmo primordialmente, à Terra, embora a incluísse no conjunto dos corpos celestes. Já Kahn55 esclarece que o termo ou)rano/j não tem uma etimologia convincente e que o seu significado só pode ser apreendido dos vários contextos em que ele foi utilizado. A larga extensão do termo permitiu que ele fosse usado, por exemplo, por Homero com algum exagero, designando em geral tudo o que estava sobre a cabeça dos homens e assinalado por expressões ou ações que indicavam e apontavam para o alto, para o qual inclusive se voltavam as preces humanas56. Neste contexto poético, os epítetos mais freqüentes predicados ao céu são: vasto (eu)ru/j) e estrelado (a)stero/eij)57. Ademais, acrescenta que o contraste polar que se estabelece entre os reinos celeste e terrestre era familiar ao pensamento mítico em outras culturas que também os descreveram como um casal divino cuja união frutuosa levara ao nascimento dos outros deuses e de tudo o que existe, e que este contraste fora enfatizado nas línguas Indo-Européias através de nomes para deus derivados da raiz “céu” e de nomes para homem derivados da raiz “terra”, sendo muito provalmente por conta disso que Hesíodo havia se referido a ou)rano/j como “a firme e eterna base para os deuses bemaventurados”58 e a gai=a como “a firme e eterna base para todos”59. Por isso, quando representado concretamente, o céu serve como um tipo de terra para os deuses que são ou)rani/wnej,

isto

é,

“moradores

do

céu”,

celestes,

enquanto

os

mortais

são

caracteristicamente e)picqo/nioi, “aqueles que pisam sobre a terra”60, ou seja, pedestres. Kahn lembra também que, sob o olhar de Homero, o céu visível não se apresentava como um espaço fechado, visto que este se perdia naquela distante região cuja forma só podia ser discernida por uma imaginação inspirada que, quando procurava retratá-lo, jamais pôde fazê-lo através da imagem de uma abóbada ou de um teto arqueado, e por três razões: primeiro, que não havia na obra do poeta nenhuma palavra para expressar tal arqueamento celeste; segundo, que um teto grego era normalmente plano e, terceiro, que os deuses estariam mais seguros num teto plano do que numa abóbada! Desse modo, o céu só podia ser concebido como estando em um plano paralelo à superfície da terra. Heródoto já devia ter 55

KAHN, 1994, pp. 134-138. HOMERO, Ilíada, A 317, Q 68, O 371, T 254 e Odisséia, A 55, E185, O 330. Vide o mesmo em HESÍODO, Teogonia, 110, 761, 779 e Trabalhos e Dias, 610. 57 HOMERO, Ilíada, D 44, E 769, Q 16, 46, O 371, T 257 e Odisséia, E 169, 185. HESÍODO, Teogonia, 45, 106, 110, 127, 373, 414, 463, 470, 517, 679, 685, 702, 737, 746, 808, 840, 891 e Trabalhos e Dias, 548. 58 HESÍODO, Teogonia, 128. 59 HESÍODO, Teogonia, 117. 60 HESÍODO, Teogonia, 372. 56

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um hemisfério em mente quando falou de “todo círculo do céu”61 mas, aí, talvez ele já se encontrasse sob as sombras dos filósofos naturais. O céu, para Kahn, aparece então frente à mente do poeta como “a contraparte invisível do teto da terra”. A terra dos deuses, culminando no monte Olimpo, parece a terra dos homens reproduzida “num andar superior”, sendo esta a razão para que o céu fosse visto como um tipo de teto. Uma estrutura deste tipo é claramente implicada, aliás, nos pilares de Atlas que “suportam o céu e a terra em ambos os lados”62 tal como colunatas suportam um templo. E é só quando concebido deste modo, como um teto, que o céu pode ser predicado como brônzeo (calko/j) e férreo (si/dhroj)63 pois, para Kahn, esta é sem dúvida uma referência para a grande solidez de um edifício, do edifício celeste, e que Hesíodo teria o mesmo em mente quando chamou o céu de “a firme base”. No entanto, há de se lembrar que o escudo forjado por Hefesto para Aquiles64 é feito de bronze, estanho, ouro e prata, tendo pois imenso brilho, tal como as armaduras dos dois exércitos inimigos que nele são impressos: estes são também reluzentes. Haveria alguma relação entre o brilho típico das armaduras dos antigos heróis épicos - cuja virtude fora cantada pelos poetas - e o brilho que caracterizaria propriamente o céu, tal como Kirk & Raven sugerem65? Se considerarmos duas passagens específicas da Ilíada, é de se notar que o brilho e o esplendor das armas alcançavam o céu brônzeo: “τοῖσι δ’ ἄφαρ πόλεμος γλυκίων γένετ’ ἠὲ νέεσθαι ἐν νηυσὶ γλαφυρῇσι φίλην ἐς πατρίδα γαῖαν. Ἠΰτε πῦρ ἀΐδηλον ἐπιφλέγει ἄσπετον ὕλην οὔρεος ἐν κορυφῇς, ἕκαθεν δέ τε φαίνεται αὐγή, ὣς τῶν ἐρχομένων ἀπὸ χαλκοῦ θεσπεσίοιο αἴγλη παμφανόωσα δι’ αἰθέρος οὐρανὸν ἷκε.” “Para eles todos, realmente, mais doce era entrar nos combates Do que voltar para a pátria querida nas côncavas naves. Tal como o fogo voraz que se ateia em floresta densíssima Pelas cumeadas de um monte, espalhando o fulgor a distância: Do mesmo modo pelo éter o brilho até o Céu alcançava, Das armaduras infindas que, à marcha, ainda mais, esplendiam”.66 “ὣς οἳ μὲν μάρναντο, σιδήρειος δ’ ὀρυμαγδὸς χάλκεον οὐρανὸν ἷκε δι’ αἰθέρος ἀτρυγέτοιο·” “Dessa maneira prosseguem; o estrépito férreo das armas 61

HERÓDOTO, Histórias, I, 131: “to/n ku/klon pa/nta tou= ou)ranou=”. HOMERO, Odisséia, A 52-54 e HESÍODO, Teogonia, 516-520 e 746-748. 63 HOMERO, Ilíada, E 504, P 425 e Odisséia, G 2, O 329, R 564. HESÍODO, Teogonia, 723. 64 HOMERO, Ilíada, S 468-617. 65 KIRK & RAVEN, 2005, p. 3. 66 HOMERO, Ilíada, B 453-458. Tradução: Carlos Alberto Nunes, 2005, p. 57. 62

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Até o céu brônzeo subia, pelo éter vazio e infrutuoso”.67

Tal situação parece indicar então que tanto um elemento da guerra, quanto outro, do céu, compartilham de um mesmo atributo: eles reluzem. Mas tal brilho se torna mais significativo na medida em que se reconhece que, numa sociedade guerreira, a fama ou a glória (κλέος) dos feitos dos heróis era cantada pelos poetas – fama ou glória que alcançava e se perpetuava no céu:

“ἢ ἐμοί, ὅς πέρ οἱ θαλερὸς πόσις εὔχομαι εἶναι. ἀλλ’ ἐφομαρτεῖτον καὶ σπεύδετον ὄφρα λάβωμεν ἀσπίδα Νεστορέην, τῆς νῦν κλέος οὐρανὸν ἵκει.” “Eia, arrancai contra o inimigo, porque consigamos, agora, O áureo broquel de Nestor conquistar, que tem de ouro maciço As braçadeiras; há muito, o alto céu alcançou sua fama.”68

“αὐτὰρ ἐπεὶ πόσιος καὶ ἐδητύος ἐξ ἔρον ἕντο, Μοῦσ’ ἄρ’ ἀοιδὸν ἀνῆκεν ἀειδέμεναι κλέα ἀνδρῶν, οἴμης, τῆς τότ’ ἄρα κλέος οὐρανὸν εὐρὺν ἵκανε,” “Tendo assim, pois, a vontade da fome e da sede saciado a Musa logo o incitou a falar sobre o feito dos homens, gestas de heróis, cuja fama o vasto céu, nesse tempo, atingira,”69

“εἴμ’ Ὀδυσεὺς Λαερτιάδης, ὃς πᾶσι δόλοισιν ἀνθρώποισι μέλω, καί μευ κλέος οὐρανὸν ἵκει.” “Sou de Laertes o filho, Odisseu, conhecido entre os homens por toda a sorte de astúcias; bater foi no céu a minha glória.” 70

Fama ou glória que não recaía e perpetuava somente a ação dos heróis mas, também, qualquer outra ação que demostrasse virtude e nobreza, tal como aparece nesta fala de Odisseu à sua mulher: “ὦ γύναι, οὐκ ἄν τίς σε βροτῶν ἐπ’ ἀπείρονα γαῖαν νεικέοι· ἦ γάρ σευ κλέος οὐρανὸν εὐρὺν ἱκάνει,” “Nobre mulher, nenhum homem te pode lançar qualquer pecha em toda a terra, por ter atingido tua glória o céu vasto...” 71 67

HOMERO, Ilíada, R 424-425. Tradução: Carlos Alberto Nunes, 2005, p. 308. HOMERO, Ilíada, Q 190-192. Tradução: Carlos Alberto Nunes, 2005, p. 224. 69 HOMERO, Odisséia, Q 72-74. Tradução: Carlos Alberto Nunes, 2002, p. 198. 70 HOMERO, Odisséia, L 19-20. Tradução: Carlos Alberto Nunes, 2002, p. 219. 71 HOMERO, Odisséia, T 107-108. Tradução: Carlos Alberto Nunes, 2002, p. 349. 68

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Portanto, os predicados metálicos com que o céu já era referenciado não apontam somente para a solidez e a estabilidade de um edifício cósmico, como acredita Kahn, mas também para o modo como as ações virtuosas humanas brilhavam de modo tão glorioso e perpétuo quanto o brilho característico das armas e do céu, como supõem Kirk & Raven brilho, este, que revela e traduz o quanto de imortal há numa ação humana. Porém, o que é claro, para Kahn, é que o céu homérico designa tanto a região celeste inteira quanto o teto superior que serve como limite para este vasto espaço, e que estes dois sentidos do céu – a periferia externa do universo e o corpo cósmico contido neste limite – concorreram para a sua primeira definição sistemática, feita por Aristóteles em Sobre o Céu, onde o termo ou)rano/j aparece sob sentido triplo: “Εἴπωμεν δὲ πρῶτον τί λέγομεν εἶναι τὸν οὐρανὸν καὶ ποσαχῶς, ἵνα μᾶλλον ἡμῖν δῆλον γένηται τὸ ζητούμενον. Ἕνα μὲν οὖν τρόπον οὐρανὸν λέγομεν τὴν οὐσίαν τὴν τῆς ἐσχάτης τοῦ παντὸς περιφορᾶς, ἢ σῶμα φυσικὸν τὸ ἐν τῇ ἐσχάτῃ περιφορᾷ τοῦ παντός· εἰώθαμεν γὰρ τὸ ἔσχατον καὶ τὸ ἄνω μάλιστα καλεῖν οὐρανόν, ἐν ᾧ καὶ τὸ θεῖον πᾶν ἱδρῦσθαί φαμεν. Ἄλλον δ’ αὖ τρόπον τὸ συνεχὲς σῶμα τῇ ἐσχάτῃ περιφορᾷ τοῦ παντός, ἐν ᾧ σελήνη καὶ ἥλιος καὶ ἔνια τῶν ἄστρων· καὶ γὰρ ταῦτα ἐν τῷ οὐρανῷ εἶναί φαμεν. Ἔτι δ’ἄλλως λέγομεν οὐρανὸν τὸ περιεχόμενον σῶμα ὑπὸ τῆς ἐσχάτης περιφορᾶς· τὸ γὰρ ὅλον καὶ τὸ πᾶν εἰώθαμεν λέγειν οὐρανόν. Τριχῶς δὴ λεγομένου τοῦ οὐρανοῦ...” “Primeiramente, nós devemos explicar o que queremos dizer por céu e em quantos sentidos nós usamos a palavra a fim de esclarecer o objeto de nossa investigação: 1. Em um sentido, nós chamamos de céu a substância da extrema circunferência do todo ou este corpo natural cujo lugar está na circunferência extrema. Nós reconhemos um sentido especial para o termo céu em relação à extremidade ou à região superior que nós tomamos como base de tudo que é divino. 2. Em outro sentido, nós usamos este termo para designar o corpo contínuo à circunferência extrema que contém o sol, a lua e algumas das estrelas; estes, que nós dizemos estar no céu. 3. Contudo, um outro sentido nós damos ao termo para designar todo o corpo incluído dentro da circunferência extrema, desde que nós habitualmente chamamos o todo ou a totalidade de céu. O termo é usado, então, em três sentidos...”72

Mas, entre Homero e Aristóteles - que virá a designar o éter ou o limite extremo do céu como divino e incorruptível73 - há atomistas, pitagóricos, Platão e os chamados filósofos

72

ARISTÓTELES, Sobre o Céu, 278b9-21. Tradução do autor. Para Aristóteles, como salienta Guthrie, os elementos se distinguiam por ter diferentes lugares e movimentos naturais, sendo o lugar natural do éter a circunferência do universo esférico e sendo seu movimento natural circular e não retilíneo como o fogo. Guthrie, vol. I, 1984, p. 259-260. Tal comentador está de olho nas reflexões que o filósofo dá sobre a estrutura celeste em Sobre o Céu, I, 2-4, particularmente no trecho I, 3, 270b 20-24 que diz que os filósofos acreditavam que o primeiro corpo era diferente da terra, do fogo, do ar e da água e que denominaram de éter a este lugar mais alto, chamando-o por este nome porque 73

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naturais, cujos fragmentos e doxagrafia devem ser analisados. Cabe, pois, avaliar suas palavras na expectativa de entender qual o sentido que cada um atribuiu ao céu e que espécie de herança eles deixaram para os filósofos que os sucederam, compreendendo sobretudo:  quais âmbitos – dentre o cosmológico, o teológico e o humano - se mostram particularmente co-pertinentes na obra destes filósofos;  qual o lugar e o papel específico que foi dado ao céu em cada uma dessas obras.

ocorre sempre na eternidade inteira: “Διόπερ ὡς ἑτέρου τινὸς ὄντος τοῦ πρώτου σώματος παρὰ γῆν καὶ πῦρ καἀέρα καὶ ὕδωρ, αἰθέρα προσωνόμασαν τὸν ἀνωτάτω τόπον, ἀπὸ τοῦ θεῖν ἀεὶ τὸν ἀΐδιον χρόνον θέμενοι τὴν ἐπωνυμίαν αὐτῷ”.

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