O SEXO NA ESPIRITUALIDADE SEGUNDO A FILOSOFIA PERENE

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A sexualidade na espiritualidade

O amor físico segundo a Filosofia Perene

Mateus Soares de Azevedo



Há um ponto de vista espiritual e tradicional no âmbito da sexualidade?
Como abordar o amor sexual na perspectiva da Filosofia Perene? Quais então
as diferenças substantivas na abordagem que a religião convencional (ou o
exoterismo), de um lado, e a espiritualidade tradicional (ou o esoterismo),
de outro, fazem da matéria? A sexualidade é uma necessidade ''física''? Ela
serve somente para a procriação, como quer a teologia comum? Ou há uma
dimensão mais profunda no sexo que o torna passível de um entendimento
espiritual?

E o que falar da 'revolução sexual' dos anos 1960, e suas consequências nos
dia de hoje? O que dizer do homossexualismo, do celibato não-compulsório e
da poligamia?

Estas são algumas das questões que nos propomos abordar aqui do ponto de
vista da Filosofia Perene.

*

Dimensão "quase" incontornável da existência, a sexualidade não deve ser
excluída do domínio da espiritualidade. Digo ''quase'' porque nem todo
homem ou mulher é necessariamente obrigado a participar desta dimensão. É
um equívoco a tese de que o sexo é uma ''necessidade física''. Não é. Se
fosse, não teríamos celibatários voluntários, nos dois gêneros, e isso
entre todos os povos e culturas. Até mesmo o Luteranismo, que, no séc. XVI,
rejeitou o celibato sacerdotal – Lutero sustentava que o estado normal de
homens e mulheres é o matrimônio --, tem sua pequena ordem de monjas
protestantes. Digamos, então, que o sexo é uma ''necessidade'' entre aspas,
muito mais psicológica ou afetiva do que estritamente física. Mas, como no
homem as fronteiras entre o físico, o psíquico e o espiritual não são
estanques, nem absolutas, podemos dizer que se trata de uma ''necessidade''
psico-física e espiritual.

Quanto ao mundo católico, que exige compulsoriamente o celibato de seus
sacerdotes e monges, esta prática foi imposta pelo Papa Gregório VII
somente no séc. XI. Ou seja, após mil anos de prática contrária, em que os
padres podiam se casar e constituir família. Mas, o caráter compulsório do
celibato encontrou enorme oposição de padres e muitos fiéis neste momento,
e só pôde ser levado a cabo ao longo dos anos, enfrentando tenaz
resistência em muitos lugares na Europa.

Ademais, o celibato sacerdotal não é um dogma, mas uma disciplina
eclesiástica – algo que pode, portanto, ser modificado. Por outro lado, no
Cristianismo oriental, os padres podem ser casados (bispos e monges são
obrigatoriamente celibatários). E isso não apenas nas Igrejas ortodoxas,
mas até mesmo em igrejas católicas de rito oriental, como a melquita ou a
ucraniana.

A visão da igreja oriental parece ser mais equilibrada e realista. Pois ela
não contribui para separar ainda mais os leigos do mundo religioso -- o
padre casado e sua família se tornam uma espécie de ''ponte'' entre os dois
mundos. Para a sociedade, evidentemente é melhor um bom padre casado do que
um mau padre celibatário.

*

Afinal, "o sexo é um aspecto importante do homem", como notou Frithjof
Schuon num texto fundamental sobre a matéria, no livro O Esoterismo como
Princípio e como Caminho.

Segundo a perspectiva esotérica tradicional, o sexo, dentro dos parâmetros
morais de uma civilização normal, pode ser visto como um ato
"naturalmente sobrenatural", como notou o mesmo Schuon.

"Naturalmente sobrenatural'", mas isso certamente que não segundo a
perspectiva exotérica, que é caracteristicamente penitencial e ascética; e
encara a sexualidade com desconfiança e não tem interesse em compreendê-la
em suas dimensões mais espirituais e profundas.

"No homem primordial, o êxtase sexual coincide com o êxtase espiritual. Ele
comunica ao homem uma experiência de união mística com o Divino, uma
'relembrança' ou reminiscência do Amor divino, do qual o amor humano é um
reflexo distante." (Schuon: O Esoterismo, p. 129)

Em A Metafísica do Sexo, Julius Evola lembra que o amor sexual tem
virtualmente o poder de levar o homem e a mulher para além do ego.

Para o esoterismo, o prazer conjugal e nobre não representa uma queda no
pecado, mas um encontro com o eterno. A união conjugal é uma realidade
positiva. O livro do Gênesis não diz nada que sugira outra coisa. E o
Hinduísmo atribui esta união às próprias divindades, como Schuon lembra.

Nesta perspectiva, o Pecado Original de que fala a Bíblia não é a união
sexual em si, mas é a busca do prazer para e pelo ego, com exclusão do
Sagrado. A concupiscência carnal, um pecado, não é o gozo em si, mas o
desejo de vivê-lo fora do domínio do sagrado. Para a espiritualidade
tradicional, ao contrário, a sexualidade pode ser um suporte de realização
espiritual.

*

Certamente que não estamos falando aqui do mundo moderno, onde a energia
erótica é incessantemente incensada como um meio de "libertação" dos
"grilhões" da moral tradicional. Não estamos falando de pornografia, nem de
"swing de casais", nem de "sexo grupal", ou de ''poliamor'', a última
novidade que nos vem da Califórnia, ou outras formas de idiotia erótica
mais ou menos generalizada no mundo contemporâneo, especialmente como
consequência da "contra-cultura" dos anos 1960.

Contrariamente à perspectiva esotérica, em que o amor sexual tem um
propósito de elevação para uma dimensão mais elevada da Realidade,
perversões modernas rebaixam e destroem o potencial espiritual da
sexualidade. Além disso, mesmo se fosse para fazer uma escolha entre a
perspectiva meramente exotérica e a moderna, é infinitamente preferível
ficar com as limitações da primeira, com seu ''fundamentalismo'' erótico,
do que adotar os erros da segunda, que, de fato, vão no rumo da destruição
do amor físico como algo potencialmente sagrado.

Como Frithjof Schuon notou a respeito disso: "Se o ato sexual é uma espada
de duplo fio, que pode dar origem a consequências escatológicas totalmente
opostas, dependendo das condições objetivas e subjetivas que o acompanham,
ele (o ato) evoca, mutatis mutandis, os sacramentos do Cristianismo, que,
na ausência das condições requeridas, resultam não em graça, mas em
condenação". (O Esoterismo, p. 130)

*

Segundo a visão cristã tradicional, a união conjugal se realiza mediante
um "sacramento", isto é, uma ação sagrada, "um signo visível de uma
realidade invisível", como disse Santo Agostinho.

Em outras palavras, a religião aqui lança suas bênçãos sobre a união
integral, i.e., espiritual, afetiva e física, entre homem e mulher. Isto
significa que o amor sexual em si não é um vício -- desde que opere no
interior de certas regras naturais e morais tradicionais. Lembremos também
que o primeiro milagre público de Jesus, não por acaso, aconteceu numa
festa de casamento, as famosas Bodas de Caná.

Lá, o Verbo feito carne consagrou o matrimônio e, sabiamente "instigado"
pela Virgem Maria (que diz a Jesus que 'eles, os noivos, precisam de
vinho'), transformou água em vinho. Esta transformação de um elemento em
outro apresenta um simbolismo eloquente, pois aponta para a transfiguração
de um vínculo corporal em um vínculo espiritual.

Paradoxalmente, a mesma religião que é comumente vista como ''antissexual''
(e cuja imensa maioria dos teólogos sem dúvida defende a superioridade
moral e religiosa da castidade), a tradição cristã é das poucas a
explicitar abertamente, em sua própria economia religiosa, o caráter
abertamente sacro da união entre homem e mulher.

Em outros termos: a despeito desta visão profunda da sexualidade por parte
da tradição original e integral, que fez do matrimônio entre homem e mulher
um Sacramento, a visão da teologia convencional acerca do potencial sacro
do amor sexual tem sido historicamente limitada, para não dizer negativa.

A teologia convencional encara a sexualidade como algo a ser meramente
tolerado em vista da procriação da espécie. Ainda assim, é a tradição
cristã original que encara a união entre homem e mulher como possuindo em
princípio uma dignidade sacramental. E tal união só é ''consumada'', diz a
própria teologia, se houver contato sexual. Em outras palavras, na tradição
cristã, é o amor sexual que actualiza o Sacramento.

*

No Islã, por sua vez, o Profeta Maomé nos informa em um hadith que "o
matrimônio é metade da religião". Isto significa que, sem a união homem-
mulher, a tradição constituiria apenas ''metade'' do que tem a
possibilidade de ser em sua totalidade. No Islã, ademais, todo prazer
lícito e experimentado em Nome de Deus veicula uma bênção, como nos lembra
Frithjof Schuon. Este prazer nobre possui um valor espiritual, e não está
limitado a uma satisfação meramente física.

Seja como for, mesmo que, em suas dimensões exotéricas ou mais
convencionais, as tradições religiosas em geral expõem uma abordagem
penitencial que desconfia da beleza e do prazer, há, por outro lado,
correntes esotéricas ou místicas que vêem esses fenômenos pelas lentes do
"nobre prazer", constituindo assim uma aproximação ao sagrado, e não um
distanciamento dele.

O aspecto mais profundo do erotismo pode ser vislumbrado sem dificuldade
quando consideramos a tradição hindu. Em um dos mais antigos e veneráveis
Upanishades, o sábio ensina sua consorte:

"Não é por amor ao marido que ele é amado, mas por amor ao Âtmâ que há
nele; não é por amor da esposa que ela é amada, mas pelo amor de Âtmâ que
há ela." (Brihadaranyaka - Upanishad, II, 4: 5).

Âtmâ, como sabemos, é o Absoluto, o Infinito e o Eterno. Âtmâ é o Si
subjacente a ego, que é um com a Realidade Suprema.

Na terminologia das tradições monoteístas, Âtmâ pode ser traduzido como
"Deus", simultaneamente transcendente e imanente. Incluindo tanto o Deus
pessoal como o Sobre-Ser, ou a Essência Divina.

Aqui, o amor humano tem um aspecto mais profundo, e este é que Âtmâ
constitui o verdadeiro objeto e também o sujeito que é buscado no encontro
entre o homem e a mulher.

Pelo amor, homem e mulher buscam o Absoluto, o Infinito e o Eterno, que
estão na interioridade; como a tradição cristã expressa: "O Reino dos Céus
está dentro de vós".

*

Falando pela antiga sabedoria grega, Platão, em seu Banquete, faz
referência ao conceito mitológico do andrógino primordial. Aqui, a alma
primordial e perfeita é representada por uma esfera com duas metades, uma
masculina e outra feminina.

Estas duas metades se separam, ou se dividem e, desde este "momento"
mitológico, buscam sua re-união, re-integração, re-unificação -- pois só
assim podem reencontrar a plenitude e a felicidade perdidas.

Em linguagem do simbolismo cristão, o andrógino primordial é representado
por Adão, quando só ele existia no Éden; antes, portanto, da criação de
Eva.

Vale ressaltar que as duas metades do andrógino platônico não são iguais,
são precisamente dois polos opostos, mas que se integram e se complementam
perfeitamente -- como no símbolo extremo-oriental do Yin-Yang.

Este não é o caso do homossexualismo, onde há dois iguais que não se opõem,
nem se complementam, mas narcisisticamente se espelham. O homossexualismo
constitui a antítese da tese platônica, pois nunca pode produzir a
plenitude ou integralidade do andrógino original, que é constituído de duas
partes diferentes, opostas mas que se complementam.

Em resumo, a oposição complementar entre os polos masculino e o feminino
constitui uma expressão, ou uma manifestação, da polaridade que há no
próprio Princípio Supremo, ou seja, na Divindade suprema, entre o Absoluto
e o Infinito. O homem expressa o primeiro elemento, e a mulher, o segundo.


Na Cabala, o matrimônio humano é uma re-criação simbólica da união entre
Deus e sua Shekinah (a Presença Divina, ou a face feminina de Deus).

O Universo vive desta confrontação complementar entre os dois polos, da
tensão construtiva que há entre eles.

Pois o polo feminino busca no homem sua complementação em termos de
virilidade e inteligência. E o polo masculino busca na mulher a
complementação em termos de beleza, amor e acolhimento.

Em uma palavra, a mulher busca no homem o elemento ativo, a força, a
inteligência, a coragem, a razão. Enquanto a mulher oferece beleza, amor,
ternura, sentimento e emoção.

Princípio ativo, princípio passivo.

Absolutez e Infinitude.

Verdade e Amor.

Discernimento e Misericórdia.

Sol e Lua.

Marte e Vênus.

Matemática e música.

Ciência e arte.

Yang e Yin.

Aqui, falamos de significados arquetípicos, de princípios, e não de
aplicações sociais e concretas, pois claramente há a possibilidade de uma
mulher individual manifestar poder e força viril. Santa Joana D'Arc, por
exemplo, que liderou um exército e motivou o próprio rei da França a sair
de seu torpor para expulsar os invasores ingleses.

Falamos também de realidades que não são estanques, nem de algo que não
comporte flutuações. O Cristianismo tem também as suas "Doutoras da
Igreja", como Sta. Tereza de Ávila e Sta. Catarina de Siena.

O homem, Yang (princípio ativo e viril), busca na mulher o Yin (princípio
passivo e feminino), e vice-versa. E é mediante o abraço erótico que ambos
buscam reconquistar a unidade primordial perdida com a separação em Adão e
Eva, ou das duas metades do andrógino original platônico. Daí o caráter
sacro do matrimônio.

O abraço erótico entre homem e mulher é simbolicamente, dentro de uma
perspectiva esotérica, um ato sagrado, uma ação "naturalmente sobrenatural"
(Schuon).

Isto significa o seguinte: no padrão cristão, isto deve ser realizado
dentro do quadro do matrimônio. No Islã, isto pode se dar dentro da
poligamia tradicional, mas onde cada mulher mantém sua identidade como ser
humano único. No antigo judaísmo, profetas e sábios como Davi e Salomão
tiveram muitas mulheres, assim como, no Hinduísmo, Krishna, um de seus
Avatares. Mas isto estava dentro das possibilidades de então. Coisa que não
existe hoje. Nosso momento no ciclo temporal é bem diferente. Estamos no
Final dos Tempos, na Kali-Yuga. O homem e a mulher de hoje são muito menos
contemplativos; eles dificilmente captam o que Schuon chamou de
"transparência metafísica dos fenômenos"; temos o coração mais endurecido,
somos mais materialistas e superficiais do que o homem de antigamente.

*

Dissemos que o andrógino platônico apresenta duas metades diferentes e
complementares, masculino e feminino, refletindo simbolicamente a
polaridade principial entre o Absoluto e o Infinito, e que a tese gay não
pode ser aplicada a este andrógino, já que ela exibe, exatamente, duas
metades iguais, que portanto não se complementam e não perfazem a plenitude
primordial do andrógino original.

Digamos aqui, então, que o sexo entre iguais é apenas uma das maneiras
pelas quais o mundo moderno anti-sacral confronta a tradição universal.
Pois ele almeja uniformizar, pasteurizar os sexos, eliminando tanto quanto
possível as diferenças entre os gêneros, reduzindo ao máximo a polaridade
masculino-feminino, polaridade esta que dá vida e mantém em movimento o
universo. A uniformização sexual do mundo moderno busca na verdade criar um
sexo híbrido, como notou Mark Perry em The Mystery of Individuality, no
qual o homem é emasculado e a mulher, virilizada.

*
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