O sexto membro permanente: o Brasil e a criação da ONU

June 13, 2017 | Autor: E. Vargas Garcia | Categoria: História da Política Externa Brasileira, Organização das Nações Unidas
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O SEXTO MEMBRO PERMANENTE O BRASIL E A CRIAÇÃO DA ONU

Eugênio Vargas Garcia

2011

O SEXTO MEMBRO PERMANENTE O BRASIL E A CRIAÇÃO DA ONU

Eugênio Vargas Garcia

Ao pequenino Benjamin, que veio fazer mais feliz a família.

Nosso povo, desde ontem, festeja com entusiasmo a vitória comum. Pelas nossas bases milhares de aviões começarão, em breve, a passar em trânsito da Europa para a Ásia. Parece justo o reconhecimento nessa Conferência [de São Francisco] do valor da nossa colaboração e sacrifício, assegurando-nos um lugar permanente no Conselho [de Segurança]. Getúlio Vargas 8 de maio de 1945, Dia da Vitória na Europa

SUMÁRIO Sobre o Autor, vii Abreviaturas, viii Agradecimentos, ix Introdução, 1 Capítulo 1 – Em nome da segurança: as origens da ONU, 6 Planejamento político para o pós-guerra: a paz pela força, 6 Os Quatro Policiais e a tutela dos poderosos, 12 Dumbarton Oaks: quem vai governar o mundo?, 20 Controle e imunidade, 27 Yalta: o toque final, 33 Um sistema de concerto dos vitoriosos, 37 Capítulo 2 – O Brasil entre a guerra e a diplomacia, 40 Getúlio Vargas, o Estado Novo e o conflito global, 40 A Cúpula de Natal, 45 O front diplomático visto do Brasil, 49 A queda de Oswaldo Aranha, 54 Repercussões do projeto de Dumbarton Oaks, 57 Um assento permanente no Conselho de Segurança?, 65 Argumentos e especulações, 72 Capítulo 3 – Globalismo e regionalismo, 81 O Hemisfério Ocidental e a política regional, 81 As relações com Moscou e a missão do secretário de Estado, 86 Chapultepec: a voz dos excluídos, 90 A América Latina e a organização mundial, 97 A questão argentina e os bons ofícios do Brasil, 102 Em defesa do sistema interamericano, 112 Os acordos regionais e a ONU, 118 Capítulo 4 – Na Conferência de São Francisco, 121 Definindo a posição brasileira, 121 Alinhamento com os Estados Unidos, 127

Ainda o assento permanente para o Brasil, 130 Uma questão encerrada, 137 Tentativas de emendar a Carta, 146 Declaração de guerra ao Japão, 159 A batalha do veto no Conselho de Segurança, 162 Um preço muito alto, 167 Capítulo 5 – Após a Carta: a ONU toma forma, 174 O saldo da Conferência, 174 Comissão Preparatória das Nações Unidas, 178 A primeira campanha a um assento não permanente, 183 Vargas cai, a diplomacia continua, 191 O começo: I Assembleia Geral, 195 Terminada a guerra, uma paz executiva?, 202 O aliado desiludido, 205 Conclusão, 210 Arquivos pesquisados, 222 Bibliografia, 227 Anexos, 240 Iconografia, 283

SOBRE O AUTOR

Eugênio Vargas Garcia nasceu em 1967, em Niterói-RJ. É casado e tem dois filhos. Graduou-se como bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e em 1994 concluiu o mestrado em História pela mesma Universidade. Ingressou na carreira diplomática e formou-se em diplomacia pelo Instituto Rio Branco do Ministério das Relações Exteriores. Posteriormente serviu nas embaixadas do Brasil em Londres e na Cidade do México. Foi pesquisador visitante associado junto ao Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford em 1999-2000. Recebeu o título de doutor em História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília em 2001. Foi professor de História Socioeconômica do Brasil no Colégio de Estudos LatinoAmericanos da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) em 2004-2005. Além de se desempenhar como professor titular do Instituto Rio Branco, trabalhou também na Secretaria de Planejamento Diplomático do Itamaraty e foi assessor no Gabinete do Ministro das Relações Exteriores em 2005-2009. Atualmente está lotado na Missão do Brasil junto às Nações Unidas, em Nova York. Foi condecorado com a Ordem de Rio Branco no grau de oficial. Além de diversos artigos em revistas especializadas, no Brasil e no exterior, publicou os seguintes livros: O Brasil e a Liga das Nações (1919-1926): vencer ou não perder (Editora da UFRGS); Cronologia das relações internacionais do Brasil (Contraponto Editora); Entre América e Europa: a política externa brasileira na década de 1920 (Editora UnB/FUNAG); e Diplomacia brasileira e política externa – documentos históricos, 1493-2008 (Contraponto Editora).

E-mail para contato: [email protected]

ABREVIATURAS

AHI AN BIRD BN CDO CFV CHDD CIJ CPDOC CPJI DCD DIP DPD ECOSOC ELC FAO FDR FEB FGV FMI FRUS GRULA GV HA IHGB MRE NARA NA-UK OA OACI OEA OIR OMS OTAN P-5 RVBI TIAR UNCIO UNESCO UNRRA

Arquivo Histórico do Itamaraty, Rio de Janeiro Arquivo Nacional, Rio de Janeiro Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento Biblioteca Nacional Coordenação de Documentação Diplomática, Brasília Arquivo Cyro de Freitas-Valle Centro de História e Documentação Diplomática Corte Internacional de Justiça Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea Corte Permanente de Justiça Internacional Departamento de Comunicações e Documentação Departamento de Imprensa e Propaganda Divisão Política e Diplomática Conselho Econômico e Social das Nações Unidas Coleção Estevão Leitão de Carvalho Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação Franklin Delano Roosevelt Força Expedicionária Brasileira Fundação Getúlio Vargas Fundo Monetário Internacional Papers relating to the Foreign Relations of the United States Grupo latino-americano Arquivo Getúlio Vargas Arquivo Hildebrando Accioly Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Ministério das Relações Exteriores National Archives and Records Administration, EUA The National Archives, Kew, Reino Unido Arquivo Oswaldo Aranha Organização da Aviação Civil Internacional Organização dos Estados Americanos Organização Internacional para os Refugiados Organização Mundial da Saúde Organização do Tratado do Atlântico Norte Os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança Rede Virtual de Bibliotecas do Congresso Nacional Tratado Interamericano de Assistência Recíproca United Nations Conference on International Organization, 1945 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura Administração de Assistência e Reabilitação das Nações Unidas

AGRADECIMENTOS

Todo esforço elaborado de pesquisa histórica implica acumular débitos pessoais que jamais poderão ser quitados da forma como seria mais correto. Gostaria de agradecer em primeiro lugar à direção do Instituto Rio Branco, em particular o embaixador Georges Lamazière, e à banca examinadora do LV Curso de Altos Estudos (CAE), pela oportunidade que me foi dada de apresentar este trabalho, agora revisto e ampliado para sua edição como livro. Sou igualmente grato a César Benjamin e à Contraponto Editora pela renovada parceria em mais esta empreitada acadêmica. Contei sempre com o incentivo de muitos amigos, tanto no Brasil quanto no exterior. Na pessoa das embaixadoras Maria Luiza Ribeiro Viotti e Regina Dunlop, agradeço a ajuda de todos os colegas de trabalho na Missão do Brasil junto às Nações Unidas, em Nova York. Devo muito ao embaixador Celso Amorim, à embaixadora Maria Laura da Rocha e aos colegas e funcionários do Gabinete do Ministro das Relações Exteriores que tanto me auxiliaram na minha última passagem pela Secretaria de Estado, em Brasília, quando este trabalho começou a ser esboçado, nos idos de 2008. Recebi a cooperação dedicada e eficiente dos funcionários dos diversos arquivos e bibliotecas utilizados no decorrer da pesquisa. Foi de grande importância o apoio prestado por Newman Caldeira no Arquivo Histórico do Itamaraty, no Rio de Janeiro, e por Oliver Marshall na busca de documentos dos Arquivos Nacionais britânicos em Kew, Londres. Meu muito obrigado aos atenciosos funcionários da Biblioteca Dag Hammarskjöld, na sede da ONU, e dos arquivos da Biblioteca Presidencial Franklin Delano Roosevelt, em Hyde Park. Sem nunca poder ser exaustivo, registro também meus sinceros agradecimentos a Amado Luiz Cervo, André Vicente Lino de Souza, Andressa Ravanello da Costa, Andrew Hurrell, Antonio Celso Xavier de Oliveira, Antonio de Aguiar Patriota, Antonio Guerra, Carlos Sérgio Sobral Duarte, Célia Regina Carlos Alvarenga, Cláudia Fontana Figueiredo, Colbert Soares Pinto Júnior, Christiana Lamazière, Daniel Nogueira Leitão, Deyse Araujo Medeiros, Éder Soares Pinto, Fernando Abbott Galvão †, Filipe Nasser, Francine Ferraz da Silva, Gelson Fonseca Júnior, Gizelle Paiva Barreto, Henrique Madeira Garcia Alves, Henrique Valle, Jean Gazarian, Jerusa Medeiros Silva Coutinho, João Antônio dos Santos Araújo, João Augusto Costa Vargas, Jerônimo Moscardo de Souza, José Luiz Miranda, Leslie Bethell, Lúcia Teixeira Lemme, Luiz Gomes Jardim, Marcus Gasparian, Maria de Fátima Ferreira Glielmo, Maria Marlene de Souza, Maria Nazareth Farani de Azevedo, Marli de Andrade Costa, Matias Spektor, Monica Sodré da Hora, Newman Caldeira, Norberto Moretti, Olívio Vargas e família, Osvaldo Morais, Oswaldo Fiori, Paulo César Meira de Vasconcellos, Paulo Caruso, Paulo Roberto Tarrisse da Fontoura, Renan Marinho, Ricardo Maschietto Ayrosa, Ronaldo Mota Sardenberg, Samuel Pinheiro Guimarães, Sátiro Nunez e tantos outros que não esquecerei. Meus familiares, parentes, amigos e companheiros de jornada terão sempre um lugar especial em meu coração. A Cristiane, Mila e Benjamin, que preenchem minha vida com seu afeto carinhoso de todos os dias, dedico este trabalho com a esperança de em parte diminuir a minha imensa dívida de gratidão para com todos eles. Nova York, 12 de março de 2011.

INTRODUÇÃO Desta vez não vamos cometer o erro de esperar até o fim da guerra para estabelecer a engrenagem da paz. Desta vez, enquanto lutamos juntos para finalmente vencer a guerra, trabalhamos juntos para evitar que ela aconteça novamente. Franklin D. Roosevelt

A importância da Organização das Nações Unidas (ONU) para a política externa brasileira é inegável. Não havia, porém, um estudo detalhado, do ponto de vista histórico, com recurso a fontes primárias, do papel que o Brasil desempenhou no processo político-diplomático que levou ao estabelecimento das Nações Unidas na fase final da Segunda Guerra Mundial, em particular a adoção da Carta de São Francisco. Este livro tem por objetivo primordial preencher essa lacuna na literatura brasileira sobre relações internacionais e política externa. A ONU continua a ser hoje a mais importante instituição internacional de escopo universal. Decisões tomadas em 1944-45 definiram questões-chave para a organização, que repercutem até o presente. A Carta permanece praticamente igual àquela então adotada. Conhecer as circunstâncias de seu surgimento, portanto, ajuda a compreender melhor o alcance dos dilemas atuais das Nações Unidas. Note-se, de início, que a conjuntura internacional era sui generis. A guerra ainda prosseguia nas duas frentes principais (Europa e Pacífico) quando as conversações sobre a futura ONU começaram efetivamente. Em meio à destruição e à ruína econômica em dezenas de países, o mundo estava em estado de fluxo, marcado por vácuos de poder e possibilidades abertas. A Carta foi assinada em 26 de junho de 1945, antes do advento da era nuclear, antes da Guerra Fria e antes que as divergências entre os Aliados, em particular Estados Unidos e União Soviética, moldassem a política mundial nas décadas seguintes. Internamente, no Brasil, o momento político também era atípico. Ainda que continuasse vigente o Estado Novo instituído pelo presidente Getúlio Vargas desde 1937, o regime autoritário claramente se encontrava em declínio e as pressões por maior liberalização se avolumavam. Novos partidos haviam surgido e o debate sobre a sucessão presidencial dominava a cena política. Enquanto isso, tropas brasileiras combatiam em solo europeu e selavam o engajamento do país no conflito global. Nesses dois cenários, externo e interno, que fugiam à “normalidade”, a criação da ONU parece ter sido uma preocupação secundária para muitos contemporâneos no Brasil de 1945 ou mesmo depois pelos historiadores. No palco de São Francisco, o Brasil não era um ator de primeira grandeza e sua postura discreta na Conferência tampouco atraiu as atenções para a delegação brasileira. Entre a guerra externa e a política doméstica, quem teria olhos e ouvidos para a diplomacia? Não uma guerra qualquer, mas a maior e mais mortífera que a humanidade já conhecera. Não uma situação política trivial, mas uma efervescência que minava fortemente o outrora quase absoluto poder de Vargas e antecipava o fim do regime estadonovista. Por essas e outras razões, a atuação da diplomacia brasileira nesse momento crucial das relações internacionais no século XX não mereceu destaque nas páginas da História do 1

Brasil. Dezenas de estudos trataram da entrada do Brasil na guerra, mas poucos se preocuparam em examinar como o país saiu dela, ou seja, como o Brasil se posicionou nas negociações que definiram pilares fundamentais da ordem mundial do pós-guerra. Referências tradicionais sobre a política externa do Estado Novo (1937-45) percorrem em geral a seguinte sequência: considerações sobre a rivalidade entre os Estados Unidos e a Alemanha nazista no Brasil; o gradual envolvimento brasileiro na Segunda Guerra Mundial após a neutralidade decretada em 1939; a política de “barganha” de Vargas e o alinhamento com os Estados Unidos a partir de 1942; a decisão em 1943 de enviar uma Força Expedicionária Brasileira ao teatro de operações; a participação militar na guerra propriamente dita (ação dos pracinhas na Itália); a crise do Estado Novo e os movimentos em favor da redemocratização; e, por fim, a queda de Vargas em outubro de 1945, passando daí diretamente para o governo Dutra em 1946 e a inserção do Brasil no contexto da Guerra Fria. Nessa visão, aqui obviamente simplificada, o “pós-guerra” começa apenas com Dutra. Muito pouco se sabe sobre o posicionamento do Brasil e a opinião de brasileiros, dentro ou fora do governo, sobre as discussões que precederam a criação da ONU (Conferência de Dumbarton Oaks, agosto-outubro de 1944), agitaram a política hemisférica (Conferência de Chapultepec, fevereiro-março de 1945) e terminaram por influenciar os debates na própria Conferência de São Francisco (abril-junho de 1945). É abundante a produção bibliográfica sobre temas ligados à ONU e às questões da atualidade, tanto no Brasil quanto no exterior. O mesmo não se aplica aos trabalhos eminentemente históricos sobre a organização internacional, ainda que a literatura estrangeira esteja mais bem servida do que a brasileira.1 O historiador Hélio Silva tocou o assunto em seu livro 1944 - O Brasil na guerra, volume XIV de sua série sobre o ciclo de Vargas. Mas, com exceção de um capítulo do livro de memórias de Mário Gibson Barboza e dois ou três artigos esparsos em periódicos nacionais, pouco se conhece sobre a política seguida pelo Brasil em relação à organização que iria substituir a inoperante Liga das Nações. Interessa saber, em última análise, qual era essa política, como foi implementada e que resultados alcançou, situando-a no contexto histórico que lhe era próprio. Deve-se ter em mente desde logo que, a despeito da aceleração do processo de industrialização e da progressiva ascensão das camadas médias urbanas, o Brasil de meados da década de 1940 era um país provinciano, de interesses limitados na arena internacional. Possuía um regime político não democrático, para dizer o mínimo, e uma economia de base agrícola, cujo principal produto de exportação continuava sendo o café. A sociedade era majoritariamente rural, com 28,3 milhões de pessoas vivendo no campo e 12,8 milhões nas cidades.2 Suas Forças Armadas eram modestas e mal aparelhadas. O redemoinho geoestratégico que arrastou o Brasil à guerra encontrou um país relativamente despreparado. A título de exemplo, os dois navios de 1

As obras de caráter historiográfico, analítico ou biográfico de Robert Hilderbrand, Thomas Campbell, Ruth Russell, Townsend Hoopes & Douglas Brinkley, Stephen Schlesinger, Paul Kennedy, Cordell Hull e outros foram úteis para compor um quadro geral das negociações antes e durante a Conferência de São Francisco. No Brasil, as análises de cunho histórico disponíveis são bem mais escassas. 2 Foi somente no censo de 1970 que, pela primeira vez, a população urbana brasileira (52 milhões) superou a rural (41 milhões), chegando-se a uma taxa de urbanização de 56%. Estatísticas históricas do Brasil: séries econômicas, demográficas e sociais de 1550 a 1985. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1987 (Seção 1, Demografia).

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guerra mais potentes da Marinha brasileira eram os encouraçados Minas Gerais e São Paulo, comprados em 1910, que de tão velhos foram fundeados nos portos de Salvador e Recife para servirem de bateria flutuante fixa durante a Segunda Guerra Mundial. Os horizontes da política externa brasileira eram muito estreitos. Vargas pensava que o Brasil tinha um papel meramente local a desempenhar, como potência “americana”, com pouco a fazer no plano extracontinental. Fora da Liga das Nações desde 1926, a diplomacia brasileira dividia seu tempo entre as relações hemisféricas e os tradicionais vínculos com as potências da Europa ocidental. Embora o Brasil estivesse afastado do núcleo das conversações sobre o pósguerra, conduzidas de modo sigiloso entre as nações aliadas que lideravam o esforço bélico, a perspectiva de retornar em melhores condições às altas instâncias multilaterais não deixou de suscitar acompanhamento pelo Itamaraty no Rio de Janeiro e pelas embaixadas brasileiras nas principais capitais do mundo. Na medida em que sua preocupação prioritária com a política interna o permitia, Vargas estava interessado sobretudo na possibilidade de participar, ao lado do presidente Roosevelt, da conferência de paz esperada por muitos uma vez terminada a guerra. Como o Brasil se definiu perante a nova organização mundial em gestação? Para tentar responder a essa pergunta, este trabalho analisa as origens da ONU sob o impacto profundo da guerra no planejamento político interaliado. Será examinada a reação brasileira ao projeto aprovado em Dumbarton Oaks, assim como suas repercussões para o sistema interamericano no bojo de visões conflitantes entre globalismo e regionalismo. Um dos membros fundadores da ONU, o Brasil se fez representar na Conferência de São Francisco com uma delegação chefiada por Pedro Leão Velloso, ministro interino das Relações Exteriores. As posições assumidas pelo governo brasileiro, o trabalho nas comissões, os grandes embates verificados na Conferência e os temas específicos que tiveram colaboração brasileira (como a proposta de emendas e revisão periódica da Carta) são investigados com base na documentação disponível. A possibilidade de que fosse alocado ao Brasil um assento permanente no Conselho de Segurança, por exemplo, será um dos assuntos a serem estudados de forma mais detida. Mesmo ausente de Dumbarton Oaks, o Brasil foi o único país a ser cogitado naquela Conferência como possível detendor de uma sexta cadeira permanente. O Conselho de Segurança representava o elo político mais importante no complexo arranjo discutido e aprovado em São Francisco. A composição, o funcionamento e os poderes do órgão foram as questões mais controversas em toda a deliberação sobre o plano original da Carta, incluindo seus procedimentos de votação (poder de veto). É justo que o tema ocupe lugar de relevo na apreciação que se pretende realizar acerca do estabelecimento da organização encarregada precisamente de manter a paz e a segurança internacionais. Por outro lado, escapa ao alcance deste livro uma análise completa do sistema das Nações Unidas e suas múltiplas agências especializadas, muitas delas criadas na mesma época. O foco do trabalho é a estrutura-núcleo da ONU, tal como se encontra definida na Carta. Do mesmo modo, a abordagem empregada procura adequar-se à natureza do objeto de estudo escolhido. A ONU é uma instituição intergovernamental criada a partir de determinadas ideias e leituras da ordem política mundial, mediadas por uma negociação diplomática complexa entre Estados soberanos. O contexto socioeconômico sem dúvida lhe é importante, mas o entendimento do equilíbrio de forças por trás de sua concepção repousa sobretudo na política, que habita a ONU antes mesmo de sua existência como tal. 3

Inserido no âmbito da disciplina História das Relações Internacionais, este livro foi desenvolvido utilizando-se essencialmente o método histórico, em especial a pesquisa arquivística. Segundo a categorização sistematizada por Jörn Rüsen, os construtos históricos envolvem operações processuais como a heurística (busca, descoberta e classificação das fontes), a crítica dos documentos (teste de validade dos dados empíricos coletados) e a interpretação (síntese narrativa das informações cuja facticidade está garantida). A essas se devem somar operações substanciais ligadas à hermenêutica (critérios teóricos, constituição de sentido e capacidade explicativa), analítica (reconstrução de processos temporais que podem ser compreendidos como especificamente históricos) e dialética (relação de mútua influência entre intenções e condições estruturais do agir humano).3 Na ausência de bibliografia específica em quantidade satisfatória, as fontes documentais representaram o principal instrumento para levar a bom termo a tarefa proposta. Não obstante, no processo de elaboração do conhecimento histórico aqui apresentado, como argumentação e prática discursiva construídas criticamente, o diálogo com a historiografia e as contribuições teóricas foi constante, sempre levando em conta o presente no qual o exercício investigativo está inserido. Afinal, perscrutar o passado é desvelar futuros possíveis. O levantamento bibliográfico se beneficiou do acesso às bibliotecas do Ministério das Relações Exteriores, Instituto Rio Branco, Universidade de Brasília, Senado Federal, Câmara dos Deputados e outras instituições associadas à Rede Virtual de Bibliotecas do Congresso Nacional. Devido à inexistência de atividade parlamentar durante o Estado Novo, não há Mensagens Presidenciais ao Congresso nem Anais da Câmara ou do Senado no período analisado. O Itamaraty não publicou relatórios anuais entre 1945 e 1948. A pesquisa em Brasília incluiu também proveitosas consultas ao Arquivo Histórico (Correspondência Especial e Antecedentes) da Coordenação de Documentação Diplomática do Departamento de Comunicações e Documentação (DCD) do Ministério das Relações Exteriores. No Rio de Janeiro, foram pesquisados no Arquivo Histórico do Itamaraty maços de correspondência de e para Missões diplomáticas em Washington, Londres, Buenos Aires e México (ofícios, despachos, telegramas recebidos e expedidos), além de maços de organismos internacionais, relatórios, informações, memorandos e coleções especiais de interesse para o trabalho, como o Arquivo Hildebrando Accioly, recentemente organizado pelo Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD). Foram visitados os Arquivos Getúlio Vargas, Oswaldo Aranha e Cyro de Freitas-Valle, depositados no Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC). Ainda no Rio, a pesquisa foi complementada com visitas ao Arquivo Nacional (Divisão de Documentação Escrita), Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Coleção Estevão Leitão de Carvalho), Museu da República (Palácio do Catete) e Biblioteca Nacional. No exterior, à parte o material obtido nos Arquivos Nacionais britânicos, em Kew, Reino Unido, foi muito útil a documentação guardada pela própria ONU, em Nova York, incluindo o acervo especializado da Biblioteca Dag Hammarskjöld. A bibliografia utilizada foi bastante enriquecida com recurso às fontes da Biblioteca Pública de Nova York. Também nos Estados Unidos, a Biblioteca Presidencial Franklin Delano Roosevelt, em Hyde Park, forneceu informações relevantes para a pesquisa, entre as quais merece menção a Coleção Berle, que reúne 3

RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado. Brasília: Editora UnB, 2007, p. 118 et seq.

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a correspondência trocada com o Departamento de Estado no período em que Adolf Berle Jr. era o embaixador norte-americano no Rio de Janeiro (1945-46). Os Anexos deste livro trazem textos básicos e documentos selecionados, alguns deles inéditos, que, esperamos, possam servir de referência útil ao leitor. O questionário com 23 perguntas, que as potências menores prepararam em São Francisco sobre o exercício do veto no Conselho de Segurança, raramente é encontrado em inglês e, salvo engano, não havia sido até agora disponibilizado em português para um público mais amplo. As fotos e imagens incluídas no anexo iconográfico igualmente contam, à sua maneira, um pouco da história da participação do Brasil nos primórdios da ONU.

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CAPÍTULO 1 EM NOME DA SEGURANÇA: AS ORIGENS DA ONU

Aqueles que podem ganhar bem uma guerra raramente podem fazer uma boa paz e aqueles que poderiam fazer uma boa paz nunca teriam ganho a guerra. Winston Churchill

Planejamento político para o pós-guerra: a paz pela força A história da organização internacional é tão antiga quanto o próprio surgimento de relações entre comunidades políticas independentes na aurora da civilização humana. Desde muito cedo se colocou a questão de como organizar essas relações e torná-las mais previsíveis, ordenadas e seguras. Normas, costumes, regras e instituições são freqüentemente instrumentos utilizados para agregar elementos de ordem às relações internacionais, o que modernamente também chamamos de governança. No sistema mediterrâneo clássico, por exemplo, dominado pelas cidades-Estado gregas, estruturas como a Liga de Delfos, sob a liderança de Atenas, estabeleciam parâmetros de poder, hegemonia e aliança com influência sobre amplo espaço territorial. Mais tarde, o Império romano consolidou a ideia de paz pelo império universal (Pax Romana), com base na unidade forçada dos povos conquistados. Passado o período medieval, com suas características próprias, o advento do sistema de Estados da Itália renascentista contribuiu para desenvolver uma tradição de pensamento associada a noções de razão de Estado (raison d’Etat) e equilíbrio de poder, tendo como palco principal a Europa. Em 1648, como resultado da Guerra dos Trinta Anos, o princípio da soberania implicitamente ganhou força na Paz de Westfália, graças ao reforço da autoridade dos príncipes sobre seus territórios. A consolidação dos Estados nacionais e o absolutismo ajudaram a personificar a figura do soberano no Leviatã, conforme elaborado por Thomas Hobbes. Outros, contudo, negaram a validade do estado de natureza hobbesiano e seu fatalismo perverso da “guerra de todos contra todos”. O holandês Hugo Grotius defendia a moderação na guerra e teorizou a respeito de uma “sociedade civil de Estados” no plano internacional, com um código de comportamento que os Estados deveriam seguir fazendo uso da razão. O pressuposto básico seria a tese de que a paz e a cooperação interessavam a todos. Na visão grociana, os Estados teriam um interesse auto-esclarecido em colaborar na instituição de normas e regras de convivência.4 4

Cf. KAUPPI, Mark V. & VIOTTI, Paul R. The global philosophers: world politics in Western thought. Nova York: Lexington Books, 1992; BOUCHER, David. Political theories of international relations: from Thucydides to the present. Oxford: Oxford University Press, 1998; KNUTSEN, Torbjorn L. A history of international relations theory. Manchester: Manchester University Press, 1997; WATSON, Adam. A evolução da sociedade internacional: uma análise histórica comparativa. Brasília: Editora UnB, 2004; BROWN, Chris; NARDIN, Terry & RENGGER,

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Em processo de crescente aperfeiçoamento, o direito internacional conferia maior previsibilidade às relações intra-europeias, conduzidas por diplomatas e soldados profissionais segundo critérios bem demarcados. Era uma espécie de “clube de soberanos”, que compartilhavam valores semelhantes e uma cultura comum (la grande république a que se referiu Voltaire), mesmo se engalfinhando em guerras fratricidas com notável regularidade. Alguns pensadores, como o Abade de Saint-Pierre, imaginaram projetos audaciosos para uma paz duradoura, tema sobre o qual Jean-Jacques Rousseau igualmente se debruçou. Immanuel Kant seguiu por essa linha e apelou à razão dos indivíduos, que teriam o potencial de compartir uma ética universal cosmopolita. Segundo ele, as repúblicas, com maior legitimidade, representatividade e transparência, seriam mais pacíficas do que os regimes despóticos e poderiam alcançar a paz se buscassem a união em uma confederação mundial.5 Com efeito, a ideia antiga de uma “paz perpétua” entre os Estados costuma ser lembrada nos estudos sobre tentativas de se criar organizações permanentes ou mecanismos incumbidos de banir a guerra e resolver o “problema da ordem internacional”.6 A pergunta básica que teóricos das relações internacionais se fazem seria a seguinte: na vigência de um mundo de Estados soberanos e independentes, que não reconhecem autoridade superior à sua própria, como prevenir e resolver conflitos? Dito de outro modo: em sistema onde impera a anarquia, entendida como a ausência de poder político centralizado, como é possível estabelecer e manter a ordem? É claro que estas não são as únicas perguntas possíveis. A própria concepção de “ordem política internacional”, se limitada ao universo das relações interestatais, deixa de considerar outros aspectos que uma análise mais complexa exigiria. Aliás, de acordo com a abordagem que se queira escolher, o “problema da ordem” pode ser um falso dilema ou uma questão insolúvel, como sustentam algumas perspectivas críticas e pós-positivistas. Neste livro não se faz qualquer pré-julgamento nem se endossa a priori esta ou aquela escola de pensamento. A leitura que aqui é feita do objeto de estudo (a criação da ONU) obedece sobretudo a critérios historiográficos em relação ao tratamento do tema, admitindo-se que, por princípio e método, outras visões também seriam factíveis.7 Assim, por meio de uma abordagem histórica, pretende-se ressaltar a influência da conjuntura peculiar da Segunda Guerra Mundial sobre o planejamento, a negociação e o Nicholas (eds.). International Relations in political thought: texts from the Ancient Greeks to the First World War. Cambridge: Cambridge University Press, 2002; BULL, Hedley, KINGSBURY, Benedict & ROBERTS, Adam (eds.). Hugo Grotius and international relations. Oxford: Clarendon Press, 1992, passim. 5 KANT, Immanuel. À paz perpétua. São Paulo: L&PM Editores, 1989; SAINT-PIERRE, Abbé de. Projeto para tornar perpétua a paz na Europa, e ROUSSEAU, Jean-Jacques. Rousseau e as relações internacionais, ambos publicados em 2003 pela Editora UnB, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e IPRI. 6 Como introdução ao tema, a título de exemplo, cf. BULL, Hedley. A sociedade anárquica: um estudo da ordem na política mundial (2002) e ROSENAU, James N. & CZEMPIEL, Ernst-Otto (orgs.). Governança sem governo: ordem e transformação na política mundial (2000), publicados pela Editora UnB, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e IPRI; KNUTSEN, Torbjorn L. The rise and fall of world orders. Manchester: Manchester University Press, 1999; SCHWELLER, Randall L. The problem of international order revisited. International Security. Harvard: vol. 26, no 1, Summer 2001, p. 161-186; HURRELL, Andrew. On global order: power, values, and the constitution of international society. Oxford: Oxford University Press, 2007; entre outros na vasta bibliografia sobre teoria das relações internacionais. 7 RENGGER, Nick J. International relations, political theory and the problem of order: beyond international relations theory? Londres: Routledge, 1999, Capítulos 4 e 5.

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estabelecimento da ONU. O cenário estratégico se encontrava em profunda mutação. Os distintos interesses das grandes potências nos arranjos de paz, as vicissitudes da política interaliada e os efeitos produzidos pela guerra sobre os negociadores foram decisivos para moldar a forma que a organização tomou. Conflito global que atingiu proporções épicas, seus números trágicos em perdas humanas são bem conhecidos e não precisam ser repetidos aqui. A guerra produziu o “colapso total da ordem mundial”,8 forçando formuladores de política a refletir sobre falhas cometidas e buscar a refundação das bases sobre as quais essa ordem estaria supostamente assentada. Foi o evento dramático que serviu de pano de fundo para este momento constitucional na história das relações internacionais. De certo modo, momento similar se deu na Primeira Guerra Mundial, que resultou na criação da Liga das Nações, o antecedente imediato e concreto de um intento (fracassado) de garantir a paz e a segurança por meio de uma organização com poderes (limitados) para agir coletivamente na repressão a atos de agressão. A crença liberal da Liga, o primeiro desafio do século XX à ordem westfaliana de Estados soberanos, pretendia “corrigir” as distorções do sistema, eliminando ou controlando a tradicional política de poder, com suas rivalidades interimperialistas, as alianças secretas, a corrida armamentista e a competição econômica desenfreada. Nascida do idealismo institucionalista do imediato pós-guerra, em 1919, a Liga foi uma experiência quase-lockeana de estabelecimento de um novo contrato (Pacto) entre os Estados. Fiava-se, no entanto, mais no voluntarismo do que em um sistema de sanções crível e eficaz. O princípio da segurança coletiva implicava que toda a comunidade internacional devia mobilizar-se para acudir em defesa do país agredido e sustentar a obediência ao Pacto. Essa mesma organização deveria resolver controvérsias de maneira pacífica, promover relações amistosas entre as nações e fortalecer a cooperação nos campos econômico, social, cultural e humanitário. É evidente que essas expectativas extremamente ambiciosas sobre-estimavam a capacidade da Liga de responder à altura. Apesar dos avanços que ajudou a consolidar em determinadas áreas e alguns êxitos em disputas políticas menores, a falência da Liga na sua tarefa mais importante – manter a paz – minou qualquer vestígio de boa vontade que ainda pudesse haver em relação a seu legado como experiência pioneira de organização internacional.9 Em consequência, na discussão sobre o reordenamento mundial que deveria surgir após o fim das hostilidades, a Liga das Nações foi ostensivamente deixada de lado como referência válida, a não ser para uns poucos juristas e antigos colaboradores da instituição genebrina. O esforço de planejamento deveria concentrar-se em uma nova estrutura, apropriada a uma realidade que, se não era talvez tão diferente daquela de 1919, exigia um enfoque mais ousado, decidido, que apresentasse uma solução realmente eficaz para os constantes conflitos internacionais, que inaugurasse um New Deal político, como ocorrera na economia, e que estivesse, enfim, à altura da catástrofe bélica que assolava o mundo. Ironicamente, porém, como será visto, muitas das características da Liga das Nações ganharão espaço nos projetos da futura 8

CLAUDE Jr., Inis L. Swords into plowshares: the problems and progress of international organization. Nova York: Random House, 1984, p. 57. 9 Este não é o lugar para, mais uma vez, elencar as múltiplas causas do malogro da Liga das Nações, tema recorrente na literatura acadêmica, tanto na área de história quanto de relações internacionais. De interesse sobre a matéria são WALTERS, Frank P. A history of the League of Nations. Londres: Oxford University Press, 1952, 2v.; e ARMSTRONG, David, et al. From Versailles to Maastricht: international organization in the twentieth century. Basingstoke: Palgrave, 1996.

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ONU e serão incorporadas à Carta de São Francisco. A continuidade institucional de várias de suas agências também será notória em muitos casos.10 A memória recente das frustrações do entreguerras influenciou significativamente a configuração da nova ordem. Os erros do passado deveriam ser evitados. Um exemplo amiúde evocado era o do artigo 16 do Pacto, relativo às sanções, que previa medidas políticas, econômicas e financeiras em represália contra Estados que recorressem à guerra. Caso a violação do Pacto persistisse, o Conselho podia apenas “recomendar” aos Estados-membros interessados que contribuíssem, com efetivos militares, navais ou aéreos, para as forças armadas destinadas a fazer respeitar os compromissos da Liga. Percebia-se agora como necessário que a ação armada fosse obrigatória e “automática”, com os passos requeridos claramente explicitados. A organização que fosse executar essa tarefa deveria ter “dentes”, isto é, receber os meios adequados para uma dissuasão crível no terreno militar. Mecanismos puramente legais não seriam suficientes para liquidar pendências entre Estados. E para que esse esquema de segurança coletiva funcionasse, a organização precisaria contar entre seus membros com as grandes potências capazes de dar peso e autoridade a suas decisões. Seria preciso, no final das contas, um organismo mais universal do que a Liga das Nações, da qual os Estados Unidos nunca fizeram parte. A Alemanha pertenceu à Liga somente de 1926 a 1933 e a União Soviética ficou ainda menos tempo (de 1934 a 1939). O Japão e a Itália a abandonaram em 1933 e 1937 respectivamente.11 Outra importante lição extraída em Washington foi iniciar cedo o planejamento do pós-guerra. Como afirmou o presidente Franklin Delano Roosevelt: “Desta vez não vamos cometer o erro de esperar até o fim da guerra para estabelecer a estrutura da paz. Desta vez, enquanto lutamos juntos para finalmente vencer a guerra, trabalhamos juntos para evitar que ela aconteça novamente”.12 Já em 1939, os primeiros planos secretos começaram a ser encomendados pelo Departamento de Estado.13 O secretário de Estado norte-americano, Cordell Hull, considerado um internacionalista de inspiração wilsoniana, engajou-se nessa tarefa e vários grupos e comitês foram sendo criados, alguns de curta duração, outros mais consistentes. Leo Pasvolsky, emigrado russo e economista da Instituição Brookings, seria seu assessor especial para os problemas da organização internacional. Nome-chave em todo o processo, Pasvolsky nascera em Pavlogrado, na Rússia imperial. Sua família deixou o país em 1905 para se estabelecer nos EUA. Crítico severo do comunismo soviético, Pasvolsky terá depois participação destacada na formulação, redação e posterior defesa das propostas de Dumbarton Oaks.14 10

Para uma análise comparada, cf. GERBET, Pierre, et al. Les palais de la paix: Société des Nations et Organisation des Nations-Unies. Paris: Éditions Richelieu, 1973. 11 LUARD, Evan. A history of the United Nations: the years of Western domination, 1945-1955 (vol. I). Nova York: St. Martin’s Press, 1982, p. 3-10. 12 Pronunciamento do presidente Roosevelt no Congresso dos EUA sobre a Conferência de Yalta, 1o mar. 1945, Miller Center of Public Affairs, University of Virginia, http://millercenter.org/scripps/archive/speeches/detail/3338, acesso em 20/12/2009. 13 Para a perspectiva do Departamento de Estado, cf. NOTTER, Harley A. Postwar foreign policy preparation, 19391945. Washington: Department of State, 1949. 14 Com base nas notas e documentos de Pasvolsky, sua assessora, Ruth Russell, escreveu um relato minucioso das origens da Carta da ONU. RUSSELL, Ruth B. A history of the United Nations Charter: the role of the United States, 1940-1945. Washington: The Brookings Institution, 1958.

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Os Estados Unidos assumiram a dianteira do processo em parte porque seus aliados estavam ocupados demais para investir tempo e recursos em atividades de planejamento que não fossem voltadas para fins militares imediatos. Por um momento, a Grã-Bretanha travou quase sozinha a guerra contra a Alemanha nazista. A União Soviética suportou uma luta titânica de vida ou morte na frente oriental. Geograficamente distante das zonas de batalha, os EUA não tiveram seu território continental atacado durante o conflito. Aquele era possivelmente o refúgio mais seguro para conferências internacionais e conclaves do gênero. Depois da derrocada inglória da ordem de Versalhes, que o presidente Wilson havia ajudado a construir com zelo missionário, esta era a “segunda chance”, no espaço de uma geração, para que os EUA exercessem de modo decisivo sua influência sobre o rumo dos acontecimentos na cena mundial.15 O presidente Harry Truman escreveria depois em suas memórias: “Roosevelt havia compartilhado comigo sua determinação de evitar a experiência de Woodrow Wilson”, derrotado inapelavelmente pelo Senado norte-americano, que se recusara a ratificar o Tratado de Versalhes. De nada havia adiantado o vaticínio de Wilson de que, “com absoluta certeza”, haveria outra guerra mundial se as nações não se entendessem sobre o método para impedi-la. Um dos modos de fugir do mesmo destino de Wilson seria buscar assegurar com a antecedência devida a participação e o consentimento dos líderes dos dois partidos políticos no Congresso (republicanos e democratas). Segundo Truman, “nós não queríamos correr o risco de outra tragédia da Liga das Nações, com os Estados Unidos colocados de escanteio em isolamento”.16 Além disso, havia o sentido de oportunidade associado à preponderância do poder norte-americano. Os Estados Unidos sairiam da guerra como uma superpotência incontrastável. Em 1945, respondiam por cerca de metade do PIB mundial. Sua economia havia crescido e se recuperado plenamente da depressão dos anos trinta graças ao esforço bélico. Suas reservas em ouro alcançavam quase dois terços do total mundial. Eram de longe o maior exportador de mercadorias e detinham metade do transporte marítimo do mundo. No aspecto militar, controlavam 12,5 milhões de soldados em armas, a maior Marinha em operação e um poder aéreo amparado em mais de 2 mil bombardeiros pesados e outros mil B-29s de grande alcance. Sem contar, evidentemente, com a explosão da primeira bomba atômica e o monopólio nuclear temporário de que os EUA passariam a desfrutar depois de Hiroshima. Essa supremacia extraordinária era ainda amplificada pela relativa debilidade conjuntural dos demais atores, o que tornava o poderio norte-americano “artificialmente alto” em 1945.17 O presidente Roosevelt, tido por muitos como o “pai espiritual” da ONU, tentaria convencer a opinião pública norte-americana de que, desta vez, os Estados Unidos não iriam lutar apenas para salvar a “velha Europa”, como teria sido o caso durante a Primeira Guerra Mundial, na versão preferida dos críticos isolacionistas. A causa seria maior e mais nobre. Em sua mensagem anual ao Congresso, de 6 de janeiro de 1941, Roosevelt enunciou as quatro “liberdades humanas fundamentais” que deveriam formar os alicerces de um mundo mais seguro no futuro: liberdade de opinião e expressão, de religião, das privações e do medo. As duas 15

DIVINE, Robert A. Second chance: the triumph of internationalism in America during World War II. Nova York: Atheneum, 1967; HEARDEN, Patrick J. Architects of globalism: building a new world order during World War II. Fayetteville: University of Arkansas Press, 2002. 16 Apud SCHILD, Georg. The Roosevelt Administration and the United Nations: recreation or rejection of the League experiment? World Affairs. Washington: vol. 158, Summer 1995, p. 26. 17 KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das grandes potências. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1989, p. 343-344.

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primeiras liberdades eram um manifesto antitotalitário, coerente com valores tradicionais da cultura política norte-americana. As duas últimas ligavam a dignidade do indivíduo às condições materiais de sua existência e à sua segurança (seu direito à vida). No plano da política internacional, a liberdade das privações seria alcançada quando todas as nações tivessem uma vida econômica saudável, em qualquer lugar do mundo. A liberdade do medo pressupunha uma “redução de armamentos em nível mundial”, de modo que nenhuma nação pudesse cometer atos de agressão física contra seus vizinhos. Anos depois, essas quatro liberdades seriam incluídas no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que contou com a colaboração de Eleanor Roosevelt, viúva do presidente.18 Embora esse pronunciamento contivesse elementos para pautar princípios básicos de uma instituição multilateral que viesse a ser criada, ainda não estavam dadas naquele ano as circunstâncias para seu amadurecimento. Na Europa, as articulações tinham a guerra como foco. Era prematuro falar nos termos da paz se nem a vitória parecia certa. Em 12 de junho de 1941, representantes da Comunidade Britânica e de nove governos europeus exilados em Londres assinaram a Declaração do Palácio de Saint James, que proclamava a intenção desses países de “trabalhar em conjunto” pela paz, livres da ameaça de agressão. No entanto, nenhuma referência foi feita a uma organização internacional para esse fim. Essa atitude de cautela persistiu na Carta do Atlântico, divulgada pelo presidente Roosevelt e pelo primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, em 14 de agosto de 1941. Os dois líderes defenderam, entre outros pontos, o “abandono do uso da força” por todas as nações do mundo. Para que a paz futura pudesse ser mantida, seria essencial o desarmamento das nações agressoras até o “estabelecimento de um sistema mais amplo e permanente de segurança geral” no pós-guerra.19 Os termos vagos foram propositais. A primeira minuta do documento, redigida pelo lado britânico, fazia menção a uma “organização internacional efetiva” para salvaguardar a paz após vencida a tirania nazista. Essa referência foi considerada inadmissível por Roosevelt pela reação adversa que poderia suscitar em seu país, particularmente no Congresso. Como os Estados Unidos não estavam em guerra naquele momento, o forte sentimento isolacionista ainda existente poderia ser perigosamente açulado caso um compromisso desse tipo fosse assumido por seu presidente.20 Esse impedimento seria enfim superado na esteira do ataque japonês a Pearl Harbor, que provocou a entrada dos Estados Unidos no conflito, em 7 de dezembro de 1941. Hitler também contribuiu com sua parcela de insanidade para arrastar os norte-americanos à frente europeia declarando guerra aos EUA dias depois, talvez na vã expectativa de que o Japão entrasse ao lado da Alemanha na guerra contra a União Soviética. Em 1o de janeiro de 1942, a Declaração das Nações Unidas foi assinada, em Washington, pelos países aliados contra o Eixo. Antecipando o procedimento que se tornaria padrão em reuniões subsequentes, EUA, Grã-Bretanha, URSS e China firmaram primeiro o texto. Os outros 22 países signatários manifestaram depois sua concordância.21 A declaração 18

A mensagem de 1941 está na página da Biblioteca Presidencial de FDR: www.fdrlibrary.marist.edu/4free.html. HARTMANN, Frederick H. (ed.). Basic documents of international relations. Nova York: McGraw-Hill, 1951, p. 139-140. 20 HUGHES, E. J. Winston Churchill and the formation of the United Nations Organization. Journal of Contemporary History. Londres: vol. 9, no 4, October 1974, p. 180. 21 O Brasil aderiu à Declaração das Nações Unidas em 1943 (cf. Capítulo 2). 19

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formalizava a aliança de guerra, cujo nome passaria a ser oficialmente “Nações Unidas”. Os Aliados prometiam ajudar-se mutuamente, com o pleno emprego de seus recursos militares e econômicos, na luta pelo triunfo contra o hitlerismo. Ainda que endossasse os princípios da Carta do Atlântico, o curto texto não tratou de questões relacionadas com a paz, a não ser o compromisso assumido pelos membros da aliança de não celebrar um armistício separado com os inimigos.22 Será a partir de 1943, com a evolução da guerra a favor dos Aliados, que o tema da organização internacional começará a ganhar contornos mais precisos. Os Quatro Policiais e a tutela dos poderosos A ONU naturalmente não surgiu de início como um projeto acabado. Na fase inicial de planejamento, seus proponentes testaram várias possibilidades antes de lhes dar uma formatação mais sistemática. Diferentes esboços iam sendo analisados, debatidos e muitas vezes descartados. No nível mais alto, essas propostas procuravam traduzir concepções políticas e interesses estratégicos que não necessariamente eram coincidentes entre as principais potências aliadas. Entre outras fórmulas aventadas na época, Roosevelt acalentava a ideia de implantar um sistema chamado por ele de “tutela dos poderosos”.23 Os mecanismos de consenso e participação universal da Liga das Nações não teriam funcionado. Era preciso lançar mão de expedientes mais drásticos. Em seu discurso de 1944 sobre o Estado da União, Roosevelt sublinhou que o propósito supremo das Nações Unidas podia ser expresso em uma única palavra: segurança. Nas “condições atuais do mundo”, evidenciadas pelas ações da Alemanha, Itália e Japão, disse o presidente norte-americano, não poderia haver dúvida de que era tão necessário ter “controle militar” sobre os perturbadores da paz quanto seria ter “controle policial sobre os cidadãos de qualquer comunidade”.24 Para Roosevelt, as potências menores não tinham defesa contra ameaças de países mais fortes. Cedo ou tarde, os Aliados venceriam a guerra e os Três Grandes seriam, indiscutivelmente, as maiores potências militares no pós-guerra. Os países do Eixo seriam desarmados. Com a oportuna adesão da China, não haveria, portanto, oposição real à vigilância dos Quatro Policiais por um bom tempo. A proteção aos mais fracos ficaria garantida. No limite, melhor seria se as potências menores fossem também desarmadas, já que para elas seria inútil gastar seus parcos recursos em exércitos ineficazes. Roosevelt estava convencido de que o “poder de polícia” deveria residir nas mãos de umas poucas nações poderosas para que vigiassem o mundo em nome dos membros menos aquinhoados da comunidade internacional.25 22

HARTMANN. op. cit. p. 143-144. Tradução da expressão em inglês usada por Roosevelt: trusteeship of the powerful. HOOPES, Townsend & BRINKLEY, Douglas. FDR and the creation of the U.N. New Haven: Yale University Press, 1997, p. 46. 24 PIMENTEL, J. F. de Barros. The international police: the use of force in the structure of peace. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944, p. 27-28. 25 RUSSELL. A history of the United Nations Charter. op. cit. p. 96; Encontro entre FDR e Molotov, Washington, 29 maio 1942, Foreign relations of the United States [FRUS], 1942, vol. III. Washington: Department of State, Government Printing Office, 1961, p. 568-569; Conversa entre FDR e Clark Eichelberger, Washington, 13 nov. 1942, FDR Papers, President’s Secretary’s File, Box 168, United Nations, 1942-45. 23

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No entanto, ciente de que a opinião pública norte-americana poderia ver com restrições o envolvimento dos Estados Unidos em número excessivo de ações de imposição da paz ao redor do globo, Roosevelt concebeu um agrupamento restrito de potências que, unidas, dividiriam a responsabilidade pela segurança em suas respectivas regiões. Assim, seria teoricamente mais fácil inibir futuras agressões, em particular aquelas oriundas dos ex-inimigos. Na Europa, a Grã-Bretanha e a União Soviética conteriam a Alemanha. Na Ásia, a China atuaria como contrapeso ao Japão, com apoio norte-americano se necessário. O Império Britânico também seria de ajuda em áreas como o subcontinente indiano ou o Sudeste asiático. A África, quase toda sob controle das potências coloniais europeias, não representava uma preocupação estratégica. O Hemisfério Ocidental tampouco era um problema, pois ali o “poder de polícia internacional” norte-americano era dado como fato. Esta era então a rationale fundamental dos Quatro Policiais: dividir o ônus militar que poderia recair sobre os Estados Unidos em diferentes teatros de operação. No Oriente Médio, Roosevelt chegou a cogitar a escolha de um “Estado muçulmano” para membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, mas a ideia não prosperou. O eventual papel do Brasil nesse esquema será analisado no Capítulo 2. É interessante explorar um pouco mais o alcance simbólico da analogia do Policial. Internamente, no âmbito dos Estados, as forças de segurança pública representam uma autoridade constituída (o governo) e detêm poderes para prender indivíduos, fazer com que a lei seja cumprida e manter a ordem social em benefício da comunidade. Como pregam muitas corporações, a polícia existiria “para servir e proteger”. Ao recorrer a essa imagem e transpô-la à esfera internacional, fica implícita a noção de que o “serviço” a ser prestado pelos Quatro Policiais (a “proteção”) é para o bem de todos. Seria uma questão de utilidade pública. Na falta de uma autoridade que desse a esses países as credenciais para agir em nome dos demais, a ONU deveria desempenhar esse papel de legitimação e fornecer o mandato necessário, a partir de uma base legal livremente acordada. Essa premissa de “delegação de poderes” ganharia forma concreta na Carta da ONU. Seu artigo 24, que trata das funções e atribuições do Conselho de Segurança, estabelece que “a fim de assegurar pronta e eficaz ação por parte das Nações Unidas, seus Membros conferem ao Conselho de Segurança a principal responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacionais e concordam em que no cumprimento dos deveres impostos por essa responsabilidade o Conselho de Segurança aja em nome deles”. Todo o edifício da paz, por conseguinte, repousaria sobre a desejada chancela da ONU aos Policiais, daí seu empenho em obter a concordância e o engajamento dos países menores. A aposta implicava que ter um sistema global de segurança referendado pela maioria dos Estados era melhor que nenhum. Claro está que o exercício do “poder de polícia”, sem haver sido autorizado por qualquer autoridade que o legitime, poderia em tese ser arvorado por um Estado. Neste caso, porém, estaria sujeito a contestação pelos outros Estados e ser considerado ilegal à luz do direito internacional – como de fato é. Na realidade, não seria mais propriamente um policial (agindo em nome da comunidade internacional e com autorização desta, via ONU), mas sim um justiceiro privado (agindo em seu próprio nome, sem mandato conferido por uma instância representativa). Sumner Welles, subsecretário de Estado, inclinava-se pelo regionalismo e, talvez por isso mesmo, costumava ser ouvido por Roosevelt, de quem era amigo pessoal. Particularmente ativo no planejamento do pós-guerra, Welles preparou, em junho de 1943, a minuta de Carta de uma “ONU preliminar” com um forte caráter regional, inspirada no conceito dos Quatro Policiais. Cada grande potência teria responsabilidades maiores em sua região. Haveria um 13

Comitê Executivo integrado apenas pelos Quatro Grandes, juntamente com um Conselho de onze membros com quatro assentos permanentes (de novo os Policiais) e representantes eleitos das Américas e Europa (dois cada um), Ásia e Oriente Médio (um cada um), além de um Domínio britânico. A diferença mais importante entre os dois órgãos era que o Comitê Executivo teria poder de coerção para aplicar sanções militares e fazer valer suas decisões, detendo a primazia sobre o Conselho nessa matéria.26 Hull e Pasvolsky, ao contrário, preferiam uma entidade global mais centralizada, com uma estrutura unitária, que tivesse precedência sobre organismos e associações regionais. Roosevelt parecia oscilar entre as abordagens regionalista e globalista, embora naquele momento simpatizasse mais com a primeira. O hiato entre os dois campos evoluiu em alguns meses para uma ruptura interburocrática. Em agosto de 1943, Hull conseguiu se impor e forçou a demissão de Welles do Departamento de Estado. Para seu cargo seria chamado Edward Stettinius Jr., executivo de 44 anos, que acumulara experiências empresariais na General Motors e na US Steel e era até então o responsável no governo pela administração do programa de Empréstimo e Arrendamento.27 Pasvolsky iniciou os trabalhos para a consolidação de nova minuta de Carta, a ser oportunamente submetida ao presidente. Uma questão de princípio, entretanto, não estava em disputa no pensamento dominante em Washington: para dar expressão concreta à desejada unanimidade entre as grandes potências, estas deveriam estar representadas de forma permanente no órgão máximo da organização e deter poderes compatíveis com sua posição singular no sistema internacional. A diferença básica entre a nova organização e a Liga das Nações, dizia um documento com comentários da equipe de pesquisa do Departamento de Estado, era o fato de que a formulação proposta daria às maiores potências “responsabilidade excepcional e imediata pela segurança” e, para esse fim, deveriam possuir “preponderância permanente” na composição do órgão e “controle do voto do Conselho”.28 Nesse ínterim, Hull viajou a Moscou para uma conferência com os ministros das Relações Exteriores da Grã-Bretanha, Anthony Eden, e da União Soviética, Viacheslav Molotov, aos quais se somou ao final, em atendimento aos reiterados pedidos norte-americanos, o embaixador da China nacionalista na capital russa. Foi uma oportunidade para aquilatar o nível de coordenação que se podia atingir, por exemplo, na política para a Itália e a Áustria, bem como em relação a atrocidades cometidas pelas forças alemãs. Ao término da reunião, em 30 de outubro de 1943, os quatro países reconheceram “a necessidade de estabelecer na data praticável mais próxima uma organização internacional geral, baseada no princípio da igualdade soberana de todos os Estados ‘amantes da paz’, e aberta à participação de todos esses Estados, grandes ou

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NOTTER. Postwar foreign policy preparation, 1939-1945. op. cit. p. 472-483. As diferenças entre Hull e Welles iam além do campo intelectual e se transformaram em rixa pessoal. SCHLESINGER, Stephen C. Act of creation: the founding of the United Nations. Cambridge, MA: Westview Press, 2003, p. 38-44; CAMPBELL, Thomas M. Masquerade peace: America’s UN policy, 1944-1945. Tallahassee: Florida State University Press, 1973, p. 8. 28 LUCK, Edward. A Council for all seasons: the creation of the Security Council and its relevance today. In LOWE, Vaughan, et al. (ed.). The United Nations Security Council and war: the evolution of thought and practice since 1945. Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 74. 27

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pequenos, para a manutenção da paz e da segurança internacionais”.29 A China, diga-se de passagem, cuja inclusão entre os signatários do documento havia sido decorrência das pressões de Washington, não participou das discussões sobre questões europeias na reunião, reservadas a EUA, Grã-Bretanha e URSS. A Declaração de Moscou representou um êxito para Hull, que via suas ideias internacionalistas ganharem mais força. Não obstante, à parte o idealismo contido nas declarações públicas e formais dos Aliados, nada de concreto se encontrava definido até então. Também na Grã-Bretanha algumas proposições vinham sendo ventiladas. Como ficaria claro ao longo de 1943, o pensamento de Churchill sobre o desenho do pós-guerra estava centrado em uma perspectiva regionalista. O primeiro-ministro britânico defendia o estabelecimento de três Conselhos: um da Europa, um da Ásia e um das Américas. Esses órgãos deveriam funcionar sob uma instituição internacional que teria como sua maior autoridade um Conselho Supremo Mundial, integrado pelas grandes potências e encarregado de zelar globalmente pela segurança. Esse esquema de Conselhos regionais evitaria que cada potência se imiscuísse demasiado nos assuntos das outras. Seria também conveniente para atender aos interesses britânicos na Europa e, sem desprezar eventuais benefícios de uma organização de escopo global, não implicava de imediato compromissos de engajamento coercitivo urbi et orbi que a Grã-Bretanha teria dificuldade para cumprir. Para Churchill, o regionalismo era a alternativa mais “realista”, posto que, na sua visão, somente os países cujos interesses diretos fossem afetados teriam disposição para interporse “com energia” na resolução de uma controvérsia. Um exemplo que o próprio Churchill testemunhara havia sido a invasão japonesa da Manchúria, em 1931. A incapacidade da Liga das Nações de reagir vigorosamente foi, em grande medida, reflexo da relutância da Grã-Bretanha e da França em envolver-se naquele longínquo imbróglio asiático. Mais uma vez, como o Pacto se limitava a “recomendar” que os Estados-membros tomassem para si a responsabilidade da segurança coletiva, estes não se sentiam obrigados a “lutar as guerras dos outros”.30 É certo que, pressionado pelas exigências que a guerra lhe impunha, Churchill tinha pouco tempo (e interesse) em aprofundar suas propostas para um futuro que, do ponto de vista da sobrevivência da Grã-Bretanha, parecia algo distante e não prioritário. Muito mais urgente era assegurar que os Estados Unidos estivessem firmemente do lado britânico, durante e depois da guerra. Para Churchill, a aliança transatlântica e a organização internacional eram complementares: a primeira garantiria o apoio de Washington no plano bilateral e a segunda seria o caminho para “amarrar” os EUA na participação da futura ordem mundial, sobretudo no continente europeu. O proposto Conselho da Europa deveria contar com a presença norteamericana. O problema era tornar a ideia palatável aos isolacionistas, que poderiam argumentar contra envolvimento tão explícito em foro regional não hemisférico. Ênfase excessiva de Londres na entente transatlântica também poderia despertar suspeitas na URSS de um conluio ocidental contra Moscou, algo que convinha evitar, pelo menos enquanto durasse a guerra.31 29

Para o texto completo da Declaração de Moscou das quatro nações, veja-se a página do Projeto Avalon da Escola de Direito de Yale: http://avalon.law.yale.edu/wwii/moscow.asp. 30 HUGHES. Winston Churchill and the formation of the United Nations Organization. op. cit. p. 185-187; KENNEDY, Paul. The parliament of man: the past, present and future of the United Nations. Nova York: Vintage Books, 2007, p. 19; LUARD. A history of the United Nations. vol. I, op. cit. p. 19. 31 HUGHES. op. cit. p. 188.

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Ao contrário de Churchill, o Foreign Office tinha preferência por um enfoque universalista e desenvolveu propostas para a organização mundial mais próximas à visão norteamericana representada por Hull, incluindo a incorporação da China como um dos Quatro Grandes, ponto considerado de suma importância por Washington. Isso não demoveu o obstinado líder do número 10 de Downing Street. Para alcançar seus objetivos, Churchill estava pronto a fazer concessões, mais por necessidade do que por opção. A vitória que se anunciava próxima não podia esconder totalmente a realidade do declínio do poder britânico. Exaurida pela guerra, a Grã-Bretanha se encontrava dependente econômica e financeiramente dos Estados Unidos. Sua mobilização militar foi considerável e eram prova disso seus elevados gastos com defesa (mais do que o dobro da URSS). Em 1945, ainda detinha mais de mil navios de guerra e a segunda força aérea do mundo. Mas sua base industrial estava debilitada e suas reservas em ouro e dólar esgotadas. O tamanho de sua economia viu-se reduzido a apenas um quinto do PIB norteamericano. O déficit gigantesco no comércio exterior deixava exposto o limite da sua capacidade de produzir para exportar, assim como sua alarmante dependência de importações essenciais. A Grã-Bretanha cada vez mais se fiava na vasta extensão do Império Britânico para sustentar sua política global e poderia ir à falência se não contasse com os empréstimos de Wall Street.32 No caso da União Soviética, há menos informações disponíveis sobre o tipo de planejamento que teria sido conduzido. Desde a Revolução Russa de 1917, que motivara intervenções estrangeiras contra o regime bolchevique, agravara-se a tradicional suspicácia russa do exterior, alimentada por uma sensação de isolamento e cerco permanente. Sob a mão forte de Joseph Stalin, a política econômica planificada da União Soviética perseguiu a autossuficiência, em conformidade com a diretriz do “socialismo em um só país”. Era preciso primeiro fortalecer a Mãe Rússia e, somente depois, cuidar da revolução mundial. Nas discussões sobre o pós-guerra, a experiência soviética recente não representava estímulo (talvez fosse exatamente o contrário) a um comprometimento inequívoco com a nova organização mundial. O país ingressara tardiamente na Liga das Nações, em 1934. Seria depois humilhado com sua expulsão de Genebra no final de 1939, como retaliação pelo ataque soviético contra a neutra Finlândia. O episódio reforçou a profunda desconfiança em relação a instituições multilaterais que, vistas de Moscou, acobertavam coalizões capitalistas hostis que nada poderiam trazer de benefício. A União Soviética devia seguir novamente seu curso solitário.33 A Segunda Guerra Mundial não alterou essa linha básica de conduta. Hitler, porém, ao repudiar sem aviso prévio o escandaloso Pacto Ribbentrop-Molotov e ordenar a Operação Barbarossa, em junho de 1941, encarregou-se de colocar a União Soviética no mesmo campo das potências ocidentais e assim uni-las no objetivo de derrotar o inimigo comum. Nesse contexto, a prioridade número um de Stalin era a segurança nacional. A ONU deveria servir a esse propósito ou não faria sentido algum. Atenta acima de tudo ao seu autointeresse, a URSS deixaria aos norte-americanos a missão de “salvar o mundo”.

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KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das grandes potências. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1989, p. 351-353; IKENBERRY, G. John. After victory: institutions, strategic restraint, and the rebuilding of order after major wars. Princeton: Princeton University Press, 2001, p. 167-168 e 279. 33 DALLIN, Alexander. The Soviet Union at the United Nations: an inquiry into Soviet motives and objectives. Nova York: Frederick A. Praeger, 1962, p. 13-25.

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A Europa Oriental era peça-chave na estratégia soviética de erguer um cinturão defensivo por meio de governos “amigáveis” nas suas fronteiras. Apesar do desgaste das duras campanhas contra a Alemanha, dos milhões de mortos entre militares e civis e da desorganização econômica que atingiu o país, a União Soviética se fortaleceu na “Grande Guerra Patriótica” como potência militar de primeira grandeza. O Exército Vermelho era a maior força terrestre convencional na Europa, com algumas centenas de divisões e milhares de tanques. A influência de Moscou se estendia ao Extremo Oriente, reforçada após a ocupação, em 1945, da Manchúria, Coreia do Norte e ilhas Sacalina e Kurilas.34 Em matéria de manutenção da paz e da segurança internacionais, o poder de barganha de que Stalin desfrutava não podia ser ignorado. E esse poder seria usado na mesa de negociação para que a Carta a ser adotada reconhecesse a posição diferenciada das grandes potências vencedoras – a URSS entre elas. Isso significaria reconhecer os “direitos especiais” dessas potências de manter intacta sua liberdade de ação como Estados soberanos “mais iguais do que os outros” e, ao mesmo tempo, influir decisivamente no formato que a futura ONU deveria tomar. Menos de dois meses depois da Conferência de Moscou, os líderes dos Três Grandes se encontraram pela primeira vez, em Teerã, para discutir a condução da guerra. Um dos principais acordos alcançados, que os soviéticos há muito ansiavam, foi o compromisso anglonorte-americano de abrir em breve uma segunda frente na Europa Ocidental. Era a promessa de executar a Operação Overlord, nome código do desembarque aliado na Normandia, norte da França, mais conhecido como Dia D, realizado somente em 6 de junho de 1944. Em contrapartida, Stalin prometera que seu país entraria na guerra com o Japão assim que a Alemanha fosse derrotada. Movido pela necessidade de ganhar a confiança de seus aliados ocidentais, Stalin também já havia autorizado, em maio de 1943, a dissolução da Internacional Comunista (Comitern).35 A ocasião permitiu que os estadistas tivessem contatos tête-à-tête sobre o pós-guerra. Roosevelt enfim conheceu pessoalmente Stalin e aproveitou a oportunidade para um encontro bilateral, sem a presença de Churchill. Em 29 de novembro de 1943, em conversa privada com o “Tio Joe” (às vezes também chamado de “urso” pelos ocidentais), Roosevelt expôs seu plano para a organização mundial, que poderia eventualmente ter uma estrutura tripartite. Haveria uma Assembleia de 40 ou mais países, de todas as partes do mundo, que discutiria qualquer questão internacional e faria recomendações a dois órgãos menores com capacidade de decisão. O primeiro desses seria um Conselho de dez países: os quatro signatários da Declaração de Moscou e seis outros selecionados de diferentes regiões. Seriam eles dois países da Europa, um da América Latina, um do Oriente Próximo, um do Extremo Oriente e um Domínio britânico. Esse Conselho tentaria resolver as controvérsias, mas não poderia impor suas decisões. O segundo grupo, que Roosevelt identificou como os Quatro Policiais (ou Comitê Executivo), incluindo a China, teria autoridade para agir imediatamente e usar a força contra qualquer ameaça à paz. Se, por exemplo, a ameaça partisse de uma pequena nação, esta poderia ser posta em quarentena por meio de embargos ou fechamento de fronteiras. Se a ameaça fosse mais séria, as quatro potências

34 35

KENNEDY. Ascensão e queda das grandes potências. op. cit. p. 346-348. GIRAULT, René, et al. La loi des géants, 1941-1964. Paris: Masson, 1993, p. 62-66.

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poderiam lançar um ultimato e, caso este fosse ignorado, bombardear ou mesmo invadir o país criador de problemas.36 Crítico, Stalin observou que os Estados europeus poderiam ressentir-se de sofrer pressões da China. De qualquer modo, ele não achava que a China sairia muito forte da guerra. Uma alternativa, sugeriu Stalin, seria criar dois Conselhos, um para a Europa e outro para o Extremo Oriente, com os Três Grandes em ambos. Roosevelt lembrou que Churchill havia sugerido esquema similar de três Conselhos regionais, sendo o terceiro para as Américas. Duvidava, no entanto, que o Congresso em seu país fosse aprovar a participação dos Estados Unidos em um Conselho exclusivamente europeu, que exigisse comprometimento de tropas norte-americanas. Roosevelt esclareceu que, quando houvesse necessidade de intervir, sua ideia era despachar à Europa apenas aviões e navios. A Grã-Bretanha e a União Soviética entrariam com seus exércitos. Stalin não ficou muito convencido.37 Mais tarde, o marechal fez um agrado a Roosevelt ao afirmar que a organização deveria ter abrangência global, e não regional, afastandose da visão britânica. Na declaração firmada ao término da Conferência de Teerã, em 1o de dezembro, os três líderes mencionaram – ainda que de forma genérica – que a paz, não apenas a guerra, havia sido discutida entre eles: Nós reconhecemos plenamente a suprema responsabilidade que repousa sobre nós e todas as Nações Unidas para fazer uma paz que merecerá a boa vontade da esmagadora massa dos povos do mundo e banir o flagelo e o terror da guerra por muitas gerações. Com nossos assessores diplomáticos nós estudamos os problemas do futuro. Buscaremos a cooperação e a ativa participação de todas as nações, grandes ou pequenas, cujos povos estejam dedicados de coração e mente, como estão nossos próprios povos, à eliminação da tirania e da escravidão, da opressão e da intolerância. Daremos a eles as boas38 vindas, à medida que escolham vir, em uma família mundial de Nações Democráticas.

Roosevelt não havia desistido inteiramente de um enfoque regionalista. O que ele discutira em Teerã, além de refletir suas convicções íntimas, era sinal da influência ainda marcante das contribuições de Sumner Welles. Para o sucesso de seu plano, contudo, o presidente norte-americano acreditava que seria fundamental solidificar a união das grandes potências, o que incluía avalizar a plena participação soviética, uma consequência lógica do universalismo preconizado por Cordell Hull. Ao mesmo tempo, devia-se evitar que as potências menores pudessem complicar a “tarefa suprema” de manter a paz.39 Este era um ponto de sólido consenso entre os Três Grandes: erigir um sistema de concertação semelhante ao Concerto Europeu do século XIX, só que agora estendido a todo o planeta. Muito mais praticantes do que teóricos da Realpolitik, Roosevelt, Churchill e Stalin estavam de perfeito acordo e consideravam inteiramente válida a prerrogativa dos mais poderosos 36

WHEELER-BENNETT, John W. & NICHOLLS, Anthony. The semblance of peace: the political settlement after the Second World War. Londres: Macmillan, 1972, p. 151; FENBY, Jonathan. Os Três Grandes: Churchill, Roosevelt & Stalin ganharam uma guerra e começaram outra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p. 258. 37 FEIS, Herbert. Churchill, Roosevelt, Stalin: the war they waged and the peace they sought. Princeton: Princeton University Press, 1957, p. 269-270. 38 HARTMANN. Basic documents of international relations. op. cit. p. 164-165. 39 HOOPES & BRINKLEY. FDR and the creation of the U.N. op. cit. p. 100-102; CAMPBELL. Masquerade peace. op. cit. p. 14.

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de gerenciar a ordem internacional nos seus termos. As diferenças sobre como fazê-lo seriam de nuanças e procedimentos. Churchill disse a Stalin que as três grandes potências seriam os garantes da paz no mundo e, se elas falhassem, o resultado poderia ser “100 anos de caos”.40 Originalmente, Roosevelt havia concebido o Comitê Executivo e o Conselho como entidades separadas, como sugerira Welles. O predomínio dos Quatro Policiais seria bastante explícito nessa formulação. Ficaria óbvio a qualquer observador atento que os dois órgãos iam obedecer a uma hierarquia de poder. Os países pequenos poderiam contestá-la como derrogação inaceitável do princípio da igualdade entre os Estados. Em 3 de fevereiro de 1944, Roosevelt deu seu aval à nova minuta de Carta proposta por Hull. Nesse esboço, previa-se um único Conselho de Segurança, formado pelas quatro grandes potências e alguns países menores, fundindo, na teoria e na prática, aquelas duas entidades originais.41 A minuta aprovada pelo presidente era globalista na sua estrutura e funcionamento. Diziam seus proponentes que o regionalismo teria o inconveniente de dividir o mundo em zonas de influência e aumentar (em vez de diminuir) a competição internacional. Blocos antagônicos poderiam reeditar em escala maior disputas pela hegemonia e matar no nascedouro as chances de sucesso da ONU. Para impedir o retorno das velhas políticas de equilíbrio de poder, a organização precisava ter autoridade e colocar-se acima dessas rivalidades. Isso só seria viável se, no topo de sua estrutura, houvesse um Conselho de Segurança realmente fortalecido, sob a condução firme e unívoca das grandes potências. Essa promessa, que se coadunava perfeitamente com a noção cara a Roosevelt da “tutela dos poderosos”, foi um dos motivos que convenceu o presidente a endossar a linha em que trabalhavam Hull e Pasvolsky. O conceito dos Quatro Policiais não desaparecera por completo. Apenas se integrara a um aparato institucional multilateralista, de apelo mais democrático e universal, que lhe serviria de invólucro para o mundo exterior. Tudo isso era desconhecido do grande público. Os planos do governo norteamericano eram tratados sob um manto de segredo que dava margem a inúmeras especulações. O Departamento de Estado era frequentemente questionado por parlamentares, jornalistas e grupos da sociedade civil. As notícias do desenrolar dos combates causavam grande impacto. O sentimento popular exigia atitudes fortes. Muitos passaram a advogar algum tipo de integração cosmopolita da humanidade, como o livro One World, do republicano Wendell Willkie, sucesso de vendas em 1943. Também eram comuns as críticas, na imprensa norte-americana e europeia, de que as grandes potências se articulavam na surdina para decidir sobre os destinos do mundo de forma ditatorial. Na véspera do Natal de 1943, para responder aos partidários de visões mais liberais da futura ordem mundial, Roosevelt havia dito em alocução radiofônica que “a doutrina de que o forte deve dominar o fraco é a doutrina de nossos inimigos – e nós a rejeitamos”.42 A organização internacional deveria ser inclusiva e atender aos anseios de todos os países “amantes da paz”. O presidente tentava tranquilizar a opinião pública e dar garantias de que os grandes não iriam abusar de seu poder contra os pequenos. Em 15 de junho de 1944, a Casa Branca divulgou uma declaração de Roosevelt destinada a desfazer incessantes rumores sobre a verdadeira natureza e o alcance do projeto em 40

HUGHES. Winston Churchill and the formation of the United Nations Organization. op. cit. p. 187. HOOPES & BRINKLEY. op. cit. p. 115. 42 Ibid. p. 108. 41

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gestação. O comunicado procurava mostrar, essencialmente, que não se cogitava de estabelecer um “governo mundial”, acima da autoridade dos Estados: Nós não estamos pensando em um superestado com suas próprias forças policiais e outros apetrechos de poder coercitivo. Nós estamos buscando um acordo efetivo e arranjos por meio dos quais as nações manteriam, de acordo com suas capacidades, forças adequadas para suprir as necessidades de prevenir a guerra e tornar impossível a preparação deliberada para a guerra, e ter tais forças disponíveis para 43 ação conjunta quando necessário.

Seus idealizadores haviam chegado à conclusão de que a organização mundial, dadas as condições políticas prevalecentes no mundo, deveria estar fundada sobre o princípio do livre consentimento entre Estados soberanos, que teriam sempre a última palavra. A ONU seria uma instituição intergovernamental controlada por seus Estados-membros. Essa solução foi recebida com desapontamento pelos adeptos de formas mais radicais de superação da “lei de ferro da soberania”, que não eram poucos na tormentosa década de 1940. Dumbarton Oaks: quem vai governar o mundo? O pós-guerra deveria ser regulado em suas múltiplas dimensões, criando-se novos regimes e instituições multilaterais a partir de entendimentos entre os Aliados (isto é, as Nações Unidas). Foi descartarda a realização de uma Conferência da Paz grandiosa, mas pouco funcional, como a de 1919, em Paris. Tal procedimento, conjecturavam os planejadores norteamericanos, teria a vantagem de separar as questões institucionais das barganhas típicas desse tipo de conferência, que ademais poderia coincidir com a ressurgência do isolacionismo nos Estados Unidos, caso fosse convocada para momento posterior ao conflito. A ordem internacional erigida pelo Tratado de Versalhes se revelou falha na origem. A contradição básica da Conferência da Paz de 1919 foi o intento das democracias liberais vencedoras de impor uma “paz cartaginesa”, cristalizada em determinado status quo internacional, cuja substância era francamente contrária aos interesses dos vencidos, constituindo-se em fermento previsível dos revisionismos nacionalistas que afloraram logo depois. O projeto da Liga das Nações havia sido pensado como uma organização garante da independência política e da integridade territorial dos Estados, com base nos princípios de diplomacia aberta, segurança coletiva, repúdio ao sistema de alianças, desarmamento, autodeterminação dos povos e respeito ao direito internacional. Entretanto, a própria Liga foi renegada pelos Estados Unidos e, com a posterior defecção de outras potências, não resistiu a uma realidade internacional que apontava em outra direção, notadamente o apego dos Estados ao seu autointeresse. A erosão do consenso político-ideológico, a ascensão dos regimes totalitários e os desafios declarados à Liga selaram o destino da organização. Ademais, a economia mundial permaneceu virtualmente ao largo da ordem de Versalhes, que se concentrou sobretudo em evitar a guerra e buscar a estabilidade política via segurança coletiva. Ao invés de conferir ordem e direção, as consequências econômicas da paz 43

NOTTER. Postwar foreign policy preparation, 1939-1945. op. cit. p. 269; DIVINE. Second chance. op. cit. 104105.

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foram funestas, como advertira Keynes profeticamente. Nos Estados Unidos, o otimismo, a ilusão de prosperidade e a expectativa de crescimento ilimitado, traços característicos dos anos vinte, foram rapidamente ofuscados pelo crash de 1929 e pela Grande Depressão. As finanças nos anos trinta viveram uma fase caótica que era a própria antítese de qualquer concepção de ordem financeira internacional. Desta vez, as negociações foram compartimentalizadas em áreas temáticas, conforme as necessidades de cada setor. Foi o caso da Conferência das Nações Unidas sobre Alimentação e Agricultura, realizada entre 18 de maio e 3 de junho de 1943, em Hot Springs, Virginia, para discutir a crise na produção mundial de alimentos, duramente afetada pelas hostilidades. Seus trabalhos posteriormente deram origem à FAO, em outubro de 1945. Para prestar auxílio aos refugiados, em novembro de 1943, em Atlantic City, delegados de 44 países decidiram criar a Administração de Assistência e Reabilitação das Nações Unidas (UNRRA), que tinha por principal tarefa atuar no alívio da situação penosa de milhões de pessoas deslocadas de suas cidades e países de origem devido à guerra. Mais tarde, a UNRRA se transformou, em 1946, na Organização Internacional para os Refugiados, substituída em 1951 pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).44 Outro exemplo de reunião setorial foi a Conferência de Chicago, em novembro de 1944, que preparou o caminho para o estabelecimento, em 1947, da Organização da Aviação Civil Internacional (OACI). A característica peculiar da paz fragmentada que se ergueu no contexto da Segunda Guerra Mundial foi sua divisão em trilhos diferentes, porém interligados, sempre sob a liderança dos Estados Unidos. Na análise de Ikenberry, os EUA, usufruindo de uma posição excepcional de poder, buscaram estabelecer instituições internacionais que vinculariam os demais países no futuro e, em troca, se compremeteram (ainda que relutantemente) a operar dentro do marco multilateral fornecido por essas mesmas instituições (“autocontenção estratégica”). Na construção dessa Pax Americana, as duas reuniões mais importantes tiveram lugar em 1944. A primeira, em Bretton Woods, New Hampshire, lidaria com a dimensão econômica, com ênfase nos aspectos financeiros e nas demandas de investimentos na fase de reconstrução pós-conflito. A segunda, em Dumbarton Oaks, Distrito de Columbia, seria dedicada à dimensão políticoestratégica.45 Havia, ainda, outro trilho, fundamental, que trataria dos assuntos típicos de armistícios ou acertos de paz entre vencedores e vencidos. Esse era o temário principal de encontros como os de Yalta ou Potsdam, onde os Três Grandes decidiam entre si o tratamento a ser dado aos inimigos, as condições gerais da ocupação aliada, as zonas de influência de cada um, as reparações devidas e as redefinições territoriais, tal como o desmembramento da Alemanha. Era um clube fechado, regido pela lógica crua do poder. Como teria dito Churchill, só entrava nesse clube quem tivesse “pelo menos cinco milhões de soldados”.46

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ANDRADE, José H. Fischel de. O Brasil e a organização internacional para os refugiados (1946-1952). Revista Brasileira de Política Internacional. Brasília: vol. 48, no 1, 2005, p. 60-96. 45 Uma visão crítica da grande estratégia norte-americana é oferecida por KOLKO, Gabriel. The politics of war: the world and United States foreign policy, 1943-1945. Nova York: Random House, 1968; IKENBERRY. After victory. op. cit. p. 163-164. 46 Apud James F. Byrnes, “Yalta: high tide of Big Three unity”, in FENNO Jr., Richard F. (ed.). The Yalta Conference. Boston: D. C. Heath and Co., 1955, p. 5.

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No caso de Bretton Woods, a Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas se originou do pressuposto de que causas socioeconômicas haviam tido um papel não desprezível no agravamento do quadro de discórdia e antagonismo que levou à guerra. Seriamente atingida pela Grande Depressão, a economia mundial nos anos trinta experimentou um período de desordem monetária (abandono definitivo do padrão-ouro, desvalorizações concorrenciais) e práticas protecionistas (políticas de beggar-thy-neighbour). O mercado internacional de capitais havia deixado de funcionar. A criação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD) prometia restaurar a ordem financeira. O sistema de Bretton Woods, lastreado na hegemonia do dólar norte-americano e na sua convertibilidade a uma paridade fixa com o ouro, daria a estabilidade necessária para o desenvolvimento desimpedido dos negócios e a retomada dos investimentos. Na área comercial, entendimentos futuros ajudariam a reduzir as barreiras ao intercâmbio entre os países, com vistas a estabelecer um sistema multilateral de comércio em bases não discriminatórias. Entretanto, por diversas razões, o projeto de uma Organização Internacional de Comércio (OIC) não foi implementado em sua inteireza e a Carta de Havana (1948) seria substituída pelo Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT).47 Cumpre assinalar, a propósito, que são frequentes as referências a Bretton Woods como o momento de estabelecimento de uma ordem econômica liberal, conduzida pelos Estados Unidos, oposta ao bloco socialista, liderado pela União Soviética. Isso é apenas em parte verdadeiro, porquanto não era esse o espírito da Conferência. Naquela conjuntura pré-Guerra Fria, a polarização existente era entre os Aliados e o Eixo, não entre Leste e Oeste. Seria equivocado atribuir a esta fase (1944) uma dicotomia que irá tomar corpo somente após a guerra. A URSS não só participou da Conferência de Bretton Woods, com uma delegação chefiada por M. S. Stepanov, como também recebeu a terceira maior quota do FMI (US$ 1,2 bilhão), atrás apenas dos EUA (US$ 2,75 bilhões) e da Grã-Bretanha (US$ 1,3 bilhão). É preciso, portanto, distinguir entre a Conferência de Bretton Woods (o evento em si, que contou com o beneplácito de Moscou) e o sistema de Bretton Woods (o arranjo econômico global que prevaleceu, sobretudo após a defecção soviética). A delegação soviética endossou os acordos de Bretton Woods, mas como estes deviam ser ratificados até 31 de dezembro de 1945, o que não foi feito, a URSS acabou por não aderir nem ao FMI nem ao BIRD. Os motivos não foram explicitados. Sabe-se, contudo, que no final de 1945, em circunstâncias bem diferentes, a desintegração da aliança de guerra já seguia avançada e começavam a soprar os ventos da Guerra Fria que iria dominar a política internacional por décadas.48 Em meados de 1944, todavia, a cooperação soviética nos entendimentos de pósguerra era então considerada essencial pelo governo norte-americano, tanto na economia quanto na política, notadamente na ONU. Sem a presença da União Soviética na organização, acreditavam alguns, o mundo caminharia para uma Terceira Guerra Mundial. Roosevelt, confiante nas virtudes da diplomacia “olho no olho”, tentaria inclusive criar um vínculo de amizade pessoal com Stalin, no intento sem dúvida ilusório de civilizá-lo nas lides do 47

SCHILD, Georg. Bretton Woods and Dumbarton Oaks: American economic and political postwar planning in the Summer of 1944. Nova York: St. Martin’s Press, 1995, passim; ALMEIDA, Paulo Roberto de. O Brasil e o multilateralismo econômico. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. 48 As decisões de Bretton Woods foram publicadas pelo Ministério da Fazenda: Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944.

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relacionamento “normal” entre grandes potências que se veem como pares no olimpo da política mundial. Para seus mordazes adversários políticos, Roosevelt parecia mesmo acreditar que seria capaz de domesticar o “diabo” soviético e ter por ele alguma simpatia – talvez até convertê-lo ao American way of life.49 A Conferência de Dumbarton Oaks, que nos interessa mais de perto, teve como cenário uma mansão particular em Georgetown, em Washington.50 As negociações foram divididas em duas partes: uma primeira rodada (realmente decisiva) entre EUA, Grã-Bretanha e URSS; e, na sequência, uma segunda (menos importante) envolvendo os dois primeiros e a China. A alegação apresentada pelos soviéticos para a recusa em sentar-se à mesma mesa com os chineses residia no fato de que a União Soviética não estava em guerra com o Japão, com o qual havia concluído um pacto de neutralidade em abril de 1941. Entabular negociações diretas com a China poderia provocar uma reação japonesa e comprometer a posição neutra da URSS na Ásia. Lembre-se que, na época da assinatura do pacto de neutralidade URSS-Japão, Moscou pretendia estabilizar o quadro estratégico no Extremo Oriente para se concentrar em ameaças na frente europeia, ao passo que Tóquio desejava acautelar-se contra qualquer ato hostil soviético, em contexto delicado de conflito aberto do Japão com a China e rápida deterioração nas relações Japão-EUA. A participação chinesa em Dumbarton Oaks não havia sido um ponto pacífico. Roosevelt insistira desde muito cedo para incluir Jiang Jieshi (Chiang Kai-shek) nas discussões aliadas sobre o pós-guerra, contra a opinião de britânicos e soviéticos. Para estes últimos, a China dificilmente poderia ser considerada “grande potência” naquela época. Com o país dilacerado pela guerra civil entre os comunistas de Mao e os nacionalistas do Kuomintang, a situação se agravou após a invasão japonesa e o recrudescimento do conflito a partir de 1937. A trégua que se seguiu entre comunistas e nacionalistas era precária e só poderia durar enquanto o inimigo comum estivesse em cena. O governo de Chungking controlava apenas uma fração do território chinês. A economia estava arruinada depois de oito anos de guerra. Além da instabilidade interna e das pobres condições de vida de sua população, majoritariamente camponesa, o desenvolvimento da China não havia ainda alcançado um nível de industrialização que desse ao país peso econômico ou estatura militar fora de sua região. A elevação chinesa ao status de Quarto Policial atendia sobretudo ao interesse dos Estados Unidos de fortalecer seu principal aliado asiático na luta contra o Japão. Por razões estratégicas, Roosevelt fez todo o possível para apoiar Jiang Jieshi, fornecendo-lhe ajuda financeira, assistência material e um lugar à mesa principal, confiando em que a posição chinesa seria simpática a Washington. Em novembro de 1943, Jieshi participou da Conferência do Cairo, cujo comunicado final reafirmava que todos os territórios chineses tomados pelo Japão deveriam ser devolvidos à República da China sem pré-condições. Churchill, ao contrário, tinha sérias restrições à capacidade efetiva da China, que ele descreveu certa vez como um “rabicho” atado ao tripé das grandes potências. Churchill temia que o real objetivo de Roosevelt fosse fazer da China uma potência forte o suficiente para policiar a Ásia, mas ainda fraca o bastante para 49

MISCAMBLE, Wilson. From Roosevelt to Truman: Potsdam, Hiroshima, and the Cold War. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 49-53, 63 e 323. 50 FDR Papers, President’s Secretary’s File, Box 131, Dumbarton Oaks Conference, 1944. A referência indispensável sobre o assunto é HILDERBRAND, Robert C. Dumbarton Oaks: the origins of the United Nations and the search for postwar security. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1990.

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continuar dependente dos Estados Unidos e se tornar um “voto duplo” na ONU. Como tanto os EUA quanto a China nutriam sentimentos anticolonialistas, pensava Churchill, uma aliança sinoamericana poderia voltar-se contra o Império Britânico no futuro.51 Stalin tampouco se animara com essa perspectiva, relutante em prestigiar Jiang Jieshi mais do que o necessário. Não obstante, em virtude da insistência norte-americana, tanto a Grã-Bretanha quanto a URSS se acomodaram ao fato, embora a China permanecesse excluída dos encontros trilaterais que iriam em grande medida redefinir a geopolítica mundial (Yalta, Potsdam, etc.). A primeira sessão plenária da Conferência foi inaugurada por Cordell Hull, em 21 de agosto de 1944. O subsecretário de Estado Edward Stettinius chefiaria a delegação norteamericana, a maior e mais bem assessorada, com 18 membros. Com o intuito de enfatizar o caráter “informal” das conversações, o Departamento de Estado se referia à delegação dos EUA como “grupo americano”, uma sutileza casuística e meramente protocolar também aplicada ao “grupo britânico” e ao “grupo soviético”. O veterano subsecretário permanente do Foreign Office, Alexander Cadogan, respondia pela delegação da Grã-Bretanha. A União Soviética seria representada por seu embaixador em Washington, Andrei Gromyko, então com 35 anos, a quem futuramente estaria reservada longa carreira à frente da diplomacia de seu país. Gromyko foi ministro das Relações Exteriores da URSS de 1957 a 1985. Também seria representante permanente na ONU nos primeiros anos da organização. O projeto de Carta elaborado pelo Departamento de Estado serviria de texto-base para a negociação. Resultado de processo muito mais sofisticado de planejamento e redação, em comparação com o que britânicos e soviéticos haviam produzido, o texto alinhavado em Washington iria nortear toda a discussão em Dumbarton Oaks e, até certo ponto, também em São Francisco, uma vez que muitos de seus parágrafos permaneceriam praticamente intactos. O nome “Nações Unidas” havia sido cunhado e proposto por Roosevelt, que desejava mantê-lo. Duas outras opções cogitadas, “Comunidade de Nações” e “União Mundial”, foram rechaçadas mormente por suas implicações potenciais de federalismo e/ou supranacionalidade. Os soviéticos preferiam “Organização de Segurança Internacional”, em consonância com a razão de ser da organização – ao menos na visão do Kremlin. O nome proposto pelos EUA seria o finalmente adotado. O projetado Conselho “Executivo” (como era chamado na Liga das Nações) passou a se denominar Conselho “de Segurança”, a fim de acomodar as preocupações soviéticas e explicitar qual seria a função primordial do órgão que ocuparia o centro da estrutura da ONU. Em inglês, vale ressaltar, é raro que United Nations seja acompanhado pelo termo Organization. Em outros idiomas, como francês, espanhol e português, tornou-se de uso corrente o nome “Organização das Nações Unidas” e sua sigla usual, a ONU. O preâmbulo da Carta de São Francisco, entretanto, menciona apenas que se estabelecia por meio daquele documento solene uma organização internacional a ser conhecida “pelo nome de Nações Unidas” (em inglês, the United Nations). A proposta norte-americana também contemplava um Conselho Econômico e Social (ECOSOC), fruto da percepção de que a ONU deveria ter funções que extrapolassem o âmbito da segurança e criassem um ambiente socioeconômico propício à estabilidade. Prevalecia o entendimento de que a débâcle econômica na década de 1930 e a desarticulação da economia mundial, dividida em blocos competitivos, haviam colaborado para deteriorar o contexto político 51

HILDERBRAND. Dumbarton Oaks. op. cit. p. 59-60.

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internacional. Os britânicos prontamente aderiram à ideia do ECOSOC, que também incorporaria questões humanitárias, educacionais, culturais e de direitos humanos. Os soviéticos resistiram. Entendiam que a finalidade exclusiva da organização devia ser a manutenção da segurança. Qualquer outra tarefa seria um “desvio de função” e enfraqueceria o todo. A concordância soviética seria obtida sob o argumento norte-americano de que o ECOSOC ficaria vinculado à Assembleia Geral e não interferiria na atuação do Conselho de Segurança. Selado o compromisso, nas propostas de Dumbarton Oaks o ECOSOC não teria ainda o status de um dos órgãos principais da ONU, conforme ficaria decicido em São Francisco. A Assembleia Geral, integrada por todos os Estados-membros, deveria ser o locus por excelência do debate parlamentar. Nela seria consagrado o princípio da igualdade jurídica dos Estados, cada um com direito a um voto, à semelhança da Liga das Nações. Suas resoluções, no entanto, teriam apenas o efeito de recomendações (soft law). A Assembleia poderia discutir assuntos relativos à manutenção da paz e funcionar como caixa de ressonância da opinião pública mundial, mas a autoridade para decidir e agir em nome de todos os Estados-membros caberia, em última análise, ao Conselho de Segurança.52 Sobre este ponto, ao contrário de Wilson, que atribuía à condenação moral da opinião pública peso capaz de dissuadir eventuais transgressores e “educá-los” na boa convivência internacional, Roosevelt estava convencido de que a paz só poderia ser mantida pela força, preferencialmente um “poder militar avassalador”, mobilizado rapidamente, antes que o agressor pudesse ameaçar o mundo. A capacidade efetiva de imposição da paz seria uma diferença crucial entre a ONU e a Liga das Nações. Desde que sob comando norte-americano, Roosevelt deixou entrever que, sobretudo na Europa, preferia empregar meios aéreos e navais a forças terrestres, provavelmente porque os EUA possuíam os dois primeiros em abundância e podiam assim poupar seus soldados de operações arriscadas em situações que não configurassem ameaça direta aos seus interesses estratégicos.53 Pensava-se que seria de utilidade uma “força aérea internacional” que, como punição, lançasse ataques contra países que não obedecessem às regras. Os soviéticos explicitamente fizeram uma proposta nesse sentido, alardeando o benefício da rapidez em horas de crise. Alguns estrategistas aliados acreditavam que os bombardeios estratégicos vinham sendo eficazes na destruição da base militar-industrial dos países do Eixo e na redução do ímpeto de prosseguir a luta entre a população civil. Durante a guerra, as forças aliadas lançaram aproximadamente 2 milhões de toneladas de bombas sobre a Alemanha, destruindo cerca de 60 cidades e matando mais de 500 mil pessoas.54 Se a ONU tivesse instrumento semelhante à sua disposição, supunhase, este seria um extraordinário fator de dissuasão. Da mesma forma, enviar aviões militares poderia ser internamente mais aceitável do que despachar tropas de combate de terra, com risco maior de baixas em vidas humanas. Mas a proposta, sugerida por Gromyko, de uma potente força aérea multinacional sob a autoridade do Conselho de Segurança, parecia até certo ponto suspeita, pois eram as potências ocidentais que detinham maior capacidade nesse setor. Norte-americanos e britânicos trataram de 52

Ibid. p. 108-109. HOOPES & BRINKLEY. FDR and the creation of the U.N. op. cit. p. 108. 54 A eficácia desses bombardeios para encurtar a guerra tem sido objeto de debate. Uma visão crítica sobre a questão está in HANSEN, Randall. Fire and fury: the Allied bombing of Germany, 1942-1945. Toronto: Doubleday Canada, 2008. 53

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enterrar a ideia, talvez por avaliar que os soviéticos estavam indo “longe demais” e pretendessem jogar os custos da empreitada sobre os ombros dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha. Stettinius alegou que ataques aéreos seriam um “ato de guerra” e, nos termos da Constituição norteamericana, precisariam de autorização prévia do Congresso.55 Seja como for, a importância que se atribuía ao poder aéreo acabaria refletida no artigo 45 da Carta da ONU, segundo o qual, a fim de “habilitar as Nações Unidas a tomarem medidas militares urgentes, os Membros das Nações Unidas deverão manter, imediatamente utilizáveis, contigentes das forças aéreas nacionais para a execução combinada de uma ação coercitiva internacional”. [grifos meus] Deve-se ter presente que, na fase de planejamento, a ONU havia sido pensada como uma continuação da aliança de guerra por outros meios. Planos mais ousados, que previam forças militares sob a égide da organização, bases estratégicas em diferentes pontos do globo e uso extensivo do poder aéreo, partiam da premissa de que a colaboração entre as grandes potências durante a guerra iria continuar na paz. Um artigo da revista Foreign Affairs, escrito em 1945, refletia essa crença na preservação da unanimidade entre os membros permanentes ao afirmar que o fato político mais significativo do novo mundo que emergia após a guerra global era o de que as únicas três potências de primeira magnitude não tinham “fatores irreconciliáveis em suas relações”. [sic] 56 Uma ONU militarmente forte, “com dentes”, não parecia então algo inexequível. Se as Nações Unidas (isto é, os Aliados) haviam conseguido montar complexas operações militares, com êxito e de forma coordenada, por que não fazer o mesmo depois, quando houvesse necessidade? Duas possibilidades existiam: um exército internacional permanente ou uma força ad hoc formada por unidades nacionais, ambas com poderes para intervir em qualquer parte do mundo. A primeira opção tinha a vantagem principal de ser uma força pronta e disponível para ações imediatas, mas significava uma cessão de soberania que poucos Estados aceitariam, em particular os maiores e mais dotados de poder militar. A segunda, não sendo genuinamente uma força policial internacional, teria maiores chances de ser aceita, mas ficaria dependente dos aportes de efetivos militares dos Estados e a fortiori mais sujeita a dilações por motivos políticos. Sempre confrontada com a necessidade de aprovação do Congresso para o emprego de forças nacionais em operações militares no estrangeiro, a delegação norte-americana se inclinava por um esquema – que ao final prevaleceu – prevendo o empréstimo voluntário à ONU, por meio de “acordos especiais” com o Estado fornecedor, de contingentes e equipamentos (incluindo aviões) para desdobramento oportuno no terreno, além de transporte e instalações apropriadas. Uma Comissão de Estado-Maior seria estabelecida para assistir o Conselho de Segurança na operação estratégica das forças armadas cedidas dessa forma. Convém assinalar, porém, que essa Comissão de Estado-Maior, cujas funções seriam definidas pelos artigos 46 e 47 da Carta adotada em São Francisco, nunca se materializou no formato originalmente pretendido. Os “acordos especiais” entre a ONU e os Estados-membros, previstos no artigo 43, também viraram letra morta. Com o benefício da visão retrospectiva, hoje sabemos que muitas soluções incorporadas à Carta resolveram desacordos de substância entre os protagonistas de 1944-45, mas não necessariamente se traduziram em solução durável para o futuro. 55

Sobre as discussões em torno da viabilidade de uma força aérea internacional, cf. HILDERBRAND. Dumbarton Oaks. op. cit. p. 137-156; e SCHILD. Bretton Woods and Dumbarton Oaks. op. cit. p. 145-149. 56 KANE, Keith. The Security Council. Foreign Affairs. Nova York: vol. 24, no 1, 1945, p. 12.

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Controle e imunidade Havia um dilema fundamental a ser resolvido em Dumbarton Oaks. Eram precisamente as grandes potências que relutavam em delegar atributos de soberania à organização mundial. Roosevelt deixou claro, mais de uma vez, que tropas norte-americanas jamais seriam enviadas ao exterior se não fosse por uma decisão soberana do governo dos Estados Unidos. A organização deveria ter capacidade real de projetar poder, mas deveria fazê-lo sem transpor o marco do respeito às prerrogativas nacionais dos Estados-membros. Isso implicava que o uso da força recairia sobre os Quatro Policiais, que possuíam “todos os meios necessários”. Estes, porém, não cederiam à ONU forças militares sem reter algum tipo de controle sobre seu emprego. Seu apoio seria condicional. As grandes potências, ciosas de seus interesses, buscavam também se proteger da ação da ONU e desejavam encontrar um meio legítimo de lhes assegurar “imunidade de jurisdição” quando o assunto fosse a aplicação coercitiva de sanções. O mecanismo que resolveria os dois problemas (controle e imunidade) seria o veto. É pertinente recordar que, em termos práticos, não haveria sanção militar possível, por exemplo, contra os Estados Unidos, graças ao impressionante poderio que haviam acumulado. Além do poder de veto, a ser institucionalizado e legalizado formalmente, existia também um veto de poder, que a prudência recomendava não desdenhar. Se um dos Quatro Policiais fosse o agressor, somente a ação conjugada dos outros três seria capaz de ter algum sucesso. Mas o resultado disso seria mais uma guerra em larga escala, exatamente aquilo que a ONU deveria evitar. Talvez fosse mesmo duvidoso (embora teoricamente possível) que, em nome da segurança coletiva, se tentasse impor à força uma decisão do Conselho de Segurança contra uma das grandes potências. Seria inescapável fazer-se esta pergunta: quem assumiria esse ônus? Ou ainda: a quem caberia policiar os autonomeados agentes da lei e da ordem? 57 Essas ambiguidades e limitações não seriam plenamente resolvidas. Na verdade, o poder de veto as encobria. A organização só poderia empregar forças armadas com o aval dos mais poderosos, cumprindo o dever de tutela idealizado por Roosevelt. A criatura tampouco poderia voltar-se contra seus criadores. Em busca da legitimação desejada, calculavam os planejadores aliados, essa garantia não devia amparar-se somente no poder bruto, mas sim nas regras de procedimento legalmente consignadas na Carta e, no seu devido tempo, aceitas pelos demais países que assinassem aquele documento. Nesse contexto, o sistema de votação no Conselho de Segurança se tornou uma questão vital. Em princípio, o veto absoluto dos membros permanentes englobaria temas substantivos e processuais, mas o Departamento de Estado procurou matizá-lo para não despertar de saída a repulsa das potências menores. Reduzido o veto somente aos assuntos de substância, surgia outra indagação: um Estado que é parte da controvérsia também poderia votar? No ordenamento jurídico e na prática legal das democracias liberais, considerava-se procedimento universalmente aceito que a parte interessada não deveria interferir em decisão que fosse julgar sua própria conduta. Seria uma demonstração de fair play na ONU se a Carta também incorporasse essa forma de proceder no Conselho. Os britânicos foram os primeiros a acolher 57

Para análise nessa linha, cf. HOOPES & BRINKLEY. FDR and the creation of the U.N. op. cit. p. 112-114.

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essa posição, que seria depois endossada pela delegação norte-americana, não sem inúmeras discussões prévias e consulta ao presidente para autorizá-la. O argumento era simples: além de pôr grandes e pequenos em pé de igualdade, quando qualquer um deles fosse parte de uma controvérsia, a organização sairia fortalecida e aumentariam suas chances de contar com a adesão de todos os países. Na sessão de 28 de agosto, em Dumbarton Oaks, Stettinius anunciou que seu governo coincidia com a visão defendida por Cadogan. Essa demonstração de convergência anglo-norteamericana reacendeu receios latentes no lado soviético. O governo de Moscou tinha clareza da posição minoritária que teria dentro da projetada organização. O temor de ser sempre vencido no voto, por uma maioria decididamente alinhada ao bloco ocidental, era mais um motivo pelo qual Stalin se aferrava ao veto – ilimitado, se possível. O veto seria sua arma de defesa contra tentativas de isolar a União Soviética ou colocá-la “contra a parede”. Agora, parecia que os EUA e a Grã-Bretanha estavam tramando para dar o primeiro golpe contra os interesses da URSS, justamente em matéria tão sensível. Seria este mais um complô capitalista para prejudicar a única nação comunista? A resposta de Gromyko foi imediata. Após protestar contra a violação do princípio da completa unanimidade entre as grandes potências, declarou que a União Soviética pretendia incluir todas as suas 16 Repúblicas como membros fundadores da ONU, cada uma com direito a voto na Assembleia Geral. Stettinius e Cadogan ficaram atônitos. Este talvez tenha sido o momento mais desairoso da Conferência: os soviéticos apresentaram uma proposta insólita para contra-arrestar outra que, para eles, era inaceitável. Tão embaraçosa era a ideia que Roosevelt, inteirado do fato, exigiu sigilo total de Stettinius e ordenou que todos os documentos sobre isso fossem classificados e referidos como o “assunto X”. A proposta de admitir as 16 Repúblicas soviéticas não foi improvisada – Stalin posteriormente a confirmou in totum a Roosevelt. Provavelmente estava sendo guardada para ocasião propícia na Conferência. Ao fazê-la no preciso momento em que a extensão do veto era questionada, Gromyko colocava sua delegação em condições de barganhar seu pleito maximalista em troca de mudanças na posição ocidental sobre a questão-chave do veto.58 Abria-se uma fissura importante entre os Três Grandes, mas que de modo algum era a primeira ou a única. Por mais que os negociadores pretendessem desvincular seus trabalhos (a organização da paz) da realidade “lá fora” (a guerra e tudo mais ao seu redor), presente e futuro não podiam ser separados. O caso mais emblemático foi o da repercussão constrangedora do Levante de Varsóvia em 1944. Em 1o de agosto, eclodiu na capital da Polônia uma revolta generalizada contra a ocupação nazista, liderada por militares fiéis ao governo polonês no exílio, sediado em Londres. A resistência nacionalista polonesa esperava contar com o apoio dos Aliados e tropas soviéticas já se encontravam nos arredores da cidade. Moscou, no entanto, patrocinava o comitê comunista organizado em Lublin e se recusou a auxiliar o levante. Aviões norte-americanos e britânicos, que poderiam fornecer armas, munições e suprimentos aos poloneses, tiveram seu pouso vetado por Stalin nos territórios sob controle soviético. Os alemães sufocaram o movimento com

58

CAMPBELL, Thomas M. & HERRING, George C. The diaries of Edward R. Stettinius Jr., 1943-1946. Nova York: New Viewpoints, 1975, p. 110-111.

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extrema brutalidade e 200 mil pessoas morreram.59 O trágico desfecho colocou em evidência diferenças interaliadas de fundo. Estava em jogo o controle político da Polônia após a libertação. A Guerra Fria teria começado? O estranhamento enviou sinais de alerta a leste e oeste. Stalin assumira que o regionalismo inerente à ideia dos Quatro Policiais representava entendimento tácito de que cada potência teria privilégios de exclusividade na sua área de influência. Esse suposto entendimento estaria sendo desrespeitado na Polônia. Além disso, as tentativas de cercear o poder de veto seriam outro indício de que a unidade entre as grandes potências era elusiva, o Ocidente não era confiável e a União Soviética iria precisar aumentar seu controle sobre a Europa Oriental para garantir sua própria segurança. Pode-se talvez concluir que os soviéticos viam esse controle territorial como um fim mais importante do que a criação da nova organização mundial, sobretudo se a URSS não tivesse nela poderes absolutos de veto. A hegemonia sobre a Polônia e os demais países da região era um dos principais objetivos de guerra de Stalin, que para atingi-lo estava disposto a agir unilateralmente e até sacrificar suas relações amistosas com os aliados ocidentais.60 Em Washington, a pertinência da política de engajamento com a URSS, defendida com afinco por Roosevelt, ficou em xeque. Anticomunistas denunciavam que a presunção de bonomia dos soviéticos era uma fantasia perigosa, que não resistia às evidências crescentes das reais intenções de Stalin, entre elas dominar os países europeus no seu entorno geográfico e impedir qualquer interferência da nova ONU nesse processo. Restrições ao uso de veto, segundo essa perspectiva, deixavam de ser uma questão de justiça para se tornar um trunfo à disposição dos EUA e da Grã-Bretanha. Stalin assim não teria as mãos livres na Europa. O maior ou menor alcance do veto ditaria o grau de fiscalização mútua entre os principais aliados.61 Os acontecimentos na Polônia eram de fato preocupantes, mas razões de Estado recomendavam ser preferível, naquele momento, uma acomodação com Stalin, ao invés de uma escalada de desinteligências. Os Estados Unidos (Roosevelt em particular) haviam investido grande capital político na ONU. Simplesmente não podiam deixá-la naufragar antes mesmo de ser totalmente construída e lançada ao mar. A segurança coletiva ia depender da solidariedade entre as grandes potências, que por sua vez seria factível somente se a União Soviética, respaldada pelas vitórias do Exército Vermelho, desse seu consentimento e aderisse ao projeto. Sem a ONU, temia-se, a Europa ficaria à mercê da dominação soviética. O colapso do poder alemão faria da URSS a maior potência europeia e obrigaria o Ocidente a assumir encargos elevados para restaurar o equilíbrio de poder no continente. Nessa visão, a ONU serviria como dispositivo de contenção para disciplinar as ambições de Moscou e manter o relacionamento com Stalin em termos “manejáveis”. Ademais, os EUA, especialmente seus comandantes militares, desejavam assegurar a prometida entrada da URSS na guerra contra o Japão. As forças armadas norte-americanas combatiam em duas frentes simultâneas (Europa e Pacífico) e estavam seriamente sobredistendidas. A colaboração das tropas de Stalin seria muito bem-vinda diante da perspectiva sombria de ser necessária uma invasão do Japão, que prometia ser sangrenta e 59

WAACK, William. Conferências de Yalta e Potsdam (1945). In MAGNOLI, Demétrio (org.). História da paz. São Paulo: Editora Contexto, 2008, p. 275. 60 HILDERBRAND. Dumbarton Oaks. op. cit. p. 215. 61 Ibid. p. 212-217.

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custosa. O projeto de desenvolvimento da bomba atômica nos EUA ainda não havia avançado tanto para entrar nas considerações políticas que se faziam naquele momento.62 No que se refere ao “assunto X”, a pretensão soviética encontrou forte objeção da delegação norte-americana, que tentou suprimi-la da pauta de conversações. Mostrando-se cooperativo, Gromyko concordou em não levantar novamente na Conferência o pleito de entrada das 16 Repúblicas soviéticas na organização. Isso não autorizava pensar que a URSS renunciava a esse ponto. Apenas não tinha pressa em resolvê-lo definitivamente. A questão do veto, mais complexa, tampouco foi solucionada em Dumbarton Oaks. Em 8 de setembro, por iniciativa de Stettinius, Gromyko foi recebido em audiência por Roosevelt na Casa Branca. Entre outros temas, o presidente discorreu sobre o costume consagrado nos Estados Unidos de abstenção de voto em causa própria e fez uma analogia sobre “maridos e mulheres” que, enfrentando dificuldades, podiam apresentar seus argumentos perante um tribunal, mas jamais ter voz na resolução do caso, que seria sempre da alçada do juiz encarregado. A opinião pública norte-americana – principalmente o Senado – não entenderia se a um membro permanente fosse dado o direito de votar nas disputas em que estivesse diretamente envolvido. Gromyko escutou atentamente a explanação presidencial. Suas instruções, todavia, não lhe davam margem a ceder. Em resposta a correspondência telegráfica de Roosevelt, Stalin reiterou que o veto incondicional era necessário em virtude de “preconceitos ridículos” que ainda existiam contra a União Soviética em alguns influentes círculos estrangeiros.63 Uma solução de meio termo para o impasse foi sugerida em 13 de setembro. Consistia em dar aos membros permanentes poder de veto sobre qualquer assunto relacionado com a aplicação de sanções e o uso da força, mesmo se o membro fosse parte de uma controvérsia que estivesse sob a consideração do Conselho. Não haveria veto, contudo, se o membro fosse parte de uma controvérsia que pudesse ser resolvida por meios pacíficos. Levada ao conhecimento de Roosevelt e Churchill, que estavam reunidos em Québec, os dois líderes rejeitaram a solução. Ocupados em coordenar suas políticas na ofensiva final contra a Alemanha, é lícito afirmar que ambos não estudaram em profundidade a questão àquela altura menos urgente do veto, a ponto de divisar todas as suas implicações para as negociações em curso, preferindo deixar seu tratamento mais detido para hora menos turbulenta.64 Stalin também disse não e o assunto voltou à estaca zero. Como a posição soviética havia chegado ao seu ponto máximo de transigência, não houve modo de prosseguir. Roosevelt julgou que a negociação havia-se esgotado e os temas pendentes deviam ser levados para exame dos três líderes na próxima cúpula, a ter lugar na Crimeia. O trecho a respeito na declaração final de Dumbarton Oaks teve de ser lacônico, limitando-se a enunciar que a forma de votação no Conselho de Segurança ainda permanecia “em consideração”. O mais importante era continuar a mostrar ao mundo que os Aliados ainda formavam uma frente unida. Seus desacordos não deviam transpirar à imprensa. Outros itens deixaram de ser tratados na Conferência propositadamente, como o Estatuto do tribunal que substituiria a Corte Permanente de Justiça Internacional (CPJI). Os negociadores entenderam que o assunto era de natureza técnica e optaram por deixá-lo a cargo de 62

CAMPBELL. Masquerade peace. op. cit. p. 52-54 e 86; MISCAMBLE. From Roosevelt to Truman. op. cit. p. 68. FEIS. Churchill, Roosevelt, Stalin. op. cit. p. 433. 64 CAMPBELL. Masquerade peace. op. cit. p. 49-51. 63

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especialistas em ocasião posterior. Uma Comissão de Juristas das Nações Unidas deveria reunirse em Washington, em abril de 1945, para discutir em detalhe as questões jurídicas relativas ao Estatuto da futura Corte Internacional de Justiça (CIJ) e submetê-las à apreciação da Conferência de São Francisco (cf. Capítulo 4). Mas, em 1944, já havia consenso entre as quatro potências de que o Conselho de Segurança não poderia ser obrigado a executar as sentenças proferidas pela Corte. Caberia ao Conselho – e não à Corte – a palavra final sobre qualquer medida a ser tomada para dar cumprimento a uma decisão dos juízes da Haia. De outro modo, acreditavam os delegados em Dumbarton Oaks, o Conselho seria transformado em instância meramente executora de decisões legais tomadas alhures, afrontando o sacrossanto princípio do predomínio político das grandes potências.65 A discussão sobre o projetado Conselho de Tutela também foi postergada, por motivos mais políticos do que técnicos. Este era talvez o ponto mais nítido de divergência entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. O anticolonialismo abertamente esposado por Roosevelt era visto em Londres como ameaça direta à integridade do Império Britânico. O Conselho de Tutela deveria suceder o antigo sistema de mandatos da Liga das Nações. Na visão do Departamento de Estado, colocar territórios dependentes sob regime de tutela teria um objetivo final claro, qual seja a promoção de estruturas de autogoverno que os conduziria à inexorável independência. O livre comércio e a abertura de mercados para a competição econômica, no lugar das preferências imperiais, eram tidos como benéficos à expansão da democracia. Curiosamente, o tema despertava suscetibilidades no interior do governo norte-americano. O Departamento de Guerra e a Marinha haviam sido categóricos ao sustentar que tinham interesse em manter territórios insulares tomados do Japão no Pacífico, a fim de ali instalar, após a guerra, bases militares permanentes sob controle nacional dos Estados Unidos. À vista disso, eram contra qualquer cessão a uma autoridade internacional, ainda que apenas a título de supervisão ou monitoramento, das ilhas conquistadas ao preço de vidas e recursos norte-americanos. Os britânicos se sentiram aliviados quando, de comum acordo, resolveu-se que a “questão colonial” não seria objeto de deliberação em Dumbarton Oaks por não estar ainda suficientemente madura.66 Os soviéticos partiram de Washington no dia 28 de setembro. A fase chinesa das negociações, que durou uma semana, não produziu fatos novos de relevo. Como os chineses estavam informados do conteúdo das discussões, os trabalhos puderam fluir de forma expedita. O ministro das Relações Exteriores chinês, Wellington Koo, adotou uma postura construtiva, ciente de que não teria latitude para modificações substanciais no frágil equilíbrio alcançado entre os Três Grandes. Muitas das sugestões de Koo, feitas com o objetivo de fortalecer o papel do direito internacional na organização mundial, foram consideradas por Stettinius “extremamente idealistas”. Era uma situação até certo ponto inusitada: “negociar” um texto sem poder alterá-lo, a não ser cosmeticamente. A bem da verdade, a delegação chinesa estava diante de um fait accompli e suas opiniões tinham de ser moderadas para serem ouvidas, se tanto. O governo de Chungking, aliás, havia manifestado anteriormente sua plena disposição de colaborar com os Estados Unidos em Dumbarton Oaks e não queria causar problemas. A questão mais relevante politicamente era a presença da China como um dos Quatro Policiais, não o seu poder

65 66

HILDERBRAND. Dumbarton Oaks. op. cit. p. 119. Ibid. p. 170-177; RUSSELL. A history of the United Nations Charter. op. cit. p. 509-514.

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negociador. Nas palavras de Hilderbrand, que estudou a fundo aquela Conferência, “os asiáticos estavam ali, afinal de contas, para serem abençoados, não para reformar a igreja”.67 O resultado concreto de Dumbarton Oaks foi a aprovação pelos quatro países, em 7 de outubro, de uma minuta de Carta, sob o título de “Propostas para o Estabelecimento de uma Organização Internacional Geral”. Ali se encontravam definidos os princípios e as finalidades da organização, a estrutura e o funcionamento de seus órgãos principais, incluindo um Secretariado para cuidar dos assuntos administrativos, além de disposições específicas sobre a manutenção da paz e da segurança internacionais, como forma de prevenir e suprimir atos de agressão.68 O Departamento de Estado posteriormente mandaria imprimir 200 mil cópias do projeto para distribuição, como parte de ampla campanha nacional de relações públicas para convencer setores influentes da sociedade norte-americana e angariar apoio à projetada organização. O plano a que se chegou em Dumbarton Oaks poderia ser visto como uma versão fortalecida da Liga das Nações, controlada pelos Quatro Policiais. O Quinto Policial seria a França. A decisão de incorporá-la contou com o apoio ativo da Grã-Bretanha. Crescentemente perturbado com a ameaça de uma expansão comunista rumo ao oeste, Churchill contava com uma França reabilitada para preencher o vácuo de poder na Europa continental após a nulificação da Alemanha. Sem a França, e com garantias apenas incertas dos EUA, a Grã-Bretanha poderia verse forçada a ter de enfrentar sozinha a URSS na Europa, situação que Londres preferia evitar.69 Stalin tinha dúvidas no início. Achava que a França, no final da guerra, seria uma potência “charmosa, mas fraca”. Com efeito, ocupado e saqueado, o país estava na bancarrota. A economia francesa havia chegado à beira do colapso, com a paralisação do comércio e a queda brusca no nível de renda. Sem a ajuda dos Aliados provavelmente teria dificuldades ainda maiores. A França conseguira manter, mesmo assim, o segundo maior império colonial do mundo. Sua escolha como o quinto membro permanente do Conselho de Segurança não se deu em função do que o país efetivamente era em 1945, mas sim pelo que havia sido no passado e pela promessa de sua recuperação, na expectativa de comprovar-se seu posterior soerguimento econômico e militar. Restava definir qual governo ocuparia o posto, uma vez que isso equivaleria na prática a um reconhecimento do Comitê Francês de Libertação Nacional, liderado pelo general Charles de Gaulle. É conhecida a desconfiança de Roosevelt em relação a de Gaulle, visto pelo presidente norte-americano como um “aprendiz de ditador”. Conta-se que, quando se encontraram pela primeira vez, na Conferência de Casablanca, em janeiro de 1943, a antipatia foi mútua e instantânea. Roosevelt teria dito que não poderia apoiar de Gaulle porque ele não fora eleito pela França. Impávido e soberbo, como usual, de Gaulle teria respondido que Joana d’Arc também não havia sido eleita. Em dado momento, o governo norte-americano chegou a pesar a hipótese de colocar a França libertada sob um regime de semiprotetorado, como território ocupado sob administração militar aliada.70 Nos idos de 1944, os Estados Unidos definitivamente ainda não estavam prontos a reconhecer o Comitê Francês. A redação aprovada em Dumbarton 67

HILDERBRAND. Dumbarton Oaks. op. cit. p. 229-244. O texto integral em inglês das Propostas de Dumbarton Oaks, acompanhado de sua tradução não oficial para o português, foi reproduzido no Relatório de 1944 do Ministério das Relações Exteriores, Anexo A, p. 121-139. 69 HUGHES. Winston Churchill and the formation of the United Nations Organization. op. cit. p. 185. 70 “Quand les Américains voulaient gouverner la France”, Annie Lacroix-Riz, Le monde diplomatique, Paris, édition mai 2003, www.monde-diplomatique.fr/2003/05/Lacroix_Riz/10168, acesso em 26/10/2009. 68

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Oaks foi cautelosa, declarando tão somente que um assento permanente seria concedido à França “no devido tempo”.71 Os próximos passos para o planejamento do pós-guerra seriam tratados na Conferência de Yalta, da qual nem a França nem a China participariam. Yalta: o toque final O ano de 1945 começara com maus presságios para os Aliados. A vitória que parecia tão próxima na Europa não era mais iminente. A contraofensiva alemã na região montanhosa das Ardenas (Batalha do Bulge) obrigou as forças aliadas a deter sua marcha para enfrentar esse último e desesperado intento de Hitler de mudar sua sorte. Enquanto a situação europeia não se definisse, não era possível reforçar o front no Pacífico, onde a resistência japonesa era feroz e os avanços eram conquistados “ilha por ilha”. As desavenças interaliadas eram cada vez mais comentadas e um certo ceticismo parecia abalar a confiança recíproca entre os Três Grandes. Churchill estava apreensivo com o avanço do Exército Vermelho e temia que os soviéticos implantassem regimes totalitários de esquerda na Europa Oriental, ao passo que Stalin suspeitava que a Grã-Bretanha vinha apoiando governos de direita hostis a Moscou. Congressistas norteamericanos externavam críticas à política conciliadora de Roosevelt, tida como “leniente” com Stalin. Aumentavam as dúvidas e ansiedades da população. A Conferência de Yalta, realizada entre 4 e 12 de fevereiro de 1945, seria decisiva para determinar se o final da guerra encontraria a Grande Aliança relativamente intacta ou mortalmente dividida. A agenda era densa: reparações de guerra; divisão da Alemanha em zonas de ocupação (inclusive sua capital, Berlim, que ficaria na área soviética); atribuição de uma zona à França, dentro da área anglo-norte-americana; formação de governos independentes nos países da Europa liberada (como no caso notório da Polônia); fixação de fronteiras territoriais; eliminação completa dos vestígios do nazifascismo; continuidade da campanha militar contra o Japão, à qual a URSS iria efetivamente aderir uma vez encerrados os combates na frente europeia, recebendo por isso compensações significativas em territórios e acesso a portos no Extremo Oriente; entre outras questões. O interesse pela organização internacional, impulsionado sobretudo pelos Estados Unidos, tinha de acomodar-se à necessidade de dar cabo dos demais tópicos sobre a mesa, cada qual com sua sensibilidade e transcendência.72 Em 4 de fevereiro, durante jantar no Palácio de Livadia, um dos assuntos em pauta foi a participação das potências menores na organização do pós-guerra. Segundo a transcrição do encontro, em numerosas ocasiões, e de forma muito clara, Stalin reiterou sua opinião de que as três grandes potências, que haviam carregado o fardo mais pesado da guerra e liberado tantos países da dominação alemã, eram as que possuíam o direito de regular a paz mundial. A União Soviética estava disposta a contribuir na parte que lhe coubesse, indicou Stalin, mas seria “ridículo pensar” que, por exemplo, a Albânia tivesse igualdade de voto em relação aos Três Grandes. Completou dizendo que alguns dos países liberados, que se dedicavam agora a reclamar da falta de consideração para com os direitos dos pequenos, pareciam agir como se os grandes 71

HILDERBRAND. Dumbarton Oaks. op. cit. p. 123. STETTINIUS Jr., Edward R. Roosevelt and the Russians: the Yalta Conference. Nova York: Doubleday, 1949, passim. 72

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tivessem a obrigação de “derramar seu sangue” para ajudá-las. Stalin se declarou disposto a proteger os direitos dos pequenos, mas “nunca” admitiria que qualquer ato das grandes potências pudesse ficar submetido ao juízo das potências menores.73 Roosevelt e Churchill concordaram com o entendimento de que as três potências ali reunidas detinham as maiores responsabilidades nas condições da paz. Por isso, estava “fora de questão” que fossem atuar seguindo os ditames das potências menores. Mas, acrescentaram, tinham de resguardar sua “responsabilidade moral” e exercer sua autoridade “com moderação e grande respeito” pelos direitos das outras nações. Tentando ser poético, o primeiro-ministro britânico chegou a proclamar: “A águia deve permitir que os pequenos pássaros cantem e não se preocupar com o que eles cantaram”.74 Na reunião de trabalho do dia 6 de fevereiro, a futura organização de segurança foi analisada com mais vagar. Roosevelt estimava que o desejo comum de todos os países era conseguir eliminar a guerra por um período de, pelo menos, 50 anos. Ele não era tão otimista a ponto de acreditar na possibilidade de uma “paz eterna”, mas uma paz que durasse 50 anos lhe parecia algo “possível e factível”. Ao passar-se à consideração da proposta norte-americana para o sistema de votação no Conselho de Segurança, os três líderes coincidiram em que a unanimidade dos membros permanentes era necessária para uma paz duradoura. Quanto à cláusula que obrigaria o Estado que fosse parte de uma controvérsia de natureza não coercitiva a abster-se de votar, os EUA e a Grã-Bretanha defenderam que qualquer membro da organização deveria ter a chance de levar suas queixas ao Conselho e “ser escutado com imparcialidade”. Se não fosse assim, críticos poderiam acusar os Três Grandes de pretender “governar o mundo”, como um triunvirato, sem nenhum apreço pela opinião dos demais membros da comunidade internacional. Favorável ao veto absoluto, Stalin não via com bons olhos essa linha de raciocínio e pediu mais tempo para estudar o assunto. Para vencer as resistências, Roosevelt e Churchill assinalaram que, conforme viam a proposta, “a autoridade da organização mundial não poderia ser dirigida contra nenhum dos membros permanentes”, premissa implícita no poder de veto sobre ações de imposição da paz.75 No dia seguinte, a surpresa. Molotov rapidamente concordou com a fórmula de votação submetida pelos Estados Unidos e reintroduziu o pleito relativo à admissão das 16 Repúblicas soviéticas na organização, assunto que havia ficado “congelado” desde Dumbarton Oaks. Adiantou que seu governo não insistiria em tê-las todas como membros fundadores, mas ficaria satisfeito com o ingresso de três ou pelo menos duas dessas Repúblicas, especialmente aquelas que haviam sofrido mais durante a guerra. O timing para trazer de novo à baila o “assunto X” é revelador da estratégia negociadora da diplomacia soviética: ao haver acabado de fazer uma concessão de monta na questão do veto, criava-se ingente expectativa de que algo lhe seria dado em troca, como de fato ocorreu.

73

CARCER, Gonzalo Aguirre de (org.). Los documentos de Yalta. Madri: Instituto de Estudios Políticos, 1956, p. 21-22. 74 Ibid. p. 22. Cf. também FRUS, The Conferences at Malta and Yalta, 1945. Washington: Department of State, Government Printing Office, 1955, p. 589-591. 75 CARCER. Los documentos de Yalta. op. cit. p. 40-45.

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Churchill desta vez expressou discreta simpatia pela reivindicação soviética de assentos adicionais na Assembleia Geral (alguns, ao invés de 16). A ideia já não parecia tão disparatada, considerando que alguns membros da Comunidade Britânica, com seu status político peculiar, seriam admitidos como Estados fundadores da ONU, com direito a voto em separado. Com efeito, cinco membros da Comunidade Britânica, que tinham como chefe de Estado o rei George VI, seriam admitidos na ONU em 1945: África do Sul, Austrália, Canadá, Nova Zelândia e Índia. Embora os Domínios fossem praticamente independentes, continuavam muito ligados a Londres. A Índia, ainda submetida ao British Raj, lutava para romper os antigos laços coloniais com a metrópole. Outro caso de soberania questionável era o das Filipinas, igualmente aceita como membro fundador da ONU. A independência filipina plena só seria reconhecida pelos EUA em julho de 1946, com a assinatura do Tratado de Manila. Stalin persuadiu Roosevelt, ainda reticente, sob o argumento de que concessões de parte a parte eram necessárias para justificar em Moscou o engajamento soviético na organização mundial. Ao final, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha prometeram apoiar a entrada da Ucrânia e da Bielorússia (também chamada de Rússia Branca).76 A terceira República soviética, cujo ingresso separado na ONU também havia sido cogitado, era a Lituânia, deixada de fora do arranjo. Como poderia parecer à opinião pública norte-americana que a URSS e o Império Britânico saíam favorecidos, pois os EUA seriam o único dos Três Grandes a ter somente um voto na Assembleia, Roosevelt solicitou por escrito garantias dos dois aliados de que endossariam eventual proposta que restituísse a igualdade e aumentasse o número de votos de seu país. Tanto Churchill quanto Stalin concordaram.77 Em Washington, chegou-se a cogitar em reivindicar lugares na Assembleia para o Havaí, Porto Rico e Alaska. Essa hipótese, todavia, avaliada como inviável na prática, seria depois abandonada pelo governo norte-americano. Registre-se que, semanas depois, em reunião fechada na Casa Branca com diplomatas e assessores, Roosevelt descreveria suas palestras com Stalin em Yalta sobre o “direito” das unidades políticas que compunham a URSS de se verem representadas em função da sua contribuição militar e dos sacrifícios incorridos na guerra. Em dada ocasião, o presidente norteamericano retrucou que, se fosse aplicada a mesma regra, ele teria de pedir 48 votos na Assembleia para os EUA e o presidente Getúlio Vargas um número equivalente aos Estados do sistema federal brasileiro.78 Algumas das decisões tomadas em Yalta foram divulgadas no comunicado de 11 de fevereiro. Outras foram mantidas em segredo por mais tempo.79 Sobre a organização mundial, ficou estabelecido que uma Conferência das Nações Unidas seria convocada para 25 de abril, em São Francisco, a fim de discutir e aprovar a sua Carta constitutiva. Os países a serem convidados para a Conferência seriam os atuais membros das Nações Unidas e as “nações associadas” que houvessem declarado guerra ao inimigo comum até 1o de março de 1945. Em nome dos Três Grandes, o governo norte-americano faria consultas junto à China e ao governo provisório francês sobre as decisões de Yalta relativas à organização proposta. O texto do convite a ser 76

Com a dissolução da URSS, em 1991, o nome oficial do país passou a ser Belarus. CARCER. Los documentos de Yalta. op. cit. p. 141-142. 78 CAMPBELL & HERRING. The diaries of Edward R. Stettinius Jr. op. cit. p. 306. 79 Um protocolo abrangente sobre os acordos finais de Yalta seria entregue à imprensa pelo Departamento de Estado somente em 24 de março de 1947. SNELL, John L. (ed.). The meaning of Yalta: big three diplomacy and the new balance of power. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1956, p. 293 et seq. 77

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enviado sugeria que a base da futura Carta fosse o projeto de Dumbarton Oaks, acrescido da fórmula de votação no Conselho de Segurança recém-aprovada. A fórmula de Yalta, como viria a ser conhecida, estabelecia em essência o seguinte: a) cada membro do Conselho teria um voto; b) as decisões em questões processuais seriam tomadas pelo voto afirmativo de sete membros; e c) as decisões em todos os outros assuntos seriam tomadas pelo voto afirmativo de sete membros, inclusive os votos afirmativos de todos os membros permanentes (aí embutido, portanto, o poder de veto). Ficou igualmente definido que, nas decisões sobre resolução pacífica de controvérsias, o membro do Conselho que fosse parte na controvérsia não poderia votar, conforme a proposta anglo-norte-americana finalmente aceita pelos soviéticos. Saía preservado desse modo o veto sobre questões que envolvessem ações do Conselho de Segurança em casos de ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão (o futuro Capítulo VII da Carta da ONU), desde sanções que não implicassem o uso da força (sanções econômicas, interrupção de contatos por meios ferroviários, marítimos, aéreos, postais, telegráficos, radiofônicos e outros, ou o rompimento de relações diplomáticas) até medidas coercitivas com forças militares (terrestres, navais ou aéreas). Apesar da polêmica em torno do veto, a fórmula de Yalta resistiu incólume à Conferência de São Francisco e viria a transformarse no artigo 27 da Carta (cf. Capítulo 4). Adicionalmente, decidiu-se que os territórios a serem colocados sob tutela seriam os mandatos existentes da Liga das Nações, os territórios tomados do inimigo na guerra em curso e qualquer outro território que voluntariamente se colocasse em regime de tutela pela nova organização. Com isso, o Império Britânico ficaria fora do alcance do Conselho de Tutela, tal como veementemente defendido por Churchill.80 O resultado favorável a Londres nesse aspecto é digno de nota, dada a debilidade britânica crescentemente visível. O historiador Jonathan Fenby, em estudo recente, expôs com precisão a dinâmica entre os Três Grandes: Em Yalta, [Roosevelt] queria chegar a um acordo sobre as Nações Unidas e a um firme compromisso dos soviéticos de entrarem na guerra do Pacífico. Alemanha à parte, o presidente não estava muito preocupado com a Europa e não queria ver questões como a da Polônia atrapalhando seus objetivos principais ou, ainda pior, pondo em risco seus planos para o pós-guerra. Já Stalin foi para Yalta com objetivos muito bem definidos – manter a ampla zona de segurança tomada pelo Exército Vermelho na Europa Oriental, assegurar seu país como grande potência e impedir condições para a Alemanha atacar novamente a Rússia. [...] A posição de Churchill era muito mais fraca, como sabiam muito bem os outros dois. Ainda era capaz de falar com firmeza e eloquência, marcando pontos importantes, mas seu país era o menos poderoso dos aliados e havia muito perdera sua aura de 1940. Tanto os soviéticos 81 quanto os americanos sabiam que o vento do futuro soprava em suas velas.

Com o sinal verde dos líderes aliados, a obra agora estaria praticamente completa. Da perspectiva dos planejadores, seus alicerces fundamentais estavam bem plantados. A organização que surgisse após São Francisco talvez não fosse exatamente a mesma prevista por eles, mas não poderia ser muito diferente. Com efeito, Gromyko calculou em suas memórias que a minuta de

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CLEMENS, Diane Shaver. Yalta. Nova York: Oxford University Press, 1970, p. 240-243. FENBY, Jonathan. Os Três Grandes: Churchill, Roosevelt & Stalin ganharam uma guerra e começaram outra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p. 375. 81

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Dumbarton Oaks teria correspondido a 90% do texto definitivo da Carta da ONU.82 Para Roosevelt, Yalta fora um esforço “bem-sucedido” das três nações para alcançar um entendimento comum sobre a paz. Na linha um tanto benévola que o presidente pretendia passar ao público, o encontro havia tido o condão de sacramentar “o fim do sistema de ação unilateral, alianças exclusivas e esferas de influência, equilíbrios de poder e todos os outros expedientes que haviam sido tentados por séculos e sempre haviam falhado”.83 Seria a ONU realmente capaz de superar a lógica tradicional do equilíbrio de poder e dar outro significado ao desacreditado multilateralismo da Liga das Nações? Um sistema de concerto dos vitoriosos No estudo do período do imediato pós-guerra, historiadores da Guerra Fria tendem em geral a menosprezar o papel da ONU e concentram suas análises na rivalidade entre as superpotências, entre os blocos capitalista e socialista, entre a OTAN e o Pacto de Varsóvia, e outras dualidades características do pós-1945. Deixam assim de considerar que a ONU era central no planejamento político durante a Segunda Guerra Mundial. Na visão de Roosevelt, que Churchill e Stalin terminaram endossando, caberia à organização reger a segurança mundial de forma abrangente. Não seria mero apêndice do sistema de pós-guerra, mas o seu núcleo, justificado no plano interno como antídoto contra eventual recaída isolacionista semelhante àquela verificada na década de 1920.84 Por isso, os Estados Unidos fizeram da ONU um dos pilares de sua estratégia de longo prazo. Vista como parte de um projeto maior, a segurança que a nova organização deveria proporcionar daria a estabilidade política necessária para a recomposição do sistema econômico mundial, conforme definido em Bretton Woods. Os EUA iriam sim engajar-se no multilateralismo, mas preservada sua soberania e liberdade de ação, sustentadas no poder de veto, condição para permitir a ratificação da Carta pelo Senado. A política interna sempre teve grande influência no pensamento e nas ações de Roosevelt. Widenor sustentou que Roosevelt havia transitado da “absoluta supremacia” dos Quatro Policiais a um sistema universal de segurança coletiva com a participação das potências menores. A mudança acompanhava o crescente entusiasmo popular, nos últimos anos da guerra, por uma organização mais liberal e democrática, similar à Liga das Nações, porém mais forte, o suficiente para ser efetiva, “mas certamente não tão forte a ponto de derrogar a soberania nacional”.85 Roosevelt acreditava que a opinião pública norte-americana iria pressionar o governo para que houvesse uma desmobilização militar após o conflito e uma reorientação da economia de volta a atividades civis, com a consequente queda na produção da indústria bélica. Com a 82

Apud PATRIOTA, Antonio de Aguiar. O Conselho de Segurança após a Guerra do Golfo: a articulação de um novo paradigma de segurança coletiva. Brasília: Instituto Rio Branco/FUNAG/CEE, 1998, p. 21. 83 KEGLEY, Charles W. & RAYMOND, Gregory A. How nations make peace. Nova York: St. Martin’s Press, 1999, p. 177-178. 84 PATRICK, Stewart. The best laid plans: the origins of American multilateralism and the dawn of the Cold War. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, 2009, cf. especialmente capítulos 2 e 3. 85 WIDENOR, William C. American planning for the United Nations: have we been asking the right questions? Diplomatic History. Wilmington: vol. 6, no 3, Summer 1982, p. 264.

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aquiescência da Grã-Bretanha afiançada por valores e interesses convergentes, o que Roosevelt também buscava era uma União Soviética cooperativa na Europa e uma China estável na Ásia, a fim de que os contingentes militares norte-americanos pudessem ser rapidamente diminuídos após a guerra. A ONU seria o instrumento para a consecução deste objetivo: o máximo de segurança para os Estados Unidos a um mínimo de custo nacional.86 Churchill e Stalin também saíam atendidos em suas necessidades mais imediatas. A Grã-Bretanha garantia sua posição na liga principal das potências, assegurava o apoio norteamericano para prevenir que uma única força se tornasse hegemônica na Europa continental e mantinha seu Império relativamente protegido de investidas indesejáveis.87 A União Soviética, por seu turno, obtinha o reconhecimento ocidental de seu status inconteste de grande potência, com papel especial na sua zona de segurança prioritária na Europa Oriental, onde ergueria um sistema de defesa próprio para a eventualidade de que a ONU falhasse em sua missão primordial. Tratava-se de uma troca com as potências ocidentais: uma organização mundial de segurança sem a URSS não poderia ser efetiva e a continuidade da colaboração soviética dependia das garantias que a URSS recebesse para sua segurança nacional.88 Stalin não esquecera a demora dos aliados ocidentais em abrir a segunda frente na Europa, a um pesado custo humano e material para os povos soviéticos. Visto do ângulo da psique russa, seu país havia feito a maior contribuição para a vitória sobre Hitler, invencível até Stalingrado, a batalha que mudou a sorte da guerra e iniciou a grande ofensiva do Exército Vermelho até a tomada de Berlim. Na hora oportuna, Stalin esperava cobrar sua fatura sem ser questionado por isso. O plano de Dumbarton Oaks, com os adendos acordados em Yalta, foi por todos os títulos uma criação política. A hipótese pouco plausível de um “governo mundial”, ou qualquer estrutura semelhante, foi de antemão dada por impraticável. No começo do planejamento, ainda foram articuladas e discutidas algumas propostas mais ambiciosas, que poderiam ter resultado, por exemplo, na criação de uma “força internacional” sob a égide da ONU. Essas alternativas extremas seriam depois diluídas ao se verem confrontadas com as objeções que os interesses vitais das grandes potências ditavam. Para que a proposta de organização tivesse aplicabilidade concreta, reconheciam os principais atores envolvidos, não podia ferir frontalmente esses interesses. No frigir dos ovos, qualquer medida mais enérgica contra um agressor deveria ser tomada por forças armadas nacionais, por intermédio de um mecanismo de policiamento coletivo delegado aos mais armados. A aspiração de uma ONU poderosa, independente, teve de ceder às preocupações estratégicas dos Três Grandes, que apontavam para um unilateralismo crescente. Como afirmou Hilderbrand, “o vocabulário da paz, empregado com tanta frequência durante a guerra, havia sido substituído pela linguagem da segurança nacional”.89 Em contraste com sua predecessora, a ONU teria atrativos suficientes para tornar vantajoso o ingresso (e a permanência) das maiores potências da época. Tal como originalmente concebido, o Conselho de Segurança era a instância a ser acionada em caso de desafios ao status quo que iria emergir após a guerra, consubstanciado em um sistema de concerto gerido pelos 86

CAMPBELL. Masquerade peace. op. cit. p. 86-87. Para uma análise de ideias britânicas sobre o papel da ONU na defesa de seu império colonial, cf. MAZOWER, Mark. No enchanted palace: the end of empire and the ideological origins of the United Nations. Princeton: Princeton University Press, 2009. 88 SCHILD. Bretton Woods and Dumbarton Oaks. op. cit. p. 47. 89 HILDERBRAND. Dumbarton Oaks. op. cit. p. 256. 87

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vitoriosos. Como qualquer concerto entre potências, sua função era dupla: promover a harmonia entre seus integrantes e definir fórmulas para lidar com terceiros, estabelecendo regras, padrões e comportamentos. As resoluções do Conselho teriam força jurídica vinculante erga omnes e como tal deveriam ser cumpridas por todos os Estados-membros representados na Assembleia Geral. O privilégio do veto daria aos membros permanentes imunidade e, ao mesmo tempo, capacidade de controlar decisões substantivas do Conselho. Enquanto no FMI e no BIRD o voto seria ponderado, dando-se mais peso aos países de maior expressão econômica, a adesão das grandes potências militares ao sistema de “um país, um voto” na Assembleia Geral, conforme o princípio da igualdade dos Estados, foi compensada pela institucionalização do veto no Conselho de Segurança, órgão de composição restrita mais suscetível a critérios hierárquicos de poder. Além disso, cuidou-se para que o texto da Carta enfatizasse o potencial para agir, eximindo-se os P-5 da obrigatoriedade de fazer algo se não quisessem. Caberia ao Conselho – e somente ele – determinar a existência de qualquer “ameaça à paz”, “ruptura da paz” ou “ato de agressão”.90 Em consequência, embora mais estruturado e assertivo do que o da Liga das Nações, o sistema de segurança coletiva a ser estabelecido pela ONU seria mantido de forma deliberada em nível baixo e sob controle de seus principais fundadores, por temor de se criar uma organização genuinamente forte, com relativa autonomia, dotada de capacidade militar própria para intervir decisivamente nos conflitos. Em especial, decisões sobre o uso da força eram entendidas como chasse gardée das grandes potências e nenhuma organização multilateral deveria desafiar esse modo de ver. O resultado, no seu conjunto, foi um institucionalismo mínimo, que não ousou questionar a soberania dos Estados e tampouco alterou a essência do sistema político interestatal. A governança mundial permaneceria descentralizada. A ONU seria, para o bem ou para o mal, uma organização intergovernamental dependente da vontade de seus Estados-membros, em particular de alguns deles. A tentativa de solução para o “problema da ordem” foi dada dentro de um marco constitucional bem delimitado, com regras claras e procedimentos para regular determinados aspectos das relações entre Estados soberanos e impor algum grau de respeito às normas internacionais. Mas o foco da negociação não foi a busca do bom direito. Nesta primeira fase, conduzida exclusivamente pelas grandes potências, a preocupação com a justiça se revelou secundária à luz das exigências de ordem. Os demais países, que apenas assistiram a esse processo e foram informados a posteriori de decisões tomadas secretamente, seriam agora convidados a opinar sobre o projeto. Até que ponto aceitariam o pacote que lhes era oferecido? Entre o poder e a razão, qual seria o lugar a ser ocupado pelo direito internacional no edifício onusiano? Novos lances de árdua e copiosa diplomacia certamente ainda estavam por vir.

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BOSCO, David L. Five to rule them all: the UN Security Council and the making of the modern world. Oxford: Oxford University Press, 2009, p. 22; GRIGORESCU, Alexandru. Mapping the UN-League of Nations analogy. Global Governance. Boulder: vol. 11, nº 1, 2005, p. 38; SCHILD. op. cit. p. 168.

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CAPÍTULO 2 O BRASIL ENTRE A GUERRA E A DIPLOMACIA A política tradicional do Brasil pode resumir-se na seguinte fórmula: apoiar os Estados Unidos no mundo em troca do seu apoio na América do Sul. Oswaldo Aranha

Getúlio Vargas, o Estado Novo e o conflito global Poucos dias depois do rompimento de relações diplomáticas entre o Brasil e as potências do Eixo, formalizado em 28 de janeiro de 1942, o presidente Getúlio Vargas escreveu uma carta a seu pai, Manuel do Nascimento Vargas, que havia indagado ao filho sobre o porquê da decisão. A carta manuscrita dizia o seguinte: Meu pai, Recebi seu cartão e vou responder sua pergunta política. Entre dois blocos de nações que disputam o domínio do mundo, não podíamos mais ficar neutros, ainda que quiséssemos. Preferimos ficar com o Continente Americano e, principalmente, com os Estados Unidos. Isso está de acordo com a nossa tradição, a nossa história e os nossos interesses. Corremos o risco da guerra, mas não pretendemos entrar nela. Em todo caso estamos nos preparando para a nossa defesa, se formos 91 atacados.

A aliança estratégica com os Estados Unidos parecia materializar uma antiga aspiração brasileira: a crença na necessidade e conveniência de manter uma “relação especial” com a potência líder do continente. Na chamada Era Vargas, o pensamento diplomático brasileiro permanecia ainda muito marcado pela hegemonia ideológica do pan-americanismo, que se havia convertido em doutrina implícita e paradigma de política exterior. Desde 1889, o Brasil era um membro assíduo e diligente das Conferências Pan-americanas. Consoante a “ideia de Hemisfério Ocidental”, declarava-se pertencer a uma “comunidade americana”, unida por laços tradicionais de “solidariedade continental”. A estratégia diplomática brasileira resultava assim do cruzamento entre duas ideias interrelacionadas: uma versão idealizada do pan-americanismo, associada à presunção de entente com os Estados Unidos. Mas, como assinalou Gerson Moura, a aliança Brasil-EUA, selada em 1942, não foi o resultado “natural” de laços históricos comuns entre os dois países ou exemplo de “boa vontade” desinteressada de qualquer uma das partes. A aliança política e militar foi produto de um processo contínuo de difíceis negociações e barganhas entre os dois governos, que frequentemente perseguiam objetivos distintos.92

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Getúlio Vargas a Manuel do Nascimento Vargas, carta particular, Rio de Janeiro, 5 fev. 1942, Museu da República, Arquivo Histórico, GV 01 (5) cr. 92 MOURA, Gerson. Brazilian foreign relations, 1939-1950: the changing nature of Brazil-United States relations during and after the Second World War. PhD Dissertation, University College London, 1982, p. 116-117.

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Mesmo antes da Segunda Guerra Mundial, malgrado os ensaios de aproximação comercial com a Alemanha e as simpatias nazistas de autoridades do Estado Novo, o enquadramento hemisférico continuou sendo a opção estratégica número um para o Brasil, sobretudo com a polarização da política mundial entre as potências do Eixo e os Aliados. A tentativa de “barganhar” o alinhamento não escondia o fato de que, uma vez firmemente instalado no campo aliado, o Brasil estava fadado a perder parte de sua autonomia relativa na área das relações exteriores. Particularmente após o reconhecimento do estado de beligerância com a Alemanha e a Itália, em agosto de 1942, os objetivos brasileiros ficaram condicionados pela aliança e seriam por ela cada vez mais influenciados.93 A decisão subsequente de mobilizar a Força Expedicionária Brasileira (FEB) mostrou a extensão que havia atingido o entrelaçamento entre os planos do Brasil e a alavancagem fornecida pelos Estados Unidos, que por considerações de alta política (apesar de resistências em determinados setores) apadrinharam o projeto, exclusivamente de iniciativa do governo brasileiro. Objetada pela Grã-Bretanha, a FEB foi aceita somente após a decisiva intervenção norte-americana. O Brasil se tornou assim o único país latino-americano a efetivamente enviar tropas para combate na Europa.94 Uma breve digressão será útil para situar melhor o contexto interno em que se dava o envolvimento brasileiro no conflito. O Estado Novo, instaurado em novembro de 1937, havia sido a resposta continuísta de Vargas à aguda radicalização ideológica na década de 1930. Os extremos políticos à direita (integralismo) e à esquerda (comunismo) saíram derrotados. Prevaleceu um conservadorismo autoritário, com Estado forte, centrado no poder pessoal do presidente. A Constituição de 1937, outorgada no dia do golpe estadonovista, quase não foi cumprida em função do estado de guerra, que permitiu a Vargas governar por decreto e sem limitações até 1945. O regime significou o fim das liberdades individuais e garantias constitucionais. O governo podia estender o estado de sítio, invadir domicílios e violar a correspondência. Foi suprimida a autonomia dos Estados e conferidos poderes ao presidente para dissolver o Congresso, as Assembleias estaduais e as Câmaras municipais, substituir governadores e nomear interventores nos Estados. Usando de suas novas prerrogativas constitucionais, Vargas fechou o Congresso Nacional. As imunidades parlamentares foram suspensas. Todos os partidos políticos também foram extintos.95 O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) se encarregava de impor rígida censura aos meios de comunicação e gerir a máquina de difusão das posições oficiais. Da perspectiva do DIP, a democracia se assemelhava à anarquia. Os opositores do regime eram 93

Circular nº 1.647 às Missões diplomáticas estrangeiras no Rio de Janeiro. Ministério das Relações Exteriores. O Brasil e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944, vol. II, p. 189-190. 94 Há numerosa bibliografia sobre a FEB, de testemunhos de ex-combatentes a análises relativas ao processo decisório que levou à sua criação, preparo e envio à Itália. Cf. BONALUME Neto, Ricardo. A nossa Segunda Guerra: os brasileiros em combate, 1942-1945. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1995; VIGEVANI, Tullo. Questão nacional e política exterior. Um estudo de caso: formulação da política internacional do Brasil e motivações da Força Expedicionária Brasileira. Universidade de São Paulo, Tese de Doutorado, 1989; e ALVES, Vágner Camilo. Da Itália à Coreia: decisões sobre ir ou não ir à guerra. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: IUPERJ/Editora UFMG, 2007; entre outros. 95 A título de referência geral, veja-se D’ARAUJO, Maria Celina. O Estado Novo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000; e, organizado pela mesma autora, As instituições brasileiras da era Vargas. EdUERJ/Editora Fundação Getúlio Vargas, 1999.

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perseguidos pela polícia política, chefiada no Distrito Federal por Filinto Müller. O debate livre se tornou inexistente. Sem o Legislativo, as forças políticas em desacordo com o governo foram arrastadas à clandestinidade. As estruturas do Estado se tornaram alvo de disputas internas. Um assessor de confiança de Vargas resumiu bem o que isso significava: “Depois de 10 de novembro de 1937, a política não podia mais ser feita fora do Executivo. Então passou a se processar dentro do governo”.96 Esse cenário teve reflexos na economia e no modelo de modernização conservadora que foi implementado. O Estado deveria organizar a nação e prover o desenvolvimento econômico, dentro da ordem, pondo fim aos conflitos sociais, às lutas partidárias e aos excessos da liberdade de expressão que, dizia a retórica governamental, só serviam para debilitar o país. A indústria de base, a siderurgia e o petróleo eram centrais do ponto de vista do planejamento econômico, que estimulava o surgimento de grandes empresas estatais ou de economia mista. Para conquistar o “progresso”, o Brasil devia entrar na “era do aço”. Exemplos dessa tendência foram a Companhia Siderúrgica Nacional (para administrar a usina siderúrgica de Volta Redonda) e a Companhia Vale do Rio Doce (resultado da desapropriação da Itabira Iron Ore Company), criadas em 1941 e 1942 respectivamente. Considerada o projeto-símbolo da industrialização pesada no Estado Novo, a implantação da siderurgia em Volta Redonda, resultado de acordo concluído em 1940 com os EUA, já foi sobejamente analisada na historiografia e não necessita de maior detalhamento aqui.97 Apesar do crescimento da produção industrial e do nível de emprego no setor secundário, a economia brasileira ainda era dependente dos produtos primários e do comércio exterior. Os principais itens da pauta geral de exportação do Brasil para o mundo eram o café, algodão em rama, tecidos, pinho, cacau, peles e couros, fumo, cera de carnaúba, arroz e carnes em conserva. Ao longo da década de 1940, o café em grão, principal produto nacional, manteve uma participação média de 43% nas exportações. Houve um aumento episódico nas exportações brasileiras de manufaturados nos anos de guerra, que diminuiu rapidamente findo o conflito. No período 1949-51, a participação média dos produtos industrializados já era inferior a 9%, correspondendo aos manufaturados em sentido estrito apenas 1,5% do total exportado.98 Em 1939, o Brasil tinha uma população de 40,3 milhões de habitantes e continuava obrigado a importar gêneros alimentícios. As importações incluíam máquinas e ferramentas, automóveis, carvão, óleos combustíveis, trigo, comestíveis industrializados, produtos químicos e artigos manufaturados em geral. A guerra afetou o fornecimento de diversos produtos importados da Europa, mas, por outro lado, permitiu o acúmulo de expressivos superávits comerciais a partir de 1941, com maior concentração das trocas no continente americano. A participação dos EUA nas exportações brasileiras subiu de 36% em 1939 para mais de 47% em 1945. O café e o algodão respondiam por pouco mais da metade de todo o valor exportado. A importação originária dos EUA também aumentou significativamente e chegou a representar 61% do total importado pelo Brasil em 1944. No cômputo geral, incluindo a área financeira, os anos de guerra contribuíram enormemente para tornar ainda mais preponderante a presença norte-americana na 96

José Soares Filho a Vargas, carta, Rio de Janeiro, s/d, Museu da República, Arquivo Histórico, GV 04 (3) cr. Cf. bibliografia referida ao final deste livro. 98 CHAMI, Jorge. O setor externo brasileiro no século XX. In: Estatísticas do século XX. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2003, p. 418-419. 97

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economia brasileira. Maior comprador de artigos brasileiros e um dos poucos países capazes então de oferecer capitais e financiamentos, os EUA deslocaram antigos competidores e ocuparam novos nichos de mercado.99 Essa supremacia norte-americana se estendeu à cooperação militar. No Estado Novo, os militares tiveram papel-chave, em particular os Generais Góes Monteiro (chefe de EstadoMaior) e Eurico Gaspar Dutra (ministro da Guerra). As Forças Armadas se fortaleceram como ator político e instituição, inclusive pelo expurgo de elementos comunistas e integralistas. As polícias estaduais ficaram proibidas de utilizar armamento pesado. O orçamento militar aumentou em quase 50% em 1937. O efetivo do Exército subiu de 48 mil soldados em 1930 a 93 mil em 1940. A alta cúpula militar, leal a Vargas, viu no conflito global a oportunidade de reequipar as forças terrestres, navais e aéreas, em estado de lastimável penúria. A partir de 1941, a única fonte externa viável eram de fato os Estados Unidos. Por meio do Programa de Empréstimo e Arrendamento (Lend & Lease), até o final da guerra o Brasil receberia cerca de US$ 360 milhões em equipamento militar norte-americano, equivalente a 73% do total enviado à América Latina.100 Em seus planos de defesa do Hemisfério Ocidental, os Estados Unidos precisavam contar com um aliado sul-americano que pudesse coadjuvar os esforços de proteção do Atlântico Sul e da costa oriental do continente, especialmente o Nordeste brasileiro, de importância geopolítica para prevenir qualquer tentativa do Eixo de estabelecer ali uma cunha de penetração que pudesse ser usada para ameaçar o Caribe ou até mesmo o Canal do Panamá. Na percepção de analistas militares norte-americanos, a Marinha brasileira era “tão antiquada” que os especialistas a consideravam “de pouco valor para uma ação contra navios de guerra modernos”. O Exército tampouco dispunha de equipamento de combate tecnologicamente avançado. A Força Aérea, que se tornou um Ministério independente somente em 1941, não tinha aviões de combate modernos e seria “bem mais fraca do que as da Argentina e do Peru”. A política de defesa tradicional do Brasil também era vista como um problema para os propósitos defensivos dos EUA. As diretrizes estratégicas brasileiras previam a concentração de forças do Exército na região populosa do Sudeste e no Sul, adjacente às fronteiras com a Argentina e o Uruguai, onde havia ademais concentração de minorias estrangeiras, em particular comunidades de origem alemã. Como assinalaram Conn & Fairchild, em consequência da concentração militar na fronteira sul, os 4 mil km de costa, ao norte do Rio de Janeiro, estavam, em 1939, “praticamente indefesos”. Não havia instalações de qualquer tipo para defesa costeira, nenhuma defesa contra ataques aéreos e “quase nenhuma tropa para fazer frente a um invasor”. Os meios de comunicação terrestre por via rodoviária ou ferroviária, que permitiriam um desdobramento rápido de tropas do Centro-Sul para o Nordeste, eram também inexistentes.101 Os Departamentos de Guerra e da Marinha dos EUA elaboraram diversos planos de contingência para despachar forças norte-americanas ao saliente nordestino como medida preventiva. Mesmo antes de iniciar-se a guerra na Europa, o plano Rainbow 1 previa a proteção 99

Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado da Fazenda, exercício de 1946. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948, p. 165-174. 100 Sobre a cooperação militar Brasil-EUA no final da guerra, cf. DAVIS, Sonny B. A brotherhood of arms: BrazilUnited States military relations, 1945-1977. Niwot: University Press of Colorado, 1996, p. 20 et seq. 101 CONN, Stetson & FAIRCHILD, Byron. A estrutura de defesa do Hemisfério Ocidental: o Exército dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2000, p. 326.

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de todo o território dos EUA e do restante do Hemisfério Ocidental ao norte da latitude de 10º meridiano sul, o que colocava Natal, no Rio Grande do Norte, na zona de atenção prioritária. O objetivo era assegurar o controle de bases e instalações navais e aéreas no litoral norte do Brasil. Diante da impressionante ofensiva alemã contra a França, em maio de 1940, os planejadores norte-americanos conceberam um ambicioso plano, com o nome código de Pot of Gold, que antecipava a necessidade de deslocar, em caráter de emergência, uma grande força expedicionária para pontos na costa brasileira, incluindo um escalão avançado de 10 mil homens, a serem transportados de avião. Ainda outro plano, chamado de LILAC, arquitetado no final de 1941, após o ataque japonês a Pearl Harbor, pretendia concentrar tropas norte-americanas na área Belém-Natal-Recife. Projetava-se um força de cerca de 15 mil efetivos, com apoio aéreo adequado e, caso necessário, duas unidades de reforço, cada uma com 19 mil homens.102 Se o esforço de guerra assim o exigisse, a operação seria executada com ou sem o aval do governo brasileiro. Mas a preferência do governo dos EUA, naturalmente mais fácil e econômica, era garantir sua presença no Nordeste com a anuência das autoridades locais, enfim obtida em longas negociações entre os dois países. Ao selar as bases dessa cooperação, o ponto central da barganha para os militares brasileiros era extrair um compromisso concreto e efetivo de fornecimento de material bélico por parte dos EUA. Para todos os efeitos, a aliança estratégica, uma vez consumada, criou um vínculo de impacto duradouro no conjunto das relações bilaterais, com reflexos na política externa e nas (poucas) opções de inserção internacional disponíveis para o Brasil na época.103 A FEB foi um caso à parte. Do ponto de vista do Rio de Janeiro, era grosso modo uma maneira de sustentar a relevância estratégica do Brasil (muito diminuída após a vitória aliada no norte da África) e justificar a continuidade da assistência militar. Exprimia concretamente o desejo do Brasil de ser aceito como “potência associada” e assim garantir sua presença nas conversações do pós-guerra. Como disse Vargas ao subsecretário de Estado Sumner Welles, em janeiro de 1942, o Brasil não podia ser tratado como “uma pequena potência centro-americana”, satisfeita apenas com tropas norte-americanas estacionadas em seu território.104 Para o presidente brasileiro, a FEB ajudava também a manter seus oficiais ocupados com a guerra e – mais importante – longe da política. Mas não necessariamente isso era garantido. Vargas tinha bem presente os riscos potenciais que o envio da FEB poderia trazer para seu futuro político. Como depois comentaria Góes Monteiro, “a vida interna do país, então beligerante, decorria sem grandes lances, debaixo do regime ditatorial e das injunções da própria guerra”. O comando da Força Expedicionária abria uma janela de oportunidade para o surgimento de novas lideranças oriundas dos quadros militares. “Já se vislumbrava, entre os rumores e as criações da imaginação, que o general que voltasse vitorioso da guerra externa, por menos que fizesse, estaria creditado para tomar conta do poder no Brasil...”, rememorou Góes Monteiro.105 Não foi exatamente o que sucedeu, é claro: Mascarenhas de Morais comandou a FEB, mas Dutra seria o eleito para o Catete. Não obstante, o fato relevante era a constatação de que o momento peculiar da Segunda Guerra Mundial repercutia internamente de forma muito 102

Ibid. p. 31, 59 e 375. Para uma apreciação do tema, cf. ALVES, Vágner Camilo. O Brasil e a Segunda Guerra Mundial: história de um envolvimento forçado. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2002. 104 Apud MOURA. Brazilian foreign relations, 1939-1950. op. cit. p. 85. 105 COUTINHO, Lourival. O general Góes depõe... Rio de Janeiro: Livraria Editora Coelho Branco, 1956, p. 390. 103

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intensa e cada novo movimento, na guerra ou na diplomacia, poderia ter consequências apreciáveis (e muitas vezes imprevistas) no jogo de poder do Estado Novo. A Cúpula de Natal O caráter fortemente centralizado do Estado Novo marcou o processo decisório em todas as suas esferas. Vargas se tornou o “árbitro” do sistema político. Por isso, nos momentos realmente críticos, não delegava a política externa e de defesa nem ao Itamaraty nem às Forças Armadas. Seu envolvimento pessoal nos temas afetos às relações exteriores, no dizer de Sérgio Danese, fez de Vargas o “primeiro presidente-chanceler do Brasil”.106 O centralismo presidencial pôde ser bem observado na Cúpula de Natal entre Vargas e o presidente Franklin Roosevelt, em 28 de janeiro de 1943. Sob o pretexto do sigilo necessário por questões de segurança, Vargas viajou acompanhado de apenas dois ajudantes e dispensou a presença de seus ministros das Relações Exteriores e da Guerra. Vargas deslocou-se de avião para Natal junto com o embaixador dos EUA, Jefferson Caffery, o vice-almirante Jonas Ingram, comandante das forças aliadas no Atlântico Sul, o brigadeiro Robert Walsh, do Comando de Transporte Aéreo, o adido naval norte-americano no Rio, Augustin Beauregard, e alguns assessores militares. As autoridades do Rio Grande do Norte só souberam da presença dos presidentes quando os dois iniciaram visita às instalações militares no jipe no 7 do Exército dos EUA. Nessa ocasião foi tirada a foto mais famosa da cúpula, entre sorrisos e conversas descontraídas.107 Os dois presidentes visitaram a base aérea de Parnamirim e discutiram a contribuição brasileira ao esforço de guerra. Vargas expressou sua determinação em promover a adesão do Brasil às Nações Unidas e ainda acenou com eventual envio de tropas aos territórios portugueses de Açores e Madeira. Fez questão de lembrar a Roosevelt, contudo, que o Brasil ia precisar de equipamentos dos EUA para as forças militares brasileiras.108 Essa expectativa de contar sempre com o auxílio norte-americano estava no cerne da estratégia brasileira, como pensava, por exemplo, Oswaldo Aranha, na chefia do Itamaraty desde 1938. Como não iria a Natal, Aranha dirigiu dias antes uma carta de sete páginas a Vargas, expondo em detalhes sua visão do pós-guerra e da posição que o Brasil deveria buscar em virtude de sua contribuição ao esforço aliado. Logo na primeira frase, Aranha definiu sua linha mestra de política externa: “A política tradicional do Brasil pode resumir-se na seguinte fórmula: apoiar os Estados Unidos no mundo em troca do seu apoio na América do Sul”. Essa fórmula Aranha repetiria muitas outras vezes, em diferentes momentos, mesmo anos depois de deixar o Itamaraty. Um exemplo foi em 1950, em palestra na Escola Superior de Guerra, quando Aranha repetiu sua máxima praticamente ipsis litteris.109 Não era, portanto, um pensamento apressado nem

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DANESE, Sérgio França. Diplomacia presidencial: história e crítica. Rio de Janeiro, Topbooks, 1999, p. 307. SILVA, Hélio. 1944 - O Brasil na guerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974, p. 54-55; “RooseveltVargas conference held on U.S. destroyer in Natal Harbor”, The New York Times, Nova York, 30 jan. 1943, NYT Archive, www.nytimes.com, acesso em 18/12/2009. 108 McCANN Jr, Frank D. A aliança Brasil-Estados Unidos, 1937-1945. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1995, p. 245-246. 109 HILTON, Stanley E. Oswaldo Aranha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p. 463. 107

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extemporâneo, mas algo em que ele realmente acreditava. Era, em essência, a Doutrina Aranha, que estaria sendo “fielmente seguida” pelo governo Vargas. Para Aranha, o Brasil deveria afirmar, em todas as oportunidades que fossem oferecidas, que esta era a política que o país estava “decidido a fazer na guerra até a vitória das armas americanas e na paz até a vitória da consolidação dos ideais americanos”. O Brasil, assim como os Estados Unidos, havia sido sempre pela não intervenção na Europa. As duas guerras mundiais, porém, vieram mostrar que não haveria mais guerras exclusivamente europeias, como no século XIX: A interdependência dos povos e dos continentes evidenciou a impossibilidade de ficar a América à margem dos acontecimentos europeus, e até mesmo dos asiáticos e africanos. Os Estados Unidos serão chamados à liderança da paz no mundo, como foram à da guerra, e o Brasil, consequente com seu passado e consciente de seus interesses atuais e futuros, deve formar ao lado dos Estados Unidos. Querer afastar o Brasil da “guerra e da paz” ou mesmo deixar de estudar e trabalhar desde já pela 110 posição que ao Brasil deve caber nesses acontecimentos seria erro de graves resultados.

Por suas costas imensas, pelas fronteiras com dez nações, pelo tamanho e riqueza do território, pela heterogeneidade da população, o Brasil (como os EUA) seria um país “cósmico e universal”, cujo futuro não poderia “ser local, nem mesmo nacional, mas continental e mundial”. Aranha reconhecia que o Brasil ainda era fraco econômica e militarmente, “sem autoridade bastante para decidir no seio das grandes nações”. Pensava, todavia, que com população e capital, que viriam por crescimento natural ou afluiriam para o Brasil ao fim da guerra, “mais dia ou menos dia o nosso país será inevitavelmente uma das grandes potências econômicas e políticas do mundo, como já é a segunda da América”. Nada, pois, explicaria eventual retraimento brasileiro naquela hora. Aranha propõe que o Brasil deveria aderir à Carta do Atlântico e à Declaração das Nações Unidas, pleitear um lugar nos conselhos militares e participar de todos os comitês de estudo das Nações Unidas. A colaboração diplomática que o Brasil vinha prestando, amparada no pan-americanismo, devia continuar. Na área econômica, era preciso estudá-la, “sobremodo a parte que temos a dar e a que precisamos receber”. Aqui fica evidente que Aranha esperava obter contrapartidas pelo engajamento brasileiro. “Devemos ceder na guerra para ganhar na paz”, escreveu. Aranha acrescentou: “O problema econômico da paz, para nós, cifra-se à adoção dos ideais liberais de comércio para as transações mundiais, da intensificação da cooperação norte-americana para o ‘programa Vargas’ de industrialização do país, e do livre trânsito e fácil acesso de imigrantes e capitais para e no Brasil. [...] A cooperação militar está regulada pelo ‘acordo secreto’ e está sendo posta em execução pelas Comissões Mistas”. Seria também do interesse do Brasil ter uma participação mais efetiva de ordem militar: “a política na guerra se faz com a guerra e não com a paz”. O Brasil deveria começar a se preparar como se tivesse de engajar-se “amanhã em terra, no mar e no ar”. Essa preparação por si mesma, avaliou, seria contada como uma ou muitas vitórias na mesa da paz. Em seguida, Aranha fez algumas considerações sobre temas internacionais específicos, tais como a sorte do império colonial português em caso de queda do governo 110

Aranha a Vargas, carta, Rio de Janeiro, 25 jan. 1943, IHGB, Arquivo Estevão Leitão de Carvalho, Lote 507, Livro 3.

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Salazar, a hipótese de se eliminarem as possessões coloniais europeias na América e a situação no continente africano: “Portugal terá dias de anarquia a seu império correrá graves riscos, as colônias e as ilhas. Devemos reclamar que para qualquer decisão contaremos com o apoio americano em favor dos pontos de vista que viermos a adotar na defesa de um patrimônio que é hereditariamente dos brasileiros. A América deve eliminar as colônias europeias por acordo com as Nações Unidas (Inglaterra e Holanda) e pela libertação das demais colônias. O Brasil quer participar das negociações e dos mandatos, especialmente da Guiana francesa, que diz com a segurança do Amazonas”. Sobre a África, Aranha recomendou a Vargas que acompanhasse seus problemas com cuidado particular, “mesmo porque devemos reclamar um lugar nas deliberações sobre o futuro desse continente colonial”. Em suma, concluiu Aranha, o Brasil deveria procurar tirar da guerra as seguintes consequências: a) uma melhor posição na política mundial; b) uma melhor posição na política com os países vizinhos pela consolidação de sua preeminência na América do Sul; c) uma mais confiante e íntima solidariedade com os Estados Unidos; d) uma ascendência cada vez maior sobre Portugal e suas possessões; e) criação de um poder marítimo; f) criação de um poder aéreo; g) criação de um parque industrial para as indústrias pesadas; h) criação da indústria bélica; i) criação das indústrias, agrícolas, extrativas e de minérios leves complementares dos norteamericanos e necessários à reconstrução mundial; j) extensão de suas vias férreas e rodovias para fins econômicos e estratégicos; 111 k) exploração dos combustíveis essenciais.

Aranha mostrou sua carta ao embaixador Caffery, que a comentou com Roosevelt pouco antes do encontro com Vargas em Natal. Esse documento, particularmente a lista final das pretensões brasileiras, dá bem a medida das altas expectativas que as autoridades do governo tinham em relação aos ganhos a serem extraídos da participação do Brasil na guerra. Não seriam somente vantagens políticas de prestígio ou projeção diplomática, mas todo um ambicioso programa de desenvolvimento e de fortalecimento da capacidade nacional nos campos militar, econômico e de infraestrutura. Pelo menos desde 1939, ano da Missão Aranha aos EUA, o governo brasileiro buscava um parceiro para alavancar o desenvolvimento industrial e promover o “aparelhamento econômico do Brasil”. Diante da escassez de divisas no mercado internacional e da insuficiência do capital nacional, relatórios da época apontavam ser imprescindível a obtenção de assistência técnica e capitais externos para essa empreitada: “Sem a colaboração de um país industrializado, e dispondo de tecnologia avançada, o Brasil não poderá levar avante, com a rapidez necessária, a reconstrução econômica”.112 O alinhamento com os Estados Unidos – assim se imaginava – haveria de ser devidamente recompensado, em termos amplos e muito concretos, em benefício dos objetivos estratégicos brasileiros. Ter voz nas negociações de paz seria um deles. 111

Ibid. Apud CORSI, Francisco Luiz. Estado Novo: política externa e projeto nacional. São Paulo: Editora UNESP/Fapesp, 2000, p. 111. 112

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O governo brasileiro tentou explorar ao máximo a publicidade positiva advinda da passagem de Roosevelt pelo país, considerada uma “consequência necessária” da Conferência de Casablanca e um dos momentos culminantes da diplomacia recente do Brasil. A Cúpula de Natal teria sido uma reunião de “dois velhos e bons amigos”, prova da comunhão de propósitos entre os dois países, desejosos de se auxiliarem reciprocamente na segurança do Hemisfério e na luta contra a ação militar inimiga. Com certo exagero, o encontro foi descrito como “decisivo” para a marcha da guerra, em função dos planos assentados para o combate à ameaça submarina alemã e para a utilização de forças brasileiras na guarda da navegação aliada no Atlântico Sul. Na declaração que os dois presidentes divulgaram após o encontro, foi particularmente ressaltado que a expedição à África do Norte (Operação Tocha) havia eliminado a possibilidade de uma investida nazista “partida de Dakar contra a liberdade das Américas, na parte mais estreita do Atlântico”.113 Após seu retorno de Natal, em aeronave militar norte-americana, Vargas declarou à imprensa que o entendimento com Roosevelt havia sido “completo”: “Tudo o que os Estados Unidos julguem necessário nós continuaremos a dar”.114 Uma das primeiras medidas de Vargas foi convocar todo o Ministério no Palácio do Catete, em 6 de fevereiro, e decidir pela pronta adesão do Brasil à Declaração das Nações Unidas e à Carta do Atlântico. Em solenidade posterior no Departamento de Estado, em 9 de abril, o embaixador do Brasil em Washington, Carlos Martins Pereira e Souza, munido dos necessários plenos poderes, assinou a Declaração em nome do Brasil, tornando o país formalmente membro da aliança.115 A adesão foi elogiada pelo governo norte-americano. Para o Brasil, aprofundava seu comprometimento com os Aliados sem entrar em contradição com sua linha de atuação diplomática. Ao contrário, na visão do Itamaraty, os princípios da Carta do Atlântico, por seu “conteúdo moral” e pelos fins nobres que propugnavam, encontravam “perfeita ressonância” com os ideais da política externa brasileira. Logo, sua aceitação pelo Brasil não constituía mais do que a ratificação dos objetivos que norteavam a vida internacional do país.116 Merece registro o comentário feito por Roosevelt em Natal, quando disse a Vargas que gostaria de vê-lo “ao seu lado” durante a conferência de paz. No início de 1943, ainda era muito cedo para se saber qual seria o formato das negociações sobre o término da guerra, mas a simples perspectiva de que Vargas poderia ter um papel de relevo não terá deixado de despertar seu interesse. Em 8 de abril de 1943, inteirado de que o secretário do Exterior britânico, Anthony Eden, havia acabado de visitar Washington, e que na pauta estariam planos para o pós-guerra, Vargas escreveu ao embaixador Carlos Martins para lhe pedir “especial atenção” aos entendimentos preparatórios dos “responsáveis pelos destinos das nações empenhadas em ganhar a guerra”. O presidente pediu para ser informado diretamente (ou seja, sem passar pelo Itamaraty) 113

FDR Papers, President’s Personal File, Box 71, Joint Statement issued by FDR and President Vargas, 29 Jan. 1943; Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores, ano de 1943. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944, p. 6-7. 114 “Vargas declares accord complete”, The New York Times, Nova York, 30 jan. 1943, NYT Archive, www.nytimes.com, acesso em 18/12/2009. 115 Nota do Departamento de Imprensa e Propaganda sobre a adesão do Brasil à Declaração das Nações Unidas. Rio de Janeiro, 6 fev. 1943. MRE. O Brasil e a Segunda Guerra Mundial. op. cit. p. 226. 116 Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores, ano de 1943. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944, p. 8-9.

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sobre o que se fazia nesse terreno, bem como sobre as negociações e os rumos prováveis dos acontecimentos “em setor de tamanha importância”.117 Martins prontamente se lançou a campo e comentou que havia muita especulação e “fantasia” em torno do assunto. Entre conferencistas e articulistas, todos se julgavam “com direito a ser considerado Maquiavel ou Talleyrand” e as mais extravagantes sugestões se insinuavam. Sumner Welles, que em período de ausência de Hull respondia pelo Departamento de Estado, assegurou a Martins que as conversas com Eden haviam sido de caráter geral, “sem nenhuma decisão”. Welles garantiu que, nem Roosevelt nem seu governo, “nunca” tomariam posição sobre problemas de organização da paz “sem ouvir e previamente se pôr de acordo com o presidente Vargas”, afirmação que naturalmente precisava ser tomada cum grano salis.118 Nesse ínterim, a conjuntura interna vinha mudando de forma acelerada. Ao longo de 1944, o Estado Novo aparentava estar perdendo sua capacidade de controlar com mão de ferro as forças políticas e sociais. Enquanto partiam para a Europa os primeiros contingentes da FEB, os sinais de insatisfação eram perceptíveis e as pressões por maior liberalização (incluindo eleições gerais) já não podiam ser facilmente ocultadas. Era evidente a contradição entre a face autoritária do regime e a luta pela democracia no estrangeiro. Em janeiro de 1945, em São Paulo, o primeiro Congresso Brasileiro de Escritores se ergueu contra a censura e defendeu abertamente os direitos e as liberdades civis. Em seu manifesto, os escritores consideraram urgente o imperativo de ajustar-se a organização política do Brasil aos princípios democráticos, “que são aqueles pelos quais se batem as forças armadas do Brasil e das Nações Unidas”. Para alguns, era o começo do fim da ditadura.119 É contra esse pano de fundo politicamente sensível que deve ser examinado o acompanhamento do cenário mundial por Vargas em 1944-45 e suas repercussões no plano interno. O front diplomático visto do Brasil O Brasil possuía razoável experiência com as práticas do multilateralismo, mesmo antes da Primeira Guerra Mundial. Podem ser lembradas, a propósito, as inúmeras conferências e reuniões pan-americanas desde 1889 ou a aclamada participação de Ruy Barbosa na Segunda Conferência da Paz da Haia, em 1907. Na qualidade de potência beligerante, o Brasil participou das negociações de paz em Paris, em 1919, com uma delegação chefiada por Epitácio Pessoa. Graças à intervenção do presidente Wilson, que defendeu a presença de um representante da América Latina, o Brasil foi indicado pelo artigo 4 do Pacto como um dos membros não permanentes do Conselho Executivo da recém-criada Liga das Nações. O apoio norte-americano foi crucial não só para a entrada do Brasil no Conselho da Liga, mas também para que se obtivesse o encaminhamento satisfatório dos demais interesses brasileiros na Conferência da Paz, como as questões do café e dos navios ex-alemães.120 117

Vargas a Martins, carta, Petrópolis, 8 abr. 1943, CPDOC, GV c 43.04.08/2. Martins a Vargas, carta, Washington, 26 abr. 1943, CPDOC, GV c 43.04.08/2. 119 Sobre o declínio do regime estadonovista e o avanço das reivindicações em prol da redemocratização, cf. por exemplo: CARONE, Edgar. O Estado Novo (1937-1945). São Paulo: Difel, 1977, p. 285-319. 120 GARCIA, Eugênio Vargas. Entre América e Europa: a política externa brasileira na década de 1920. Brasília: Editora UnB/FUNAG, 2006, p. 66-68. 118

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Signatário do Tratado de Versalhes e membro fundador da Liga das Nações, o Brasil ocupou um assento temporário no Conselho até sua retirada da organização, em 1926, durante o governo Artur Bernardes, não sem boa dose de polêmica. O principal motivo foi alegadamente o rechaço à pretensão brasileira de se tornar membro permanente do Conselho. Bernardes adotou a postura de “vencer ou não perder” e, após ordenar o veto ao ingresso da Alemanha, atraiu a crítica generalizada de governos e da opinião pública, dentro e fora do país. O saldo do governo Bernardes na frente externa foi negativo para a imagem do país, tanto no plano regional quanto na Europa. Em Genebra, durante a campanha pelo assento permanente, o Brasil lançou mão das teses do “mandato implícito” e da representação “americana” no Conselho, sem êxito. A retirada, porém, não era inevitável, caso fosse outra a atitude do governo brasileiro na crise de março de 1926. Havendo escolhido o caminho da confrontação, o Brasil foi acusado de intransigência e serviu como bode expiatório para acobertar o desacordo entre as potências signatárias de Locarno e responder praticamente sozinho pelo fracasso da Assembleia extraordinária da Liga.121 O problema maior não havia sido a candidatura brasileira em si, mas a maneira como a questão foi conduzida do Rio de Janeiro e as decisões daí decorrentes, que deixaram o Brasil em situação de flagrante isolamento internacional. No contexto político e socioeconômico da República Velha, com o predomínio do bacharelismo, do patronato e da agroexportação, as relações exteriores do Estado oligárquico eram marcadas pelo elitismo e pela excessiva valorização da forma sobre o conteúdo. A política externa na década de 1920, dominada pela dicotomia América-Europa, dava prioridade à aproximação com os Estados Unidos e à busca de prestígio no continente europeu, ao passo que a América do Sul era relegada a segundo plano. Tanto por sua arcaica dimensão institucional quanto pela visão restrita que tinha dos interesses nacionais, a diplomacia das oligarquias não possuía um projeto compatível com o objetivo traçado à época por Bernardes em relação ao assento permanente no Conselho. Confirmada em definitivo em 1928, a retirada não significou afastamento de todas as atividades da Liga das Nações. O governo brasileiro fechou a delegação permanente que mantinha em Genebra, mas, prestando sua “colaboração desinteressada”, continuou acompanhando conferências ocasionais e trabalhos de áreas técnicas subordinadas diretamente à organização ou de alguma forma patrocinadas por ela. Um exemplo foi a adesão do Brasil, com reservas, aos atos finais da Conferência para a Codificação do Direito Internacional, realizada na Haia, em 1930, sob os auspícios da Liga.122 Na metade da década de 1930, o Brasil se achava ligado a aproximadamente 35 entidades internacionais, entre elas a União Pan-americana em Washington, a Corte Permanente de Arbitragem na Haia, o Instituto Internacional de Cooperação Intelectual de Paris, a União Postal Universal em Berna e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) em Genebra, da qual em nenhum momento deixou de ser membro. De acordo com o Relatório do Itamaraty, o Brasil contribuía regularmente para o orçamento da OIT, comparecia às suas reuniões e incorporava suas disposições à legislação interna, desde que se adaptassem às “necessidades brasileiras” e não colidissem com as “peculiaridades do trabalho nacional”. Essas condições eram vagas o 121

Ibid. Capítulo 5. Ibid. p. 468; Relatório apresentado ao Chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores, ano de 1931. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1934, 1o vol., p. 35-37. 122

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suficiente para dar ampla margem de autonomia de decisão a respeito da aceitação ou não das normas trabalhistas emanadas da OIT. Em junho de 1937, o Brasil foi reeleito para o Conselho de Administração da OIT, do qual fazia parte desde 1931. Mas, do total de 49 Convenções trabalhistas adotadas entre 1919 e 1936, o Brasil havia até então ratificado apenas oito.123 O Brasil pretendia mostrar que, desligado dos compromissos oriundos do Pacto, ainda assim emprestava uma colaboração “constante e dedicada” nas matérias de interesse social e humanitário, tais como saúde e higiene, combate ao ópio e outras drogas nocivas, e repressão ao tráfico de mulheres e crianças. Na Corte Permanente de Justiça Internacional, Epitácio Pessoa exerceu seu mandato como juiz até 1930. Depois disso, o Brasil ainda teve reconhecido o direito de participar das eleições para o preenchimento de vagas de novos juízes da Corte, mesmo não sendo mais Estado-membro da Liga das Nações. Autorizado previamente a fazê-lo, o governo brasileiro também registrava no Secretariado os atos e acordos internacionais que celebrava com outros países, como demonstração prática de seu “repúdio aos tratados secretos”.124 Com o Brasil distante das combinações políticas que tinham lugar em Genebra, a hipótese de retorno à Liga das Nações não chegou a ser contemplada seriamente nos círculos oficiais. Apesar disso, o assunto despertou interesse no Legislativo. Em 1934, animado pela recente entrada da União Soviética na Liga, o Deputado Mário Ramos apresentou projeto de lei que autorizava o reingresso do Brasil na organização genebrina, à revelia do Executivo. A proposta, entretanto, não foi adiante, rejeitada por unanimidade pela Comissão de Diplomacia e Tratados da Câmara dos Deputados. Ao rejeitar aquele projeto de lei, a Comissão se baseou em parecer do Deputado Renato Barbosa. Segundo ele, o afastamento brasileiro da Liga prendia-se a “uma questão particularíssima” [não haver sido possível para o Brasil obter um assento permanente no Conselho Executivo]. Como a situação não se modificara desde então, não se justificava o retorno, ainda mais por iniciativa própria brasileira.125 Outro projeto de lei, de autoria do Deputado Horácio Lafer, de abril de 1935, instituía uma secretaria permanente do Brasil em Genebra, chefiada por um diplomata de carreira, para seguimento das diferentes conferências internacionais, notadamente aquelas da OIT. Essa ideia não contava com apoios nem no Congresso nem no governo e por isso tampouco vingou.126 A deterioração irremediável do quadro político mundial tornaria sem sentido o retorno do Brasil. Em 1939, sem credibilidade e posta inteiramente de lado, a Liga das Nações virtualmente deixou de funcionar. Foi uma das primeiras baixas da guerra. Os corredores abandonados do Palais des Nations representavam manifesto contraste com a agitação caótica vivida nos campos de batalha, em sua perturbadora amálgama de aço e sangue. A eclosão do conflito enterrou muitas das esperanças depositadas na diplomacia multilateral, mas não por muito tempo. O clamor por uma paz duradoura se fez mais intenso diante dos horrores do paroxismo bélico. Impulsionado pelos Estados Unidos, o anelo de se criar uma nova organização internacional para substituir a esvaziada Liga logo voltaria ao front diplomático. O 123

Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores, ano de 1934. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1937, 1o vol., p. 19-20; e Relatório do MRE do ano de 1937, 1o volume, p. 103-104. 124 Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores, ano de 1936. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938, Anexo A, p. 11-19. 125 “O Brasil não voltará à Liga das Nações”, O Globo, 10 jan. 1935, AHI, Lata 1011, Maço 16.957. 126 Projeto de lei no 251/1935 da Câmara dos Deputados. AHI, Lata 1011, Maço 16.965.

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estabelecimento dessa organização seria a chance para o Brasil de um recomeço no multilateralismo de escopo universal, cuja perspectiva era acompanhada com interesse (embora à distância) por Vargas. Por ocasião das comemorações do 1o de maio de 1943, no estádio do Vasco da Gama, Vargas centrou seu discurso no “patriotismo do trabalhador brasileiro” e aproveitou para reafirmar a plena identificação do Brasil com o programa das nações aliadas, consubstanciado na Carta do Atlântico. “Cumpriremos até o fim os nossos compromissos de solidariedade e estreita cooperação na luta militar e econômica, certos de concorrermos para a vitória e de compartilharmos, em futuro próximo, de acontecimentos felizes, capazes de aumentar o relevo da nossa atuação”. Vargas tinha em mente eventual presença do Brasil nas discussões do pós-guerra, embora fosse difícil vislumbrar naquele momento qual seria seu verdadeiro alcance. “É demasiado cedo para prevermos quais sejam, em última instância, as formas da nossa participação na guerra e na reconstrução do mundo, mas estamos seguros de que poderemos ampliar a nossa contribuição para a luta, onde e quando for necessário”.127 Vargas prosseguiu nesse tom ao longo do ano. Em 31 de dezembro, dirigindo-se a oficiais militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, antecipou uma vitória cada vez mais próxima dos Aliados. A Força Expedicionária Brasileira, que estava sendo preparada para seguir às frentes de combate, significava “um novo período que se vai abrir na história do Brasil”. As Forças Armadas teriam o ensejo de adestrar-se nas técnicas da guerra moderna e, ao mesmo tempo, o Brasil cumpriria suas obrigações “livremente assumidas” com a causa aliada. Vargas vinculou também o envio da FEB à capacidade brasileira de exercer influência nas negociações de paz, dizendo que aquela era uma “oportunidade excepcional para, estreitando a colaboração com as Nações Unidas, revidarmos a agressão de que fomos vítimas e adquirirmos autoridade nos ajustes da paz”. Procedendo assim, o Brasil honraria “a posição única de representantes mais numerosos da cultura latina no grupo das nações vitoriosas”.128 O tema da “reestruturação do mundo” era recorrente nos pronunciamentos de Vargas. Como a guerra vinha a ser tópico quase inescapável, com suas graves repercussões internas e externas, falar da paz futura era algo que vinha à baila de forma natural. O desempenho da economia, por exemplo, era afetado pela escassez de alimentos, pela necessidade de racionamento e pelo crescimento da inflação. Em 15 de abril de 1944, durante homenagem que lhe foi prestada por jornalistas na sede da Academia Brasileira de Imprensa, Vargas admitiu a existência de dificuldades econômicas que tornavam mais sofrida a vida das pessoas, mas atribuiu esses problemas, em sua maioria, aos “efeitos da anormalidade geral”. A tendência seria seu desaparecimento, uma vez superado o estado de guerra. Na política internacional, já se achava “conjurada” a ameaça que pesava sobre todos, quando havia o risco de estabelecer-se pelo mundo inteiro um regime de “escravidão econômica”, baseado na discriminação política e no ódio racial. Se muito ainda restava a combater, argumentou, não seria para evitar a derrota, mas para “conseguir a vitória completa e obter efetivamente a reestruturação do mundo em bases mais humanas e justas, com o respeito à soberania de todas as nações, grandes ou pequenas, militarmente fracas ou fortes”. Na sua análise, Vargas se referia à configuração desejável do pós-

127 128

VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil, vol. X. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1944, p. 34. Ibid. p. 244.

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guerra com um olho na própria realidade interna, ciente das críticas que se avolumavam contra o caráter ditatorial do Estado Novo: Cada povo poderá organizar-se segundo a própria vontade expressa pelos meios adequados à sua tradição histórica e aos imperativos da sua existência autônoma. As peculiaridades existentes aqui e ali não podem anular os princípios de convivência pacífica e de cooperação voluntária para o bem geral. Nem isolacionismos econômicos e políticos ameaçadores, nem nacionalismos agressivos e guerreiros. Construiremos, pela força dos ideais que sustentam as nossas armas, uma comunidade de soberanias que não se excluam e antes se completem no exercício da solidariedade entre os Estados e da 129 compreensão entre os povos.

Em entrevista à United Press, Vargas foi mais específico sobre a organização internacional. Perguntado se as Nações Unidas poderiam formar uma nova Liga das Nações para repelir de modo eficaz o perigo de outras agressões, Vargas respondeu que, realisticamente, as soluções iriam surgir a posteriori. O organismo capaz de evitar novos conflitos dependeria das condições em que a paz fosse feita, da situação geral dos povos vencidos e do balanço de forças entre os Aliados. Os “esquemas abstratos”, que deixassem de levar em conta esses fatores e consultassem apenas o idealismo dos povos e dos governos, estariam “positivamente condenados ao fracasso”. Sua mensagem final destacava que o Brasil e os EUA marchariam “lado a lado para a resolução dos problemas da paz”, do mesmo modo que haviam marchado juntos na guerra.130 Com efeito, o Brasil seguia uma diretriz oficial de ampla convergência com os objetivos dos Aliados e, em especial, dos Estados Unidos. Na Conferência de Bretton Woods, por exemplo, teve lugar acirrado debate sobre a destinação dos fundos do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento. Os países europeus (juntamente com os EUA) queriam que o BIRD desse prioridade à reconstrução das áreas destruídas pela guerra, enquanto os países em desenvolvimento defendiam a canalização de financiamentos contra a pobreza, por considerarem que o subdesenvolvimento seria tão penoso quanto a devastação provocada pelas armas. A orientação seguida foi a primeira, o que levou vários países da América Latina a ensaiarem um movimento no sentido de não contribuir para o BIRD, uma vez que os recursos do Banco seriam aplicados majoritariamente na Europa. O Brasil não aderiu e preferiu acompanhar a posição europeia. Artur de Souza Costa, ministro da Fazenda e chefe da delegação brasileira, se justificou em seu relatório: “A cooperação entre as nações exige certo desprendimento. Não podemos ceder para ganhar imediatamente”.131 Vargas expressamente recomendou Souza Costa a Roosevelt para que o ministro tratasse em Washington de “vários outros assuntos de interesse para o Brasil e diretamente relacionados à nossa colaboração com as nações aliadas quanto ao esforço bélico e à solução dos problemas do após-guerra”. Sua missão, sublinhou Vargas, só poderia lograr êxito se tivesse o apoio de Roosevelt, “cuja boa vontade e generoso acolhimento o Brasil e o meu governo sempre

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Ibid. p. 281. United Press Associations, Perguntas para o senhor presidente da República, Rio de Janeiro, 18 jul. 1944, CPDOC, GV c 1944.07.18. 131 Relatório do Brasil da Conferência de Bretton Woods, Artur de Souza Costa, CPDOC, GV 2 1944.09.00, p. 36. 130

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contaram”. O presidente norte-americano prometeu prestar a Souza Costa toda a cooperação possível.132 O governo brasileiro não se furtou a colaborar com o BIRD nem com o Fundo Monetário Internacional. No caso desse último, o Brasil recebeu a maior quota da América Latina (US$ 150 milhões), calculada a partir de uma fórmula que mesclava poder econômico e critérios políticos. Para Souza Costa, a Conferência havia apresentado uma declaração conjunta “imperfeita” em alguns de seus pontos, mas o resultado final representava “sem dúvida o que de melhor se poderia fazer em matéria que, nos tempos que correm, obriga a considerações de ordem política”. Bretton Woods era uma manifestação de “fraternidade humana”, que contrastava com a “alegação nazista de que a superioridade racial dá direito ao governo do mundo”. Em seu discurso no encerramento da Conferência, em 22 de agosto de 1944, Souza Costa fez uma avaliação assaz positiva dos trabalhos: As duas instituições que resultarão dos nossos trabalhos em Bretton Woods são a expressão do êxito obtido pelo esforço concentrado sobre um único objetivo – que a felicidade seja distribuída através da face da Terra. Através dos recursos do Fundo Monetário Internacional será permitido enfrentar as crises temporárias, pelo uso de saldos igualmente transitórios, que poderão ficar disponíveis em outros países. Através do Banco Internacional [BIRD] estará guarnecida a cooperação de longo alcance. Os países que possuem maiores recursos à sua disposição colaborarão para assistir os demais, 133 aumentando, assim, a riqueza de todos.

Esse ímpeto de cooperar só não era maior do que o desejo de participar das negociações relativas ao pós-guerra. Em Washington, desde 1943 Carlos Martins levantava objeções – algumas em público – contra uma paz fundada unicamente nas decisões de umas poucas potências. Em um de seus encontros com o secretário de Estado Cordell Hull, Martins reclamou da exclusão do Brasil das tratativas em curso: “Não podemos assistir, de braços cruzados, à reorganização [do mundo] à revelia nossa”. Moniz de Aragão, embaixador em Londres, sugeriu certa vez a Vargas que o governo brasileiro declarasse que não poderia cumprir suas responsabilidades na execução dos compromissos assumidos em conferências ou resoluções tomadas, em nome das Nações Unidas, sem haver participado dessas reuniões ou sido consultado com anterioridade.134 Para o Brasil, estar presente nas instâncias decisórias internacionais era um direito legítimo sobre o qual não cabia tergiversar. A queda de Oswaldo Aranha Oswaldo Aranha, beneficiando-se de seus bons contatos com as autoridades norteamericanas, procurava manter-se a par das atividades de planejamento político que eram 132

Vargas a Roosevelt, carta, Rio de Janeiro, 24 jun. 1944; Roosevelt a Vargas, carta, Washington, 12 ago. 1944, FDR Papers, President’s Personal File, Folder 4473, Getulio Vargas. 133 Ibid. p. 40 e Anexo 6; cf. também SOUZA COSTA, Artur de. Bretton Woods e o Brasil. Conferência realizada na Associação Comercial de São Paulo. Rio de Janeiro: s/n, 1944. 134 Martins a Aranha, telegramas, Washington, 1 e 23 jun. 1944, AHI 51/5/6; Moniz de Aragão a Vargas, telegrama, Londres, 11 out. 1944, AHI 29/5/7.

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conduzidas em sigilo pelo Departamento de Estado. Em junho de 1942, o subsecretário de Estado Sumner Welles espontaneamente escreveu a Aranha, em caráter pessoal e confidencial, para comunicar que o presidente Roosevelt havia decidido estabelecer um Comitê Consultivo sobre Problemas do Pós-Guerra, cuja função seria estudar, desenvolver esboços e fazer recomendações relativas à organização internacional, uma vez assegurada a vitória aliada sobre o Eixo. Welles anexou memorandos preliminares sobre o assunto e pediu os comentários de Aranha, tendo em vista sua “excepcional habilidade e visão de estadista”. A intenção de Welles era promover um intercâmbio de ideias frequente entre as Repúblicas americanas, para que se concertassem mutuamente e chegassem a um acordo sobre a organização mundial que se pensava em criar.135 Assim, quando tomou conhecimento de que a Conferência de Dumbarton Oaks ficaria restrita aos Quatro Grandes, Aranha se sentiu ultrajado. Telegrafou a Carlos Martins instruindo-o a que não perdesse a oportunidade de dizer que ao Brasil não interessava comparecer a reuniões diplomáticas apenas para homologar as decisões das demais potências beligerantes: “Preferimos dar por aprovadas tais decisões sem estar presentes para dar maior realce à posição secundária em que somos colocados”. A segurança internacional, com a organização de uma força para manter a paz, era assunto em que o Brasil forçosamente teria papel importante a desempenhar em virtude de sua posição no setor do Atlântico. Por conseguinte, finalizou, era justo que acompanhássemos as negociações “desde a sua fase inicial”. Martins mostrou o telegrama recebido a Hull, o que provocou um debate no Departamento de Estado sobre a necessidade de levar o Brasil mais em conta nas negociações de paz.136 Em meados de 1944, Aranha escreveu a Hull para, além de tratar de questões sulamericanas, reiterar a necessidade de que o Brasil e os Estados Unidos continuassem no pósguerra a mesma cooperação “extraordinariamente estreita e produtiva” que mantinham durante o conflito. Hull concordou sem reservas e, em carta a Aranha, convidou-o a visitar os EUA para examinar a fundo o curso das relações bilaterais nos próximos anos e outros temas, de alcance hemisférico e mundial, que só poderiam ser discutidos “na intimidade das palestras privadas”. Fez referência às ponderações de Aranha sobre a participação de “potências como o Brasil na organização da segurança do novo mundo”, bem como sobre o sistema interamericano em face daquela organização. Adiantou inclusive que Roosevelt poderia recebê-lo em Washington para uma longa conversa no dia 17 de agosto (antes, portanto, de Dumbarton Oaks).137 Essa viagem, se houvesse ocorrido, teria sido um momento de consagração de todos os esforços de Aranha na defesa da unidade continental e do engajamento brasileiro no campo aliado. Mas Vargas, temeroso de que o prestígio do chanceler ficasse fora de controle, o proibiu de ir. Contrariado, Aranha se viu forçado a comunicar a Hull que não podia ausentar-se do Rio de Janeiro naquele momento por motivos independentes de sua vontade.138

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Consulta semelhante foi endereçada por Welles a sete outras personalidades latino-americanas: Luis Anderson, Alberto Guani, José Manuel Cortina, Ezequiel Padilla, David Dasso, Gabriel Turbay e Caracciolo Parra Pérez. Welles a Aranha, cartas, pessoal e confidencial, Washington, 1º jun. e 28 ago. 1942, Summer Welles Papers, Box 192, Brazil: Postwar. 136 Aranha a Martins, telegrama, Rio de Janeiro, 31 maio 1944, AHI 52/2/2; HILTON, S. Oswaldo Aranha. op. cit. p. 418; 137 Hull a Aranha, carta, Washington, 17 jul. 1944, CPDOC, GV c 1944.07.17. 138 HILTON. Oswaldo Aranha. op. cit. p. 421.

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Quando a Conferência de Dumbarton Oaks foi enfim inaugurada, em 21 de agosto, Carlos Martins, prevendo dificuldades, sugeriu a Aranha que o governo brasileiro gratificasse um ou dois jornalistas para ter acesso ao maior número possível de informações sobre as propostas e os pontos de vista das diversas delegações. Via nisso uma “grande vantagem”, pois, fora do que o Departamento de Estado lhe comunicasse, ou viesse a ser graciosamente voluntariado por colegas e amigos, as fontes eram escassas.139 No dia seguinte, porém, o Itamaraty foi abalado pelo anúncio da renúncia de seu titular. O estopim foi o incidente do fechamento da Sociedade dos Amigos da América, da qual Aranha era vice-presidente. A ação policial teve a conivência do Catete e terminou em humilhação pública para Aranha, que, após dez dias aguardando uma retratação crível de Vargas, decidiu pedir demissão. Mais tarde, em entrevista a correspondente da revista Time, Aranha disse que havia deixado o cargo não por uma pequena diferença, mas porque não poderia mais trabalhar “com o grupo que presentemente rodeia o presidente Vargas”. Se ele permanecesse no Ministério, teria de conformar-se a ser mero “pau mandado” (yes-man) e “assinador de cartas”. Citou o vice-almirante Ingram, comandante das forças aliadas no Atlântico Sul, segundo o qual Aranha havia renunciado quando estava por colher os frutos de seu empenho pelo reconhecimento internacional das funções do Brasil na guerra: muitos não desejavam vê-lo “completar o seu trabalho”.140 Era de fato amplamente comentada a luta por influência dentro do governo. Havia rumores de que alguns altos chefes militares queriam abortar eventual candidatura presidencial de Aranha, daí o interesse em defenestrá-lo. A projeção política crescente de Aranha poderia representar também risco a possíveis planos continuístas de Vargas, em cenário ainda indefinido para a sucessão. Aparentemente, Vargas pretendia permanecer no poder, se não por mais tempo, pelo menos até a conclusão das negociações de paz.141 Em carta ao amigo Góes Monteiro, Aranha resumiu a situação da seguinte forma: “Eu era perigoso para alguns, mas necessário ao governo. A minha periculosidade aumentou para aqueles com a próxima vitória das armas aliadas, ao mesmo tempo que para o governo diminuía a necessidade dos meus serviços”. Aranha comentou ainda: “À proporção que se consolidava no conceito de nossos aliados a minha autoridade e eram consequentemente abertas maiores possibilidades ao nosso país, graças à sua política exterior, cresciam os óbices, as reservas e as dificuldades internas! [...] Se estivesse vencendo a Alemanha, eu já teria sido fuzilado, mas pela frente; como está sendo derrotada, eu fui apunhalado, mas pelas costas!” 142 As convicções liberais de Aranha e o fato de que defendia a realização de eleições o mais cedo possível contribuíram para marginalizá-lo no jogo de poder do Estado Novo. Fator decisivo, todavia, e que mais magoou Aranha, foi a atitude de Vargas de “sacrificar” o velho amigo por conveniências políticas. O chanceler demissionário vinculou expressamente o colapso de sua autoridade ao veto presidencial que lhe impediu de aceitar o convite para a audiência com Roosevelt em 17 de agosto. Mesmo isolado no governo e antagonizado por Dutra, Marcondes 139

Martins a Aranha, telegrama secreto, Washington, 21 ago. 1944, CPDOC, OA cp 1943.02.09/1. Tradução da entrevista concedida por Aranha a John Lennard, anexa ao ofício de Martins a Vargas, Washington, 15 nov. 1944, CPDOC, GV c 1944.11.15. 141 DULLES, John W. Foster. Vargas of Brazil: a political biography. Austin: University of Texas, 1967, p. 254. 142 Aranha a Góes Monteiro, carta, Rio de Janeiro, ago. 1944, reproduzida em matéria intitulada “Os ases da situação confessam e proclamam que o Estado Novo arruinou o Brasil, sob todos os aspectos”, CPDOC, GV c 1944.08.17. 140

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Filho e outros, Aranha teria condições de permanecer se este fosse realmente o desejo de Vargas. Góes Monteiro, que servia em missão no Comitê Consultivo de Emergência para a Defesa Política do Continente, em Montevidéu, colocou seu cargo à disposição em solidariedade a Aranha, mas Vargas (ao contrário do que fez com o chanceler) negou seu pedido de demissão.143 A saída de Aranha não produziu alteração na política externa, como se chegou a especular à época. Pensava-se, por exemplo, que o Brasil poderia aproximar-se da Argentina em detrimento de seus compromissos continentais e das relações de “velha amizade” com os EUA.144 O secretário-geral de Aranha, Pedro Leão Velloso, assumiu interinamente o Ministério das Relações Exteriores. Nascido em Pindamonhangaba, no Estado de São Paulo, Leão Velloso ingressara no Itamaraty em 1907. Diplomata de carreira, formado em direito, Leão Velloso vinha de uma família tradicional de políticos da Bahia. Serviu em diversos postos na Europa e foi secretário da delegação brasileira à Conferência da Paz de 1919. Depois de passagens por Tóquio e Roma como embaixador, foi nomeado secretário-geral das Relações Exteriores em 1942. Seu currículo oficial apontava sua “longa experiência” e “profundo conhecimento” da política internacional do Brasil. Colaborador leal, de estilo discreto e alheio à política interna, sua função seria continuar a cumprir fielmente as diretrizes traçadas pelo presidente. Sem a mesma estatura política de Aranha, Leão Velloso não representava ameaça a Vargas nem lhe faria sombra em eventual congresso para discutir a paz. Na qualidade de ministro interino, coube-lhe chefiar a delegação que o Brasil enviou à Conferência de São Francisco em 1945.145 Aranha, por sua vez, afastou-se da cena política e passou a dedicar-se à advocacia e a alguns empreendimentos comerciais. Perdera a chance de estar presente na criação da ONU, mas a ela não deixaria de ligar o seu nome ao ser eleito, em 1947, como presidente da II Assembleia Geral, até hoje o único brasileiro a ocupar essa posição. Seu biógrafo, Stanley Hilton, julga que a eleição de Aranha ao mais alto posto internacional até então exercido por qualquer diplomata brasileiro fez com que o ex-chanceler voltasse de Nova York consagrado como “o maior estadista do Brasil desde o barão do Rio Branco”.146 Repercussões do projeto de Dumbarton Oaks Cerca de um mês antes da Conferência de Dumbarton Oaks, o governo brasileiro foi informado pela embaixada norte-americana no Rio de Janeiro, em 14 de julho de 1944, de que os estudos sobre a organização do pós-guerra estavam progredindo e que em breve EUA, GrãBretanha, URSS e China iniciariam conversações a respeito. Segundo a nota enviada pela embaixada, não haveria “inconsistência” entre o princípio da igualdade soberana de todos os Estados e a circunstância de serem os representantes dos quatro países os únicos a participar daquele exercício. Como a esses países corresponderia “inevitavelmente” responsabilidade maior na preservação da paz nos anos seguintes à guerra, não era possível garantir o êxito de uma 143

Vargas a Góes Monteiro, carta, Rio de Janeiro, 29 ago. 1944, CPDOC, GV c 1944.08.17. Baptista Lusardo a Vargas, carta, Montevidéu, 29 ago. 1944, CPDOC, GV c 1944.08.17. 145 Após a queda de Vargas, em out. 1945, Leão Velloso continuou à frente do Itamaraty até a posse do presidente Dutra em 1946. Faleceu em Nova York, em 1947. CDO, Maço 42.957. 146 HILTON. Oswaldo Aranha. op. cit. p. 431. 144

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organização internacional geral a menos que as referidas potências estivessem “preparadas para apoiá-la”. O governo dos EUA desejava trocar impressões e “trabalhar de perto” com as demais Repúblicas americanas, insistindo sempre na plena participação das nações do Hemisfério nas reuniões e discussões internacionais que vinham acontecendo. A nota lembrou, nesse sentido, a “importante contribuição” dos países americanos nas Conferências de Hot Springs, Atlantic City e Bretton Woods.147 Ao agradecer a informação, a resposta encaminhada pelo Itamaraty assinalou que os problemas da paz vinham sendo “cuidadosamente estudados” pelos órgãos responsáveis no Brasil. O governo brasileiro concordava “plenamente” com a necessidade de criação de um organismo internacional destinado a garantir a ordem e a paz. Confiava, igualmente, em que o projeto em discussão obedecesse “rigorosamente” aos ideais pelos quais os Aliados estavam combatendo, isto é, o advento de uma ordem mundial “em que a lei esteja garantida contra a agressão sob qualquer pretexto ou capricho”, respeitada a igualdade das nações e da sua soberania. A solidariedade continental era o “princípio básico” da política externa brasileira, bem como o respeito à integridade territorial dos Estados e à ordem jurídica internacional. Dentro desses princípios, o governo brasileiro, sob a “justa reserva” de pronunciar-se definitivamente depois de conhecer o projeto de organização, estava disposto a colaborar na sua criação, em conjunto com o governo norte-americano e os demais governos interessados.148 A posição brasileira procurava manter-se fiel tanto aos compromissos assumidos em âmbito hemisférico quanto às normas consagradas de direito internacional. Naquele momento, aventava-se a ideia de “transitoriedade” da organização que se discutiria em Dumbarton Oaks. Recomendação aprovada pela Comissão Jurídica Interamericana, em sua sessão de 5 de junho, apontava nesse sentido. Reunida no Rio de Janeiro, a Comissão sugeriu aos governos americanos o estabelecimento imediato de uma organização internacional preliminar, com o objetivo de atender às necessidades do mundo no período de transição após a guerra e preparar o caminho para uma paz duradoura. A forma definitiva e final da organização seria determinada uma vez cessadas as hostilidades e verificada a existência de condições estáveis para esse fim.149 À medida que o debate ganhava corpo, alguns políticos, diplomatas e publicistas também procuravam contribuir com suas análises, mesmo desconhecendo o teor exato do que as potências aliadas estavam realmente considerando. O embaixador Barros Pimentel, por exemplo, escreveu um livro em 1944, a título pessoal, sobre o uso da força na estrutura da paz, no qual defendeu a criação de um “exército internacional” para responder ao chamado das nações em perigo de conflito. A paz seria assegurada mediante um regime cooperativo de assistência militar para estabelecer a justiça, apoiada pela força como “árbitro entre as nações”. O intervencionismo seria no futuro “inevitável” devido à interdependência crescente entre os países. Uma força policial multinacional, colocada sob a tutela da nova organização mundial, poderia defender a integridade das nações fracas ameaçadas. Para isso, era preciso sacrificar veleidades nacionais em prol da humanidade, aceitando certo grau de renúncia parcial de soberania e colocando a organização internacional acima da vontade dos Estados. O simples reconhecimento da existência 147

Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores, ano de 1944. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1949, p. 21-22. 148 Resposta do governo brasileiro, datada de 16 ago. 1944. Ibid. p. 22-23; também Anexo A, p. 115-118. 149 Ibid. p. 23-24 e Anexo A, p. 118-120.

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de um conflito já conferia legitimidade à intervenção armada, que assumiria caráter “automático”, com ou sem o consentimento das partes envolvidas. O sistema de segurança coletiva assim concebido teria a capacidade de manter a ordem e impor o cumprimento do direito internacional. “Somente a força pode se opor à violência”, completou Barros Pimentel. O autor lembrou também que, em 1919, nas discussões sobre o Pacto da Liga das Nações, Léon Bourgeois havia advogado, em nome da França, a favor de uma força internacional, um EstadoMaior internacional ou, pelo menos, um controle internacional das forças nacionais.150 Por memorando de 9 de outubro de 1944, a embaixada norte-americana enfim remeteu o texto das propostas de Dumbarton Oaks para a consideração do governo brasileiro. Outros governos também estavam recebendo o projeto, com o pedido de que fizessem comentários a título de preparação para uma conferência geral que seria convocada, em data oportuna, a fim de deliberar formalmente sobre o assunto. O memorando adiantava que o secretário de Estado Cordell Hull pretendia reunir-se com os embaixadores latino-americanos em Washington, em momento que fosse conveniente, para intercambiar pontos de vista em relação às propostas.151 Leão Velloso levou o assunto imediatamente ao conhecimento de Vargas no Catete. Depois que ambos examinaram o memorando, ficou definido o método de trabalho a seguir pelo Itamaraty. O presidente instruiu Leão Velloso a convocar uma comissão de notáveis para estudar o projeto, discuti-lo e orientar a formulação da resposta que o governo brasileiro encaminharia ao Departamento de Estado. O grupo incluía nomes conhecidos como Raul Fernandes, que havia desempenhado funções de relevo internacional nos primeiros anos da Liga das Nações, o exchanceler José Carlos de Macedo Soares, os juristas Levi Carneiro e Eduardo Espínola (então presidente do Supremo Tribunal Federal), o consultor jurídico do Itamaraty, Sebastião do Rego Barros, e os embaixadores Luís Martins de Souza Dantas, Araújo Jorge, Carlos Martins e Moniz de Aragão. Também participaram o secretário-geral das Relações Exteriores, José Roberto de Macedo Soares, chefes de serviço, diplomatas e auxiliares técnicos da Secretaria de Estado. Hildebrando Accioly não chegou a estar presente nas reuniões da comissão por estar em viagem. Ao retornar, foi inteirado das propostas e apresentou suas próprias sugestões.152 Estranhamente, apesar da importância dos temas de segurança internacional, não havia representantes das Forças Armadas na comissão e os Ministérios militares tampouco foram consultados sobre o projeto, pelo menos nesta fase. Enquanto ocorriam as reuniões da comissão, o Jornal do Commercio, em iniciativa paralela, submeteu a diversos juristas, diplomatas e estudiosos do direito internacional um questionário sobre o plano de Dumbarton Oaks, com o intuito de divulgá-lo junto ao público brasileiro e estimular um debate aberto sobre o tema. Foram consultados alguns dos mesmos membros da comissão (Raul Fernandes, José Carlos de Macedo Soares, Levi Carneiro e Eduardo Espínola), além de Hélio Lobo, Hildebrando Accioly e dois internacionalistas estrangeiros que se encontravam no Brasil, o norte-americano Charles Fenwick e o chileno Félix Nieto del Río. As 150

PIMENTEL, J. F. de Barros. The international police: the use of force in the structure of peace. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944, p. 19-28. 151 Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores, ano de 1944. op. cit. p. 24 e Anexo A, p. 121-139. 152 VELLOSO, Pedro Leão. O Brasil na Conferência de S. Francisco. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945, p. 10-11.

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respostas ao questionário foram publicadas naquele periódico em uma série de artigos no final de 1944. Essas respostas foram posteriormente reunidas e reproduzidas pela Sociedade Brasileira de Direito Internacional. A tradução para o português do projeto de Dumbarton Oaks, feita no Itamaraty, ficou a cargo de Henrique de Souza Gomes e Roberto Assumpção de Araújo.153 Advogado e político carioca, Raul Fernandes havia sido membro da delegação brasileira à Conferência da Paz em Paris, em 1919, e participou de quatro Assembleias da Liga das Nações na década de 1920. Teve papel destacado na elaboração do Estatuto da Corte Permanente de Justiça Internacional. Chefiou a delegação brasileira à VI Conferência Panamericana em Havana, em 1928. Foi governador do Rio de Janeiro e, como parlamentar, representou o Estado na Câmara dos Deputados em várias legislaturas. Em 1944, era presidente da Ordem dos Advogados do Brasil. Raul Fernandes entendia que não era possível formar um juízo sobre o valor das bases ajustadas enquanto não ficasse claro em que grau as grandes potências estariam dispostas a se submeter às decisões da organização mundial.154 Esse ponto havia sido omitido do projeto (questão do veto) e ainda dependia de negociações com a União Soviética. Caso se confirmasse a exigência de unanimidade dos membros permanentes para as decisões capitais do Conselho de Segurança, a projetada organização apenas prolongaria a aliança militar da guerra em curso. Fernandes foi incisivo em seu julgamento: “Não durará muito esta nova Santa Aliança, segundo a lição da experiência; e enquanto durar, constituirá um diretório onipotente e irresponsável, diante do qual as outras soberanias abdicarão contratualmente de algumas de suas faculdades”. A novidade, frisou, é que assim seria dado um “título de legitimidade” para algo que já era um “privilégio de fato”.155 Confessando seu ceticismo, Fernandes lembrou que, nos Estados Unidos, muitos objetavam qualquer plano que implicasse renúncia à plena liberdade de ação daquele país. O que estaria verdadeiramente em jogo era a predominância da regra do direito nas relações entre os Estados, “o primeiro, o indefectível, o irremovível requisito de qualquer organização da comunidade das nações”. Mas o projeto estaria longe de denunciar essa preocupação. As grandes potências tratavam daquilo que lhes parecia mais urgente, que era “prevenir a recrudescência da agressividade nipo-alemã”. Como não se aludia sequer à acessão, mesmo remota, da Alemanha e do Japão, ambos estariam condenados ao “perpétuo isolamento”. Fernandes prosseguiu alertando para o privilégio dos membros permanentes de vetar emendas à Carta, incluindo alterações na própria composição do Conselho de Segurança. Ora, o desenvolvimento da situação internacional poderia determinar, no futuro, a conveniência de modificar a lista dos titulares de postos permanentes. Isso só poderia ser feito com o aceite daqueles Estados com poderes para impedir mudanças com as quais não estivessem de acordo. Em uma associação que aspirava à duração indefinida e que se construía sub specie aeternitatis (da perspectiva do eterno), tal regime de privilégio violava uma lei da mecânica, “realizando o paradoxo da cristalização do dinamismo”.156 153

FERNANDES, Raul, et al. Organização internacional e o projeto de Dumbarton Oaks. Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional. Rio de Janeiro, ano 1, no 1, janeiro-junho 1945, p. 69-159; cf. também AHI, Lata 1718, Maço 35.481. 154 Raul Fernandes será depois ministro das Relações Exteriores nos governos Dutra (1946-51) e Café Filho (195455). 155 FERNANDES, et al. Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional. op. cit. p. 99. 156 Ibid. p. 100-101.

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Ao lamentar que a Assembleia Geral estivesse reduzida a “pouca coisa”, com poder de decisão muito restrito, Fernandes apontou a dificuldade que haveria para aplicar sanções quando o Estado em ruptura da Carta fosse um dos grandes. Com o veto, as maiores potências ficariam excluídas dos “corretivos” planejados contra ameaças e agressões. Admitia, não obstante, que apesar das lacunas e deficiências, a ONU representava algum progresso. A Liga das Nações, por exemplo, não proscrevia a guerra. Limitava-se a impor-lhe uma moratória, contando que no interregno “a reação da opinião pública conjurasse o flagelo”. O programa das Nações Unidas seria “mais realista” e proibiria a agressão sob qualquer forma.157 José Carlos de Macedo Soares foi igualmente crítico. Político e empresário paulista, havia sido ministro das Relações Exteriores antes do Estado Novo (1934-36). Enquanto estava no exílio na Europa, escreveu em 1927 a obra O Brasil e a Sociedade das Nações, um libelo contra o governo Artur Bernardes.158 Em seu artigo, comparou 1944 com a situação em 1918, quando Wilson acreditava “na força moral e no arrazoado jurídico”. Desta vez, os líderes das potências percebiam que “só a força armada” moveria a maquinaria a ser montada para manter a paz e a segurança internacionais. A nova organização forjaria uma união das forças armadas dos Estados maiores para policiamento dos Estados turbulentos capazes de provocar uma guerra. Enquanto no idealismo de Genebra predominava o direito, no realismo da ONU, previu, “dominará a força material”. No seu entender, por colocar em segundo plano o direito internacional, a instituição projetada não seria satisfatória aos “anseios de paz e de liberdade do povo brasileiro”, a não ser para funcionar no período de transição dos campos de batalha à normalidade. Ninguém poderia deixar de reconhecer que aos condutores da guerra caberiam as responsabilidades da paz: “Nos primeiros anos do após guerra, as relações internacionais terão de ser dirigidas pelo leão britânico, pela águia norte-americana e pelo urso moscovita”. Mas o que quer que fosse concertado no futuro próximo devia ser considerado apenas um passo preliminar antes do estabelecimento definitivo da organização mundial, fundada nos princípios da justiça.159 Diplomata de carreira e acadêmico, Hélio Lobo havia participado de conferências pan-americanas e outras reuniões multilaterais no período entreguerras, além de ser autor de diversos estudos históricos, políticos e jurídicos. Para Lobo, o projeto de Dumbarton Oaks era praticamente a estrutura da Liga das Nações “acrescida de poder militar”. As semelhanças seriam perceptíveis. “É curioso notar”, no entanto, que “se evita cautelosamente citar a instituição de Genebra, embora tudo a lembre no projeto”. Ponderou que como a Liga “foi até hoje o único ensaio levado a efeito em grandes linhas, a ela tem o mundo que voltar de um modo ou de outro”. Destacou a novidade representada pela criação do Conselho Econômico e Social (ECOSOC) e defendeu a separação entre as atividades técnicas e políticas da organização, lembrando os resultados alcançados pela Liga nas áreas de cooperação intelectual, higiene, transportes, comércio e finanças, entre outras. Do projeto em geral, parecia-lhe que se criava um “diretório”, com o predomínio das grandes potências em detrimento dos países menores.160 Levi Carneiro e Eduardo Espínola enveredaram por análise centrada em aspectos jurídicos do projeto. Jurista e deputado federal, Carneiro foi Consultor Geral da República e 157

Ibid, p. 106. José Carlos de Macedo Soares voltaria a chefiar o Itamaraty no governo Juscelino Kubitschek (1956-58). 159 FERNANDES, et al. Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional. op. cit. p. 109-111. 160 Ibid. p 114-115. 158

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representava o Brasil no Tribunal de Arbitragem da Haia (em 1951 seria eleito juiz da Corte Internacional de Justiça). A exemplo de Macedo Soares, Carneiro sustentou que as propostas, por significarem o prolongamento da aliança de guerra, eram aceitáveis somente para uma fase de transição. Para que o emprego da força não fosse “um ato de simples violência”, teria de obedecer a normas gerais ou “resultar da deliberação de maioria inequívoca” – o que não era o caso, pois o Conselho de Segurança é que detinha a capacidade de decidir e agir em nome de todos os Estados-membros. A instituição de um “imenso mandato internacional”, exercido por três ou quatro nações, não seria bem aceita “nem poderia durar muito”, alertou Carneiro. Vale ressaltar o comentário de Espínola, presidente do STF, que, como outros observadores, estava consciente dos obstáculos à submissão dos Estados ao império da lei: “por enquanto”, queixou-se resignado, “a pureza dos princípios terá de ceder ante a imperiosa necessidade dos fatos da vida”.161 Hildebrando Accioly foi o último a ter sua contribuição publicada nas colunas do Jornal do Commercio. Internacionalista e diplomata, nascido no Ceará, Accioly exerceu o cargo de secretário-geral do Itamaraty em diferentes oportunidades. Nomeado embaixador junto à Santa Sé em 1939, retornou à Secretaria de Estado em 1944.162 Recém-chegado do Vaticano, começara a acompanhar no Ministério os temas do pós-guerra, em particular da organização internacional. Suas respostas tinham assim certo peso e podiam dar pistas sobre a posição que o governo brasileiro vinha construindo. Accioly afirmou que o plano de Dumbarton Oaks não representaria, na verdade, progresso algum em relação à “velha Liga das Nações”, exceto talvez a possibilidade de dispor de uma força armada para imposição de suas decisões. No que se refere aos princípios, considerava a Carta do Atlântico “nitidamente superior”. Reiterando a impressão compartilhada por vários outros, também achava que o projeto visaria principalmente a permanência da aliança militar das três ou quatro maiores dentre as potências que faziam a guerra à Alemanha. A sua base residiria, de fato, na constituição de um Conselho de Segurança “onipotente e ditatorial”, no qual os membros permanentes teriam situação preponderante. Accioly perguntou, retoricamente: “Bastará, porém, uma organização de segurança internacional, para que se implante um regime de paz permanente? Depende esta apenas da existência de uma força policial manejada pelas grandes potências? Ninguém o dirá”.163 Fundamental seria criar um organismo inspirado no espírito de paz e justiça, baseado na confiança recíproca dos seus membros, na solidariedade entre as nações e no respeito aos direitos de cada povo. Nessa linha, criticou o peso do critério militar na estruturação da futura ONU: Com efeito, esse suposto direito à direção do mundo não se baseia na livre escolha das demais nações, nem alega em seu favor uma superioridade espiritual ou moral. O fator decisivo – por que negá-lo? – é o argumento da força. Parece uma contradição que, após vários anos de luta contra os defensores da ideologia da força, cheguem as Nações Unidas a adotá-la, no seu plano de organização jurídica do mundo. Que diria hoje Ruy Barbosa, que, na Haia, condenava, como a mais abominável das faltas, ‘a insistência em ensinar aos povos que as categorias entre os Estados se devem medir pela respectiva situação militar’? 161

Ibid. p 120-123 e 130. Hildebrando Accioly foi o primeiro diretor do Instituto Rio Branco, criado em 1946. Autor de obras jurídicas e de história diplomática, publicou conhecido manual de direito internacional público, que ganharia inúmeras edições. A mais recente é de 2009, atualizada por Paulo Borba Casella. 163 FERNANDES, et al. Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional. op. cit. p 156. 162

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Accioly não ignorava que, muitas vezes, era necessário “sacrificar um pouco do idealismo em benefício das realidades do momento”. Não havia dúvida de que a vitória final contra o Eixo seria alcançada graças aos “colossais recursos” das potências aliadas. Seria do mesmo modo “inegável” que só o poder militar dessas potências poderia manter a ordem logo após a terminação do conflito. Assim, para o período de transição que se vislumbrava no imediato pós-guerra, seria admissível que as grandes potências daquela aliança tivessem certa preponderância dentro da organização a ser criada. Mas isso não deveria impedir que se estabelecesse uma instituição “em moldes menos distanciados do sistema democrático” ou que se previsse seu aperfeiçoamento posterior – por meio de revisões ou emendas.164 Este ponto seria um dos pilares da posição brasileira na Conferência de São Francisco. Embora cônscio das realidades de poder por trás do desenho original da organização, o Brasil tentaria compensar a rigidez do presente com a perspectiva de mudanças futuras. A Carta poderia ser oportunamente aprimorada por um mecanismo de revisão que corrigisse (ou pelo menos atenuasse) seus defeitos de origem. O principal obstáculo, já antevisto por Accioly, era a existência do veto. Um exemplo seria a regra “inalterável” da representação permanente das grandes potências de 1944 no Conselho de Segurança. “Basta pensar”, advertiu, que “amanhã a situação internacional poderá estar mudada e o grupo de grandes potências já não ser o mesmo”. Nesse caso, sua avaliação indicava que o método de emendas previsto no projeto não daria resultado, porque qualquer emenda, para entrar em vigor, precisaria ser ratificada precisamente por todos os membros permanentes do Conselho.165 Enquanto isso, Vargas continuava a fazer comentários sobre as perspectivas no front diplomático. Em discurso na Hora da Independência, em 7 de setembro de 1944, o presidente realçou o papel do Brasil “no concerto das grandes nações” e prometeu continuar empenhado a prestar “auxílio bélico” aos Aliados, bem como dar sua “colaboração diplomática necessária aos ajustes de paz”. Vargas enalteceu a política de solidariedade com os Estados Unidos (uma “tradição da nossa história”), ligando-a ao imperativo de união permanente e inquebrantável das nações americanas para objetivos pacíficos. Na sua visão, a ausência da América na reorganização do mundo, depois da Primeira Guerra Mundial, havia sido “uma das causas evidentes do fracasso da Liga das Nações”. Isso não poderia acontecer de novo. “Se nas novas circunstâncias aparecermos como bloco compacto, representativo de um quarto do total da humanidade, nenhum Estado isolado ou coligação de Estados se atreverá a desafiar o nosso firme propósito de conservação da paz”. E continuou: Pelos largos caminhos do entendimento e da cooperação chegar-se-á a uma organização internacional capaz de oferecer aos povos tranquilidade para trabalhar e progredir. O que não foi conseguido pelo organismo jurídico criado após a guerra de 1914, que falhou pela sua limitação de caráter continental e pela sua incapacidade para julgar e impor sanções aos agressores, será agora alcançado. Precisamos estabelecer um justo equilíbrio nas relações de Estado para Estado, quer sejam fortes ou fracos. A segurança coletiva tem de ser indivisível. A soberania não passará de simples convenção enquanto

164 165

Ibid. p. 157-158; e AHI, HA 123/02/35. Ibid. p. 159. Para as respostas de Charles Fenwick e Félix Nieto del Río, cf. p. 131-154.

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ficar à mercê dos mais audazes e militarmente poderosos. A fórmula salvadora de convivência social 166 pacífica precisará prever, por conseguinte, a coerção para a paz.

Terminado o período de análise interna, o Itamaraty encaminhou à embaixada norteamericana, em 4 de novembro, com aprovação presidencial, os comentários oficiais do governo brasileiro sobre as propostas de Dumbarton Oaks. O memorando foi redigido pelo chefe da Divisão Política e Diplomática, Acyr Paes.167 O Brasil estava convencido da necessidade “imperiosa e urgente” de se estabelecer uma nova organização internacional e, nas difíceis circunstâncias do momento, considerava “satisfatório” o projeto apresentado. O pacto a subscrever-se, entretanto, não devia ser estático e sim suscetível de aperfeiçoamentos, de modo que todos os Estados-membros viessem a ter futuramente “participação maior em suas decisões”. As reduzidas atribuições da Assembleia Geral, por exemplo, deveriam alargar-se com o tempo. O Conselho de Segurança precisava refletir “as correntes de opinião e de interesses de todo o mundo civilizado”, a fim de poder dar rápido e cabal desempenho aos pesados encargos que lhe incumbiam. Em sendo assim, o Conselho não podia prescindir da constante cooperação da América Latina e resultava “indispensável” que se atribuísse à região um lugar permanente. O relatório anual do Ministério das Relações Exteriores acrescentou depois a observação, não incluída no memorando, de que os países da América Latina estavam naturalmente indicados para aquelas funções no Conselho “pela vastidão dos territórios que ocupam no continente, situação geográfica destes em relação ao resto do orbe, por sua cultura superior, grau de civilização e interesses peculiares”.168 O governo brasileiro propôs em seu memorando, inter alia, que o Conselho de Segurança submetesse à Corte Internacional de Justiça ou a um tribunal de arbitragem as controvérsias não resolvidas de comum acordo entre as partes. O Estado convocado pelo Conselho como membro de forma ad hoc, por ser parte em uma controvérsia, deveria ter os mesmos direitos de voto atribuídos aos membros titulares daquele órgão. Para que não ficasse ao arbítrio individual, caberia à Corte julgar se uma questão era ou não da competência exclusiva do Estado interessado, segundo o direito das gentes. Nas questões que fossem unicamente de interesse dos grupos regionais não se justificava a intervenção do Conselho, a não ser que estivesse em perigo a paz em mais de um grupo regional. Estimava-se conveniente também consignar na Carta o princípio da publicidade dos tratados e adotar o inglês e o francês como línguas oficiais da organização. A sede da Assembleia Geral deveria ser fixa, no mesmo local do Conselho de Segurança e do Secretariado, ainda que lhe fosse facultado reunir-se em outro lugar quando assim se decidisse. O Brasil pedia, ainda, que ficasse claro na Carta que todos os Estados-membros iriam abster-se em suas relações internacionais de recorrer a ameaças ou à força, a não ser de acordo com os métodos e as decisões da organização. Os relatórios submetidos pelo Conselho de Segurança deveriam ser postos em discussão na Assembleia Geral e não apenas estudados.169 Ao 166

VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil, vol. XI. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1947. p. 3031. 167 Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores, ano de 1944. op. cit. p. 26-28 e Anexo A, p. 139-141. 168 Ibid. p. 27. 169 Ibid. Anexo A, p. 141.

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final, o governo brasileiro declarou que se reservava o direito de se manifestar de forma definitiva sobre qualquer outra matéria, não citada no memorando ou omissa no projeto de Dumbarton Oaks, quando chegasse o momento de apreciar, em seu conjunto, o plano integral da organização. Nas instruções que transmitiu a Carlos Martins, além de abordar as questões acima, Leão Velloso opinou que o nome escolhido para a instituição – “Nações Unidas” – parecia-lhe menos adequado. Como alternativa, sugeriu “Liga da Paz Internacional”. Também inquiriu sobre a possibilidade de retirada voluntária de um Estado-membro e sobre a acessão à organização de países “perpetuamente neutralizados”.170 Cumpria assim o Brasil a sua parte nesta primeira fase de consultas sobre a Carta, cuja redação definitiva ainda demandaria vários meses de negociações. Um assento permanente no Conselho de Segurança? Como visto no Capítulo 1, a ideia original dos Quatro Policiais nasceu de uma concepção regionalista de Roosevelt acerca do ordenamento mundial que deveria emergir após a conflito e impedir a eclosão de uma Terceira Guerra Mundial. As grandes potências deveriam repartir seus deveres com a manutenção da segurança em cada região, evitando assim que os Estados Unidos ficassem obrigados a assumir compromissos militares por toda a parte. Atuando de forma concertada, seria em teoria possível aos Policiais fornecer razoável grau de “proteção” à Europa, à Ásia e, subsidiariamente, às demais regiões suscetíveis de produzir ameaças à paz. De certo modo, havendo testemunhado por duas vezes a Alemanha levar de arrasto o mundo à guerra no espaço de um quarto de século, Roosevelt também associava parte dos problemas à “velha ordem europeia”, que centralizava sobremaneira o curso da política mundial, nem sempre em um sentido que agradasse aos Estados Unidos. A derrota total da Alemanha nazista e de seus aliados do Eixo contribuiria para reduzir o peso da Europa nos assuntos globais, um cenário que Roosevelt antevia como benéfico à estabilidade da nova ordem do pós-guerra.171 Sua campanha em favor da inclusão da China de Jiang Jieshi (Chiang Kai-shek) entre os Policiais tinha por certo uma conotação “asiática”, visto que, mesmo com sua evidente debilidade, a China era o único aliado naquela região capaz de se apresentar (algum dia, talvez) como contrapeso crível ao Japão imperial. No Oriente Médio, zona instável de encruzilhada de civilizações entre a África e o continente euroasiático, Roosevelt flertou com a hipótese de sugerir um “Estado muçulmano” para o Conselho de Segurança. Tal sugestão, porém, nunca foi formalmente apresentada pelo governo norte-americano. Roosevelt levantou incidentalmente a ideia durante um despacho com Edward Stettinius, mas o presidente não fez mais do que manifestar uma vaga intenção de que, no futuro, poderia desejar fazer essa proposta em favor de um “assento permanente muçulmano”.172 170

Ibid. p. 28 MISCAMBLE, Wilson. From Roosevelt to Truman: Potsdam, Hiroshima, and the Cold War. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 38-42. 172 Excertos do diário pessoal do Subsecretário de Estado (Stettinius), 31 ago. 1944, Foreign relations of the United States [FRUS], 1944, vol. I. Washington: Department of State, Government Printing Office, 1966, p. 758-759. 171

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Na América Latina, o país mais bem posicionado para eventualmente ser um dos Policiais – se essa escolha tivesse de ser feita – seria o Brasil. Embora os EUA fossem capazes de garantir sozinhos a segurança do Hemisfério Ocidental, poderia ser útil a Washington ter um firme aliado latino-americano no Conselho. Incluir o Brasil como membro permanente seria coerente com o grand design de Roosevelt para salvaguardar a paz mundial no pós-guerra, articulando as diferentes regiões em torno de potências com peso específico em suas áreas geográficas, no marco institucional de uma organização que representaria foro universal de diplomacia parlamentar para todos os Estados “amantes da paz”. Além disso, a colaboração brasileira aos Aliados havia sido em geral muito apreciada pelo governo norte-americano, em particular por Roosevelt e Cordell Hull, que consideravam o Brasil um modelo de “bom vizinho”. Conforme o próprio Hull escrevera a respeito: Sem as bases aéreas que o Brasil nos permitiu construir no seu território, a vitória seja na Europa seja na Ásia poderia não ter vindo tão cedo. Essas bases, estendendo longe seu alcance no Atlântico Sul, nos permitiram voar aviões de guerra em ondas cruzando o oceano até a África Ocidental e daí para os teatros de operação na Europa ou até o Extremo Oriente. Se não fosse por essas bases brasileiras, não poderíamos ter dado tanta ajuda aos britânicos no Egito como fizemos no momento crucial da Batalha de El Alamein.173

É possível que Roosevelt, além do reconhecimento pela contribuição brasileira durante a guerra, também tivesse genuína simpatia pelo Brasil, país que havia visitado duas vezes: a primeira em 1936, quando parou no Rio de Janeiro a caminho da Conferência Panamericana de Buenos Aires, e a segunda em 1943, para a Cúpula de Natal. Em ambas as ocasiões, seus encontros com Getúlio Vargas foram amistosos. Ficou-lhe a impressão de que o presidente brasileiro era um parceiro confiável, amigo dos Estados Unidos e comprometido com a defesa do continente americano. As credenciais pouco democráticas de Vargas não eram obstáculo a uma estreita cooperação entre os dois países. Enquanto prevalecessem os imperativos estratégicos da guerra e da alta política mundial, em tempos de polarização ideológica e embate global com o nazifascismo, de menor relevância era a natureza do regime político brasileiro. Sumner Welles, que elogiava Vargas sempre que podia, classificava seu regime como uma “ditadura benevolente”, de caráter inteiramente nacional e sem qualquer similaridade com as “ditaduras autoritárias da Europa”.174 A longa noite autoritária do Estado Novo não obscurecia o fato de que o Brasil, com Vargas e Aranha, havia-se revelado um apoio vital aos EUA nos momentos de necessidade. Era, aliás, com esse mesmo espírito que Roosevelt abraçava a aliança com a URSS de Stalin. Não estava em questão a natureza não democrática do regime soviético, mas o simples fato de que a aliança era necessária contra o inimigo comum. Uma vez provada sua eficiência na guerra, imaginava o presidente norte-americano, a aliança com Moscou poderia ser mantida também na paz, que a ONU ficaria encarregada de supervisionar. Não somente questões de afinidade ou oportunismo teriam influenciado o ânimo de Roosevelt. Fatores conjunturais também tiveram seu papel. Importante nesse sentido era a percepção norte-americana do instável equilíbrio de forças na política sul-americana. A Argentina especificamente era vista como o “mau vizinho”, que se mantinha apegado a uma 173 174

HULL, Cordell. The memoirs of Cordell Hull. Nova York: Macmillan Company, 1948, vol. 2, p. 1423. WELLES, Sumner. Where are we reading? Nova York: Harper & Brothers, 1946, p. 220.

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neutralidade que mal disfarçava suas inclinações pelo Eixo. Em dezembro de 1943, o golpe na Bolívia contra o governo de Enrique Peñaranda, com suposto apoio argentino, fez surgir o espectro de um bloco hostil aos interesses norte-americanos na América do Sul. Os Estados Unidos decidiram então aumentar a pressão sobre Buenos Aires. Depois de avaliar a situação, em 12 de janeiro de 1944, alarmado com a perspectiva de crescimento da influência argentina em países vizinhos, Roosevelt escreveu a Hull para enfatizar a premência de contra-arrestar o avanço dos sentimentos antiamericanos na região. Segundo o presidente, era “essencial” nesse contexto tomar medidas imediatas para “reforçar a posição do Brasil”, incluindo o envio de armas e munições e possivelmente mais instrutores norte-americanos.175 O objetivo era dar ao Brasil uma “força de combate efetiva” próxima à fronteira com a Argentina, com duas ou três divisões de regimentos motorizados. Roosevelt também se disse inclinado a ceder ao Brasil, pelo acordo de Empréstimo e Arrendamento, alguns navios cargueiros para substituir as muitas embarcações brasileiras afundadas. Com autorização da Casa Branca e inusitada agilidade, o Departamento da Guerra acertou a remessa ao Brasil de um regimento blindado completo, peças de artilharia e 417 metralhadoras. Ao invés de seguir para o Nordeste, todo o material seria enviado ao Rio Grande do Sul. Além disso, os Estados Unidos dariam assistência para a construção de novas bases aéreas no sul do Brasil. Seguindo nessa linha, em 14 de junho de 1944, seria assinado, no Rio de Janeiro, Acordo secreto de Aviação Militar entre o Brasil e os EUA.176 Paralelamente, Washington ameaçou congelar os bens argentinos em território norteamericano e suspender todas as suas exportações ao país platino. Esses e outros desdobramentos levaram finalmente a Argentina a romper as relações diplomáticas com a Alemanha e o Japão, em 26 de janeiro, gesto destinado a reduzir o ímpeto de confrontação por parte dos EUA. Com efeito, sobreveio momentânea diminuição da pressão, mas não da desconfiança, ainda em nível muito elevado. Em dado momento, em carta pessoal a Vargas, Roosevelt tratou da visita que a Sra. Eleanor Roosevelt planejava fazer ao Nordeste brasileiro, após um giro pelo Caribe. Com certa cumplicidade, Roosevelt observou que a situação em geral lhe parecia bem: “Só desejo que a Argentina se comporte!”, exclamou.177 Aos olhos de Washington, a Argentina em 1944 parecia longe de chegar ao ponto de ir à guerra contra o Eixo, o que outros países latino-americanos haviam feito desde 1942, como no caso do Brasil. A conjuntura, portanto, parecia indicar – ou ao menos não desautorizava – que uma política mais robusta de apoio ao Brasil teria guarida no quadro mais amplo dos objetivos norte-americanos para a região. Para Moniz Bandeira, “o fortalecimento militar do Brasil, que os EUA promoviam e alardeavam, era também um meio de intimidar a Argentina e a acuá-la, por

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A expressão usada em inglês foi “to build up the strength of Brazil”. Roosevelt a Hull, memorando, Washington, 12 jan. 1944, FDR Papers, President’s Secretary’s File, Box 24, Brazil, também reproduzido (com cortes) in FRUS, 1944, vol. VII. p. 568. 176 Martins a Vargas, telegrama secreto, Washington, 14 jan. 1944, IHGB, Arquivo Estevão Leitão de Carvalho, Lata 507, Livro 2; Leitão de Carvalho a Aranha, ofício, Washington, 18 jan. 1944, ELC, Lata 507, Livro 3; “Text of Secret Military Aviation Agreement”, FRUS, 1944, vol. VII, p. 560-566. 177 Sobre a questão argentina no início de 1944, cf. também Capítulo 3. Roosevelt a Vargas, carta, Washington, 19 fev. 1944, FDR Papers, President’s Secretary’s File, Box 24, Brazil.

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constranger suas Forças Armadas, cada vez mais inquietas e alarmadas ante a falta de material bélico”.178 Assim, quando começou a Conferência de Dumbarton Oaks, havia um histórico recente que se coadunava com a visão favorável que Roosevelt tinha das relações com o Brasil e com a abordagem regionalista que lhe era tão cara no projeto da ONU. Em 24 de agosto de 1944, durante reunião na Casa Branca sobre o andamento das negociações tripartites com a GrãBretanha e a URSS, foi discutida a possibilidade de ingresso da França e do Brasil como membros permanentes do Conselho de Segurança. Antecipando possíveis resistências, Roosevelt expressou seu entendimento de que a delegação norte-americana poderia levantar a questão de um assento permanente adicional “em termos gerais”, mas não deveria insistir no assunto por enquanto. Seria melhor que se fizessem apenas “referências informais” ao Brasil na discussão. Após a reunião com Roosevelt, o subsecretário de Estado Edward Stettinius Jr. telefonou para Hull, a fim de relatar a conversa com o presidente. Hull observou que ele próprio, por diversas vezes, havia apoiado a concessão de um assento permanente para o Brasil.179 Na sessão do Comitê Diretor Conjunto de Dumbarton Oaks, que teve lugar na manhã de 28 de agosto, Stettinius, seguindo as instruções de Roosevelt, levantou pela primeira vez a questão do Brasil – que, diga-se de passagem, não havia sido previamente consultado a respeito.180 Indicou que mais à frente nas conversações sua delegação poderia desejar propor um sexto assento permanente no Conselho, a fim de poder acomodar algum dos países latinoamericanos. O chefe da delegação soviética, Andrei Gromyko, inquiriu se Stettinius teria algum país específico em mente. Leo Pasvolsky, assessor norte-americano presente à reunião, respondeu que talvez pudesse ser o Brasil. Sobolev, delegado soviético, perguntou então quando o Brasil deveria ser incluído. Stettinius, vendo que a discussão estava indo muito mais longe do inicialmente pretendido, esclareceu que sua delegação não estava fazendo de fato uma proposta e tampouco estava sugerindo qualquer momento particular para tal aumento dos membros permanentes. O representante britânico, Alexander Cadogan, disse que se o número fosse aumentado para mais de cinco membros permanentes haveria “considerável confusão”. Adiantou que informaria seu governo a respeito do caso brasileiro, mas duvidava que Londres contemplasse essa possibilidade. Até onde foi possível averiguar, todavia, os arquivos do Foreign Office em Kew não guardam registro dessa correspondência, se é que Cadogan, já sabendo de antemão a resposta, houvesse achado de fato necessário consultar Londres. Cadogan também nada anotou em seu diário sobre o assunto. O que transparece de seu diário é a frustração com a falta de interesse que Churchill demonstrava pela Conferência de Dumbarton Oaks. Em reunião do gabinete que discutiu a organização mundial, em 4 de agosto de 1944, o primeiro-ministro

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MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Brasil, Argentina e Estados Unidos – da Tríplice Aliança ao Mercosul. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003, p. 204 et seq. 179 Excertos do diário pessoal do Subsecretário de Estado (Stettinius), 24 ago. 1944, FRUS, 1944, vol. I, p. 730-732. 180 Trechos extraídos do volume I de 1944 da série Foreign relations of the United States foram selecionados por Arthur Pereira e Oliveira Filho e publicados em periódicos brasileiros em duas oportunidades, sob o título “O Brasil e o Conselho de Segurança na ONU: revelações vinte anos depois”: Revista Brasileira de Política Internacional. Rio de Janeiro: IBRI, ano XIII, nº 49-50, março-junho de 1970, p. 131-136; e Parcerias Estratégicas. Brasília: Secretaria de Assuntos Estratégicos, CEE, setembro/1998, no 5, p. 94-100.

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teria dito ironicamente: “Eis então: em 25 minutos nós definimos o futuro do mundo. Quem pode dizer que não somos eficientes?” 181 Na sequência da reunião, Gromyko indagou se a ideia norte-americana era inserir uma referência ao Brasil nas propostas a serem aprovadas em Dumbarton Oaks. Stettinius assinalou que poderia haver uma cláusula recomendando que um lugar fosse reservado à França e outro para os países latino-americanos. Gromyko aproveitou a ocasião para sublinhar que a delegação soviética era favorável a limitar os membros permanentes às quatro potências (China incluída) e à França. Stettinius escreveria depois em seu diário que era “óbvio” que os soviéticos preferiam somente cinco assentos permanentes.182 No mesmo dia, à tarde, Stettinius se encontrou com Roosevelt para repassar os vários tópicos discutidos na Conferência, entre eles o caso do Brasil. Relatou que as reações tanto de britânicos quanto de soviéticos haviam sido “negativas”. Opinou que se o presidente quisesse agora pressionar mais duramente o assunto seria “mais difícil”. Roosevelt ponderou a questão e finalmente disse que ele pessoalmente estaria disposto a aceitar que não se nomeasse o Brasil na minuta inicial de Carta. Desejava, no entanto, que houvesse uma menção geral no projeto que deixasse a porta aberta para que o tema fosse futuramente tratado por ele com Churchill e Stalin, antes que a organização fosse efetivamente lançada.183 Cordell Hull era mantido informado do que acontecia e, como Roosevelt, apoiava o Brasil. O secretário de Estado registrou suas impressões em seu livro de memórias, nesta que é provavelmente a passagem mais citada na literatura brasileira sobre o assunto: Nós sentimos que deveríamos também levantar neste momento a questão de se dar ao Brasil um assento permanente. Eu próprio sentia fortemente sobre este ponto, acreditando que o tamanho, a população e os recursos do Brasil, assim como a perspectiva de um grande futuro e a excepcional assistência que prestou às suas irmãs Nações Unidas, justificariam que recebesse o assento permanente. O presidente [Roosevelt] era plenamente da mesma opinião. Nos dias seguintes, 184 entretanto, tanto os britânicos quanto os russos se opuseram enfaticamente à nossa visão.

Em face das dificuldades encontradas, a delegação norte-americana se reuniu, em 31 de agosto, para avaliar de novo a situação. Diversas vozes se levantaram contra a proposta do sexto membro permanente e advogaram retirá-la tout court. Pasvolsky sustentou que outro assento desse tipo obrigaria a um aumento do número de não permanentes, se fosse mantido o princípio de maioria de assentos eletivos. O Conselho passaria a ter então treze membros, número 181

DILKS, David (ed.). The diaries of Sir Alexander Cadogan, 1938-1945. Nova York: Putnam’s Sons, 1972, p. 653-654. 182 Este e outros relatos que se seguem são baseados sobretudo nas notas e documentos deixados pelo Subsecretário de Estado norte-americano. Stettinius a Roosevelt, memorando, Washington, 28 ago. 1944, FRUS, 1944, vol. I, p. 737; Minutas Informais da Reunião no 6 do Comitê Diretor Conjunto, 28 ago. 1944, Dumbarton Oaks, FRUS, 1944, vol. I, p. 738-739. CAMPBELL, Thomas M. & HERRING, George C. The diaries of Edward R. Stettinius Jr., 19431946. Nova York: New Viewpoints, 1975, p. 111-113. 183 CAMPBELL & HERRING. The diaries of Edward R. Stettinius Jr. op. cit. p. 113; Matters to discuss with the President, Washington, 28 ago. 1944, FDR Papers, President’s Secretary’s File, Box 131, Dumbarton Oaks Conference. 184 Esta citação foi tida por muito tempo na historiografia como a principal “evidência” de que um assento permanente poderia ter sido concedido ao Brasil quando a ONU foi criada. HULL. The memoirs of Cordell Hull. op. cit. vol. 2, p. 1678.

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“agourento” que Roosevelt não aceitaria. Outros delegados argumentaram que a presença do Brasil reabriria o debate regional e poderia levar a pressões para a incorporação de potências menores de outras regiões. Foi também comentado que o Brasil não era uma “grande potência” e seu futuro político e econômico ainda era incerto. A “duvidosa capacidade militar do Brasil” poderia minar a justificativa principal para a concessão de privilégios aos membros permanentes, isto é, as potências vitoriosas na guerra que teriam depois maiores responsabilidades na paz. Ainda outro comentário procurava justificar a não inclusão do Brasil por ser um país de língua portuguesa em uma América Latina predominantemente de fala hispânica, o que poderia até resultar em demandas por um assento para a Argentina “pró-nazista”, anátema para os EUA. Apesar disso, na opinião de Hilderbrand, nenhuma outra nação na região poderia qualificar para o posto e os EUA estariam “condenados” tanto se conseguissem ou não um lugar para o Brasil.185 Esses e outros argumentos foram consolidados em um memorando sobre o lugar do Brasil no Conselho, escrito por Pasvolsky e outro assessor sênior, James Dunn. Os britânicos e soviéticos haviam rejeitado “enfaticamente” a proposta. À luz dessa oposição, alegava o texto, era preciso reconsiderar a atitude que havia sido tomada. A delegação norte-americana, após exaustivo estudo do assunto, recomendava “unanimemente” que os Estados Unidos não apoiassem o Brasil pelas seguintes razões: a) se o Brasil entrasse no Conselho, os EUA seriam “sempre responsáveis” pelo seu desempenho como membro permanente; b) se o governo dos EUA patrocinasse o ingresso brasileiro, “todos os outros Estados latino-americanos seriam antagonizados”; c) a insistência norte-americana suscitaria a questão da representação regional e serviria de estímulo a novas demandas do governo soviético e de outros grupos por membros permanentes adicionais, como a Tchecoslováquia ou outro Estado na órbita da URSS; d) o Brasil não era grande potência militar e seria “improvável” que se tornasse uma no futuro próximo, fato que poderia enfraquecer ou mesmo destruir todo o conceito de “responsabilidade especial” das grandes potências; e) tal como se contemplava, haveria provavelmente sempre dois países latinoamericanos entre os membros temporários, já que mais de um terço dos Estados-membros da organização seriam do Hemisfério Ocidental – 21 de um total de possivelmente 60; seria, nesse caso, “muito melhor” se a representação da América Latina fosse distribuída pelo continente ao invés de singularizar um país; e f) seis membros permanentes em um Conselho de onze membros significaria abandonar a “ideia valiosa” de manter no órgão número superior de pequenos países em relação aos Estados maiores; o aumento no número de representantes, neste estágio, seria “inteiramente indesejável do ponto de vista da eficiência da ação do Conselho”.186 Ainda no dia 31, Stettinius entregou o memorando Pasvolsky-Dunn a Roosevelt, que leu cuidadosamente o documento e de início não ficou impressionado. A maior parte das críticas da delegação norte-americana bem poderia ser aplicada à China de Chungking ou à França gaullista, que não eram genuinamente grandes potências em 1944, segundo os próprios critérios que estavam sendo aventados. Os argumentos contra a expansão numérica do Conselho também teriam sido válidos quando do aumento de três para quatro ou cinco membros permanentes. Quanto à questão regional, Roosevelt não pensava em outro país que não fosse o Brasil para 185

HILDERBRAND, Robert C. Dumbarton Oaks: the origins of the United Nations and the search for postwar security. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1990, p. 123-128. 186 “Brazil’s place on the Council”, Stettinius a Roosevelt, memorando particular e pessoal, secreto, Washington, 31 ago. 1944, FDR Papers, President’s Secretary’s File, Box 131, Dumbarton Oaks Conference.

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assumir o posto como representante da América Latina. Somente após árduo debate entre os dois, Roosevelt aceitou a recomendação de que não se insistisse na proposta em favor do Brasil, pelo menos àquela altura. Stettinius ainda aventou que, como Hull também tinha um “grande interesse pessoal” na matéria, talvez o presidente quisesse revê-la mais tarde com o secretário de Estado. Não se dando por vencido, Roosevelt afirmou que isso era “muito importante”, pois algum dia ele poderia desejar propor um assento permanente para um “país muçulmano”. A questão do Brasil, emendou, era “uma carta na sua manga”.187 Stettinius conta que teve muito trabalho para fazer Roosevelt mudar de opinião no caso do Brasil – até segunda ordem, bem entendido, já que, se de fato quisesse, o presidente poderia fincar pé em sua posição, a despeito da opinião que tivessem seus assessores. A propósito, eram poucos os que em 1944 podiam ousar desafiar a política estabelecida pelo presidente norte-americano, uma lenda viva na Casa Branca, com o prestígio em alta e a caminho de ser reeleito ainda mais uma vez pela vontade popular das urnas. Três pontos merecem ser enfatizados a esse respeito. Primeiro, a “candidatura brasileira” (que o Brasil desconhecia por completo) estava então mais próxima de uma intuição presidencial do que de uma política longamente maturada e refletida no interior do governo norte-americano nos estudos e planejamentos para o pós-guerra. Como tal, caberia ao presidente determinar se sua proposta deveria ou não ser perseguida, mesmo diante de resistências iniciais. Segundo, Stettinius seguramente não tinha estofo político para contradizer o comandante-em-chefe e líder nacional. Em sendo assim, provavelmente sua linha de argumentação no diálogo com Roosevelt teria girado em torno da necessidade de evitar novos atritos com a União Soviética, que não desejava mais do que cinco membros permanentes. Era mais fácil apelar a uma política prioritária do próprio presidente (cultivar a amizade de Stalin e atrair a URSS ao projeto da ONU) para desfazer-se de um objetivo secundário de viabilidade ainda incerta (defender a todo custo o assento permanente brasileiro). E, terceiro, a ideia da “carta na manga” pode ser lida como a intenção de esperar hora mais propícia para reintroduzir o item na agenda ou como uma espécie de “barganha preventiva”, que Roosevelt usaria no futuro para rechaçar outras demandas de seus aliados ou, ainda, trocá-las pela desistência de patrocinar o Brasil. No dia seguinte, Stettinius conversou com Hull, que – possivelmente já inteirado do resultado do despacho com Roosevelt – manifestou igualmente sua concordância com o teor do memorando sobre o Brasil. Hull teria dito que a fórmula lhe parecia razoável e que seria “inteiramente satisfatório” prosseguir na linha sugerida. Essa aparente e célere aquiescência, porém, talvez não seja tão espontânea como se quer parecer. Como se trata aqui de um relato deixado apenas por Stettinius, parte interessada na questão, é preciso cautela para afirmar até que ponto Hull havia concordado em retirar a proposta favorável ao Brasil. Pode-se inferir, por exemplo, que Hull compartilhasse da visão de Roosevelt (pró-Brasil) e que, por motivos táticos, achasse mais conveniente retomar o tema em momento posterior, possivelmente na próxima cúpula dos Três Grandes (Yalta). Com aval superior, Stettinius pôde então voltar a seus colegas em Dumbarton Oaks. Em 3 de setembro, nova reunião do Comitê Diretor Conjunto acolheu a proposição de que o Conselho de Segurança teria onze membros no total e que a França receberia uma cadeira 187

Excertos do diário pessoal do Subsecretário de Estado (Stettinius), 31 ago. 1944, FRUS, 1944, vol. I, p. 759; HILDERBRAND. Dumbarton Oaks. op. cit. p. 127.

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permanente “oportunamente”.188 Em seguida, Stettinius lembrou a Cadogan e Gromyko que ele havia trazido anteriormente para exame a possibilidade de incluir o Brasil como sexto membro permanente. Em deferência às posições que as delegações britânica e soviética assumiram, continuou, os Estados Unidos estavam retirando seu pedido para “melhor consideração” da questão. Em tom jocoso, Stettinius disse esperar com isso que a atitude norte-americana de “rápida e não solicitada” retirada da proposta, em assunto de importância para seu país, poderia servir de exemplo ou precedente no encaminhamento de outros itens da agenda da Conferência. Concluindo sua intervenção, sugeriu que talvez pudesse ser inserida no texto de Dumbarton Oaks uma cláusula geral que autorizasse um “possível aumento futuro do número de assentos permanentes”. Ato contínuo, Cadogan respondeu que ele lamentava ser o primeiro a quebrar o precedente recém-estabelecido, pois esperava que tal cláusula não fosse necessária. Gromyko, secundando a posição britânica, acrescentou que também para ele a proposta não seria adequada naquele momento. Disposto a colocar uma pá de cal no assunto, Cadogan ainda ressaltou que, se no futuro fosse considerado “desejável” ter um sexto assento permanente, sempre poderia ser utilizado o processo de emendas à Carta.189 Depois disso, não mais se falou do Brasil durante a Conferência. Até aqui, todas essas discussões interaliadas sobre o Conselho de Segurança haviam ocorrido confidencialmente. A não ser pelos relatos que vazavam à imprensa e pelos comentários de jornalistas que conseguiam atravessar o véu de silêncio de Dumbarton Oaks, não se sabia ao certo qual o verdadeiro formato que a futura organização internacional assumiria.190 O embaixador Carlos Martins chegou a fazer gestões junto ao Departamento de Estado para se queixar da “completa ignorância” na qual o governo brasileiro havia sido deixado em relação ao progresso da Conferência. Em uma de suas visitas ao Escritório de Assuntos das Repúblicas Americanas, Martins disse que o presidente Vargas e o Itamaraty estavam “constrangidos” em admitir que nada sabiam, a não ser aquilo que liam pelo noticiário, e que provavelmente até o governo argentino sabia tanto quanto eles. Martins também teve de negar um “boato absurdo”, veiculado pela imprensa, de que algumas Repúblicas americanas (Brasil entre elas) haviam concordado em que a China as “representasse” em Dumbarton Oaks. Em resposta aos seus pedidos de mais informação, ao menos sobre o curso geral das negociações, Martins recebeu apenas a garantia de que o secretário de Estado se preocupava com o problema e que planejava conversar posteriormente com os embaixadores latino-americanos em Washington para lhes fazer um resumo dos acontecimentos. Alguns dias depois, a primeira dessas conversas com Hull ocorreu, mas não houve mais do que uma exposição das posições conhecidas dos EUA, sem maiores novidades.191

188

“France as a permanent member of the Council”, Stettinius a Roosevelt, memorando, Washington, 31 ago. 1944, FDR Papers, President’s Secretary’s File, Box 131, Dumbarton Oaks Conference. 189 Stettinius a Hull, memorando, Washington, 3 set. 1944, FRUS, 1944, vol. I, p. 764-765. 190 A exceção eram os Domínios da Comunidade Britânica, que recebiam briefings diários da delegação da GrãBretanha em Dumbarton Oaks. 191 Memorando de conversa com o Diretor em exercício do Escritório de Assuntos das Repúblicas Americanas (Armour), Washington, 12 set. 1944, FRUS, 1944, vol. I, p. 924-925. Para o encontro de Hull com os representantes latino-americanos, cf. Memorando de conversa com o Chefe da Divisão de Assuntos Caribenhos e CentroAmericanos (Cabot), Washington, 15 set. 1944, FRUS, 1944, vol. I, p. 925-927.

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Argumentos e especulações A questão do assento permanente só se colocou de modo concreto para o governo brasileiro depois de recebido o memorando norte-americano de 9 de outubro, com o texto das propostas aprovadas em Dumbarton Oaks, simultaneamente enviado a inúmeras outras chancelarias. O mundo finalmente tomava conhecimento dos arranjos a que haviam chegado as quatro potências. Alguns diplomatas brasileiros rapidamente viram aí uma oportunidade a ser aproveitada. Em 16 de outubro, Cyro de Freitas-Valle, então embaixador do Brasil em Ottawa, enviou carta particular a Sumner Welles, como um “velho amigo”, para chamar a atenção às decisões tomadas sobre o Conselho de Segurança. Os EUA, a Grã-Bretanha e a URSS seriam membros permanentes e ninguém discutiria a necessidade de incluir essas três potências, juntamente com a França (para tratar de assuntos europeus) e a China (para falar “sobre a Ásia”, não “pela Ásia”). Freitas-Valle sugeriu que essa era a mesma posição do Brasil e indagou ao colega norte-americano: “Poderia qualquer coisa ser feita efetivamente na América do Sul sem a cooperação do Brasil?” Por esse motivo, continuou, se uma Carta da ONU tivesse de ser escrita para o próximo século, seria um “bom investimento para todos” dar uma cadeira permanente ao Brasil.192 Welles, que não ocupava cargo oficial naquele momento, concordou. Em sua resposta, deplorou o fato de que, nos últimos doze meses, o governo norte-americano não estivesse em contato mais estreito com os governos do Brasil e das outras Repúblicas americanas para trocar opiniões sobre os relevantes problemas da paz e da organização internacional. Reiterou sua antiga convicção de que essa organização devia estar baseada em “sistemas regionais”. Se as grandes potências precisavam estar representadas no Conselho, ao menos por alguns anos depois de vencida a guerra, a presença permanente das potências menores seria igualmente importante e deveria ser obtida por intermédio da “representação regional”. O próprio Conselho teria de ser expandido e os grandes países em rápido desenvolvimento, como o Brasil, “deveriam ser reconhecidos”, do mesmo modo que a França havia sido, a fim de serem rapidamente incluídos como membros permanentes.193 Dentro do governo brasileiro, não havia unanimidade em torno de eventual participação do Brasil no Conselho de Segurança. Como mostraram os debates da comissão de notáveis, existia certo ceticismo com o projeto da organização mundial, dada a maneira como havia sido estruturado, com todas as suas deficiências e lacunas. Conforme relatou Raul Fernandes, na reunião de 20 de outubro daquela comissão, a maioria dos presentes se manifestou contra o posto permanente alegando duas razões principais: a) a posição acarretaria “imensas responsabilidades financeiras, políticas e militares, que não é do nosso interesse assumir”; e b) “a pretensão infalivelmente seria rejeitada”. Apresentando-a, vaticinou Fernandes, “iríamos colher vexame certo”. O Brasil colocaria os Estados Unidos em posição desagradável e “suscitaríamos contra nós, só com ser apresentada, as suscetibilidades das outras Repúblicas americanas”.194 192

Freitas-Valle a Welles, carta, Ottawa, 16 out. 1944, CPDOC, CFV ad 44.02.00. Welles a Freitas-Valle, carta, Oxon Hill, 19 out. 1944, CPDOC, CFV ad 44.02.00. 194 Fernandes a Leão Velloso, memorando, Rio de Janeiro, 21 out. 1944, AHI Lata 651, Maço 9803-A. 193

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Assim, desde o início, ergueu-se relativo consenso de que o assunto era delicado e exigia discrição. Se o Brasil apresentasse um pleito notoriamente ostensivo, poderia ter de enfrentar depois uma situação de desprestígio em caso de recusa. Possivelmente por isso mesmo Vargas evitou abordar a questão em declarações públicas. Não obstante, indiretamente fez ver que ele próprio considerava de bom alvitre que o Brasil fosse reconhecido por sua lealdade à causa aliada. Por ocasião de um pronunciamento ao Exército Brasileiro, Vargas afirmou que o Brasil não lutava apenas por “revide”. Também contava (e muito) o papel que o país iria conquistar na ordem internacional do pós-guerra em decorrência de seu ativo engajamento no conflito: “O sacrifício dos brasileiros nos campos de batalha da Europa será compensado pela posição que ocuparemos no concerto das nações vencedoras, entre as quais teremos voz e voto e idênticas garantias de paz e prosperidade”.195 Para que a linha de discrição fosse seguida, a estratégia esboçada passaria então por contatos bilaterais reservados com os Estados Unidos. Pensava-se que essa seria a melhor forma de conduzir tema tão sensível e – se realmente desse resultado – começar a receber as esperadas “compensações” por tudo o que o Brasil havia feito em prol dos Aliados. Vargas deu sinal verde a Leão Velloso para que o Itamaraty fizesse gestões junto ao governo norte-americano em favor da representação permanente do Brasil. Em conversas com o encarregado de negócios dos EUA no Rio de Janeiro, Walter Donnelly, Leão Velloso ressaltou a importância que o governo brasileiro ligava ao assunto. Comentou que o embaixador Carlos Martins havia sido informado em Washington de que, durante a recente Conferência de Québec, Roosevelt teria falado sobre isso com Churchill em resposta à recomendação britânica de fazer da França um dos membros do Conselho. Roosevelt teria dito: “Se nós concordarmos com a França, então eu devo cuidar dos meus bons amigos brasileiros, porque eles vão esperar serem incluídos no Conselho Permanente [sic]”. Segundo o relato do encarregado de negócios norte-americano, o público brasileiro e a imprensa estariam reagindo com indiferença às propostas de Dumbarton Oaks devido principalmente à omissão de qualquer referência ao Brasil: “Eles consideram ser o Brasil o mais importante país das Américas, fora os Estados Unidos”.196 Ao que tudo indica, em meados de outubro Roosevelt ainda nutria esperanças com relação ao Brasil no Conselho, mesmo havendo aprovado – com relutância – o memorando Pasvolsky-Dunn, que recomendava o contrário. O fato de que Stettinius retirara o tema da pauta em Dumbarton Oaks não significava que o presidente simplesmente havia abdicado por completo de ver sua ideia realizada. Ele havia pessoalmente patrocinado a China e obtido sucesso, a despeito das críticas à reconhecida “fraqueza” chinesa. Na perspectiva regionalista que Roosevelt acalentava, o status de grande potência não era exigência tão fundamental se o país escolhido pudesse desincumbir-se a contento ao menos em sua própria região, em colaboração com os EUA. Mas, se a proposta tinha seus detratores dentro do próprio governo norte-americano, as objeções levantadas por soviéticos e britânicos representavam óbice de peso, capaz de frear a iniciativa se não houvesse forte empenho de Washington. Faz-se mister, pois, examinar melhor os dois casos. 195

Pronunciamento feito por Vargas em 10 nov. 1944. VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil, vol. XI. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1947. p. 47. 196 Walter J. Donnelly a Norman Armour (Diretor do Escritório de Assuntos das Repúblicas Americanas), telegrama, Rio de Janeiro, 19 out. 1944, FRUS, 1944, vol. I, p. 932-933.

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O Brasil e a União Soviética não mantinham relações diplomáticas em 1944. Na verdade, os contatos oficiais entre os dois países eram inexistentes desde o triunfo da Revolução Russa. O governo brasileiro não havia reconhecido o regime bolchevique em 1917 e fechara sua Legação na capital russa. O governo de Moscou, que tampouco tinha representação diplomática no Rio de Janeiro, estava cabalmente informado do sentimento antisoviético que prevalecia entre as elites políticas e militares brasileiras, sobretudo após a chamada Intentona Comunista de 1935. A “estranha aliança” da URSS com as potências ocidentais na Segunda Guerra Mundial não chegou a alterar completamente o quadro mais profundo de antipatia pelas ideias socialistas entre membros da cúpula do Estado Novo, que não dissociavam o governo soviético do movimento comunista internacional. Em 1942, tentativas de aproximação entre o Brasil e a URSS foram rechaçadas por Vargas, que não queria dar a impressão de estar “no mesmo barco” com os soviéticos. As relações bilaterais trilhavam caminho incerto e repleto de desconfianças dos dois lados.197 Diante disso, Stalin não tinha motivação concreta e substancial para acolher a proposta norte-americana. Mas poderia bloqueá-la? Com sua percepção crua da Realpolitik, Stalin valorizava a força e via com desprezo os países pequenos, sem poder militar expressivo. Na sua visão, às grandes potências – e somente elas – deveria caber a responsabilidade de gerir os assuntos pertinentes à ordem global. Os Três Grandes seriam os únicos a preencher esse critério de poder. A União Soviética havia aceitado a contragosto o ingresso da China e da França entre os membros permanentes, por insistência dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha respectivamente. Seria mais um teste de vontade fazer com que os soviéticos apoiassem a entrada de qualquer outro país adicional que não fosse considerado uma potência forte o bastante para figurar entre os grandes.198 Havia o receio de que quanto mais atores no Conselho, mais poderia diluir-se o poder da URSS no órgão. Além disso, politicamente alinhado aos Estados Unidos, o Brasil poderia significar um voto extra para Washington, com a possibilidade não apenas teórica de que França e China pudessem também cerrar fileiras com os dois países anglo-saxões (EUA e Grã-Bretanha). Como a URSS já se sentia em menor número no Conselho, esse cenário não atraía Stalin, muito pelo contrário. A Grã-Bretanha, por sua vez, não tinha objeção específica ao Brasil, país com o qual mantinha relações corretas, amigáveis, ainda que não fossem “excelentes”. Veja-se, por exemplo, os atritos bilaterais durante a Segunda Guerra Mundial, como o episódio do navio Siqueira Campos, carregado de armas compradas pelo Brasil na Alemanha antes da guerra, que fora apresado pela Marinha britânica, ou ainda a firme oposição de Londres ao envio da FEB ao teatro de guerra europeu. No fundo, o Brasil não era politicamente fundamental para a Grã-Bretanha, cujas prioridades de política externa passavam primeiro pelas relações transatlânticas (EUA), pela Europa e pelo Império Britânico, espalhado em diversos continentes. Nas questões de preparação para a paz, o governo de Londres costumava coordenar sua posição com os Domínios, que participavam ativamente da guerra, inclusive com tropas de combate. Depois de haver-se batido pela inclusão da França no Conselho, Churchill não podia encampar mais um candidato a assento permanente sem se indispor com seus parceiros da Comunidade Britânica. O relatório de 197

Para estudo detalhado das relações Brasil-URSS, cf. HILTON, Stanley E. Brazil and the Soviet challenge, 19171947. Austin: University of Texas Press, 1991. 198 SCHILD, Georg. Bretton Woods and Dumbarton Oaks: American economic and political postwar planning in the Summer of 1944. Nova York: St. Martin’s Press, 1995, p. 144.

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uma comissão interministerial britânica sobre a organização internacional recomendava, em abril de 1944, que a Grã-Bretanha deveria tentar assegurar a presença de um dos Domínios no Conselho de Segurança, pelo menos com assento temporário. A possibilidade de um assento permanente para um dos membros da Commonwealth, juntamente com a própria Grã-Bretanha, precisava levar em conta que essa demanda provavelmente provocaria uma contrademanda da URSS, que poderia exigir que uma de suas Repúblicas constitutivas também estivesse sempre representada.199 Já havendo cedido aos desejos norte-americanos no caso da incorporação da China, seria mesmo difícil que Churchill pudesse explicar aos Domínios que apoiaria ainda outro país proposto pelos Estados Unidos, deixando de fora o Canadá ou a Austrália, que também vinham fazendo sacrifícios em prol da causa aliada e, muito especialmente, em defesa de Sua Majestade Britânica e da sobrevivência da Grã-Bretanha nas horas mais soturnas da guerra. Além do apoio a Londres quando a Grã-Bretanha sustentava solitária o esforço de guerra contra a Alemanha, os Domínios britânicos forneceram recursos materiais e humanos desde o início do conflito. Soldados canadenses participaram da invasão da Normandia e tropas australianas lutaram contra os japoneses no Pacífico. 45 mil canadenses morreram na Segunda Guerra Mundial. Entre os australianos foram 40 mil. Se fosse desprovida de seu Império, a Grã-Bretanha corria sério risco de gradualmente declinar para uma posição de “segunda classe” após a guerra, como advertia em 1943 Malcom MacDonald, o experiente Alto Comissário britânico em Ottawa. Para muitos em Londres, os Domínios eram a “esperança final” para sustentar de modo genuíno o status de grande potência da Grã-Bretanha. Ao contrário dos EUA, que não se sentiram compelidos nem tinham interesse em manter informados os “bons vizinhos” latino-americanos, o governo britânico instruiu Cadogan a transmitir diariamente às embaixadas dos Domínios em Washington informações sobre o andamento das negociações em Dumbarton Oaks. Mesmo guardando sua inteira liberdade de decidir quais pontos de vista apresentar, convinha à Grã-Bretanha agregar peso às suas intervenções e aparecer como se de fato falasse em nome de toda a Comunidade Britânica.200 É certo que os Domínios não reivindicavam ostensivamente que se concedesse lugar permanente a um deles como membros da Commonwealth. Estavam, não obstante, interessados e dispostos a ter uma posição de responsabilidade, como exprimiu tipicamente o governo australiano, em outubro de 1944: “Nós sempre consideramos como essencial que as nações menos poderosas, especialmente os quatro Domínios britânicos que contribuíram e estão contribuindo tanto para o esforço de guerra, deveriam ter uma voz adequada na organização mundial proposta”.201 Eventual presença do Brasil no Conselho de Segurança não suscitava maiores considerações entre as autoridades britânicas, como mostra a parca documentação do Foreign Office sobre o assunto. Informação da embaixada da Grã-Bretanha em Washington indica que, em reação à proposta de um assento adicional para o Brasil, feita “em hora já avançada” pelos 199

WOODWARD, Llewellyn. British foreign policy in the Second World War. Londres: Her Majesty’s Stationery Office, 1962, p. 452. 200 CHAPNICK, Adam. The middle power project: Canada and the founding of the United Nations. Vancouver: University of British Columbia, 2005, p. 53 e 83-84; SOWARD, Frederic H. & McINNIS, Edgar. Canada and the United Nations. Nova York: Manhattan Publishing Company, 1956, p. 14. 201 Governo da Austrália a Dominions Office, telegrama no 263, 10 out. 1944, NA-UK, FO 371/40720.

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norte-americanos em Dumbarton Oaks, a delegação britânica, apoiada pelos russos, se opôs “fortemente” na suposição de que isso “abriria as comportas e levantaria a questão dos assentos semipermanentes”. Para os britânicos, criar um sexto assento permanente seria o mesmo que “mexer num vespeiro”. Sabia-se também que o embaixador brasileiro apoiava com vigor o ingresso da França, sustentando que era “um absurdo que nenhuma nação latina estivesse entre os big shots”. A “mentalidade latina”, teria dito Carlos Martins, seria essencialmente diversa da estadunidense ou da russa e o “mundo latino” merecia estar naquele círculo restrito.202 Outro ofício recebido em Londres relata que Martins “várias vezes” se referiu à ausência de um representante da América Latina ou mesmo de um país de “língua hispânica” [sic]. Diplomatas latino-americanos estavam pressionando os Estados Unidos a assegurar pelo menos uma cadeira para seus países e assim fazer com que os Cinco Grandes se tornassem os “Seis Grandes”. Martins argumentou que a Europa teria 2-3 votos (Grã-Bretanha, França, URSS), a Ásia 1-2 (China, URSS) e a América apenas um (EUA). O diplomata britânico que conversou com o embaixador brasileiro, um certo senhor Hadow, achava que o governo norte-americano poderia realmente apoiar um país latino-americano como forma de fortalecer sua posição no Conselho “com um satélite”. Anotações à mão na primeira página daquele expediente servem como indicativo do pensamento prevalecente nos meios oficiais londrinos. “É obviamente um absurdo pretender que o Brasil tem o status de uma Grande Potência”, opinou um alto funcionário do Foreign Office. “O Brasil não é de maneira alguma o representante da América Latina, mas sua vaidade e enfado são certamente de uma grande escala”, arrematou outro. O despacho manuscrito de Gladwyn Jebb, chefe do Departamento de Reconstrução, é taxativo: “Confio em que devemos continuar a resistir ao pleito do Brasil”. Acreditava-se que o Brasil ficaria satisfeito em ver a França como representante das “nações latinas” no quadro permanente do Conselho.203 Outro ponto importante era a própria visão britânica do Conselho de Segurança a ser criado, influenciada pelo regionalismo de Churchill. A Grã-Bretanha não queria arcar sozinha com os custos de manter a ordem no pós-guerra (como acontecera na Liga das Nações, apoiada apenas pela França). Com a economia em frangalhos, o país tinha sérios problemas internos e um Império imenso para cuidar, com crescente dificuldade para conter revoltas e pressões por maior autonomia, como na Índia. Seu poder claramente havia diminuído, embora sua real condição estivesse oculta pela ilusória sensação de poder gerada pela vitória. A Grã-Bretanha era o elo mais fraco dos Três Grandes. Do ponto de vista britânico, envolver tanto os EUA quanto a URSS no projeto da ONU teria duas vantagens: a) ajudaria a conter os Dois Grandes dentro de um sistema multilateral que limitava seu poder discricionário e no qual a Grã-Bretanha teria voz e veto; e b) dividiria as responsabilidades de manutenção da segurança mundial, em particular na Europa. Para Churchill, os Estados Unidos policiariam o Hemisfério Ocidental e idealmente dariam sua contribuição para manter a segurança na Europa, servindo como garante contra qualquer pretensão futura alemã e anteparo ao expansionismo soviético no continente europeu. 202

“Position of Brazil in World Organisation Council”, embaixada britânica em Washington ao Departamento de Reconstrução (Foreign Office), ofício, 7 out. 1944, NA-UK, FO 371/40720; HILDERBRAND. Dumbarton Oaks. op. cit. p. 125. 203 “Desire of Brazil for a permanent seat on the World Council”, Michael Wright (conselheiro da embaixada britânica em Washington) a Gladwyn Jebb (Foreign Office), ofício, 18 nov. 1944, NA-UK, FO 371/40723.

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No Extremo Oriente, EUA e URSS poderiam juntos controlar o Japão (eventualmente com assistência chinesa). Ainda que muito debilitada, a França repartiria o fardo com a Grã-Bretanha na Europa e em áreas extraeuropeias onde houvesse uma presença colonial francesa paralela à britânica (África, Oriente Médio ou mesmo no Sudeste asiático). Nesse esquema, todas as principais regiões do globo estariam cobertas. Para fins exclusivos de segurança, finalidade primeira e última do Conselho, não haveria então por que incluir um sexto membro permanente, fosse ele qual fosse. As considerações acima não esgotam o tema em suas múltiplas facetas. A oposição britânica se ancorava na soviética e vice-versa. A chave estava na atitude que tomaria o governo dos Estados Unidos. Até onde iria o empenho norte-americano? Era este genuíno ou episódico? Voltaria Roosevelt a tocar no assunto na próxima Conferência dos Três Grandes em Yalta, programada para o início de 1945? Entrementes, mudanças na chefia do Departamento de Estado teriam impacto no desenrolar das tratativas. Hull, com sua saúde severamente debilitada há um bom tempo, teve de ser hospitalizado e renunciou ao cargo em 27 de novembro de 1944. Para seu lugar foi nomeado Stettinius, com a promessa de “revitalizar” o Departamento.204 Stettinius não havia compartilhado das experiências anteriores de Roosevelt e Hull na política hemisférica. Não se sentia previamente comprometido e muito menos entusiasmado com o Brasil. O novo secretário de Estado podia agora dar livre curso às suas próprias visões sobre o caso brasileiro, que no contexto da guerra e da pesada agenda interna de Roosevelt, convém sempre ter presente, não estava no topo da lista de prioridades do governo norte-americano. Desde outubro, Roosevelt dividia seu tempo entre governar os EUA, acompanhar a guerra e conduzir sua campanha eleitoral para um quarto mandato. Nas horas vagas, refugiava-se em sua casa de campo em Hyde Park, ao norte de Nova York. Em mais um triunfo pessoal, o presidente foi reeleito em 7 de novembro de 1944, o que também significou endosso da opinião pública ao maior engajamento norte-americano na configuração do pós-guerra.205 Em 18 de dezembro de 1944, procurando dar um ponto final na questão, Stettinius telegrafou à embaixada dos EUA no Rio de Janeiro para transmitir a posição de seu governo em relação às aspirações brasileiras. Os Estados Unidos estavam preparados a dar “forte apoio” a um assento não permanente para o Brasil no Conselho. Quanto à alocação ao Brasil de um assento permanente, Stettinius foi incisivo ao afirmar que os EUA não iriam insistir nisso. Entre as razões para tanto estava o fato de que as perspectivas de sucesso, sem o apoio ativo da União Soviética, seriam em termos práticos “desprezíveis”. O esforço seria não apenas “infrutífero”, mas enfraqueceria também a posição norte-americana em outros assuntos importantes. Havia uma “oposição resoluta” ao aumento da composição do Conselho acima da proposta de onze membros (cinco permanentes e seis não permanentes). Elevar o número de cadeiras permanentes, advertiu, implicaria reduzir para cinco o número de não permanentes, “com o sacrifício de outros interesses vitais”.

204

CAMPBELL, Thomas M. Masquerade peace: America’s UN policy, 1944-1945. Tallahassee: Florida State University Press, 1973, p. 68. 205 HOOPES, Townsend & BRINKLEY, Douglas. FDR and the creation of the U.N. New Haven: Yale University Press, 1997, p. 164.

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Stettinius lançou mão do argumento do poder militar, dentro de uma visão globalista do papel da organização. Segundo ele, um fator preponderante na seleção dos cinco membros permanentes, entre outros, era a “contribuição estimada” que poderiam dar, quando a necessidade surgisse, à imposição da paz “em qualquer parte do mundo, incluindo o Extremo Oriente”. Essa contribuição, explicou, seria medida pela força prospectiva desses membros em termos militares, navais e aéreos, bem como a “posse de facilidades de transporte adequadas”, no período subsequente ao término das hostilidades. Stettinius concluiu indicando que o governo norteamericano acreditava ser de interesse do Brasil não continuar pressionando por uma cadeira permanente a esta altura. Pediu, finalmente, que a embaixada confirmasse se o Brasil “ficaria satisfeito” com as garantias de apoio do governo dos EUA a um assento não permanente.206 Ao mencionar o Extremo Oriente, Stettinius parecia querer desqualificar a contribuição que o Brasil seria capaz de dar à manutenção da paz em âmbito global, desconsiderando o papel regional que o país poderia então desempenhar. É interessante verificar que, no caso da China de Chungking, embora convidada a ser um dos Quatro Policiais, os Três Grandes não tinham a expectativa realmente séria de que, na eventualidade de uma ação coercitiva do Conselho de Segurança longe da Ásia, a contribuição militar chinesa em 1945 fosse estender-se, por exemplo, à Europa ou ao Hemisfério Ocidental. Para que não ficasse dúvida quanto ao conteúdo exato da mensagem que se queria fazer chegar ao governo brasileiro, o texto do telegrama de Stettinius foi mostrado confidencialmente a Carlos Martins, que preveniu Leão Velloso. O Itamaraty estava, portanto, de antemão avisado de que não poderia contar com o endosso norte-americano naquelas circunstâncias. Para o embaixador brasileiro, as razões apresentadas contra o Brasil eram “fúteis”, mas o momento era o menos aconselhável para tentar reverter o quadro. O Departamento de Estado estava sem ninguém que tratasse dos negócios das Américas “com influência bastante para interceder” e as relações políticas entre os Três Grandes atravessavam um período delicado, que não permitia aos EUA defender a reivindicação brasileira.207 Compelido a obter uma resposta, o encarregado de negócios Walter Donnelly informou alguns dias depois que Leão Velloso lhe dissera que o governo brasileiro “obviamente” preferia e considerava que tinha direito a um assento permanente. No entanto, se isso não pudesse ser arranjado, o Brasil deveria então receber um dos primeiros assentos não permanentes. Essa indicação de aparente desistência em sustentar o pleito levou Donnelly a avaliar (usando as mesmas palavras de Stettinius) que o Brasil “ficaria satisfeito” em ser membro temporário do Conselho – de resto exatamente aquilo que o Departamento de Estado desejava ouvir.208 A embaixada norte-americana passou a reproduzir o pensamento de Stettinius em seus expedientes oficiais. Em memorando sobre assuntos políticos correntes no país, foram citadas algumas “dificuldades” para a concessão de um assento permanente ao Brasil: isso alargaria o Conselho além do tamanho contemplado pelos negociadores em Dumbarton Oaks; despertaria a “inveja” de outros Estados, particularmente entre as Repúblicas americanas; e representaria “pesadas responsabilidades militares”, visto que o Brasil deveria ser capaz de fornecer forças militares, navais e aéreas adequadas “em qualquer parte do mundo” para a 206

Stettinius a Donnelly, telegrama, Washington, 18 dez. 1944, FRUS, 1944, vol. I, p. 952. Martins a Leão Velloso, telegrama, Washington, 19 dez. 1944, AHI 51/5/6. 208 Donnelly a Stettinius, telegrama, Rio de Janeiro, 27 dez. 1944, FRUS, 1944, vol. I, p. 952-953. 207

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manutenção da paz. A conclusão do texto é sintomática: “Sempre foi a nossa intenção, no entanto, apoiar o Brasil para um dos assentos não permanentes no Conselho, que temos razoavelmente certeza de conseguir obter”. [grifos meus] 209 A questão, contudo, não estava inteiramente terminada. Na Conferência de São Francisco, a delegação brasileira voltaria de novo à carga, conforme será visto de forma mais demorada no Capítulo 4. Vargas ainda não havia desistido e o fim próximo da guerra apenas fez aumentar a expectativa de que, antes de aprovada a Carta da ONU, o Brasil seria enfim contemplado.

209

“Current political issues with Brazil”, memorando, Rio de Janeiro, 20 dez. 1944, Berle Papers, Box 76, Memoranda, Dec. 1944-April 1945.

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CAPÍTULO 3 GLOBALISMO E REGIONALISMO

Nenhum povo poderá dar melhor testemunho dos sentimentos americanistas do povo argentino do que o povo brasileiro. Pedro Leão Velloso

O Hemisfério Ocidental e a política regional A “ideia de Hemisfério Ocidental”, como construção político-ideológica de largo uso no discurso diplomático, atingiu seu apogeu durante o período entreguerras e o início da Segunda Guerra Mundial.210 O conceito subjacente a essa formulação era a imagem das Américas como um conjunto único no mundo, integrado por países que compartilhavam elos especiais de convivência pacífica, forjados pela história, pela cultura, por instituições e ideais comuns nos campos da política e do direito internacional. O sentimento de pertencer a essa comunidade era cultivado por meio de uma leitura seletiva do passado e reforçado continuamente em declarações públicas de “solidariedade continental”. Sua expressão prática era o sistema interamericano, que reunia as normas jurídicas, costumes, princípios políticos e tradições associadas às Conferências pan-americanas desde 1889. A compatibilidade entre o Hemisfério Ocidental e a geografia era apenas aparente. Não havia correspondência exata com a realidade física. A retórica “americana” excluía o Canadá, grande parte do Caribe e territórios ainda não independentes no continente, tais como as Honduras Britânicas e as Guianas inglesa e holandesa. Era sobretudo uma concepção política, de apelo simbólico, destinada a regular as relações entre os Estados Unidos e a América Latina, como acontecia no caso clássico da política de Boa Vizinhança do presidente Roosevelt.211 No plano discursivo, o Brasil fez do Hemisfério Ocidental a sua “região”. A influência do pan-americanismo no pensamento diplomático brasileiro podia ter suas origens traçadas até o barão do Rio Branco e os primeiros anos da República, ainda no século XIX. Essa moldura hemisférica se encaixava perfeitamente e complementava a busca de uma relação mais estreita com os Estados Unidos. Ao mesmo tempo, não havia como ocultar que o Brasil tinha questões a resolver em seu vizinhança mais próxima, ora identificada como América do Sul ora como América Latina. As relações com a Argentina se destacavam historicamente como as mais importantes nesse contexto subregional. A amizade com os EUA foi sendo ideologicamente construída ao longo dos anos em paralelo à percepção de rivalidade com a Argentina. Como lidar 210

WHITAKER, Arthur Preston. The Western Hemisphere idea: its rise and decline. Ithaca: Cornell University Press, 1954, p. 132 et seq. 211 Uma visão de fundo das relações históricas no Hemisfério Ocidental pode ser encontrada in CONNELL-SMITH, Gordon. The United States and Latin America: an historical analysis of inter-American relations. Londres: Heinemann Educational Books, 1974.

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com ambos simultaneamente, à luz dos objetivos estratégicos da política externa, representava desafio permanente para a diplomacia brasileira. Desde 1942, com a intensa mobilização norte-americana para a guerra, a neutralidade argentina contrastava fortemente com a adesão quase maciça dos países latino-americanos.212 Além do cerceamento político à Argentina, acusada com virulência de inclinações “pró-nazistas”, os Estados Unidos não hesitaram em recorrer a medidas duras de boicote econômico contra o “mau vizinho”. A campanha antiargentina liderada pelo secretário de Estado, Cordell Hull, se intensificou após o golpe militar que, em junho de 1943, derrubou o presidente Ramón Castillo e alijou do poder a elite agrário-exportadora que o apoiava. Hull estava convencido de que o governo de Buenos Aires agia mancomunado com forças do Eixo e precisava ser combatido com determinação. Lourival Fontes, ex-diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda, que se encontrava em Nova York e costumava escrever relatos a Getúlio Vargas sobre a situação internacional, assim descreveu o estado de espírito prevalecente nos EUA: A Argentina se isolou do mundo por um cordão sanitário cada vez mais apertado. As nações líderes aliadas recusam pão e água ao seu governo. Há, nos Estados Unidos, uma reação unânime, uma hostilidade total e geral. Qualquer movimento de simpatia, qualquer atitude convencional de cordialidade, qualquer fórmula discreta de aceitação do governo argentino redundará em suspeição e 213 desconfiança.

O julgamento em relação ao Brasil era o oposto. Para Fontes, firmava-se cada vez mais nos Estados Unidos a amizade ao presidente Vargas e “a crescente confiança na sua ação política”. Agregou, todavia, nota de cautela sobre as relações Brasil-EUA no pós-guerra: “A previsão é que, depois da guerra, os problemas, os interesses, as necessidades comuns crescerão astronomicamente”.214 No início de 1944, as profundas divergências entre Washington e Buenos Aires atingiram momento crítico. Em contexto de crescente influência de setores nacionalistas e do Grupo de Oficiais Unidos (GOU), do qual fazia parte o então coronel Juan Domingo Perón, a decisão argentina de romper as relações diplomáticas com a Alemanha e o Japão levou à queda do presidente Ramírez, substituído pelo general Edelmiro Farrell. O novo governo não foi reconhecido pelos Estados Unidos, que continuaram a hostilizar o regime e a ameaçar a Argentina com “sanções incapacitantes”. Em fins de janeiro e fevereiro daquele ano, sob o pretexto de uma visita a Montevidéu, navios de guerra da esquadra norte-americana no Atlântico Sul, comandada pelo vice-almirante Jonas Ingram, deslocaram-se ao Rio da Prata com propósitos evidentes de intimidação. Para Moniz Bandeira, o verdadeiro objetivo de Ingram “não era apenas fazer uma demonstração de força, a fim de intimidar Buenos Aires, e sim promover o bloqueio do Rio da Prata, o que certamente precipitaria o conflito armado, forçando o Brasil a invadir a Argentina”. Ingram teria cogitado arremeter contra a capital argentina, atacando-a com os 200

212

HUMPHREYS, R. A. Latin America and the Second World War: volume II, 1942-1945. Londres: Athlone Press, 1982, passim. 213 Lourival Fontes a Vargas, carta, Nova York, 18 nov. 1943, CPDOC, GV c 43.11.18. 214 Ibid.

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aviões transportados por sua esquadra.215 João Baptista Luzardo, embaixador do Brasil na capital uruguaia, atentou para a retórica agressiva do comandante da força naval: Quando a trovoada parecia iminente, apareceu a esquadra americana nas águas do Prata, fundeou em Montevidéu e seu chefe, o vice-almirante Ingram, falando à imprensa, canhoneou à queima roupa, cruamente a neutralidade argentina; taxando de ovelha negra da América o governo de Buenos Aires e 216 dizendo-lhe claramente que a sua esquadra bastaria para anular qualquer empreitada nazista.

Hull com frequência classificava a Argentina de “desertor”. Em junho de 1944, em encontro com os embaixadores do Brasil e do México em Washington, Hull repetiu sua cantilena de acusações e advertiu que a política argentina estava “destruindo toda a doutrina de unidade e solidariedade” nas Américas. Oswaldo Aranha não aprovava a tática do fustigamento, pois sentia que se estava alienando a amizade do povo argentino e “era um erro aplicar-se essa política de alfinete-picante”. A postura rígida adotada pelo secretário de Estado tampouco era consensual nos círculos do Departamento de Estado. Um de seus críticos mais vocais continuava sendo o defenestrado Sumner Welles, que culpava Hull de estar revivendo a tática do big stick na América Latina, criando ressentimentos e enfraquecendo a liderança norte-americana no hemisfério.217 Enquanto os Estados Unidos aumentavam a pressão, o Brasil relutava em endurecer o tom com a Argentina. Apesar das suspicácias que ainda alimentavam noções geopolíticas de confrontação, disputas de soma zero e ameaças latentes de parte a parte, os dois países compartilhavam muitos interesses e se ressentiam ambos da interrupção do fluxo normal do comércio desde a eclosão da guerra, especialmente nas suas importações provenientes da Europa. Nesse contexto, algumas iniciativas foram tomadas para incrementar o intercâmbio BrasilArgentina e favorecer maior integração entre seus mercados. Em janeiro de 1940, Aranha visitou Buenos Aires para a assinatura de um Tratado de Comércio e Navegação. Nessa época, o ministro da Fazenda argentino, Federico Pinedo, também defendia uma relação comercial mais estreita com o Brasil (e com os EUA), como forma de compensar a queda nas exportações argentinas para a Europa.218 Aprofundando esses entendimentos, em novembro de 1941, foi concluído ambicioso Tratado de Livre Intercâmbio entre o Brasil e a Argentina, mas que não chegou a ser efetivamente implementado. O Tratado propunha estabelecer um regime comercial

215

MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Brasil, Argentina e Estados Unidos – da Tríplice Aliança ao Mercosul. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003, p. 205-206; WOOD, Bryce. The dismantling of the Good Neighbor Policy. Austin: University of Texas Press, 1985, p. 35-40. 216 Apud SVARTMAN, Eduardo Munhoz. Diplomatas, políticos e militares: as visões do Brasil sobre a Argentina durante o Estado Novo. Passo Fundo: EDIUPF, 1999, p. 185. 217 GREEN, David. The containment of Latin America: a history of the myths and realities of the Good Neighbor Policy. Chicago: Quadrangle Books, 1971, p. 159-161; Carlos Martins a Vargas, telegrama, Washington, 27 jul. 1944, CPDOC, GV c 45.01.03; Tradução da entrevista concedida por Aranha a John Lennard, anexa ao ofício de Martins a Vargas, Washington, 15 nov. 1944, GV c 1944.11.15. 218 O texto do Tratado de Comércio e Navegação, de 23 jan. 1940, pode ser consultado in Coleção de Atos Internacionais no 190, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943.

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que permitisse criar, progressivamente, uma união aduaneira aberta à adesão de países da região.219 A estratégia de aproximação comercial, além de procurar extrair vantagens da complementaridade econômica existente, era vista dos dois lados como fator de distensão política no relacionamento bilateral. A marcha da cooperação, no entanto, perdeu fôlego. Acordos preferenciais de comércio, como o Tratado de 1941, não eram bem vistos por terceiros países com interesses nos mercados sul-americanos. Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, por exemplo, se movimentaram contra o acordo para evitar discriminação a seus produtos no futuro. Os EUA, entre outras medidas de boicote econômico, tentaram obstruir a venda de borracha brasileira para a Argentina.220 Considere-se também que, como regra geral, Washington não apoiava qualquer iniciativa de integração regional, muito menos se patrocinada pela neutra Argentina, se houvesse risco de interferência nos suprimentos que a América Latina fornecia para a economia de guerra norte-americana. Além disso, a partir de 1942, o mal-estar crescente entre os Estados Unidos e a Argentina repercutiu adversamente nos esforços para estimular medidas integracionistas no Cone Sul, reacendendo a rivalidade. A desconfiança de Buenos Aires se exacerbava à proporção que o governo de Washington reforçava a aliança com o Brasil, vista como ameaça potencial aos interesses argentinos por desequilibrar a balança de poder regional. A Argentina não tinha acesso ao programa de Empréstimo e Arrendamento e estava perdendo terreno para o Brasil no campo militar. Dois conhecidos autores argentinos comentam que “embora o governo brasileiro tentasse demonstrar que suas intenções eram pacíficas, sua aliança com os Estados Unidos, as campanhas jornalísticas contra a Argentina no Brasil e, sobretudo, a construção de bases aéreas próximas à fronteira com a Argentina – de onde era possível um ataque a Buenos Aires – foram percebidas do lado argentino como uma ameaça”.221 Em compensação, a Argentina por vezes se apresentava como representante da hispanidad e líder de possível bloco neutralista de países de língua espanhola na região. Era a possibilidade de que tal bloco assumisse conotação claramente antiamericana que mais preocupava o governo dos EUA – e do mesmo modo o Brasil, que se via constrangido a não encetar parceria mais efetiva com o vizinho do sul se isso pudesse gerar problemas com o grande aliado do norte. Nessa fase, que se inicia com a suspeita de envolvimento argentino no golpe de dezembro de 1943 na Bolívia e adentra o ano de 1944, a Argentina seria de novo o rival a ser contido na disputa pela liderança na América do Sul.222

219

PORCILE, Gabriel. The challenge of cooperation: Argentina and Brazil, 1939-1955. Journal of Latin American Studies. Cambridge, vol. 27, no 1, February 1995, p. 129-159; Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores, ano de 1941. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944, p. 30-33. 220 PORCILE. The challenge of cooperation. op. cit., p. 137. 221 ESCUDÉ, Carlos & CISNEROS, Andrés. Historia de las Relaciones Exteriores de la República Argentina. Buenos Aires, Grupo Editor Latino-americano/CARI, 2000, Tomo XIII: Las relaciones políticas, 1943-1966, El caso de Brasil, www.argentina-rree.com/historia.htm, acesso em 25/3/2009. 222 Para uma análise das relações Brasil-Argentina da perspectiva da “elite diplomática brasileira”, cf. SVARTMAN. Diplomatas, políticos e militares. op. cit.; também úteis são MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Estado nacional e política internacional na América Latina: o continente nas relações Argentina-Brasil (1930-1992). São Paulo: Ensaio/Editora UnB, 1993; e SAUER, Elmar. A disputa pela sub-hegemonia regional (1942-1945): o Brasil perante a neutralidade argentina na guerra. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado, PUCRS, 1993.

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É então que, no ápice da tensão, se começa a processar uma revisão da política brasileira. O primeiro fator era econômico. Enquanto antes da guerra o Brasil respondia por 5,7% das importações argentinas, essa participação cresceu para em média 24,5% no período 1942-44. O Brasil estava exportando mais para a Argentina do que a Grã-Bretanha, cuja participação havia caído de 22,9% para 16,6%. A guerra fez com que a Argentina se tornasse o segundo maior comprador individual das exportações brasileiras, atrás apenas dos EUA. Em 1943, o principal fornecedor das importações argentinas era o Brasil, com forte presença de manufaturados na pauta. A Argentina, por sua vez, era a fonte quase exclusiva de todas as importações de trigo para o mercado brasileiro. Era certo que o enrijecimento das sanções contra Buenos Aires afetaria negativamente a economia brasileira. A balança comercial com a Argentina, deficitária para o Brasil na década de 1930, tornou-se superavitária nos anos de guerra, favorecendo os industrialistas brasileiros.223 Talvez mais importante do que as oportunidades oferecidas no campo econômico era a diferença de abordagem política. Ao contrário dos Estados Unidos, que podiam a baixo custo fustigar a Argentina recalcitrante, o Brasil privilegiava, sempre que possível, o apaziguamento nas suas relações com o vizinho platino, como maneira de atraí-lo ao bom convívio regional. Não interessava ao Brasil acirrar os ânimos ou entrar em rota de colisão que poderia, no limite, degenerar em conflito sério ou até mesmo em guerra. A hipótese era percebida como real. Góes Monteiro, que não era uma voz isolada no estamento militar, alertava para a urgência em constituir bases de operações no Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso, “tendo em vista a possível necessidade de uma intervenção no Rio da Prata em combinação com os EUA”. Mas, com tropas brasileiras se preparando para lutar na Europa (o primeiro contingente da FEB embarcou em julho de 1944), a defesa do Nordeste ainda necessitando de atenção e uma conjuntura difícil na política interna, tudo o que Vargas não precisava naquele momento era um embate nas fronteiras meridionais do Brasil. Certamente, do ponto de vista estrito de sua defesa, ao Brasil não convinha enfrentar simultaneamente conflitos em duas frentes. Com seus melhores soldados na Itália, o país ficaria perigosamente vulnerável na fronteira sul. Precavidos para essa hipótese, os militares brasileiros confiavam em que os EUA viriam em auxílio do Brasil em caso de agressão argentina. Góes Monteiro escreveu: “A Argentina não esquecerá nunca o arremesso de Ingram, e nos culpará de conivência ou ainda que seja de passividade”, possivelmente guardando o “ajuste de contas para mais adiante [...]”.224 No caso da força naval de Ingram, enviada pelos Estados Unidos à costa rio-platense, navios brasileiros também integraram a esquadra e Vargas chegou a fazer um apelo a Roosevelt (sem êxito) para que a missão fosse cancelada. Do ponto de vista do Rio de Janeiro, a não ser que o Brasil fosse atacado primeiro ou não tivesse alternativa, uma ação militar conjunta contra a Argentina era algo impensável. Em caso de conflito aberto, o Brasil não queria de modo algum aparecer como um “títere” dos EUA. A Grã-Bretanha, que dependia do fornecimento de carne argentina e tinha grandes interesses econômicos no Prata, também era contra qualquer intervenção armada ou mesmo sanções comerciais mais enérgicas.225

223

PORCILE. The challenge of cooperation. op. cit., p. 132, 140 e 151-153. Góes Monteiro a Aranha, memorando secreto e pessoal, Montevidéu, 8 mar. 1944, CPDOC, GV c 44.03.08/2. 225 MONIZ BANDEIRA. Brasil, Argentina e Estados Unidos – da Tríplice Aliança ao Mercosul. op. cit. p. 205-206. 224

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Os acontecimentos de fevereiro de 1944 tiveram inegavelmente grande impacto na política que o Brasil iria seguir nos meses seguintes em relação ao “caso argentino”. Decidido a evitar o pior, Vargas buscaria um caminho conciliatório para que a rixa entre a Argentina e os Estados Unidos não atingisse as proporções de um enfrentamento que pudesse envolver o Brasil. A instrução aos diplomatas brasileiros, como veremos mais à frente, seria para que trabalhassem em favor da reintegração do país vizinho no sistema interamericano e apoiassem o ingresso argentino na futura organização do pós-guerra. Era fundamental normalizar o quanto antes as relações políticas na América do Sul e retornar à tranquilidade necessária para o desenvolvimento econômico e social do país e da região. As relações com Moscou e a missão do secretário de Estado Nas matérias de alta sensibilidade estratégica, como eram as relações com a Argentina, Vargas conduzia pessoalmente a política e definia, em última análise, a linha a ser seguida pelo governo. Oswaldo Aranha, por sua longa trajetória ao lado de Vargas, desde os tempos do Rio Grande do Sul, era capaz de levar seu ponto de vista ao chefe e amigo e, se fosse o caso, argumentar contra ou a favor deste ou daquele curso de ação. Nas Forças Armadas, lideranças militares como Dutra e Góes Monteiro exerciam influência, mas com seu interesse mais centrado nas necessidades de defesa (atuação da FEB ou alertas sobre o “perigo argentino”, por exemplo). O mesmo era válido para a área econômica internacional: participação setorial no processo decisório interno do Executivo, dentro do quadro geral fixado pelo presidente para a política externa. É desnecessário recordar que os segmentos fora do governo e a oposição pouco podiam influir em decisões tomadas no interior do regime estadonovista. Assim, com Aranha afastado e as principais embaixadas ocupadas por figuras inteiramente leais a Vargas, não havia outro ator político-diplomático no Estado Novo que pudesse contrapor-se individualmente à determinação emanada do Catete.226 As vicissitudes desse processo podem ser ilustradas no caso do estabelecimento das relações diplomáticas entre o Brasil e a União Soviética. Em 3 de janeiro de 1945, o embaixador Carlos Martins foi recebido pelo presidente Roosevelt, que elogiou a ação das tropas brasileiras no teatro de guerra e indicou seu desejo de avistar-se mais uma vez com Vargas, na volta da sua Conferência com Churchill e Stalin em Yalta, para trocar ideias sobre assuntos de interesse dos dois países. Informado disso, Vargas se apressou em comunicar que teria “grande prazer” em conversar com o presidente norte-americano em seu regresso daquela Conferência. Entretanto, na data da partida para a Crimeia, Roosevelt fez sentir que já estava atrasado uma semana e, dessa forma, não poderia mais encontrar-se com Vargas – pelo menos naquele momento. Confirmou, não obstante, que seu secretário de Estado, Edward Stettinius Jr., passaria pelo Rio de Janeiro em seu lugar. Decerto que o estado de saúde de Roosevelt se deteriorava a olhos vistos e, após a longa jornada até Yalta, um deslocamento adicional ao Brasil lhe seria extremamente penoso. Mas a intenção foi mesmo assim bem recebida pelas autoridades brasileiras, que viram nela uma reafirmação da importância que o Brasil supostamente teria na 226

Para análises de diversos autores, cf. por exemplo D’ARAUJO, Maria Celina (org.). As instituições brasileiras da era Vargas. EdUERJ/Editora Fundação Getúlio Vargas, 1999.

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política externa dos Estados Unidos. O gesto de Roosevelt, destinado a cultivar a boa vontade brasileira, ajudaria a compensar a ausência prolongada do embaixador norte-americano no Rio de Janeiro. Jefferson Caffery havia saído há vários meses e Adolf Berle Jr., nomeado, não assumira ainda. O fato vinha dando margem a comentários desfavoráveis sobre as relações bilaterais.227 Durante a Conferência de Yalta, discutiu-se a questão de se saber quais Estados teriam direito a participar da Conferência de São Francisco. Seriam convidados para a Conferência todos os países que haviam firmado a Declaração das Nações Unidas de 1942, além das “nações associadas” que declararam guerra ao Eixo até 1o de março de 1945. Existia um problema, porém: diversos Estados que eram parte das Nações Unidas não mantinham relações com a União Soviética. Stalin apresentou uma lista de dez países que se encontravam nessa situação e questionou Roosevelt a respeito da anomalia que seria criada. Eram futuros membros da ONU que se sentariam lado a lado com a URSS na Assembleia Geral. Mas, “como é possível”, perguntou Stalin, “desenvolver a segurança internacional com Estados que não têm relações diplomáticas conosco?” Tentando contornar o assunto, Roosevelt aventurou dizer que muitos desses Estados desejariam estabelecer relações com a URSS, apenas não haviam ainda tido tempo para isso [!]. Stalin estava particularmente contrariado com o fato de que países que cedo haviam declarado guerra à Alemanha se sentariam à mesma mesa com outros que especularam todo o tempo acerca de quem ganharia a contenda, categoria na qual ele incluía a Argentina. O prazo de 1o de março de 1945 para a declaração de guerra, como condição para o convite a São Francisco, foi acordado em Yalta especialmente para deixar de fora a Argentina.228 Era, pois, importante para os Estados Unidos que os países latino-americanos regularizassem suas relações com Moscou e estivessem todos em condições de aderir à ONU sem reservas. A questão, como Stalin deixara claro, tinha implicações políticas para o grau de comprometimento de Moscou com o projeto da organização internacional. Todo o esforço norte-americano para contar com a adesão da URSS, que havia custado concessões importantes também em outras áreas, não podia ficar refém de pendências dessa natureza. O primeiro governo a ser “trabalhado” seria o brasileiro. Conforme previamente acertado, Stettinius foi enviado em missão especial ao Brasil, diretamente de Yalta, onde havia acompanhado Roosevelt. Incidentalmente, outro assunto, ainda mais sigiloso, faria parte de sua visita. A pedido do Departamento da Guerra, Stettinius devia assegurar um compromisso de Vargas para que os Estados Unidos comprassem toda a produção brasileira de areias monazíticas, que possuíam propriedades radioativas. Encontradas principalmente no litoral do Espírito Santo, as areias monazíticas têm uma concentração natural de minerais pesados. O óxido de tório extraído desse mineral pode ser usado para produzir material físsil com aplicações militares. Sua posse era estratégica para a construção da bomba atômica e os EUA pretendiam certificar-se de que nenhum outro país teria acesso a essas fontes. O major John E. Vance, do Projeto Manhattan, acompanharia a visita. Após rápidas passagens

227

Carlos Martins a Vargas, telegramas, Washington, 3 e 23 jan. 1945; Vargas a Carlos Martins, Rio de Janeiro, 6 jan. 1945; Carlos Martins a Leão Velloso, telegrama, Washington, 5 jan. 1945, CPDOC, GV c 45.01.03. 228 LANÚS, Juan Archibaldo. De Chapultepec al Beagle: política exterior argentina, 1945-1980. Buenos Aires: Emecé Editores, 1984, p. 42.

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por Egito, Marrocos e Libéria, Stettinius chegou ao Rio de Janeiro, em 17 de fevereiro de 1945, para uma reunião privada com Vargas em Petrópolis.229 A fim de evitar alarde, Stettinius não deu qualquer pista desse aspecto confidencial de sua missão. O primeiro assunto foi a recém-concluída Conferência na Crimea. Stettinius comentou que Roosevelt havia identificado um “alto grau de cooperação” por parte de Stalin em Yalta. Avaliou que logo nas primeiras 48 horas da Conferência já havia ficado patente que os dois líderes iriam entender-se bem e obter “grandes resultados”. Vargas perguntou se Stalin era “um homem muito duro para se lidar”, ao que Stettinius respondeu que sim, ele era muito duro, mas também “muito realista”. O secretário de Estado explicou que Roosevelt estava confiante e acreditava que a União Soviética havia decidido tomar seu lugar na família das Nações Unidas como um “bom cidadão”. Vargas tomou a iniciativa de levantar a questão argentina, preocupado com seu tratamento na Conferência de Chapultepec. Stettinius enfatizou que não deveria haver precipitação em trazer a Argentina de volta à “família interamericana”. O melhor seria deixar que a Conferência no México seguisse seu curso normal e, somente no final, os representantes argentinos fossem convidados a se pronunciar. Sobre a organização mundial, Vargas demonstrou interesse na composição do Conselho de Segurança, talvez desejoso de auscultar as possibilidades de um assento permanente para o Brasil, ainda que de forma indireta. Stettinius foi evasivo, afirmando tão somente que “não havia mudança desde as discussões de Dumbarton Oaks sobre este ponto” (isto é, que o número de membros permanentes não seria maior do que cinco). O plano, de todo modo, ainda deveria ser discutido em São Francisco, onde sugestões seriam bem-vindas.230 Perto do fim da conversa, Stettinius levantou quase en passant o interesse norteamericano em adquirir areias monazíticas do Brasil e obteve a permissão de Vargas. Na sua abordagem de caso pensado para convencer o presidente, Stettinius disse que o produto era importante para fabricar tubos de rádio, lâmpadas elétricas, etc... Alegou que a Índia também produzia areias monazíticas e, graças a seus baixos custos de mão de obra, poderia tirar o Brasil do mercado mundial, a menos que o Brasil e os Estados Unidos chegassem a um acordo imediato de compra e venda para os próximos cinco ou dez anos. Stettinius qualificou como “bemsucedida” sua audiência com o mandatário brasileiro e saiu dela certo de que em breve o Brasil iria acertar-se com o governo soviético. Quanto aos suprimentos de tório brasileiro, um acordo secreto bilateral seria assinado no Rio de Janeiro, em 6 de julho de 1945, dando aos EUA prioridade na aquisição e controle desse recurso mineral radioativo.231

229

CAMPBELL, Thomas M. & HERRING, George C. The diaries of Edward R. Stettinius Jr., 1943-1946. Nova York: New Viewpoints, 1975, p. 262-266; JONES, Vincent C. Manhattan: the Army and the atomic bomb. Washington: Center of Military History, United States Army, 1985, p. 306; “Stettinius arrives in Brazil on way from Crimea to Mexico City talks”, The New York Times, Nova York, 18 fev. 1945, NYT Archive, www.nytimes.com, acesso em 4/1/2010. 230 Stettinius a Berle, carta, México, 28 fev. 1945, Berle Papers, Box 77, Correspondence. 231 STETTINIUS Jr., Edward R. Roosevelt and the Russians: the Yalta Conference. Nova York: Doubleday, 1949, p. 290-291 e 307; HAINES, Gerald K. The Americanization of Brazil: a study of US Cold War diplomacy in the Third World, 1945-1954. Wilmington: SR Books, 1989, p. 102 e 113.

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É duvidoso que Stettinius arriscasse comprometer sua missão fazendo pressões ou comentários sobre a redemocratização no Brasil, como às vezes se sugere na historiografia.232 A questão sequer foi discutida. Roosevelt precisava do apoio de Vargas na fase final de lançamento da ONU, sobretudo em função da influência do Brasil sobre outros países latino-americanos. Em breve começaria a Conferência de Chapultepec e os Estados Unidos queriam garantir unidade de vistas no continente e, de preferência, endosso firme às propostas de Dumbarton Oaks. O Brasil poderia ser muito útil nesse processo e não era àquela altura de interesse de Washington minar ainda mais a já delicada posição interna de Vargas.233 Segundo o comunicado conjunto divulgado à imprensa sobre a visita, baseado em minuta previamente redigida pelo lado norte-americano, Vargas e Stettinius haviam mantido “cordial palestra” sobre assuntos de interesse continental e internacional. Foram examinadas as relações bilaterais e vários aspectos da situação mundial, particularmente a colaboração de guerra do Brasil e o meio pelo qual os dois países poderiam continuá-la depois do conflito “em seu interesse comum”. Também foram revistos os resultados do sistema interamericano, “do qual o Brasil tem sido um tradicional defensor”, e os meios de reforçá-lo, com vistas a tornar a cooperação hemisférica mais efetiva do que no passado. O comunicado fez menção à Conferência da Crimeia, que “tão grandemente” havia beneficiado a causa das Nações Unidas e preparado o caminho para as Conferências do México e de São Francisco, “onde a solidariedade das Nações Unidas na guerra tornar-se-á a base da organização mundial para estabelecer uma paz duradoura”. Convenientemente, porém, nada transpirou sobre a hipótese de reatamento com a União Soviética, nem sobre a Argentina, muito menos sobre as areias monazíticas.234 Em 19 de fevereiro, Stettinius e Pedro Leão Velloso embarcaram juntos em voo para a Cidade do México. O secretário de Estado não visitou nenhum outro país da região, o que levou o governo brasileiro a acreditar que a deferência reforçava o prestígio do país. Em suas conversas privadas com Leão Velloso, Stettinius se declarou pronto a servir de intermediário entre o Brasil e a URSS. Recomendou que algo fosse feito antes da Conferência de São Francisco. Paralelamente, Lourival Fontes, agora nomeado embaixador no México, foi procurado por uma alta autoridade soviética, que manifestou o “sincero desejo da Rússia” de ter boas relações com o Brasil para atender aos interesses do comércio e pela “necessidade de uma frente comum para a paz e a reorganização mundial”. [grifos meus] Diante disso, mesmo não totalmente convencido, Vargas aceitou o fato de que havia chegado o momento de estabelecer relações com a União Soviética, “com as necessárias cautelas”, parecendo-lhe preferível que, sem prejuízo das conversações com Stettinius no México, o assunto fosse tratado oficialmente em Washington, depois da Conferência de Chapultepec.235 Desse modo, devidamente autorizado a fazê-lo, Leão Velloso ultimou as negociações necessárias e se encontrou com Andrei Gromyko, embaixador soviético na capital norte232

Cf. CARONE, Edgar. O Estado Novo (1937-1945). São Paulo: Difel, 1977, p. 319; entre outros. Sobre a controvertida atuação do embaixador Adolf Berle nas semanas que antecederam a queda de Vargas, em outubro de 1945, cf. Capítulo 5. 234 Declaração conjunta divulgada após a audiência concedida pelo presidente Vargas ao secretário de Estado Edward Stettinius, Rio de Janeiro, 17 fev. 1945, CPDOC, GV 45.03.19/2. 235 Leão Velloso a Vargas, telegrama secreto, México, 28 fev. 1945; Lourival Fontes a Leão Velloso, telegrama, México, 27 fev. 1945; Vargas a Leão Velloso, telegrama secreto, Rio de Janeiro, 2 mar. 1945; CPDOC, GV c 45.01.23; AHI 33/1/12. 233

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americana, em 14 de março, na residência do subsecretário de Estado Joseph Grew. Uma vez recebida a concordância de Moscou, o anúncio oficial do estabelecimento de relações diplomáticas se deu em 2 de abril.236 Com a medida, o governo brasileiro alterava uma política vigente desde 1917. A tradicional postura do Brasil diante dos soviets havia sido sempre de afastamento, quando não de antagonismo. Na política interna, o anticomunismo era uma força muito mais poderosa e influente do que o PCB. Partidários de uma política externa antisoviética podiam ser encontrados em todos os escalões do governo. O próprio Estado Novo nascera sob a égide do falso Plano Cohen de 1937, que ligava a Internacional Comunista a suposta conspiração para a tomada do poder no Brasil. Ironicamente, Vargas agora fazia as pazes com o “inimigo”. Ele próprio havia perseguido os comunistas por anos a fio. Com a virada nos rumos da guerra, mudou o seu discurso (não foi o único, é claro). Passou a enaltecer o brio soviético na luta contra os nazistas e elogiava a recuperação da URSS que, “brutalmente agredida, deu uma esplêndida demonstração de sua capacidade guerreira, defendendo o solo pátrio e esmagando o invasor”.237 A origem dessa guinada na política do Brasil para a URSS esteve muito mais na evolução do cenário internacional do que em transformações no âmbito doméstico. Os entendimentos entre os Três Grandes, a sutil pressão norte-americana e as obrigações assumidas pelo Brasil perante os Aliados levaram ao desenlace, estreitamente relacionado com a reorganização do mundo no pós-guerra. Para que tivesse sucesso a nova ordem encabeçada pela ONU, tão cara a Roosevelt, a cooperação de Stalin era tida como imprescindível. Com a aproximação da Conferência de São Francisco, o Brasil foi instado por Washington a tomar uma atitude que, no fundo, partia de uma exigência política de Moscou. Vargas acedeu. Aliados na guerra, o Brasil e a URSS deviam ser igualmente aliados na paz. Conseguiriam? Como se sabe, a nova posição brasileira durou pouco e não resistiu à Guerra Fria. Em 1947, em meio a intensa campanha anticomunista do governo Dutra, o Brasil rompeu as relações diplomáticas com a URSS. O contraste entre os dois momentos é significativo para mostrar como, em 1945, a dinâmica política do período pré-Guerra Fria precisa ser levada em conta na análise histórica, o que inclui, inter alia, a influência então exercida pela ONU no processo decisório dos principais atores.238 Chapultepec: a voz dos excluídos Desde a entrada dos Estados Unidos na guerra, estava caindo em Washington a prioridade antes conferida à América Latina, sobretudo na década de 1930, fase áurea da Boa Vizinhança. Os compromissos globais norte-americanos tinham manifesta precedência e o planejamento da futura ONU era conduzido em consulta com os grandes aliados, dispensando-se o concurso dos países latino-americanos. Uma vez finalizada a Conferência de Dumbarton Oaks e divulgados os seus resultados, os países da região se sentiram mais do que nunca excluídos das 236

Leão Velloso a Vargas, telegrama, México, 9 mar. 1945; Vargas a Leão Velloso, telegrama, Rio de Janeiro, 9 mar. 1945; Carlos Martins a Vargas, telegramas, Washington, 14 e 15 mar. 1945; CPDOC, GV c 45.01.23. 237 Apud FAUSTO, Boris. Getúlio Vargas: o poder e o sorriso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 150. 238 Para as relações com a URSS, cf. HILTON, Stanley E. Brazil and the Soviet challenge, 1917-1947. Austin: University of Texas Press, 1991, p. 197 et seq.

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conversações do pós-guerra e abandonados pelos EUA. Acostumados às reuniões regulares de consulta no âmbito interamericano, antes e durante a guerra, percebiam nitidamente que estavam sendo deixados de lado na negociação da paz. O sistema continental parecia haver sido deliberadamente colocado no limbo. Era significativo que, depois da fracassada Conferência Econômica Mundial de 1933, em Londres, até o fim de 1942, quase todos os eventos multilaterais importantes que contaram com a participação dos EUA foram de natureza interamericana. Desde 1943, enquanto as grandes potências conferenciavam entre si sobre os mais diversos assuntos, nenhum encontro pan-americano de relevo havia sido realizado.239 Para dar satisfação a seus parceiros descontentes, Roosevelt ofereceu uma recepção diplomática em 12 de outubro de 1944, Dia de Colombo/Dia da Raça, na Blair House. Naquela oportunidade, prometeu um papel “forte e vital” para o sistema interamericano, no quadro de referência da projetada organização mundial. Reconhecendo que os vínculos continentais andavam abalados, Roosevelt declarou: “Não trabalhamos longa e sinceramente para construir neste Novo Mundo um sistema de cooperação e segurança internacional meramente para vê-lo dissipar-se em um período qualquer de indiferença de pós-guerra”.240 Em seguida, o Departamento de Estado iniciou uma série de reuniões informais com os embaixadores das Repúblicas americanas em Washington, logo chamadas de “encontros de Blair House”. O objetivo era trocar impressões sobre as propostas de Dumbarton Oaks, à luz dos memorandos enviados pelos países latino-americanos com comentários e sugestões sobre o projeto da Carta da ONU. O governo norte-americano, deve-se ressaltar, tomava essa iniciativa a contragosto. Não lhe era possível negociar à parte o que já havia sido minuciosamente examinado e acordado entre os Quatro Grandes. Qualquer negociação substantiva sobre o texto só ocorreria na Conferência de São Francisco, com o conjunto dos Estados que iriam ingressar na organização como membros fundadores. As consultas latino-americanas deveriam ser um foro informativo para que os participantes exercessem seu direito de deliberar, mas não de decidir. Embora os encontros de Blair House fossem informais, foi criada uma Comissão de Coordenação, que deveria recolher e consolidar os comentários sobre as propostas de Dumbarton Oaks, com o auxílio do Escritório de Assuntos das Repúblicas Americanas do Departamento de Estado, dirigido por Norman Armour. O embaixador Carlos Martins foi escolhido como presidente daquela Comissão, mas em geral sua atuação nas reuniões foi discreta.241 Um típico exemplo de não-debate se deu no encontro de 29 de dezembro. A questão do nome da organização entrou em discussão, pois alguns países (Brasil, México, Venezuela) haviam levantado objeções à escolha de “Nações Unidas”, denominação oficial dos Aliados. O embaixador Carlos Martins exprimiu a opinião do governo brasileiro de que aquele termo possuía uma conotação de guerra, no que foi secundado pelo embaixador chileno, que sugeriu “União das Nações pela Paz”. O sentimento era de que, embora as nações estivessem unidas em uma aliança para a guerra, o nome da organização devia refletir seus objetivos, entre eles notoriamente a paz. Leo Pasvolsky explicou que o termo “União” havia sido rejeitado por causa de suas implicações 239

VOLPE, Alfred E. Latin America at San Francisco: the aims, attitudes, and accomplishments of Latin America at the United Nations Conference on International Organization. Stanford University, PhD Dissertation, 1950, p. 41. 240 RUSSELL, Ruth B. A history of the United Nations Charter: the role of the United States, 1940-1945. Washington, DC: The Brookings Institution, 1958, p. 551. 241 NOTTER, Harley A. Postwar foreign policy preparation, 1939-1945. Washington, DC: Department of State, 1949, p. 400.

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de superestado e que “Liga” tampouco era aceitável em função de sua óbvia associação com a Liga das Nações. O representante norte-americano apreciava a preocupação com o risco de perpetuação do caráter belicoso do nome. Não obstante, o uso de Nações “Unidas” era extremamente importante, na sua visão, porque enfatizava duas outras conotações que se devia considerar: “unidade contra o perigo” e “unidade pelo progresso”.242 A ausência de negociação efetiva e a falta de propósito aparente das consultas aumentaram a frustração dos diplomatas latino-americanos, que desejavam uma oportunidade para fazer propostas e influir de modo significativo na concepção da nova organização, de preferência antes de São Francisco. Para isso, deveriam vencer a oposição norte-americana. Hull preferia um enfoque globalista e centralizador para a organização internacional e não estimulava abordagens que pudessem representar tratamento especial a qualquer região ou grupo de países. A autoridade primária pela segurança mundial caberia à ONU e seu Conselho de Segurança. Não devia ser, portanto, pulverizada ou diminuída por mecanismos ou associações de cunho regional. Sumner Welles, ao contrário, era defensor loquaz do regionalismo e, em particular, do fortalecimento do sistema interamericano. Sua saída do Departamento de Estado, em agosto de 1943, fortaleceu o grupo contrário a qualquer reunião hemisférica antes que as potências aliadas assentassem as bases fundamentais do pós-guerra. Os governos latino-americanos queriam discutir não apenas a organização mundial, mas também questões econômicas de especial relevância para seus países, de modo que não se repetisse o colapso financeiro que se seguiu à Primeira Guerra Mundial. Temia-se que, com o fim da guerra, a previsível queda na demanda provocasse um drástica redução no nível de preços e na produção das matérias-primas exportadas pela região. Ademais, era visível o crescente envolvimento dos Estados Unidos nos planos de reconstrução europeia, com o sério risco de desvio de recursos e investimentos antes canalizados para projetos na América Latina, que ficaria mais uma vez em segundo plano. Os economistas latino-americanos advogavam medidas de proteção tarifária para indústrias nascentes, continuidade nos contratos bilaterais de compras governamentais dos EUA e acordos para manter o comércio de commodities nos níveis existentes durante a guerra.243 Desde meados de 1944, o México vinha sugerindo sediar uma Conferência interamericana para tratar de problemas da guerra e da paz. O governo dos EUA se mostrava pouco interessado e adotava táticas protelatórias. Em 27 de outubro daquele ano, na tentativa de romper o cerco a que vinha sendo submetida, a Argentina solicitou à União Pan-americana a convocação da IV Reunião de Consultas de Chanceleres Americanos (a III Reunião havia sido em 1942, no Rio de Janeiro). Seria a ocasião para apresentar a defesa de sua política na guerra em curso. Logo depois disso, a agência United Press noticiou um encontro realizado na cidade uruguaia de Colônia entre o chanceler argentino, Orlando Peluffo, e um “representante confidencial” de Getúlio Vargas. O encontro foi interpretado como gestão de Buenos Aires para que o Brasil estivesse em condições de indicar aos demais países americanos a “pretensão exata” da Argentina ao solicitar aquela Reunião de Consultas. No Brasil, muitos reagiram com 242

Encontro do Secretário de Estado com Chefes de Missão das Repúblicas Americanas no Departamento de Estado, Washington, 29 dez. 1944, Foreign relations of the United States [FRUS], 1944, vol. I. Washington: Department of State, Government Printing Office, 1966, p. 956-957. 243 GELLMAN, Irwin F. Good neighbor diplomacy: United States policies in Latin America, 1933-1945. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1979, p. 202.

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ceticismo. Outros, como um articulista do Jornal do Brasil, admitiam o direito que os argentinos tinham de se explicar: “O bom senso manda que se trate fraternalmente a quem se quer como irmão, e se aceite a mão, mesmo de quem errou, quando não desejamos que novamente caia em erro”.244 A proposta argentina reacendeu o debate em Washington e incomodou os Estados Unidos. Pressionado pelas circunstâncias e receoso de contrariar ainda mais seus aliados no continente, que há muito desejavam uma Conferência abrangente e de nível ministerial, Roosevelt decidiu então dar seu apoio à reunião patrocinada pelo México como alternativa à da Argentina. Após as devidas consultas, o Departamento de Estado enviou memorando às embaixadas latino-americanas para sinalizar que havia consenso em torno da realização de uma conferência de ministros, mas somente dos países que estavam colaborando no esforço de guerra (o que naturalmente excluía a Argentina). O governo norte-americano tinha “muitas dúvidas” quanto à utilidade de um julgamento do caso argentino nessa reunião, até que houvesse uma “mudança fundamental e claramente demonstrada por parte do governo de Farrell”. Estava disposto, contudo, a discutir o ponto no encerramento dos trabalhos da Conferência. Na prática, a questão argentina entraria na agenda da Conferência de Chapultepec como se estivesse sob a rubrica “outros assuntos”.245 Leão Velloso repassou o memorando a Vargas e pediu audiência para receber as instruções pertinentes. Atuando há muito pouco tempo como ministro das Relações Exteriores, cargo que exercia em caráter interino, Leão Velloso tinha autonomia reduzida e dependia da orientação direta do presidente nos assuntos que extrapolassem a rotina diária do Itamaraty. Vargas concordou com o procedimento sugerido pelo governo dos EUA, sabedor de que o governo Farrell, que ainda não havia sido reconhecido, estava interessado em contar com os bons ofícios do Brasil para “virar a página” e ser acolhido novamente no seio da comunidade americana. A Conferência Interamericana sobre os Problemas da Guerra e da Paz, a ter lugar na Cidade do México, seria vista na sua época como uma das reuniões mais importantes da história do pan-americanismo até então.246 Seu temário era vasto e perpassava a agenda de cooperação hemisférica em todas as áreas. O ministro das Relações Exteriores mexicano, Ezequiel Padilla, foi designado presidente da Conferência e exprimiu o sentimento predominante entre os países latino-americanos de que a voz da região merecia ser escutada: As nações menores não pretendem uma participação igual em um mundo de responsabilidades desiguais. O que desejam é que, na hora em que a injustiça bater às suas portas, tenham o direito de se fazerem ouvir; o que desejam é que possam apelar para a consciência universal e que as suas queixas e protestos contra a injustiça não sejam amortalhados no silêncio e na solidariedade cega das grandes 247 potências.

244

Paulo Demoro a Leão Velloso, telegramas, Buenos Aires, 27 out. e 21 nov. 1944, AHI 14/1/15; “O caso da Argentina”, Benjamin Costallat, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21 nov. 1944, AHI Lata 1708, Maço 35.458. 245 Memorando anexo à carta de Leão Velloso a Vargas, Rio de Janeiro, 29 nov. 1944, CPDOC, GV c 44.11.29/2; GELLMAN. Good neighbor diplomacy. op. cit. p. 197. 246 Leão Velloso a Exteriores (Macedo Soares), telegrama, México, 7 mar. 1945, AHI 76/4/16. 247 ROWE, L. S. Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz: Relatório apresentado ao Conselho Diretor da União Pan-Americana pelo Diretor Geral. Washington: UPA, 1945, p. 10-11.

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A delegação do Brasil, chefiada por Leão Velloso, acompanhado de dois altos quadros do Itamaraty (embaixadores Carlos Martins e Hildebrando Accioly), contava também com uma representação multisetorial, incluindo o setor privado e outros segmentos sociais: João Carlos Vital, diretor do Instituto de Resseguros; Pedro Calmon, presidente da Academia Brasileira de Letras; Valentim Bouças, economista e membro da Comissão dos Acordos de Washington; Armando de Arruda Pereira, diretor da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo; coronel Nestor Souto de Oliveira, adido militar no México; além de assessores técnicos e secretários.248 A posição brasileira, como usual, seria coordenada com a dos norte-americanos. Jornais brasileiros apontavam as “coincidências felizes” que contribuíam para aproximar, no México, as delegações do Brasil e dos EUA, inclusive o fato de que ambas estavam hospedadas no mesmo hotel. Em tom otimista, Valentim Bouças relatou a Vargas sua impressão de que o Brasil gozava do respeito de todos os países e era considerado, “nos grandes casos”, como o verdadeiro intermediário “entre os americanos do norte e os hispano-americanos”.249 Tinha-se por certo que a “unidade hemisférica” não era mais (se foi algum dia) a mesma de alguns anos atrás. O conflito de posições era esperado. O jornal The New York Times anotava em sua edição de 19 de fevereiro de 1945: “os Estados Unidos devem acomodar sua política latino-americana à sua política mundial e não vice-versa”. Para tanto, sugeria a matéria, tinham poder e estavam preparados a usá-lo no campo econômico “para ganhar o apoio das outras nações do hemisfério”.250 A maior desvantagem para os latino-americanos era a falta de alternativas de colaboração econômica, exceto os EUA. Destruída após anos de sangrento conflito, a Europa, que sempre representara fonte de capitais, investimentos e tecnologia, tão cedo não poderia oferecer oportunidades concretas de cooperação a seus tradicionais parceiros da América Latina. Mal desembarcara em sua chegada ao aeroporto, o chefe da delegação norteamericana, Edward Stettinius, cometeu uma gafe incômoda. Declarou à imprensa que os Estados Unidos viam o México como “um bom vizinho, firme defensor das tradições democráticas neste hemisfério e um país que nos orgulhamos de chamar de nosso”. Os jornalistas presentes estranharam a frase, que constrangeu os anfitriões mexicanos. Mais tarde o texto seria corrigido, pois a intenção do secretário de Estado, explicaram seus assessores, fora dizer que o México era um país que os EUA se orgulhavam de chamar de “nosso amigo”.251 A Conferência foi inaugurada em 21 de fevereiro, no castelo localizado no Bosque de Chapultepec, na capital mexicana. Seus trabalhos foram divididos em seis comissões, a saber: intensificação do esforço bélico; organização mundial; sistema interamericano; problemas sociais e econômicos; problemas econômicos da guerra e de transição; e coordenação e redação. Leão 248

“Problemas da guerra e da paz”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 19 fev. 1945, AHI Lata 1708, Maço 35.458; Acta final de la Conferencia Interamericana sobre Problemas de la Guerra y de la Paz. Cidade do México: Secretaría de Relaciones Exteriores, 1945, p. 9. 249 Jayme de Barros a Exteriores (José Roberto de Macedo Soares), telegrama, México, 21 fev. 1945, AHI 76/4/16; Bouças a Vargas, carta, México, 5 fev. 1945, CPDOC, GV c 45.01.23. 250 “Mexico talks designed to link Hemisphere to Dumbarton Oaks”, James B. Reston, The New York Times, Nova York, 19 fev. 1945, NYT Archive, www.nytimes.com, acesso em 4/1/2010. 251 “Secretary’s error puts error in Stettinius’ mouth”, The New York Times, Nova York, 21 fev. 1945, NYT Archive, www.nytimes.com, acesso em 4/1/2010.

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Velloso foi eleito presidente da primeira comissão, “em homenagem ao esforço de guerra do Brasil e à sua tradição jurídica”, segundo os termos usados pelo representante do Equador para justificar sua proposta.252 Inicialmente, o regulamento da Conferência de Chapultepec havia instituído que a única língua oficial seria o espanhol. O Brasil protestou contra a exclusão do português e o regulamento foi revisto para restabelecer a regra, tradicional nas reuniões pan-americanas, em virtude da qual todos os idiomas falados nas Américas seriam considerados oficiais.253 Em seu primeiro pronunciamento dirigido à Conferência, Leão Velloso se dedicou a dispensar encômios à “consciência da coesão americana”, seus “valores eternos” e ao “papel decisivo que cabe à América no melhoramento do mundo”. O americanismo brasileiro, segundo o chanceler, havia amanhecido com a vida independente do país, sob a liderança visionária de José Bonifácio, na proposta de “aliança defensiva e espontânea” com os Estados do Rio da Prata contra a tirania de além-mar e na “adesão imediata” à Doutrina Monroe em 1823. Elogiou a “limpa doutrina de unificação moral do continente”, oito vezes apresentada perante as Conferências Pan-americanas depois de 1889. A essas “reuniões de família” o Brasil havia dado sua contribuição desinteressada, exibindo a “lealdade de nossos princípios”. Concluiu com uma exortação à bravura dos combatentes da FEB nos Apeninos, representativa do compromisso assumido e da “reação patriótica ante o agravo do adversário traidor”. Pedro Calmon fez discurso na mesma linha de exaltação ao “acervo brilhante de propósitos pacifistas” das reuniões interamericanas, além de prestar homenagem aos soldados que lutavam pela “causa do homem livre da América”.254 O debate sobre a organização internacional era um dos mais aguardados. Em 26 de fevereiro, a delegação do Brasil apresentou à Conferência suas observações sobre o projeto de Dumbarton Oaks. O documento, assinado por Hildebrando Accioly, fazia um resumo das principais sugestões brasileiras para aperfeiçoar o texto que serviria de base à Carta da ONU. Embora o considerasse “louvável”, o governo brasileiro julgava que o plano era suscetível de ser melhorado em vários pontos, “em benefício de sua maior eficiência”. Fez-se a ressalva, no entanto, de que, “com espírito realista”, o Brasil reconhecia que alguns dos “defeitos capitais” no sistema planejado não poderiam ser alterados na Conferência de São Francisco. “Só com o tempo” tais defeitos poderiam desaparecer.255 No que se refere aos princípios, defendeu-se referência explícita à não intervenção, tal como já reconhecido entre os países americanos (Convenção de Montevidéu sobre direitos e 252

INMAN, Samuel Guy. Inter-American conferences, 1826-1954: history and problems. Washington: University Press of Washington, 1965, p. 210-217; Relatório da delegação do Brasil à Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz (México - 1945). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947, p. 63-68. Para os documentos oficiais da Conferência de Chapultepec, cf. também Conferencia Interamericana sobre Problemas de la Guerra y de la Paz, México, 1945. Cidade do México: Secretaría de Relaciones Exteriores, Dirección General del Acervo Histórico Diplomático, 2003. 253 Octávio Brito a Exteriores (Macedo Soares), telegrama, Boletim de Informações no 1, México, 21 fev. 1945, AHI 76/4/16. 254 Diario de la Conferencia Interamericana sobre Problemas de la Guerra y de la Paz. México, DF, no 4, vol. I, 24 fev. 1945, p. 38-39. 255 Relatório da delegação do Brasil à Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz. op. cit. p. 63-68. O documento também foi reproduzido in GARCIA, Eugênio Vargas (org.). Diplomacia brasileira e política externa - documentos históricos, 1493-2008. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2008, p. 454-459.

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deveres dos Estados, Protocolo de Buenos Aires relativo à não intervenção e Declaração de Lima de 1938), além do “respeito escrupuloso aos tratados”, uma das bases do direito internacional. Pela proposta brasileira, o parágrafo sobre a não intervenção deveria ser assim redigido: Todo membro da Organização deverá abster-se, nas suas relações internacionais, de qualquer intervenção nos negócios internos ou externos de outro membro da mesma Organização, e de recorrer a ameaças ou ao uso da força, a não ser de acordo com os métodos e as decisões da própria Organização. Na proibição de intervenção deve entender-se compreendida qualquer intromissão que ameace a segurança nacional de outro membro da Organização, ou comprometa diretamente a sua integridade territorial, ou determine o exercício de qualquer forma de influência preponderante estranha sobre os seus destinos.

Também se acreditava conveniente a adoção do princípio da universalidade na nova organização, para que esta representasse plenamente a comunidade dos Estados, sem excluir “nenhum Estado com condições de vida própria independente”. Na ótica brasileira, assim como na ordem interna todo indivíduo está subordinado à jurisdição de algum Estado, na ordem externa todo Estado soberano deveria estar do mesmo modo incluído na organização internacional. O Brasil propunha ademais que nenhum Estado poderia ser expulso da organização nem retirar-se desta voluntariamente. Como os poderes e as funções da Assembleia Geral pareciam bastante reduzidos em comparação com o Conselho de Segurança, o Brasil propôs fortalecer a primeira, onde estariam representados todos os membros da organização, ainda que isso lhe parecesse difícil sem modificar o conjunto de tudo o que havia sido decidido em Dumbarton Oaks. Foi sugerida a inclusão de uma regra sobre a revisão de tratados, considerado assunto “de alta gravidade”. Muitas vezes, argumentou-se, o Estado contratante de um acordo ou tratado internacional se julga autorizado a denunciá-lo unilateralmente, sob a alegação de que cessaram as condições que haviam determinado a sua celebração. Essa pretensão seria baseada na suposição de que todos os tratados são subordinados a uma condição tácita de rescisão ou contêm, implícita, a cláusula rebus sic stantibus. Essa doutrina era vista pelo Brasil como “perigosa”. A impossibilidade de revisão de certos tratados poderia levar a “consequências desastrosas” ou, pelo menos, injustas. Pela regra proposta, caberia à Corte da Haia decidir se o tratado em causa havia perdido total ou parcialmente sua força obrigatória. A regra sobre revisão de tratados, proposta pelo Brasil, teria a seguinte redação: A pedido de qualquer parte contratante de um tratado executório que alegue a caducidade total ou parcial do mesmo, ou a injustiça da sua manutenção, a Assembleia, por maioria de dois terços, poderá convidar a outra ou outras partes contratantes a se porem de acordo com a primeira para a revisão ou anulação de tal tratado. Se alguma das partes contratantes não concordar com a referida revisão ou anulação, a outra ou as outras partes contratantes ficarão autorizadas a recorrer à Corte Permanente de Justiça Internacional, a fim de que esta, por sentença declaratória, possa decidir se o tratado em causa perdeu total ou parcialmente sua força obrigatória, por se haverem modificado as condições que tinham determinado a sua celebração e se haver tornado o mesmo injustamente oneroso para alguma ou algumas das partes.

O Conselho de Segurança era tido como um dos pontos que vinham dando lugar às “maiores e mais justificadas” críticas, já que se tratava de um órgão executivo “todo poderoso”. 96

O Brasil entendia que, a não ser no período de transição entre o fim da guerra e uma “futura fase de perfeito reajustamento do mundo às novas condições internacionais”, a composição do Conselho deveria “obedecer a fórmulas mais democráticas e se basear realmente na igualdade jurídica dos Estados soberanos, sem perder de vista que, em certos casos ou para determinadas situações, poderiam ser concedidos direitos especiais a alguns dos membros da comunidade internacional”. Compreendendo as “dificuldades do momento”, o Brasil não iria pronunciar-se contra a regra de antemão estabelecida em favor da permanência das cinco grandes potências aliadas no Conselho. Contudo, se esse critério de permanência de alguns Estados fosse ser mantido, seria “justo” que se destinasse um dos lugares permanentes à América Latina. Continuou a exposição do governo brasileiro: Se é certo que o referido critério obedeceu à necessidade de se dotar o novo organismo mundial de elementos capazes de fornecer uma ajuda eficaz militar ao esforço coletivo para a manutenção da paz e da segurança do mundo, parece que este argumento se deveria aplicar ao caso da América Latina, cujas bases militares, aéreas, terrestres e navais, na presente guerra, e cuja contribuição nos campos de batalha tem sido de importância considerável para o êxito de algumas operações bélicas de grande envergadura. Em todo caso, não quer a Delegação do Brasil insistir sobre este ponto, para o qual, no 256 devido tempo, o seu Governo solicitou a atenção do Governo dos Estados Unidos da América.

Assim, apesar de achar apropriado que um assento permanente fosse reservado à América Latina, o Brasil limitou-se a registrar no documento algumas observações pontuais sobre o processo de votação no Conselho de Segurança. Manifestou, nesse sentido, o desejo de que se adotasse a regra de que o Estado violador das obrigações contidas na Carta não teria direito a voto quando o assunto referente a tal violação tivesse que ser resolvido. Adicionalmente, se um Estado litigante alegasse que determinada controvérsia pertencia exclusivamente à sua jurisdição interna, a Corte da Haia deveria pronunciar-se e decidir a respeito, a fim de evitar qualquer arbítrio na matéria. No que se refere aos entendimentos regionais, o Brasil defendeu a aprovação do seu projeto, apresentado à Conferência do México, segundo o qual a solução das questões de interesse exclusivo de um grupo regional já organizado, como era o caso do sistema interamericano, devia ser deixada aos métodos usados entre os componentes desse grupo, “de tal forma que só se justificará a intervenção do Conselho de Segurança quando as referidas questões puderem pôr em perigo a paz em algum outro grupo de nações”.257 O Brasil ponderou, ainda, que o processo de emendas à Carta não devia ser tão rígido. A exigência de aprovação por dois terços da Assembleia Geral, seguida de ratificação por todos os membros permanentes do Conselho de Segurança e pela maioria dos demais Estados-membros da organização, dificultaria qualquer modificação futura. Propôs-se como alternativa que as

256

Relatório da delegação do Brasil à Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz. op. cit. p.

66. 257

Veja-se, a propósito, a discussão sobre os acordos regionais em Chapultepec e em São Francisco. Diario de la Conferencia Interamericana sobre Problemas de la Guerra y de la Paz. México, DF, no 4, vol. I, 24 fev. 1945, p. 52.

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emendas fossem ratificadas, de acordo com as respectivas praxes constitucionais, por dois terços dos países representados no Conselho e dois terços de todos os Estados-membros.258 A América Latina e a organização mundial Na Conferência de Chapultepec, Edward Stettinius foi nomeado presidente da segunda comissão, dedicada à futura organização mundial, o que dava mostra da importância que os EUA atribuíam ao tema e, mais do que isso, do interesse norte-americano em eludir qualquer discussão franca e de fato substantiva sobre Dumbarton Oaks. Stettinius não convocava a comissão com frequência, manobra que frustrou os representantes latino-americanos, muitos deles com larga experiência na Liga das Nações e desejosos de contribuir para o esboço da futura ONU.259 Apesar disso, delegados de 15 países latino-americanos não deixaram de externar reservas ao projeto e questionar algumas das deficiências que percebiam ser mais notórias, tais como: o domínio dos grandes potências sobre os Estados menores; o pouco espaço dedicado aos princípios fundamentais da organização, como a garantia de integridade territorial dos Estados e a não intervenção; os poderes reduzidos da Assembleia Geral, considerado o órgão mais representativo da comunidade internacional; a jurisdição limitada da Corte de Justiça; e o papel secundário a que ficariam submetidos os acordos e associações regionais em matéria de manutenção da paz e da segurança internacionais. A composição do Conselho de Segurança foi, em particular, muito debatida na segunda comissão. As delegações do México e de Cuba sustentaram que não deveria existir distinção entre membros permanentes e não permanentes. Ambos os países sugeriram que o Conselho fosse integrado tão somente por membros semipermanentes e não permanentes, eliminando-se a categoria de membro permanente. O México, secundado pela Colômbia, propôs que os membros semipermanentes fossem eleitos por um período de oito anos. Para o primeiro período, seriam designados pela Carta os seguintes países: EUA, Grã-Bretanha, URSS, China, França e “uma República da América Latina”, não especificada. O Uruguai admitiu a conveniência de que todos os membros do Conselho fossem eleitos pela Assembleia Geral, com direitos iguais, mas, dadas as circunstâncias peculiares do momento, as grandes potências não precisariam estar sujeitas a um escrutínio. A quase totalidade das delegações defendeu uma representação maior para a América Latina: a República Dominicana advogou um assento permanente e três não permanentes; Panamá e Uruguai, um permanente; Paraguai, mais de um não permanente; Equador e Honduras, três não permanentes; Guatemala e Venezuela não precisaram o número desejado. Nessa mesma ordem de ideias, conviria que o Conselho fosse alargado para acomodar mais assentos às distintas regiões do globo: Cuba, Chile, Honduras e República Dominicana ficariam satisfeitos com um total de 15 membros; Equador, 13 membros; México, 12 membros, sendo seis semipermanentes e seis não permanentes.260 258

Relatório da delegação do Brasil à Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz. op. cit. p. 68. As principais ideias apresentadas por Accioly haviam sido adiantadas por ele em memorando interno de 1o fev. 1945, com “ligeiras sugestões” sobre a organização internacional; AHI, HA 123/02/37, Pasta 1. 259 GELLMAN. Good neighbor diplomacy. op. cit. p. 205. 260 Informe del Relator de la Segunda Comisión, Excmo. Sr. Dr. Caracciolo Parra Pérez. Diario de la Conferencia Interamericana sobre Problemas de la Guerra y de la Paz. México, DF, no 14, vol. I, 8 mar. 1945, p. 243.

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O Brasil, representado na comissão por Carlos Martins e Hildebrando Accioly, seguiu uma abordagem cautelosa. Para não despertar suscetibilidades regionais, evitou qualquer menção a eventual candidatura brasileira a membro permanente. Como não havia unanimidade em relação à distribuição dos assentos permanentes, ou mesmo se tais assentos deveriam de fato existir, a fórmula encontrada pela comissão foi registrar desagrado com a ausência de “representação adequada” da América Latina no Conselho de Segurança. Quando os trabalhos já estavam perto do fim, na Sessão Plenária de 5 de março, Stettinius informou a todos os presentes que o governo norte-americano, em nome das potências patrocinadoras, estava expedindo naquela data os convites formais para a Conferência de São Francisco, a iniciar-se em 25 de abril. O timing do anúncio havia sido calibrado sob medida para ocorrer depois das reuniões da segunda comissão e, ao mesmo tempo, não atrasar demasiado a convocação do encontro das Nações Unidas. Desse modo, Washington se precavia de complicações indesejadas em Chapultepec. Isso permitiu que, no mesmo discurso, Stettinius revelasse publicamente, pela primeira vez, a fórmula de Yalta para o sistema de votação do Conselho de Segurança, que previa o poder de veto aos P-5. O voto unânime desses membros, explicou, seria necessário nas decisões do Conselho sobre o uso da força, sob a justificativa de que “estes são os Estados que possuem em grau suficiente forças industriais e militares para impedir a agressão”. Stettinius concluiu seu discurso de forma grandiloquente: “Temos a oportunidade, temos a vontade. Que Deus nos conceda a visão e a fortaleza para levá-las a cabo. Tenho fé em que juntos construiremos esse mundo de liberdade e segurança. Um mundo em que, por fim, reine a paz”. Oculto em linguagem cifrada, o alcance da prerrogativa reservada às grandes potências não foi de imediato percebido pelo auditório, que aplaudiu de pé a intervenção do secretário de Estado.261 Foram submetidos à Conferência 155 projetos. Destes, 61 resoluções e declarações saíram aprovadas. Nem todas as propostas brasileiras, evidentemente, foram acatadas. Uma delas, de autoria de Pedro Calmon, dispunha sobre a criação de uma Comissão Permanente Interamericana, constituída por ministros das Relações Exteriores do continente, que deveriam reunir-se periodicamente ou, quando necessário, na eventualidade de uma ameaça à paz nas Américas. A ideia era que nenhum país americano apelasse ao Conselho de Segurança da ONU antes de utilizar os meios conciliatórios definidos pela Comissão Permanente. Ao ser levada à consideração da terceira comissão, o delegado do México atacou a proposta, entre outros motivos porque o texto apoiava expressamente a Doutrina Monroe. Para evitar dissídios, a delegação brasileira resolveu retirar seu projeto, no entendimento de que o assunto seria tratado, de um modo ou de outro, na reformulação da União Pan-americana, que ganharia funções políticas novas. Sobre esse último ponto, a Conferência de Chapultepec adotou a Resolução IX, prevendo a reorganização e o fortalecimento da UPA, incluindo mudanças em seu Conselho Diretor e a promessa de se elaborar um anteprojeto de Pacto na próxima Conferência em Bogotá, iniciativa que esteve na origem da Organização dos Estados Americanos (OEA).262 261

Conferencia Interamericana sobre Problemas de la Guerra y de la Paz, México, 1945. op. cit. p. 203-206; Leão Velloso a Exteriores (Macedo Soares), telegrama, México, 7 mar. 1945, AHI 76/4/16. 262 Proyecto de resolución de la Delegación de Brasil. Diario de la Conferencia Interamericana sobre Problemas de la Guerra y de la Paz. México, DF, no 8, vol. I, 1o mar. 1945, p. 106; Relatório da delegação do Brasil à Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz. op. cit. p. 31-32 e 85-89.

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Na parte econômica da Conferência, consoante a preocupação latino-americana com os desequilíbrios que o final das hostilidades certamente engendraria, o Brasil apresentou sugestões para estabelecer um período de transição entre a economia de guerra e a “economia normal de paz”, a fim de prever medidas especiais de reconversão e reajustamento econômico, financeiro, político e social. Entre essas medidas, duas eram consideradas prioritárias: que cada governo americano desse prioridade, em suas trocas internacionais, às demais nações americanas (no suprimento mínimo de produtos essenciais e na aquisição de artigos de exportação que não encontrassem mercado fora do continente); e que as “nações americanas fortemente industrializadas e exportadoras de equipamentos e meios de produção e transporte” (leia-se os EUA) concedessem, no período de transição, preferências de fornecimento às demais nações americanas (para repor as necessidades derivadas do esforço de guerra e executar programas novos de desenvolvimento socioeconômico).263 Deve-se ressaltar que o governo brasileiro considerava difícil fazer avançar a integração econômica no continente americano. Argumentava-se que as vastas regiões inexploradas e praticamente inabitadas, as longas distâncias a vencer, os obstáculos de ordem física e geográfica, a falta de meios de comunicação, a necessidade de saneamento de largas zonas, tudo isso fazia com que a aproximação econômica entre as Américas fosse postergada. Para Leão Velloso, se no terreno político os cinquenta anos de vida pan-americana haviam dado “resultados positivos e seguros”, no campo econômico não existia uma cooperação “efetiva” entre os países americanos, os quais em sua maioria teriam “cooperação mais intensa com a Europa do que entre si no continente”.264 Como derivação lógica dessa visão, pode-se depreender que o Brasil na época também não encarava com otimismo as perspectivas de integração com sua vizinhança imediata na América do Sul. Ora, se os obstáculos existentes eram tão pronunciados, os países da região não poderiam, se tivessem interesse, tomar iniciativas para mudar esse quadro? A posição brasileira certamente não apontava nessa direção. Os Estados Unidos, por sua vez, aproveitaram a Conferência para aprovar uma Carta Econômica das Américas (Resolução LI), que reafirmava princípios de livre mercado, muitos deles já referendados em Bretton Woods, e fazia recomendações para a “eliminação dos excessos do nacionalismo econômico” e o “tratamento justo e equitativo de empresas e capitais estrangeiros”.265 O objetivo primordial norte-americano era desencorajar o protecionismo e inibir a repetição de atos hostis aos seus interesses econômicos na região, como a expropriação das indústrias petrolíferas no México, em 1938. Entre os tópicos de maior interesse político estavam a questão argentina e a negociação da Ata de Chapultepec (Resolução VIII sobre assistência recíproca e solidariedade americana), que serão analisadas em maior detalhe nas seções seguintes deste Capítulo. A Conferência também adotou a Declaração do México (Resolução XI), reafirmando diversos princípios que, embora viessem sendo repetidos há algum tempo nas Conferências 263

MELO, José de Campos. Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz. Relatório do assessor econômico da delegação do Brasil. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Comércio Exterior, 1945, mimeo, Anexos 1 e 2; Leão Velloso a Exteriores (Macedo Soares), telegrama, México, 26 fev. 1945, AHI 76/4/16. 264 Relatório da delegação do Brasil à Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz. op. cit. p. 12. 265 Acta final de la Conferencia Interamericana sobre Problemas de la Guerra y de la Paz. Cidade do México: Secretaría de Relaciones Exteriores, 1945, p. 65-67.

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interamericanas, ainda não haviam sido consolidados em um documento único e solene. Esses princípios essenciais incluíam a proscrição da guerra de agressão sob qualquer de suas formas e a “fervorosa adesão” aos ideais democráticos, considerados fundamentais à paz nas Américas.266 Quanto à ONU, desde o início o objetivo dos países latino-americanos havia sido fazer aprovar na Conferência, com ou sem a anuência dos EUA, as “proposições mínimas” que julgavam indispensáveis para modificar a redação original do projeto de Dumbarton Oaks, a fim de remetê-las aos Quatro Grandes e aos demais países que iriam a São Francisco. A minuta de resolução analisada pela segunda comissão foi aceita por todos os delegados menos um, Leo Pasvolsky, escalado por Stettinius para frear as incursões revisionistas dos latino-americanos. O delegado norte-americano pretendia mudar a parte resolutiva, substituindo-a por declarações mais genéricas, nas quais os países manifestariam o propósito de cooperar entre si, e com as outras nações “amantes da paz”, no estabelecimento da organização internacional. Reservadamente, o secretário de Estado havia dito que sua delegação não sairia do México sem obter o aval buscado para o plano de Dumbarton Oaks, a ser mantido intocado.267 Após “prolongada e laboriosa discussão”, nas palavras utilizadas pelo relatório da delegação brasileira, adotou-se finalmente a Resolução XXX, que tratou especificamente do assunto. Seu texto significou o consenso possível entre as Repúblicas americanas “que não haviam participado das conversações de Dumbarton Oaks”, fórmula encontrada para permitir aos Estados Unidos se dissociar de seu conteúdo. Esses países, ou seja, os latino-americanos, concordaram quanto aos pontos que deveriam ser levados em consideração na elaboração do estatuto definitivo da ONU. Sete recomendações foram apresentadas: a) aspiração à universalidade como ideal a que deve tender a Organização no futuro; b) conveniência de ampliar e precisar a enumeração dos princípios e fins da Organização; c) conveniência de ampliar e precisar as atribuições da Assembleia Geral para tornar a sua ação efetiva como o órgão plenamente representativo da comunidade internacional, harmonizando-se com a aludida ampliação as atribuições do Conselho de Segurança; d) conveniência de estender a jurisdição e competência do Tribunal ou Corte Internacional de Justiça; e) conveniência de criar um organismo internacional especialmente encarregado de promover a cooperação intelectual e moral entre os povos; f) conveniência de resolver as controvérsias e questões de caráter interamericano preferencialmente de acordo com os métodos e processos interamericanos, e sempre em harmonia com os da Organização internacional geral; g) conveniência de dar representação adequada à América Latina no Conselho de Segurança.268

266

Para os princípios constantes da Declaração, cf. texto integral nos Anexos deste livro; Relatório da delegação do Brasil à Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz. op. cit. p. 90-91. 267 CAMPBELL, Thomas M. Masquerade peace: America’s UN policy, 1944-1945. Tallahassee: Florida State University Press, 1973, p. 124-125. 268 A introdução que antecede o relatório da delegação do Brasil, ao comentar a Resolução XXX, traz um erro e se refere à conveniência de uma “representação permanente” da América Latina no Conselho de Segurança (ao invés de “representação adequada”), sinal de que, pelo menos no entendimento brasileiro, “adequada” era o mesmo que “permanente”. Relatório da delegação do Brasil à Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz. op. cit. p. 11, 23-25 e 113-115.

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Com relação ao item “e” da resolução, os clamores latino-americanos por um organismo internacional encarregado de promover a “cooperação intelectual e moral entre os povos” levariam posteriormente à criação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em novembro de 1945, em Londres. Afinal, como diz o preâmbulo de sua Constituição, “uma vez que as guerras se iniciam nas mentes dos homens, é nas mentes dos homens que devem ser construídas as defesas da paz”.269 No caso do item “f”, a preferência manifestada por soluções “americanas” para resolver controvérsias internacionais daria margem a séria celeuma sobre o relacionamento entre os acordos regionais e a ONU, como será visto. Por ora, o Brasil se dizia satisfeito ao constatar que a Conferência de Chapultepec sistematizara os processos interamericanos para a garantia da paz no continente e, desse modo, estabelecera uma “união efetiva” dos países americanos em face da organização mundial.270 Essa “união”, porém, estava longe de ser inquebrantável e seria solapada por uma situação de quase ruptura entre os Estados Unidos e a América Latina em São Francisco, como veremos adiante neste Capítulo. A questão argentina e os bons ofícios do Brasil Em virtude da oposição aberta dos Estados Unidos, a solicitação argentina de se convocar a IV Reunião de Consultas de Chanceleres Americanos não foi aceita pela União Panamericana. Em seu lugar, como vimos, o México sediou uma Conferência ministerial dos países integrantes das Nações Unidas engajados no esforço de guerra. Washington havia concordado com essa Conferência não por almejar dar forma a amplo “consenso hemisférico”, mas para esquivar-se da proposta argentina e preservar o status quo. Gellman comenta que, por parte dos EUA, “o entusiasmo por uma reunião para fortalecer a solidariedade interamericana estava notoriamente ausente”.271 Logo no primeiro dia da Conferência de Chapultepec, uma moção apresentada pelo delegado do Paraguai, Celso Velásquez, propunha colocar a questão argentina prontamente em discussão. Alguns países se opuseram à proposta, incluindo o Brasil, alegando que o exame do assunto estava previsto para o fim da Conferência e, por esse motivo, seria inconveniente antecipá-lo. O Itamaraty estava informado de que o Paraguai havia feito sua intervenção após se coordenar com o governo argentino, que se entendera previamente com Assunção. Leão Velloso registrou que não havia apoiado a moção paraguaia por uma “questão de método”, para não prejudicar o extenso programa da Conferência, e também para atender a um pedido de Stettinius, que lhe pareceu “justo e oportuno”.272 Depois disso, não se falou mais da questão nas reuniões formais e, nas palavras de Leão Velloso, “fez-se, em torno do caso argentino, um silêncio 269

DOMINGUES, Heloisa Maria Bertol & PETITJEAN, Patrick. International science, Brazil and diplomacy in UNESCO (1946-50). Science, Technology and Society. Sage Publications, vol. 9, no 1, 2004, p. 29-50. 270 Relatório da delegação do Brasil à Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz. op. cit. p. 11. 271 GELLMAN. Good neighbor diplomacy. op. cit. p. 197. 272 Paulo Demoro a Leão Velloso, telegrama, Buenos Aires, 9 fev. 1945, AHI 14/1/16; Leão Velloso a Exteriores (Macedo Soares), telegrama, México, 21 fev. 1945, AHI 76/4/16; Berle a Stettinius, memorando, Rio de Janeiro, 12 fev. 1945, Berle Papers, Box 76, Memoranda Dec. 1944-April 1945.

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impressionante”. À margem da Conferência, todavia, fervilhavam as conversas particulares e Leão Velloso estava todo o tempo em “contato íntimo” com a delegação norte-americana.273 Em fase adiantada da Conferência, o delegado brasileiro aproveitou o ensejo de seu discurso na Sessão Plenária, em 5 de março, para fazer referência simpática à Argentina e assim reintroduzir o tema. Leão Velloso lembrou, em primeiro lugar, a amizade do Brasil com seu “grande aliado”, os Estados Unidos, cuja cooperação “íntima”, de acordo com o desejo dos dois países, deveria perdurar depois da guerra nos campos político, econômico e militar. Em seguida, qualificou a posição do Brasil no continente como de “especial relevo”, devido à sua situação geográfica, extensão territorial, população e potencial econômico. Os brasileiros se julgavam com direito à estima de seus irmãos americanos, “sobretudo pela linha inalterável de nossa política externa, conservadora, ordeira, desinteressada e altruísta”. Seguindo sempre essa conduta, o Brasil não teria “nenhum desejo egoísta”, de qualquer natureza que fosse. Sua atitude na guerra havia sido ditada “exclusivamente” pelo interesse na defesa do continente americano. A paz, a prosperidade, a segurança e o bem-estar do Brasil estariam intimamente ligados aos de todas as nações americanas, “tanto no norte quanto na vertente andina e no sul”. Neste ponto, Leão Velloso obliquamente trouxe à tona o caso argentino: E, ao evocar os nossos vizinhos do sul, não posso, como brasileiro, descer desta tribuna sem dirigir uma saudação à bandeira da Argentina, que vemos nesta Conferência colocada ao lado das bandeiras das demais nações americanas. Nenhum povo poderá dar melhor testemunho dos sentimentos americanistas do povo argentino do que o povo brasileiro que, seu vizinho próximo, participa de sua vida e de sua história e conhece as suas tradições e os serviços prestados por seus estadistas, juristas, 274 pensadores e homens de imprensa à união das nações americanas.

Concluiu Leão Velloso: “Os povos americanos possuem o mesmo fundo histórico, a mesma missão civilizadora, a mesma consciência unitária e a mesma consonância de princípios, ideias e objetivos. Marchamos unidos na guerra, diante do perigo comum e continuaremos solidários pela defesa, preservação e engrandecimento do nosso futuro e dos nossos destinos”.275 A partir daí, as conversações de bastidores se aceleraram. Leão Velloso se avistou com Stettinius e Nelson Rockefeller, secretário de Estado Assistente para as Repúblicas Americanas, com o propósito de tratar da fórmula que poderia romper o isolamento argentino. Antes de assumir seu posto no Departamento de Estado, Rockefeller havia sido, de 1940 a 1944, o chefe do Escritório de Coordenação de Assuntos Interamericanos, agência que conduziu durante a guerra a “ofensiva de charme” do governo norte-americano na América Latina, sobretudo nos campos econômico e cultural. Com o conhecimento e os contatos adquiridos nesses anos, Rockefeller se tornou figura instrumental nas tratativas com delegados latinoamericanos nas Conferências de Chapultepec e São Francisco. Os chefes de delegação mantiveram várias reuniões no Hotel Reforma e diferentes propostas foram aventadas. Uma delas consistia em nomear uma comissão com amplos poderes para estudar o caso e dar um veredicto. Leão Velloso, convidado a presidir essa comissão, 273

Leão Velloso a Vargas, telegrama, México, 26 fev. 1945, CPDOC, GV c 45.01.23; AHI, Lata 1920, Maços 36.444 e 36.445. 274 Relatório da delegação do Brasil à Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz. op. cit. p. 53-55; Leão Velloso a Exteriores (Macedo Soares), telegrama, México, 5 mar. 1945, AHI 76/4/16. 275 Ibid.

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ponderou que a questão não deveria depender de estudo ou inquérito, mas de “solução fraternal” que envolvesse um apelo de todos os países da América para que a Argentina “viesse ocupar seu lugar junto às nações irmãs”. Sugeriu então que se abrisse “cordialmente” à Argentina o acesso às resoluções da Conferência de Chapultepec e que, uma vez aceitas essas resoluções, a ela caberia tomar as medidas decorrentes de sua adesão. Buscando o imprescindível aval de Vargas no Rio de Janeiro, Leão Velloso assim resumiu sua proposta, que tomaria o formato de uma resolução da Conferência: Consistiria em deplorar a ausência da Argentina, fazendo votos para que ela tenha o ensejo de manifestar, com a possível brevidade, sua conformidade com as conclusões da Conferência, as quais enriquecem o patrimônio político e jurídico da América, que tanto deve à valiosa contribuição da Argentina, e encarregar o presidente da Conferência [Padilla, chanceler mexicano] a levar ao 276 conhecimento, para os devidos efeitos, do governo argentino, o texto da referida conclusão.

Vargas achou que tal medida significava uma “solução honrosa” para ajudar a desfazer o imbróglio de forma definitiva, conforme desejado por todos. Prontificou-se a ser o intermediário da proposta aos argentinos, dando dela conhecimento ao general Rodrigo, representante de Farrell que se encontrava no Brasil. Só então Vargas revelou que, após a partida de Leão Velloso ao México, o governo argentino havia secretamente solicitado os bons ofícios do presidente brasileiro junto aos Estados Unidos “para resolver o assunto”, aproveitando-se para tanto da Conferência de Chapultepec. Comentou a propósito: Creio que para encerrar de forma boa o assunto seria conveniente entendimentos nossos com o Governo americano, entendimentos nos quais fossem esquecidas ocorrências passadas, fatos secundários, prevenções e ressentimentos, para fazer incidir toda a atenção no essencial, isto é, combinar o que é necessário que a Argentina faça para ser recebida na comunidade americana como 277 elemento indispensável à boa ordem, à paz e à prosperidade do continente.

Em 8 de março, a fórmula brasileira foi aprovada pela Comissão de Iniciativas e pela Sessão Plenária, com algumas modificações introduzidas por emendas de outras delegações. O Jornal do Commercio, reproduzindo informe enviado do México pela delegação brasileira, relatou a “grande ansiedade” reinante na Conferência por haver “soado o momento de se pôr no tapete o caso argentino”. Ainda na linha oficialista, o Diário da Noite comentou que o Brasil, com sua “ação moderadora” para restaurar a unidade continental, havia dado “demonstrações de sua amizade ao país vizinho e do respeito às suas tradições liberais e democráticas”. Em telegrama a Vargas, Leão Velloso frisou que os argentinos deveriam ter presente a colaboração prestada pelo Brasil, “como um esforço no sentido de uma solução da questão, abrindo, afinal, uma porta que fora hermeticamente fechada”. Leão Velloso observou que alguns delegados sulamericanos se mostravam “enciumados”, como o chanceler chileno, que não havia concordado

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Leão Velloso a Vargas, telegrama, México, 6 mar. 1945, CPDOC, GV c 45.01.23; Leão Velloso a Exteriores (Macedo Soares), telegrama, México, 8 mar. 1945, AHI 76/4/16. 277 Vargas a Leão Velloso, telegramas secretos, Rio de Janeiro, 7 e 8 mar. 1945, CPDOC, GV c 45.01.23; AHI, Lata 1920, Maço 36.442.

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com o encargo que o Brasil recebera, “querendo servir de patrono da fórmula junto ao general Farrell e Perón”.278 A intermediação brasileira teve boa repercussão em Buenos Aires e fortaleceu a confiança mútua entre o Estado Novo e o governo Farrell. O general Rodrigo, inteirado dos fatos em démarche confidencial, mostrou-se “muito satisfeito” com a ação desenvolvida pelo Brasil em favor da Argentina. Não muito tempo depois, Perón, que acumulava os cargos de vicepresidente, ministro da Guerra e secretário do Trabalho, escreveu a Vargas para reafirmar a solidez da amizade entre os dois países e seu empenho pessoal em levá-la adiante. Perón, que apenas iniciava sua trajetória de líder nacional, parecia demonstrar sincera admiração por Vargas, que estava próximo de completar 15 anos no poder: Queira Deus que nossos países sigam sempre, com as mãos unidas e em estreita colaboração, não somente para a felicidade e glória do Brasil e da Argentina, mas de todo o continente; pois, costumo dizer com frequência, e penso e sinto isso muito profundamente, que bem guardados o entendimento diplomático e a comunhão espiritual entre as duas grandes nações, não haverá problemas na América 279 do Sul.

A resolução da Conferência atinente à Argentina formulou votos de que aquela nação pudesse encontrar-se em condições de exprimir sua conformidade e adesão aos princípios e declarações aprovados no México, identificando-se com a política comum que as Repúblicas americanas perseguiam e “orientando a sua própria até lograr sua incorporação às Nações Unidas”. Após alguns esclarecimentos sobre a interpretação a ser dada a certos parágrafos da resolução, pedidos pela Argentina novamente por intermédio do Brasil, o governo Farrell aderiu às resoluções de Chapultepec e finalmente declarou guerra ao Eixo, em 27 de março de 1945. Algumas medidas complementares também foram sendo tomadas, como o decreto considerando prisioneiros de guerra os 900 tripulantes do encouraçado alemão Graf Spee, a internação de representantes diplomáticos do Japão e disposições para intervir nas empresas alemãs e japonesas, que ficariam sob “rigorosa fiscalização” governamental. Dias depois, relações diplomáticas normais seriam retomadas com os Estados Unidos, o Brasil e outros países americanos, que deram seu reconhecimento formal ao governo argentino em 9 de abril.280 Leão Velloso avaliou positivamente o desfecho das negociações e comemorou os “seus felizes resultados”, que permitiram ao país vizinho reintegrar-se ao concerto das nações americanas, tornar-se apto a participar da Conferência de São Francisco e, posteriormente, ser um dos membros fundadores da ONU. O encaminhamento da questão reverteu a posição antiargentina que Washington assumira com estridência durante quase toda a guerra. A razão para a mudança havia sido essencialmente de cálculo político. Para preservar Dumbarton Oaks, 278

Leão Velloso a Vargas, telegramas, México, 7 e 8 mar. 1945, CPDOC, GV c 45.01.23; AHI, Lata 1920, Maços 36.444 e 36.445; Leão Velloso a Exteriores (Macedo Soares), telegramas, México, 8 mar. 1945, AHI 76/4/16. 279 Vargas a Leão Velloso, telegrama, Rio de Janeiro, 9 mar. 1945, CPDOC, GV c 45.01.23; AHI, Lata 1920, Maço 36.442; Perón a Vargas, carta, Buenos Aires, 9 abr. 1945, GV c 45.04.09. 280 Acta final de la Conferencia Interamericana sobre Problemas de la Guerra y de la Paz. Cidade do México: Secretaría de Relaciones Exteriores, 1945, p. 72; Vargas a Leão Velloso, telegrama, Rio de Janeiro, 12 mar. 1945, GV c 45.01.23; Paulo Demoro a Leão Velloso, telegrama, Buenos Aires, 29 mar. 1945, AHI 14/1/16; “Recognition of Argentine government”, Memorandum for the Ambassador, 9 abr. 1945, Berle Papers, Box 76, Memoranda Dec. 1944-April 1945.

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os Estados Unidos precisavam acenar com compensações à América Latina. A concordância com a reintegração da Argentina dava um passo nessa direção. Cedendo aos desejos latino-americanos de manter relações amistosas com Farrell e Perón, o governo dos EUA demonstrava sua disposição de levar em conta, minimamente que fosse, as preocupações da região. Essa decisão preparou o caminho para uma conclusão bem-sucedida das questões relativas à organização internacional, tema que estava no cerne da política externa norte-americana no início de 1945.281 O Brasil estava sem embaixador em Buenos Aires desde o falecimento de José de Paula Rodrigues Alves, em maio de 1944. Nesse período de vacância na chefia da embaixada, Vargas manteve contatos extraoficiais com o governo militar argentino por meio de um emissário, o jornalista Caio Julio César Vieira, que com frequência conversava com Perón e o chanceler Orlando Peluffo. Utilizando esse canal de diálogo informal, Perón pediu a Vieira que transmitisse a Vargas sua opinião de que a unidade entre o Brasil e a Argentina era necessária para a harmonia continental. O único objetivo do rearmamento argentino, afirmou Perón, seria manter a paridade com o Brasil e o equilíbrio na América do Sul.282 Em maio de 1945, para marcar a normalização das relações diplomáticas e sinalizar seu interesse em estreitar os laços com o país vizinho, Vargas transferiu seu amigo Baptista Luzardo de Montevidéu para a embaixada em Buenos Aires, com instruções expressas para que trabalhasse por um entendimento bilateral cada vez maior. O governo argentino, por seu turno, enviou o general Nicolás Accame como embaixador no Rio de Janeiro.283 Esse processo de aproximação seria conduzido tendo sempre presente as boas relações do Brasil com os Estados Unidos, às quais Vargas não deixara de atribuir indiscutível primazia. Todas as vezes em que as fricções entre Washington e Buenos Aires se tornavam mais acentuadas, os cuidados do governo brasileiros eram redobrados. O cenário ideal para Vargas era, assim, alcançar um ponto geométrico de equilíbrio nesse triângulo diplomático. Após a Conferência de Chapultepec, durante sua estada em Washington, Leão Velloso foi recebido na Casa Branca por Roosevelt, que mais uma vez demonstrou “simpatia e admiração” por Vargas, justificando seu governo pessoal como “necessário ao Brasil”. Para o líder norte-americano, não havia “melhor candidato” às futuras eleições brasileiras. Essa era a opinião que Roosevelt invariavelmente tinha de Vargas, desde os primórdios da política de Boa Vizinhança, que se traduzia no seu apoio ao presidente brasileiro. No Departamento de Estado, costumava-se citar o Brasil como caso-modelo de “ditadura ao estilo Vargas”, isto é, um regime “autoritário internamente” com uma política externa “pró-democrática”.284 Por razões estratégicas, o governo dos EUA tolerava o Estado Novo, porém até quando? A cada dia era mais difícil dissimular a contradição entre o engajamento brasileiro na luta contra o nazifascismo e a repressão interna aos direitos e liberdades civis, como a persistência da censura, as prisões arbitrárias, a perseguição aos opositores, o controle dos sindicatos, etc. Em matéria assinada com o sugestivo título “A supressão da imprensa livre na América do Sul: o regime de ‘rolha’ de 281

CAMPBELL. Masquerade peace. op. cit. p. 128; Relatório da delegação do Brasil à Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz. op. cit. p. 14-15. 282 ESCUDÉ & CISNEROS. Historia de las Relaciones Exteriores de la República Argentina. op. cit. Tomo XIII, El caso de Brasil, www.argentina-rree.com/historia.htm, acesso em 25/3/2009. 283 Baptista Luzardo a Vargas, carta, Buenos Aires, 25 maio 1945, CPDOC, GV c 45.05.25. 284 Carlos Martins a Vargas, telegrama confidencial, Washington, 13 mar. 1945, CPDOC, GV c 45.03.13; GREEN. The containment of Latin America. op. cit. p. 158.

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Vargas superou, de muito, o rigor da censura argentina”, um jornalista norte-americano sintetizou a questão da seguinte maneira: Desde que o Brasil se enfileirou entre as Nações Unidas, tornou-se um tabu contornar os aspectos internos da administração de Vargas, poupando-a de toda a crítica. Isso é típico da atitude indesejável que pode resultar de uma diplomacia baseada no pressuposto de que, para vencer a guerra mundial pela liberdade da humanidade, deve-se agradar os ditadores com palmadinhas nas costas. Expedientes tais 285 têm seu lugar na diplomacia, mas também têm seus limites.

O caso argentino repercutiu na Conferência de São Francisco logo nos primeiros dias. Viacheslav Molotov, chefe da delegação soviética, pressionava para que a Bielorússia e a Ucrânia fossem imediatamente admitidas, conforme havia sido acertado em Yalta pelos Três Grandes. O grupo latino-americano, no entanto, ameaçou condicionar seu beneplácito ao ingresso simultâneo da Argentina, que havia cumprido os requisitos estabelecidos em Chapultepec. Na verdade, como a Argentina declarara guerra ao Eixo em 27 de março de 1945, havia perdido o prazo fixado em Yalta para o convite à Conferência (“nações associadas” que houvessem declarado guerra ao Eixo até 1o de março). Para os governos latino-americanos, ausentes de Yalta, valia a decisão de Chapultepec, que não definia prazo algum. A ameaça colocava a delegação norte-americana em posição delicada. Se votassem em bloco, os 19 países latino-americanos em São Francisco teriam peso decisivo em qualquer votação. Os Estados Unidos não podiam simplesmente prescindir desse apoio crucial às suas propostas. Não podiam tampouco descumprir o acordo prometido a Stalin e arriscar novos atritos com a União Soviética. Diante do dilema, Stettinius, após consulta ao presidente Harry Truman, adiantou aos delegados latino-americanos que votaria pela Argentina em troca dos seus votos a favor das duas Repúblicas soviéticas.286 Na reunião de 27 de abril do Comitê de Direção da Conferência, Molotov defendeu com eloquência a Bielorússia e a Ucrânia, que, segundo ele, haviam suportado o ônus maior da invasão alemã da URSS e contribuído cada uma com até 1 milhão de soldados para o Exército Vermelho. A admissão de ambas foi aprovada pelo Comitê, com os votos favoráveis latinoamericanos. Então, quando se pensava que a moção sobre a Argentina viria em seguida, o delegado tchecoslovaco, Jan Masaryk, instado pelos soviéticos, propôs de forma inesperada que a Polônia também tivesse assento na Conferência. A questão polonesa trazia à mesa as desinteligências interaliadas a respeito do governo legítimo daquele país (a URSS apoiava o comitê de Lublin) e sua resolução ainda continuava pendente. Em favor da Polônia, Molotov argumentou que a URSS havia “generosamente” permitido que a Índia e as Filipinas participassem da Conferência, não obstante seu “status imperfeito” como Estados soberanos.287 Instalada a controvérsia, a sessão teve de ser suspensa por falta de acordo. As delegações passaram a manter diversos contatos informais e, em prática que se tornou costumeira ao longo de toda a Conferência, em 28 de abril, Stettinius reuniu em sua suíte 285

SHARP, Roland Hall, traduzido da revista Editor & Publisher, Nova York, 27 maio de 1944, CPDOC, GV c 44.05.27. 286 SCHLESINGER, Stephen C. Act of creation: the founding of the United Nations. Cambridge, MA: Westview Press, 2003, p. 132. 287 VOLPE. Latin America at San Francisco. op. cit. p. 129.

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de cobertura, no Hotel Fairmont, os representantes das quatro potências patrocinadoras para deliberar sobre o assunto, estendendo o convite aos delegados de Brasil, Chile, México e Venezuela. Ezequiel Padilla, ministro das Relações Exteriores mexicano, lembrou o compromisso assumido em Chapultepec por todos os países latino-americanos com relação à Argentina, que havia anuído “de boa-fé” às condições que dela se esperava, incluindo a declaração de guerra ao Eixo. Era hora de levar a cabo a outra parte da barganha. Molotov indagou como seria possível que a Polônia, o primeiro país a ser invadido, fosse excluída no lugar da Argentina, que havia “ajudado o inimigo”. Não haveria como explicar o convite feito aos argentinos, a não ser convidando também os poloneses. Leão Velloso, presente à reunião, disse que as duas questões não tinham comparação. No caso da Polônia, o ponto não era saber se o país deveria fazer parte da Conferência. Todos desejavam “calorosamente” sua participação. O que restava decidir era qual o governo que iria representar a Polônia. Leão Velloso lamentou a posição de Molotov e alertou para o risco de que, caso fosse negada a admissão argentina, os latino-americanos poderiam votar contra a Bielorússia e a Ucrânia quando o item chegasse à consideração do plenário.288 Muitas escaramuças diplomáticas ainda iriam sobrevir pelo caminho até a solução final. Depois de convocar a imprensa internacional para investir ferozmente contra a Argentina e defender a “injustiçada” Polônia, Molotov voltou à carga na Sessão Plenária de 30 de abril, aberta ao público. Como primeiro item da agenda, foi aprovada em definitivo, por consenso, a admissão da Bielorússia e da Ucrânia. O caso argentino seria o próximo. Molotov aproveitou o momento para se dirigir à tribuna e desfechar seu derradeiro ataque. Indicou que iria falar em russo, idioma apropriado a uma “causa justa”. Lembrou declarações de 1944 do então secretário de Estado, Cordell Hull, que havia acusado a Argentina de servir de “quartel-general para o movimento fascista no continente”. Roosevelt foi citado em referência alusiva ao “crescimento da influência nazifascista” naquele país platino. Molotov teceu loas às credenciais democráticas do governo polonês, “nosso heroico aliado”, que merecia estar representado na Conferência. Admitiu que, quanto à Argentina, talvez “seus pecados pudessem ser perdoados”. No entanto, os grandes serviços prestados pela nação polonesa, “na luta contra nosso inimigo comum”, jamais poderiam ser esquecidos. Em resposta, o representante da Colômbia, Alberto Lleras Camargo, disse que o espanhol sempre havia sido o “idioma da justiça” e esperava que nesta ocasião fosse também o “idioma da clareza”. Pôs-se então a argumentar que a Argentina havia cumprido os requisitos para participar da Conferência e que agora era uma “nação beligerante” tal como todas as demais ali presentes. O mexicano Ezequiel Padilla apoiou seu colega latino-americano. O delegado da Bélgica, Paul-Henri Spaak, pediu a palavra e declarou em francês que, após escutar os idiomas da justiça e da clareza, pretendia usar o “idioma da conciliação”. Como não havia consenso e era preciso preservar a “completa unanimidade entre as quatro potências patrocinadoras”, propôs o adiamento da consideração do problema, em linha com sugestão aventada antes por Molotov.289

288

Minutas do Quarto Encontro Preliminar das Quatro Potências sobre Questões de Organização e Admissão, São Francisco, 28 abr. 1945, FRUS, 1945, vol. I., p. 486-488; SCHLESINGER. Act of creation. op. cit. p. 135-136. 289 Verbatim minutes of the Fifth Plenary Session, Opera House, 30 April 1945, 3:34pm. Documents of the United Nations Conference on International Organization, San Francisco, 1945 [UNCIO]. Nova York: United Nations Information Organization, 1945, vol. I, p. 343-359.

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O peruano Víctor Andrés Belaúnde também interveio, desta vez para falar o “idioma do direito internacional”.290 Os eloquentes discursos eram acompanhados com curiosidade pelo auditório repleto. Stettinius achou que já havia ouvido o suficiente e era hora de decidir. Recordou entendimentos anteriores no Comitê Executivo e exortou a Sessão Plenária a “agir agora”, a fim de que os delegados continuassem a “sagrada tarefa” para a qual se reuniram. Levada a questão ao voto, a Argentina foi convidada a participar da Conferência de São Francisco por decisão de 31 votos a 4, com dez abstenções. Caberia a Miguel Angel Cárcano, embaixador em Londres, chefiar a delegação argentina. A posição norte-americana foi determinante para o resultado: os EUA se conformaram em admitir a Argentina como forma de assegurar o apoio latino-americano às duas Repúblicas soviéticas. Molotov não se dobrou aos argentinos, mas foi voto vencido e teve de aceitar que a participação polonesa fosse postergada até ficar esclarecida a composição de seu governo legítimo. Os quatro países que votaram contra o ingresso argentino foram Grécia, Iugoslávia, Tchecoslováquia e URSS. A Polônia permaneceu de fora da Conferência, mas um espaço foi deixado na Carta da ONU para posterior inclusão da assinatura polonesa. Como em 5 de junho a Dinamarca, recém-liberada, também foi convidada a enviar uma delegação, o número de países participantes passou a totalizar 50. Somente em 28 de junho de 1945, após acordo entre os Três Grandes, foi anunciado e reconhecido o novo governo de “unidade nacional” da Polônia, que subscreveu a Carta em 15 de outubro, como um dos 51 membros fundadores da organização.291 Ao comunicar a Vargas a tenaz oposição soviética e as dificuldades de toda ordem que os delegados latino-americanos enfrentaram em sua defesa da Argentina, Leão Velloso desabafou: “Era realmente uma causa ingrata e só mesmo o interesse de firmar o papel das Américas unidas no futuro mundo internacional justificou o esforço feito em favor da Argentina, com risco de comprometer a Conferência”. No mesmo tom, em entrevista à agência Reuters, Leão Velloso declarou que, considerando os renhidos debates que ocorreram, “as nações americanas esperam que a Argentina se dê perfeita conta do esforço inaudito que fizeram por ela”, a fim de cumprir o compromisso moral advindo da assinatura da ata final da Conferência do México. O Itamaraty solicitou à embaixada brasileira em Buenos Aires que, nas conversas com as autoridades argentinas, se fizesse sentir “a importância do esforço desenvolvido, em favor desse país, pelas demais Repúblicas americanas”.292 A admissão argentina foi a primeira vitória da América Latina na ONU. Nos Estados Unidos, as críticas foram imediatas. A organização estaria abrindo suas portas a um Estado 290

A bem da acuidade histórica, faz-se mister registrar que o livro de Mario Gibson Barbosa traz um relato não de todo correto sobre esse episódio. Possivelmente por tê-lo escrito de memória, o autor induziu o leitor ao erro ao indicar que teria sido “aceita” proposta belga de admitir simultaneamente a Argentina e a Polônia. Não foi essa a proposta de Spaak e, além do mais, a Polônia sequer participou da Conferência de São Francisco. BARBOZA, Mario Gibson. Na diplomacia o traço todo da vida. Rio de Janeiro: Record, 1992, p. 25; BELAÚNDE, Victor Andrés. La Conferencia de San Francisco. Lima: Editorial Lumen, 1945, p. 26. 291 LANÚS. De Chapultepec al Beagle. op. cit. p. 43-44; RUSSELL. A history of the United Nations Charter. op. cit. p. 948. 292 Leão Velloso a Vargas, telegrama, São Francisco, 2 maio 1945, CPDOC, GV c 45.04.30; Exteriores (José Roberto de Macedo Soares) à embaixada em Buenos Aires, telegrama, Rio de Janeiro, 3 maio 1945, AHI 14/3/2; Relatório da delegação do Brasil à Conferência das Nações Unidas para a Organização Internacional. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores, 1945, mimeo, p. 6-7. Biblioteca do MRE.

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“fascista”. Mas, apesar da repulsa ainda grande pela Argentina em Washington, inclusive por parte do presidente Truman, Stettinius não teve alternativa a não ser compor com o grupo latinoamericano, que havia demonstrado sua capacidade de coordenação multilateral. Contrariado com o revés sofrido, Molotov se queixou da “enorme influência” daqueles países, que considerava “desproporcional” ao poder e aos recursos que de fato detinham.293 O episódio colocou em campos opostos o bloco do Hemisfério Ocidental e a URSS. Foi sintomático do sentimento antisoviético crescente em vários quadrantes. Os latinoamericanos apoiaram a causa argentina em nome da unidade regional, importante para a defesa que iriam fazer na Conferência da autonomia do sistema interamericano. Não estavam dispostos a ceder no confronto com Molotov. Na delegação norte-americana, o regionalismo era conveniente para aqueles que favoreciam uma postura mais forte contra a URSS. Jogariam com a solidariedade hemisférica (e os votos dos países americanos) para dobrar os soviéticos em outras disputas que surgissem nas semanas seguintes. Arthur Vandenberg, Senador republicano pelo Michigan, anticomunista e influente membro parlamentar da delegação dos EUA, comemorou o fato de que Molotov teria feito “mais em quatro dias para solidificar a Pan-América contra a Rússia do que qualquer coisa que já houvesse acontecido”. Os globalistas, por seu turno, não viam com bons olhos concessões excessivas à América Latina, porquanto a ênfase nos acordos regionais podia enfraquecer a estrutura da ONU, arriscando repartir o mundo em “esferas de influência” relativamente imunes à autoridade do Conselho de Segurança. Acautelavam-se também em preservar em plano amistoso as relações EUA-URSS, em linha com o princípio da unanimidade entre as grandes potências, pedra basilar do plano de Dumbarton Oaks.294 Antes que a Guerra Fria determinasse o curso da política mundial pós-1945, algumas de suas consequências já podiam ser antecipadas na criação da ONU. O quid pro quo Bielorússia/Ucrânia versus Argentina representou um prelúdio da “política de blocos” na diplomacia parlamentar onusiana. Estava em questão se a organização seria controlada pelas grandes potências (os cinco membros permanentes, URSS incluída) ou por um bloco ocidental liderado pelos EUA, com apoio ostensivo latino-americano. Como temia Stalin desde as primeiras discussões entre os Quatro Grandes, se o segundo cenário se materializasse, deixando a União Soviética em permanente inferioridade numérica, o poder de veto seria sua arma de defesa. De fato, os primeiros anos da ONU foram de domínio ocidental completo e a URSS recorreu largamente ao veto para bloquear decisões que acreditava atentatórias aos seus interesses. De 1946 a 1955, a delegação soviética usou o veto 75 vezes.295 Resta saber como se insere a resolução da questão argentina no contexto mais amplo da política externa brasileira. Embora ainda não plenamente perceptíveis à maioria dos contemporâneos, a busca por uma “aliança preferencial” com os Estados Unidos produzia alguns efeitos negativos. Globalmente, o alinhamento reduzia o papel do Brasil a mero seguidor da linha traçada em Washington. A rigor não haveria uma política externa “brasileira”, uma vez que em qualquer assunto de alcance global a ordem era acompanhar a posição norte-americana. Regionalmente, inibia iniciativas de aproximação com países vizinhos, especialmente a 293

SCHLESINGER. Act of creation. op. cit. p. 140-141. GREEN. The containment of Latin America. op. cit. p. 216-224. 295 BAILEY, Sydney D. & DAWS, Sam. The procedure of the UN Security Council. Oxford: Clarendon Press, 1998, p. 239. 294

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Argentina, se essas ações fossem vistas como contrárias aos interesses dos EUA. Movimentos em favor de uma integração em nível subregional deveriam ser desde logo descartados, pois representavam potencial quebra da “unidade pan-americana”. A pretendida “preeminência na América do Sul”, que Oswaldo Aranha e outros entendiam poder ser obtida em decorrência da “íntima solidariedade com os Estados Unidos” (cf. Capítulo 2), estava alicerçada em bases muito frágeis, visto que o esteio da política regional do Brasil devia ser os Estados Unidos, não o interesse comum dos próprios países sul-americanos. Além disso, quanto mais o Brasil cultivava um “tratamento diferenciado” no contexto da política norte-americana para o continente, mais distante o país parecia ficar de sua vizinhança. A ideia de que o Brasil poderia desempenhar uma missão “subimperial” na região, em associação com os EUA, perturbava os países limítrofes, incertos quanto aos reais objetivos brasileiros. Assim, no exato momento em que o paradigma da “relação especial” alcançava seu ponto máximo de aproveitamento, com benefícios políticos e materiais derivados da aliança de guerra Brasil-EUA, suas limitações já começavam a ser divisadas. A política sul-americana do Brasil era a primeira a ter suas fraquezas expostas. Para contornar esse paradoxo ao mesmo tempo prático e conceitual entre o alinhamento com Washington e o desenvolvimento de uma política regional, o governo brasileiro tentou exercer, no período que abarca este livro, o papel de mediador nas relações entre os Estados Unidos e a América do Sul/América Latina. Dada a posição singular do Brasil no âmbito hemisférico, apresentar-se como intermediário entre os dois campos seria uma opção plausível. No caso específico da Argentina, essa alternativa deixou de ser uma conveniência e se tornou uma necessidade. Em São Francisco, o Brasil se colocou ao lado da Argentina, seguindo a posição comum latino-americana. Contudo, na moldura pan-americanista da política externa brasileira, todos pertenciam às Américas (inclusive os EUA). Em seu discurso na sessão de encerramento da Conferência, Leão Velloso aludiu quase profeticamente à “política de blocos” na ONU e reafirmou o comprometimento político e moral do Brasil com o pan-americanismo, cujo elo sentimental, na sua visão, transcendia em muito a esfera diplomática: Como cidadão de uma das nações do continente americano, não quero terminar este breve discurso sem aludir ao seu papel na Conferência de São Francisco. Quero referir-me ao papel de todas elas, sem exceção. As Américas não são um bloco. A expressão, de resto, soa mal. As Américas são muito mais do que isso: um sistema de vida, com tradições e ideais próprios, tradições de mais de sessenta anos, ideais de uma rara elevação. Nós temos todos a firme convicção de que o nosso sistema interamericano será um estímulo aos desejos de paz do resto do mundo. Desde a nossa independência nós nos batemos pela criação de uma sólida moral internacional de fundo jurídico e pacífico, e a verdade é que seu 296 princípio tem hoje raízes tão profundas que ninguém as poderia destruir neste hemisfério.

O discurso político “hemisférico” era enfatizado, naquele momento, não apenas por estar conforme à tradição diplomática vigente, mas sobretudo porque resolvia a tensão BrasilEUA versus Brasil-Argentina. Nos seus atos e declarações, o Brasil aspirava ser o parceiro preferencial da potência líder do continente sem alienar totalmente o vizinho do sul.

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VELLOSO, Pedro Leão. O Brasil na Conferência de S. Francisco. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945, p. 41-42.

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Vargas, em diferentes ocasiões, chegou a usar a dissidência argentina para tentar extrair mais vantagens dos Estados Unidos. Certa vez, Vargas escreveu a Roosevelt para solicitar a cessão à Marinha brasileira, pelo sistema de Empréstimo e Arrendamento, de uma esquadra completa de navios de guerra, incluindo 2 porta-aviões, 4 cruzadores, 3 contratorpedeiros, 4 varredores de minas, 3 rebocadores de alto-mar, 12 unidades menores de 1.500 toneladas e outras embarcações. Vargas fez um contraste explícito entre a colaboração do Brasil na guerra e a atitude da Argentina, que, segundo ele, rompeu a “frente única” no continente e “deixou-nos sós no campo de luta”. Em sua resposta, redigida em termos gentis, Roosevelt ofereceu transferir (apenas) quatro navios, enquanto o resto do pedido seria analisado pela Marinha norteamericana.297 Apesar das tentativas eventuais de usar a carta da “ameaça argentina”, com o perigoso aumento do nível de confrontação no Rio da Prata, especialmente em 1944, o Brasil optou pelo apaziguamento com a Argentina. A retórica da “unidade americana” se prestava a essa tarefa. Foi o veículo que permitiu essa operação sem sobressaltos. Harmonizava-se, dessa forma, a relação triangular Brasil-EUA-Argentina, que constituía o cerne das preocupações brasileiras naquele conturbado período da história do mundo. Em defesa do sistema interamericano Para a maioria dos observadores da cena internacional durante a Segunda Guerra Mundial, a Liga das Nações havia falhado na sua missão mais importante. Cada morto em combate fazia recordar a incapacidade da organização de garantir a paz, com as limitações que o idealismo do Pacto lhe impunha. Para corrigir e superar as deficiências da Liga, os líderes das grandes potências, como visto no Capítulo 1, tinham em vista uma ONU “com dentes”. Era preciso, dizia-se, um “choque de realismo”. Consequentemente, o conceito básico do plano de Dumbarton Oaks era a imposição da paz pela força. E a força estava, naquele momento, com os países que detinham maior poder militar, provado em batalha na vitoriosa campanha aliada. A ONU, sob a “tutela dos poderosos”, era apresentada como a solução para o problema da segurança das potências menores. É claro que os Estados podem recorrer a estratégias diferentes para se sentirem mais seguros: por meios próprios de defesa, em aliança com outros países ou ainda delegando poderes a um mecanismo ou instituição internacional. Em poucas palavras, a essência do binômio globalismo e regionalismo consistia em saber a quem os Estados confiariam em primeiro lugar sua segurança no pós-guerra: se à nova organização global a ser criada ou se a pactos autônomos de defesa em âmbito regional. Ao sustentar a autonomia do sistema interamericano, o único foro regional sólido e abrangente então disponível para eles, os países latino-americanos estavam interessados não só na defesa externa do hemisfério, mas também em constranger o poder dos Estados Unidos e obter garantias adicionais contra eventual recaída intervencionista de Washington. Em termos históricos relativos, ainda era muito recente o reconhecimento norte-americano do princípio da não intervenção, admitido formalmente somente em 1933, na Conferência Internacional 297

Vargas a Roosevelt, carta, Petrópolis, 13 abr. 1944, CPDOC, GV c 44.04.13; Roosevelt a Vargas, carta, Washington, 8 jun. 1944, FDR Papers, President’s Secretary’s File, Box 24, Brazil.

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Americana de Montevidéu, como reflexo da política rooseveltiana de Boa Vizinhança. A memória ainda viva da esquadra de Ingram entrando no Rio de Prata em 1944, ao velho estilo da “diplomacia das canhoneiras”, recomendava vigilância.298 Se os EUA podiam chegar a tal ponto contra um país do porte da Argentina, com recursos econômicos e forças de defesa de alguma expressão, o que estariam dispostos a fazer contra outros menos avantajados? Da perspectiva latino-americana, a paz futura seria preservada se, a um só tempo, o continente continuasse afastado das contendas europeias e a potência hemisférica mais forte fosse mantida minimamente sob controle, de modo que os EUA permanecessem fiéis ao compromisso de não intervenção e ainda fornecessem segurança contra agressões extracontinentais. Isso poderia ser feito reforçando o arcabouço político-legal interamericano, que a América Latina havia ajudado a construir, conhecia muito bem e podia influenciar no seu desenvolvimento, ao contrário da ONU, ainda não testada. A região havia sido ignorada no planejamento da nova organização global, que, tudo indicava, seria dominada pelas grandes potências com poder de veto. Não parecia ser este um cenário muito promissor: a manutenção da paz no continente ficaria subordinada ao Conselho de Segurança e dependente do exercício discricionário do veto, que poderia deixar os países latino-americanos na berlinda. Tillapaugh escreveu a propósito: Os diplomatas latino-americanos às vezes mencionavam a União Soviética em exemplos para ilustrar por que a ação regional independente contra a agressão não deveria ser bloqueada. Seu medo ainda maior, no entanto, era dos Estados Unidos e de sua capacidade de vetar uma revisão de sua própria conduta pelo Conselho de Segurança no Hemisfério Ocidental, o que Washington não podia fazer sob os acordos multilaterais que conformavam o sistema interamericano. Eles podiam usar referências à União Soviética como uma maneira diplomática de exprimir ansiedades em relação a ações dos Estados Unidos, mas esses representantes de Estados pequenos se opunham a todas as grandes 299 potências e à posição privilegiada a elas reservada em assuntos de segurança.

Na Conferência de Chapultepec, o Brasil, a Colômbia e o Uruguai apresentaram projetos de resolução, na terceira comissão, para estabelecer critérios aplicáveis a uma ação coercitiva conjunta contra qualquer ataque, de dentro ou de fora do hemisfério. O texto brasileiro foi estruturado na forma de uma declaração de princípios interamericanos. Pela proposta, os Estados americanos condenavam a guerra de agressão e repudiavam o uso da força nas relações internacionais, salvo no exercício de legítima defesa, devidamente comprovada, ou em virtude de ação coletiva determinada pelo órgão competente da comunidade internacional (caso do Conselho de Segurança). Todas as controvérsias internacionais deviam ser resolvidas por meios pacíficos. Os Estados americanos manteriam o firme propósito de se conservarem “unidos como um bloco contra qualquer agressão extracontinental”, obrigando-se a participar da defesa da nação irmã agredida, “do modo e nas condições que forem acordadas entre todos”. Se, apesar de tudo, previa o parágrafo final do projeto brasileiro, “a agressão contra um Estado americano partir de outro Estado americano, os demais se concertarão imediatamente, por meio do processo

298

VOLPE. Latin America at San Francisco. op. cit. p. 77. TILLAPAUGH, J. Closed hemisphere and open world? The dispute over regional security at the UN Conference, 1945. Diplomatic History. Wilmington: vol. 2, no 1, January 1978, p. 35. 299

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de consulta, para os fins de verificar as circunstâncias do caso e prestar o conveniente auxílio ao agredido”.300 Nos debates da comissão, decidiu-se pela fusão dos vários projetos e, na parte operativa da resolução, tomou-se por base o texto colombiano. O ponto nevrálgico da proposta previa que todos os signatários ficariam obrigados a “defender por todos os meios, incluindo pela força das armas, a integridade territorial e a independência política de todos e cada um deles”. Para isso, bastaria uma decisão tomada pela maioria absoluta dos Estados americanos. A delegação norte-americana pediu tempo para examinar os documentos, que tinham graves implicações para Washington. A aceitação da resolução tal como apresentada implicaria em possível engajamento militar dos Estados Unidos pelo simples voto da maioria. Além de afrontar a norma interna de consentimento prévio do Congresso para o envio de tropas ao exterior, transferia aos países latino-americanos (ao menos em teoria) a prerrogativa soberana do governo dos EUA de decidir quando e se forças militares de seu país deveriam participar de ações de imposição da paz. Haveria, ainda, repercussões para o quadro mais amplo da organização internacional. A criação de um sistema de segurança autônomo no Hemisfério Ocidental não passaria despercebida pela União Soviética, que, com base nesse precedente, poderia querer igual privilégio na Europa Oriental. Os delegados norte-americanos receavam abrir uma caixa de Pandora para outras regiões reivindicarem o mesmo, com a consequente erosão da autoridade do Conselho de Segurança.301 Resultado da reação negativa norte-americana, a proposta original foi bastante diluída e se transformou na já citada Resolução VIII da Conferência, que seria conhecida como Ata de Chapultepec, referente à assistência recíproca e à solidariedade americana. Acordou-se que todo atentado de um Estado (qualquer um, inclusive dos próprios Estados americanos) contra a integridade ou a inviolabilidade do território, ou contra a soberania ou independência política de um Estado americano, seria considerado um ato de agressão contra os demais Estados signatários, que fariam consultas entre si para decidir sobre as medidas a serem tomadas. A Ata listou expressamente quais seriam essas medidas: retirada dos chefes de missão diplomática; ruptura das relações diplomáticas; ruptura das relações consulares; ruptura das relações postais, telegráficas, telefônicas e radiotelefônicas; interrupção das relações econômicas, comerciais e financeiras; e, pela primeira vez na história do pan-americanismo, a possibilidade de emprego de forças militares. Incluiu-se também uma recomendação de que, depois da guerra, os Estados americanos deveriam concluir um tratado de segurança coletiva que contemplasse, inter alia, o uso da força para evitar ou repelir futuras agressões.302 Na avaliação do governo brasileiro, a Ata de Chapultepec havia estabelecido, “de modo formal e completo”, um acordo regional para manter a paz e a segurança na América, em sintonia com as propostas de Dumbarton Oaks. A Ata entrava em vigor imediatamente, enquanto 300

Projeto de Declaração de Princípios. Relatório da delegação do Brasil à Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz. op. cit. p. 61; Diario de la Conferencia Interamericana sobre Problemas de la Guerra y de la Paz. México, DF, no 4, vol. I, 24 fev. 1945, p. 52; Leão Velloso a Exteriores (Macedo Soares), telegrama, México, 22 fev. 1945, AHI 76/4/16. 301 CAMPBELL. Masquerade peace. op. cit. p. 114-120; RUSSELL. A history of the United Nations Charter. op. cit. p. 560-563. 302 Relatório da delegação do Brasil à Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz. op. cit. p. 82-85; NOTTER. Postwar foreign policy preparation, 1939-1945. op. cit. p. 406.

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durasse a guerra e no período de transição que lhe seguiria, para ser então regulada por um tratado, oportunamente negociado pelas chancelarias. Com esse procedimento, as nações americanas se habilitavam a ingressar na futura organização mundial como um bloco regional, e não de forma fragmentada, “levando seus processos e métodos próprios, acreditados em meio século de experiências e práticas constantes”. O relatório do Brasil apontava que “este acordo regional, agora concluído na Conferência do México, enquadra-se na Seção C, Capítulo VIII, das propostas de Dumbarton Oaks, e significa a preservação de um sistema de ação pacífica interamericana que se originou em 1890 e vem evoluindo e se aperfeiçoando até aos nossos dias”.303 Na Conferência de São Francisco, o tema voltou à baila. Os países latino-americanos, que juntos representavam quase 40% dos votos dos países participantes, estavam determinados a fazer valer as decisões de Chapultepec a todo custo. O estopim da revolta foi a proposta das potências patrocinadoras de proibir qualquer medida coercitiva por parte de acordos ou agências regionais, sem autorização do Conselho de Segurança, exceto no caso de arranjos regionais destinados a contra-arrestar uma agressão renovada dos Estados ex-inimigos, até a organização mundial estar pronta para assumir plenamente suas responsabilidades de manutenção da paz. A proposta visava a acomodar, em caráter temporário, os tratados bilaterais de segurança (“arranjos defensivos anti-Eixo”) que a União Soviética planejava concluir ou já mantinha com alguns países europeus, nomeadamente Reino Unido, França, Tchecoslováquia, Iugoslávia e Polônia (comitê de Lublin). Durante reunião que durou quase três horas, em 5 de maio, Leão Velloso e os representantes da Colômbia, Alberto Lleras Camargo, e de Cuba, Guillermo Belt, reclamaram com Pasvolsky da exceção concedida em benefício da União Soviética e exigiram privilégios semelhantes para as Américas. Uma “nação predadora estrangeira”, argumentaram, poderia atacar o continente e sair impune ao acobertar-se em conluio com um dos membros permanentes do Conselho, que poderia lançar mão do veto para impedir qualquer ação de defesa coletiva dos Estados americanos. Insistiram em que os acordos de segurança no hemisfério deviam ser completamente desvinculados da organização mundial. A preocupação deles era, em essência, que Truman estaria renegando a Ata de Chapultepec e colocando um fim à política de Boa Vizinhança de Roosevelt. Mais tarde, Leão Velloso declarou à imprensa: “Cinquenta anos de pan-americanismo não podem ser destruídos desse modo; Chapultepec não é pacto militar, mas apenas um acordo para aplicar medidas de paz”.304 A Liga das Nações novamente estabelecia o precedente. Por intermédio de seu artigo 21, o Pacto da Liga havia reconhecido que determinados compromissos internacionais, como os tratados de arbitragem e os acordos regionais, eram compatíveis com a organização mundial. A Doutrina Monroe havia sido explicitamente mencionada, por insistência do presidente Wilson, na tentativa de responder aos críticos em seu país e amainar o forte ímpeto isolacionista do Senado de maioria republicana. O artigo 21 do Pacto dizia textualmente que “os compromissos internacionais, tais como os tratados de arbitragem, e os acordos regionais, como a Doutrina de 303

Relatório da delegação do Brasil à Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz. op. cit. p. 9-10. 304 SCHLESINGER. Act of creation. op. cit. p. 175; Boletim de Imprensa nº 15, São Francisco, 1945, CDO, Maço 42.966; Leão Velloso a Exteriores (Macedo Soares), telegrama, São Francisco, 9 maio 1945, AHI 76/3/20.

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Monroe, destinados a assegurar a manutenção da paz, não serão considerados como incompatíveis com nenhuma das disposições do presente Pacto”.305 Dividida entre globalistas e regionalistas, não existia consenso na delegação norteamericana sobre o que fazer diante do pleito latino-americano. O Senador Vandenberg era um dos que se haviam convertido durante a guerra do isolacionismo para o apoio ao engajamento dos Estados Unidos na criação de instituições multilaterais no pós-guerra. No seu entender, a ilustrada liderança norte-americana mostraria o melhor caminho para uma organização global, sem prejuízo da liberdade de ação dos EUA no Hemisfério Ocidental, dada como fato inconteste. Em 1945, a ideia de “mundo aberto, hemisfério fechado” tinha por fundamento a premissa de que, do ponto de vista de Washington, os EUA usufruíam de “direitos exclusivos” no continente americano como zona de influência própria. O projeto de Dumbarton Oaks seria falho nesse sentido por não reconhecer aqueles “direitos”. O secretário da Guerra e os militares do Pentágono eram da mesma opinião.306 Com a assistência de Rockefeller, Vandenberg tomou o partido da Doutrina Monroe e escreveu a Stettinius para defender que a Carta da ONU acolhesse a posição especial do sistema interamericano, recebendo a mesma imunidade de veto que os soviéticos haviam obtido para seus tratados bilaterais de segurança. Pasvolsky e outros se opuseram vigorosamente, sustentando os argumentos conhecidos de perda da credibilidade do Conselho de Segurança e de ameaça de proliferação de entendimentos regionais independentes, atuando à revelia da ONU. Se isso ocorresse, diziam, os EUA estariam “entregando toda a Europa nas mãos da União Soviética”.307 Aborrecido com as dificuldades, que atrasavam o andamento dos trabalhos, Stettinius minimizava o problema, creditando-o a manobras de Rockefeller. Um acontecimento fortuito ajudou a mudar sua impressão a respeito. Em seu hotel, Stettinius ficou preso em um elevador enguiçado, junto com vários representantes latino-americanos (Leão Velloso entre eles), que por quase meia hora bombardearam o secretário de Estado com reclamações. O incidente serviu para que ele se desse conta, de viva voz pelos queixosos, do grau de descontentamento e do dano político que o assunto vinha causando às relações hemisféricas. Em 8 de maio, Stettinius concordou em conversar em sua suíte com oito chefes de delegação latino-americanos, que renovaram suas críticas, muitas vezes em tom áspero. Alertaram que a “sólida coesão interamericana” estava sendo abandonada e que o comunismo internacional usaria seus partidos políticos na América Latina para intervir no continente. Stettinius foi duramente cobrado por desprezar a “política de solidariedade continental”, apenas um mês após a morte de Roosevelt.308 Nesse diapasão, nos debates verificados em nível de comissão, a delegação brasileira declarou formalmente que as disputas entre nações americanas deveriam ser decididas de acordo com os arranjos regionais existentes. Só haveria recurso à nova organização mundial quando o aparato

305

GARCIA, Eugênio Vargas. O Brasil e a Liga das Nações (1919-1926): vencer ou não perder. Porto Alegre/Brasília: Editora da UFRGS/FUNAG, 2000, p. 39 e 163. 306 SMITH, Gaddis. The last years of the Monroe Doctrine, 1945-1993. Nova York: Hill and Wang , 1994, p. 48. 307 Minutas do 32o Encontro da Delegação dos Estados Unidos, São Francisco, 7 maio 1945, FRUS, 1945, vol. I., p. 631-640. 308 TILLAPAUGH. Closed hemisphere and open world? op. cit. p. 34-37; Boletim de Imprensa nº 14, São Francisco, maio 1945, CDO, Maço 42.966.

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interamericano provasse ser ineficaz ou no caso de diferendo entre uma nação americana e outra extracontinental.309 Parecia que os latino-americanos haviam perdido a fé na ONU antes mesmo que ela fosse sacramentada. Manchetes em jornais brasileiros se referiam jocosamente à “Conferência de São Fiasco”. A insatisfação crescia. Vozes mais extremadas sugeriam que as delegações latinoamericanas deixassem a Conferência. Já havia contatos em marcha com delegados de cinco países árabes e de outras regiões para arregimentar uma frente comum contra o “veto regional” que as grandes potências articularam entre elas. Alguns países da Europa Ocidental e da Comunidade Britânica também objetavam a restrições ao regionalismo, ainda mais quando impostas de cima para baixo, sem consulta aos demais países, como aliás vinha sendo a praxe em São Francisco. A união de todos os insatisfeitos poderia compor um bloco perigoso aos interesses das potências patrocinadoras, ameaçando seus planos inclusive em outros temas, como na questão-chave do veto no Conselho de Segurança.310 Em longas discussões internas, a delegação norte-americana redobrou esforços para livrar-se logo do contratempo e prevenir maiores sequelas. “A hora chegou”, disse a seus colegas um exasperado Stettinius, “quando não devemos receber ordens de um monte de pequenas Repúblicas americanas que são dependentes de nós de muitas maneiras, economicamente, politicamente, militarmente; [...] devemos prover liderança.” A solução encontrada se pautou pelo princípio da autodefesa, que, talvez por inadvertência, não havia sido contemplado em Dumbarton Oaks. Tinha-se em mente apresentar uma emenda com três pontos básicos: nada na Carta deveria ser interpretado como “derrogando o direito inerente de autodefesa contra um violador da Carta”; na aplicação dessa cláusula, os princípios da Ata de Chapultepec e da Doutrina Monroe seriam “especificamente reconhecidos”; e todas regiões teriam o pleno direito de usar todos os meios pacíficos de solução de controvérsias “sem a permissão do Conselho de Segurança”.311 Em reunião com as potências patrocinadoras, o secretário do Exterior britânico, Anthony Eden, solicitou que fosse omitida a dupla referência à Ata de Chapultepec e à Doutrina Monroe, temendo que outros grupos de países demandassem menção explícita a arranjos similares em suas regiões (caso, por exemplo, do Acordo Austrália-Nova Zelândia de 1944). Stettinius concordou com a alteração depois que Vandenberg lhe assegurou que faria uma declaração interpretativa no Senado para confirmar o entendimento norte-americano de que o parágrafo compreendia os acordos dentro do Hemisfério Ocidental. Agora faltava apenas a concordância latino-americana, que não veio tão fácil. Em 14 de maio, em novo encontro à tarde com Stettinius, os delegados latinoamericanos não gostaram de saber da omissão a Chapultepec na emenda proposta, mesmo com as garantias oferecidas por Vandenberg. Stettinius afirmou que o objetivo primeiro de todos ali era a organização mundial e que o sucesso da Conferência de São Francisco não devia ser dificultado por uma “ênfase exagerada no regionalismo”. Os latino-americanos retrucaram pedindo que o governo dos EUA anunciasse publicamente um compromisso inequívoco em favor da Ata de 309

Declaração lida pela delegação do Brasil, São Francisco, 11 maio 1945, CPDOC, CFV ad 44.09.20. Cf. Capítulo 4. 311 CAMPBELL. Masquerade peace. op. cit. p. 165-171; SMITH. The last years of the Monroe Doctrine, 19451993. op. cit. p. 53. 310

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Chapultepec. A Colômbia e o México participavam mais ativamente no debate. O Brasil, preocupado em não levar a confrontação a níveis ainda mais altos, quase não se pronunciava. O encontro foi interrompido e retomado às 9 da noite do mesmo dia, quando se ventilou a ideia, por iniciativa norte-americana, de convocar em alguns meses (no outono setentrional) uma nova Conferência hemisférica para concluir o tratado de segurança que ratificaria formalmente a Ata de Chapultepec, conforme aquela Ata já recomendava. Após considerações adicionais dos dois lados, a reunião foi dada por encerrada às 3h40 da madrugada, mais uma vez sem acordo.312 Stettinius inicialmente não havia simpatizado com a sugestão de um conclave interamericano em tão pouco tempo, já que isso poderia sinalizar falta de confiança dos EUA na ONU. Mas se a barganha permanecesse secreta, calculou, seu impacto negativo na opinião pública seria ao menos em parte controlado. Faute de mieux, foi essa a solução que Stettinius acabou levando a Truman, que deu a ela sua aprovação. Em 15 de maio, os ministros latinoamericanos, convidados para mais uma reunião, ouviram com interesse. Insistiram, porém, em tornar público o entendimento. Nesse momento, o Senador Tom Connally, democrata do Texas, apelou apaixonadamente à confiança na palavra de seu país e implorou a ajuda de todos para harmonizar o Hemisfério Ocidental com o sistema internacional. O apelo emotivo impressionou os delegados latino-americanos e os convenceu a aceitar a oferta sobre a mesa. Mais tarde, como o acerto já havia de qualquer modo vazado aos jornalistas, a delegação norte-americana divulgou um comunicado sobre a emenda relativa aos acordos regionais e a Conferência interamericana que seria organizada em outubro de 1945.313 Leão Velloso informou Vargas do encaminhamento dado ao problema, com base na emenda dos EUA. Aproveitou para prestar contas do seu desempenho ao lidar com o assunto: “Colaborei sempre com as delegações das Repúblicas da América Latina, guardando uma certa discrição, à vista da publicidade e do tom demagógico que algumas delas deram à sua atitude”. Segundo o chanceler brasileiro, “a posição e as responsabilidades internacionais do Brasil impunham a prudência que mantive”. Pouco depois, Vargas diria ao embaixador norte-americano no Rio de Janeiro, Adolf Berle, que seu maior interesse era “manter os europeus fora dos assuntos interamericanos”.314 Os acordos regionais e a ONU Em negociações posteriores, a emenda dos EUA para resolver a questão foi desdobrada em diversos artigos da Carta da ONU. A chave estava no reconhecimento do direito de autodefesa individual e coletiva, adjetivo acrescentado com o intuito expresso de permitir que grupos de países pudessem reagir em caráter imediato. De acordo com o artigo 51, nada na Carta 312

SCHLESINGER. Act of creation. op. cit. p. 184-186; Relatório da delegação do Brasil à Conferência das Nações Unidas para a Organização Internacional. op. cit. p. 9-10. 313 Notas do Segundo Encontro Informal de Consultas com Chefes das Delegações de Certas Repúblicas Americanas, São Francisco, 15 maio 1945, FRUS, 1945, vol. I., p. 730-736; Leão Velloso a Exteriores (Macedo Soares), telegrama, São Francisco, 16 maio 1945, AHI 76/3/20. 314 Leão Velloso a Vargas, telegrama secreto, São Francisco, 19 maio 1945, CDO, Pasta 602 (04) ONU Diversos 1945-1957; CPDOC, GV c 45.04.30; Berle a Stettinius, memorando, Rio de Janeiro, 24 maio 1945, Berle Papers, Box 76, Memoranda Dec. 1944-April 1945.

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“prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais”. O Capítulo VIII da Carta foi inteiramente dedicado aos acordos regionais. Os artigos 52, 53 e 54 definiram os parâmetros para o relacionamento entre a ONU e quaisquer acordos ou entidades regionais, que podem agir na esfera da manutenção da paz e da segurança internacionais, desde que suas atividades sejam compatíveis com os propósitos e princípios da organização. Pelo artigo 52 da Carta, os Estados-membros da ONU que forem parte de acordos regionais “empregarão todos os esforços para chegar a uma solução pacífica das controvérsias locais” antes de submetê-las ao Conselho de Segurança. O artigo 53 prevê que o Conselho poderá, ainda, utilizar-se de tais acordos e entidades regionais para “uma ação coercitiva sob a sua própria autoridade”. O artigo 54 estabelece que o Conselho “será sempre informado de toda ação empreendida ou projetada de conformidade com os acordos ou entidades regionais para manutenção da paz e da segurança internacionais”. Esses dispositivos, aprovados como uma concessão aos regionalistas, abriram o caminho para o ulterior surgimento de organismos, estruturas ou arranjos regionais na área de segurança, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e o Pacto de Varsóvia, ou mesmo o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) e a Organização dos Estados Americanos (OEA).315 A estrada que levaria ao TIAR, no entanto, revelou-se tortuosa. Truman havia prometido a convocação de uma Conferência interamericana em outubro de 1945, no Rio de Janeiro, para celebrar o tratado permanente de segurança que substituiria a Ata de Chapultepec, válida somente para o período de guerra. Hildebrando Accioly chegou a elaborar um esboço preliminar do tratado e discutiu o assunto com o embaixador Adolf Berle. Em agosto de 1945, o governo brasileiro enviou convites para a Conferência, mas os Estados Unidos responderam pela negativa. Alegaram que a Argentina não havia cumprido os compromissos de Chapultepec, que a influência nazista não teria sido totalmente suprimida e que os direitos humanos estariam sendo desrespeitados no país. O governo norte-americano entrara novamente em conflito aberto com a Argentina e não pretendia oferecer um palco internacional para que Buenos Aires alcançasse um triunfo diplomático. Foi sugerido que o Senado veria com “profundo desagrado” a participação do governo Perón e objetaria aprovar o tratado. Por considerar que os EUA não podiam assinar um tratado de assistência militar de que fizesse parte a Argentina, o secretário de Estado interino informou às autoridades brasileiras da necessidade de cancelar a Conferência. O Itamaraty insistiu em que, caso o tratado fosse negociado independentemente de qualquer Conferência (hipótese “sumamente difícil”, com era sabido), deveria ser assinado solenemente no Rio de Janeiro, com a presença de todos os chanceleres e, sobretudo, do secretário de Estado norte-americano. “A demora aqui de tão eminentes personalidades seria de muito poucos dias, mas eles renderiam ao Brasil, com a sua ilustre presença, uma homenagem 315

Para análises feitas por contemporâneos da compatibilidade entre a ONU e os acordos regionais, cf. por exemplo: SHARP, Walter R. The inter-American system and the United Nations. Foreign Affairs. Nova York: vol. 23, no 3, April 1945, p. 450-464; WHITAKER, Arthur Preston. The role of Latin America in relation to current trends in international organization. American Political Science Review. Los Angeles, vol. XXXIX, no 3, June 1945, p. 500511; PADILLA, Ezequiel. The American system and the world organization. Foreign Affairs. Nova York: vol. 24, no 1, October 1945, p. 99-107; e ARANHA, Oswaldo. Regional systems and the future of U.N. Foreign Affairs. Nova York: vol. 26, no 3, April 1948, p. 415-420.

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que nos é devida por tudo quanto fizemos no interesse da defesa do continente”, escreveu Leão Velloso.316 A argumentação brasileira, todavia, não persuadiu o governo dos EUA. Mudanças no Departamento de Estado estiveram por trás do cancelamento sine die da Conferência, com base em decisão unilateral norte-americana, atribuída à influência dos grupos antiregionalistas e antiargentinos. Por determinação de Truman, em julho de 1945, Stettinius cedeu seu cargo ao influente Senador James Byrnes. O controvertido Spruille Braden, que era embaixador em Buenos Aires, retornou a Washington, de onde continuou a hostilizar o governo argentino, em particular a figura de Perón. Seria preciso que transcorressem quase dois anos para se retomar o diálogo continental, levando à realização tardia da Conferência do Rio. Byrnes seria substituído por George Marshall como secretário de Estado e Braden demitido de sua função em meados de 1947.317 Assim, em plena Guerra Fria, finalmente teve lugar a prometida Conferência, no Hotel Quitandinha, em Petrópolis, que resultou na assinatura do TIAR, em 2 de setembro de 1947. O parentesco com as discussões de Chapultepec e São Francisco é claro e direto. Pelo artigo 3º do Tratado, os signatários concordaram em que um ataque armado contra um Estado americano, por parte de qualquer Estado, seria considerado um ataque contra todos os Estados americanos. Em consequência, todos se comprometiam a “ajudar a fazer frente ao ataque, no exercício do direito imanente de legítima defesa individual ou coletiva”, reconhecido pelo artigo 51 da Carta da ONU.318 Dumbarton Oaks havia sido a consagração do globalismo. São Francisco reconciliou a organização global com o regionalismo. A partir do final da década de 1940, os pactos regionais recobraram sua vitalidade na área da segurança e ocuparam o espaço deixado vago pela paralisia do Conselho de Segurança. No entanto, o novo aparato institucional interamericano, consubstanciado no binômio TIAR-OEA, não representou o retorno da “ideia de Hemisfério Ocidental”, cujo mote principal fora sempre a dicotomia América versus Europa. Os Estados Unidos assumiram no pós-guerra sua condição de superpotência com interesses globais e o continente americano não estava mais “separado do resto do mundo”. Ao contrário, a retórica oficialista agora enfatizava que a Pan-América devia estar preparada para engajar-se no embate mundial instaurado pelo conflito Leste-Oeste. A nova ideologia política propagada de Washington conclamava pela defesa do “Mundo Livre” e da civilização ocidental contra os avanços do comunismo internacional. O discurso hemisférico se globalizara. A América Latina tampouco era a mesma. Pode-se afirmar que a experiência da Conferência de São Francisco ajudou os países latino-americanos a perceber que seus interesses próprios exigiam uma articulação própria no âmbito multilateral. Quando apenas existiam as Conferências pan-americanas, os governos da região estavam fadados a negociar previamente suas visões com os Estados Unidos. A situação na Liga das Nações havia sido peculiar, pois dela os EUA nunca fizeram parte. A ONU inaugurou fase distinta e se tornou um foro de afirmação da especificidade do grupo latino-americano (GRULA). À medida que esse processo educativo foi evoluindo, outros formatos e coalizões não exclusivamente hemisféricos também foram 316

Carlos Martins a Leão Velloso, telegramas confidenciais, Washington, 1º e 3 out. 1945, AHI 51/5/8; Leão Velloso a Carlos Martins, telegrama confidencial, Rio de Janeiro, 5 out. 1945, AHI 52/2/5. 317 BERLE, Adolf A. Tides of crisis: a primer of foreign relations. Nova York: Reynal & Company, 1957, p. 70-72; SMITH. The last years of the Monroe Doctrine, 1945-1993. op. cit. p. 57-58. 318 GARCIA. Diplomacia brasileira e política externa - documentos históricos, 1493-2008. op. cit. p. 461.

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amadurecendo. É certo que o pan-americanismo, como enquadramento conceitual, continuou influenciando políticas e guiando a conduta de muitas chancelarias da região, inclusive no Brasil, pelo menos até a década de 1960. Mas sua superação na verdade começou em 1945, justamente no momento em que a América Latina mais parecia empenhada em defendê-lo.

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CAPÍTULO 4 NA CONFERÊNCIA DE SÃO FRANCISCO A constante cooperação da América Latina, na paz como na guerra, exige que se lhe atribua lugar permanente no Conselho [de Segurança]. Carlos Martins

Definindo a posição brasileira A Conferência de São Francisco teve início com a guerra ainda em andamento nas duas frentes principais, Europa e Pacífico. Os Aliados que combatiam os regimes nazifascistas eram os mesmos que se reuniam para estabelecer a organização internacional responsável por gerenciar a ordem do pós-guerra. Um espírito de aliança presidiu a concepção original da ONU, formada por um grupo de Estados “amantes da paz” em confronto com as ideologias totalitárias e militaristas do Eixo. A propaganda aliada, com sua ênfase no imperativo moral de destruir e subjugar as forças tirânicas do mal, levando os inimigos à rendição incondicional, confundia-se com as exortações pacifistas que clamavam por um mundo mais seguro, livre da opressão e do medo. As Nações Unidas (isto é, a aliança militar) existiam para vencer a guerra. A Organização das Nações Unidas foi pensada para manter a coalizão operante depois de terminado o conflito. Assim, a preocupação primordial dos fundadores da ONU era dissuadir e, se necessário, punir um Estado agressor que não fosse membro da aliança. Apenas subsidiariamente se pensava em aplicar o sistema de segurança coletiva contra um Estado dentro da própria aliança, pois prevalecia o pressuposto (verdadeiro ou não) de que reinaria a paz entre os Aliados. Afinal, poucos tinham dúvidas de que haviam sido as potências do Eixo as responsáveis por arrastar o mundo a uma conflagração ainda mais cruenta do que a Grande Guerra de 1914-18. A linguagem da Carta de 1945 reflete esse espírito ao acolher a distinção entre Estados “amantes da paz” e Estados “inimigos”. Tampouco se cogitava na Carta, na visão dos contemporâneos, de “agressão” que não fosse de um Estado contra outro Estado. Não se pensava em agressão por atores não estatais, conflitos multidimensionais ou ataques contra pessoas (como nos casos de genocídio, por exemplo). O texto da Carta, porém, revelou-se suficientemente maleável para abrigar interpretações que permitiriam à ONU inovar no cumprimento de seus princípios e propósitos, como no posterior surgimento das operações de manutenção da paz, não previstas em 1945. No Brasil, o discurso da paz também seguia lado a lado com a retórica da guerra. O chanceler Pedro Leão Velloso lembrava o reclame universal por “meios enérgicos e decisivos que nos permitam impedir as guerras, castigar os criminosos, punir os agressores e dar paz, prosperidade e segurança ao mundo”. Moniz de Aragão, embaixador em Londres, aludia ao

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grande desejo de todos os povos de ver garantida a paz futura “com a criação de um corpo internacional de segurança contra novas eventuais ameaças de imperialismo”.319 Enquanto chegavam da Europa as notícias do fim iminente das hostilidades, em 1o de maio de 1945, durante seu tradicional discurso no Dia do Trabalhador, no estádio do Vasco da Gama, Getúlio Vargas enalteceu o papel do Brasil na guerra: Chegamos ao fim da guerra. Os que a provocaram e nos agrediram estão sendo afogados no próprio sangue, vítimas do cataclismo que desencadearam. O ‘nazifascismo’ está morto e o seu sonho de dominação mundial desfeito pelas armas vitoriosas das Nações Unidas. Entre elas o Brasil assumiu posição digna e relevante, participando da luta sem hesitações e levando aos campos de batalha, onde se cobriram de glória, os bravos soldados de sua Força Expedicionária. Rendamos graças a Deus pelo fim da catástrofe e exortemos todos os brasileiros amantes da paz a cooperar com a maior energia na reconstrução do mundo, cujos problemas não mais comportam soluções de ódios e mais do que nunca 320 reclamam compreensão, boa vontade e trabalho.

Nesse ambiente eram feitos os preparativos para a Conferência das Nações Unidas para a Organização Internacional, convocada pelas quatro potências patrocinadoras: EUA, GrãBretanha, URSS e China. As instruções à delegação do Brasil foram redigidas pelo embaixador Hildebrando Accioly, que desfrutava de sólida reputação na área do direito internacional.321 Muitas ideias do governo brasileiro sobre a organização mundial já haviam sido expostas na declaração apresentada à Conferência de Chapultepec, em fevereiro de 1945, sobre as propostas de Dumbarton Oaks (cf. Capítulo 3). O Brasil apoiou a Resolução XXX, adotada no México, e estava igualmente preparado para defender em São Francisco os pontos de vista ali expressos. Segundo as instruções, a aspiração à universalidade era necessária e todos os Estados, cedo ou tarde, deveriam ingressar na organização, sob pena de reduzi-la apenas a uma continuação da aliança das potências vencedoras. Se isso ocorresse, “seria inevitável a formação de um grupo rival e hostil, que constituiria uma ameaça à tranquilidade dos povos”. Para o governo brasileiro, a enumeração dos princípios da nova organização era “claramente insuficiente”. Seria fundamental que figurassem na Carta princípios basilares, como a não intervenção e o respeito escrupuloso aos tratados, “pela força moral que daí decorrerá”, especialmente para as nações militarmente mais fracas. Poderiam ser incorporadas algumas cláusulas análogas àquelas contidas no Pacto Briand-Kellogg, de 1928, a fim de condenar formalmente o recurso à guerra como instrumento de política nacional ou como meio de solução de controvérsias internacionais. Seria então oportuno reconhecer o direito de legítima defesa, inerente a todo Estado soberano, “com a ressalva de que a existência de um caso desse gênero é questão que deverá ser decidida pelo Conselho de Segurança”. Em relação à Assembleia Geral, impunha-se ampliar suas faculdades dentro da organização, dando-lhe competência para discutir todas as questões que afetassem a paz no

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Entrevista do ministro Leão Velloso para a Associated Press, São Francisco, 24 abr. 1945, CDO, Maço 42.981; Moniz de Aragão a Leão Velloso, telegrama, Londres, 22 abr. 1945, CDO, Maço 42.891. 320 VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil, vol. XI. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1947. p. 151. 321 Conferência de Organização Internacional das Nações Unidas, Instruções à Delegação do Brasil, Rio de Janeiro, 12 abr. 1945, CDO, Maço 42.942.

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mundo e tomar as decisões pertinentes. A esse respeito, porém, diziam as instruções, “não nos fazemos ilusões”: Sabemos, realmente, que as grandes potências só a custo cederão nesse ponto, pois têm interesse em manter o Conselho de Segurança como o órgão todo poderoso e, por assim dizer, ditatorial, da nova organização. A pressão, contudo, das demais nações (isto é, das chamadas potências médias e pequenas) será talvez grande, no sentido de se aumentarem as faculdades da Assembleia, para que esta possa desempenhar papel consentâneo com o que lhe caberia numa organização fundada em bases 322 democráticas. E nós não poderemos deixar de acompanhar essa corrente.

Para a tomada de decisões pela Assembleia Geral, o governo brasileiro sugeria que se adotasse a regra da maioria qualificada, de três quartos dos membros presentes, reduzida à maioria simples em questões processuais ou de natureza puramente administrativa. No caso de questão que exigisse a aplicação de sanções militares, “conviria que a Assembleia fosse sempre obrigada a submetê-la ao Conselho de Segurança, embora lhe seja concedida a faculdade de discutir o assunto e, sobre este, apresentar sugestões ao Conselho”. Caberia também à Assembleia Geral, inter alia, decidir pela admissão de novos Estados-membros, elaborar e aprovar o orçamento da organização, repartir as despesas entre os Estados-membros, criar comissões consultivas e formular diretrizes em matéria de cooperação econômica e social. Sobre o papel dos acordos regionais e sua harmonização com os preceitos da organização global, o Brasil continuaria a propugnar pela precedência do sistema interamericano, em linha com o projeto que circulara em Chapultepec, “o qual tendia a excluir da ingerência do Conselho de Segurança a solução das questões de interesse exclusivo das Repúblicas americanas, exceto quando pudessem pôr em perigo a paz em algum outro grupo de nações”. O tema da representação da América Latina no Conselho de Segurança será visto mais adiante neste Capítulo, na parte relativa ao assento permanente para o Brasil. Accioly redigiu, ainda, instruções sobre os tópicos mais relevantes de cada uma das quatro comissões da Conferência de São Francisco: disposições gerais; Assembleia Geral; Conselho de Segurança; e organização judiciária. As comissões, integradas por diversos comitês e subcomitês, deviam reportar a um Comitê Executivo, que também exercia funções de coordenação. A supervisão de todos os trabalhos caberia ao Comitê de Direção da Conferência, presidido pelos EUA e composto pelos chefes de todas as delegações. Em primeiro lugar, o governo brasileiro não estava satisfeito com o nome sugerido para a organização, “as Nações Unidas” (the United Nations), em virtude de sua vinculação direta com a aliança militar. Se o propósito deliberado era evitar as designações antigas de Liga ou Sociedade das Nações, para não dar a impressão de que o novo organismo era mero seguimento da instituição genebrina, seria preferível adotar o título de “União das Nações” ou, talvez, “Liga da Paz Internacional”. Uma alternativa adicional, sugeriu Accioly, seria “Comunidade dos Estados”, que havia sido considerada por um grupo de juristas norte-americanos e canadenses em reuniões realizadas em 1942 e 1943. Sobre esse ponto, diferentes propostas surgiram para mudar o nome da organização. O México, por exemplo, propôs “União Permanente das Nações”. Cuba sugeriu “Comunidade Mundial das Nações”. A Venezuela, como o Brasil, salientou a 322

Ibid. p. 4-5.

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inconveniência do nome “Nações Unidas”, que parecia tornar permanente, na paz, a aliança criada para a guerra.323 De acordo com Dumbarton Oaks, a organização teria quatro órgãos principais: Assembleia Geral, Conselho de Segurança, Corte Internacional de Justiça e Secretariado. Accioly não achava indispensável que fosse criado um Conselho Econômico e Social, porque os órgãos fundamentais deveriam ser “apenas aqueles quatro, por meio dos quais a organização poderá exercer a sua ação efetiva, dos pontos de vista legislativo, executivo, judiciário e administrativo”. Note-se que, no projeto de Dumbarton Oaks, o Conselho Econômico e Social era uma instância subordinada à autoridade da Assembleia Geral. Na Carta finalmente adotada em 1945, o ECOSOC foi estabelecido como um dos órgãos principais da ONU. Por uma questão de praticidade, sustentava Accioly, a sede do Secretariado, ainda não definida, poderia ficar em Genebra, onde já existiam as instalações da Liga das Nações. Quanto ao processo de apresentação de emendas à Carta, este deveria ser substituído por outro “mais razoável”. Ao invés da exigência de ratificação que incluísse a unanimidade dos membros permanentes do Conselho de Segurança para a entrada em vigor de qualquer emenda, consoante a proposta dos Quatro Grandes, bastaria a ratificação por dois terços dos países representados no Conselho e dois terços de todos os Estados-membros da organização. Foi criticada a pretensão da União Soviética de obter para si três votos na Assembleia Geral, segundo as decisões de Yalta, sob a alegação de que o Império Britânico teria de facto seis votos: a Grã-Bretanha e seus “cinco Domínios” (Austrália, Canadá, Irlanda [sic], Nova Zelândia e União Sul-Africana). Esse argumento seria “falso”, pois os Domínios seriam já independentes, “governando-se livremente por si”, apesar do laço especial que os unia em torno do mesmo soberano. Para Accioly, a situação seria diferente no caso da Índia, que não possuía o estatuto de Domínio e suas relações exteriores dependiam do governo britânico.324 A Ucrânia e a Bielorússia, prosseguiu, não teriam similaridade alguma com o caso dos Domínios britânicos. Seriam “verdadeiras dependências do governo de Moscou”. A concessão de votos suplementares à URSS representaria “contradição flagrante” com o princípio da igualdade jurídica dos Estados. No tocante à composição do Conselho de Segurança, na avaliação do Itamaraty, seria difícil que as grandes potências se dispusessem a “abrir mão do privilégio dos lugares permanentes”, apesar de contrário ao princípio da igualdade dos Estados. As instruções citam comentário feito pelo governo holandês, segundo o qual as potências menores haviam sido convidadas a “perpetuar e legalizar uma posição de inferioridade, existente de fato”, ao passo que “direitos exorbitantes especiais são concedidos às grandes potências, colocando-as virtualmente acima da lei”. Não obstante, compreendendo a impossibilidade de se evitar que tal sucedesse, era necessário aos pequenos Estados, no interesse de estabelecer uma nova organização destinada a manter a paz e a segurança internacionais, conferir essa posição especial às grandes potências, “a fim de se poder exigir destas o cumprimento consciencioso dos deveres e responsabilidades especiais implícitos em semelhante concessão”. Esse ponto, como será visto depois, terá marcada influência na posição brasileira em São Francisco.

323

Ibid. 8-9. Accioly se equivocava, porém, ao incluir a Irlanda em sua lista. Estado soberano desde 1937, a Irlanda se manteve neutra na guerra e só ingressou na ONU em 1955. Ibid. p. 11. 324

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Ainda com o propósito de conciliar o princípio democrático da igualdade com o status diferenciado que as grandes potências desejavam, duas fórmulas foram aventadas para a designação dos membros do Conselho de Segurança: 1) o Conselho seria escolhido pela Assembleia Geral, mas, na eleição, cada Estado teria um ou mais votos proporcionalmente à sua população, riqueza econômica e desenvolvimento cultural; e 2) o Conselho seria eleito pela Assembleia Geral por votação simples, mas às maiores potências militares seria reconhecido o direito de participar sempre, em condições especiais, na discussão e votação no Conselho de todos os casos de ameaça ou ruptura da paz. Ressalva importante feita nas instruções advertia que o Brasil só deveria apresentar essas sugestões se encontrasse ambiente favorável, o que Accioly concedia, de antemão, que “não consideramos provável”.325 Se fosse realmente aplicada a fórmula de Yalta para o sistema de votação no Conselho de Segurança, o governo brasileiro considerava injusto o veto em causa própria e a imunidade que isso implicava em benefício dos membros permanentes: Se ocorre, por exemplo, a hipótese de que um dos Estados membros permanentes é o próprio violador das obrigações contidas no estatuto básico da organização, como seria possível admitir-se que esse mesmo Estado tenha o direito de veto, quando o assunto referente a tal violação tiver que ser resolvido? Como se poderá aprovar que tal Estado, com o seu veto, possa impedir a ação do Conselho?

Novamente se recorre à interpretação do governo holandês sobre a matéria. Se cada grande potência tivesse o direito de veto nos litígios em que fosse parte, o plano da organização só serviria para dirimir conflitos internacionais entre pequenos Estados. No caso de controvérsias entre grandes potências ou entre uma delas e um país menor, a organização não forneceria proteção alguma a este último (a rigor a nenhum dos pequenos Estados) nem à causa da paz. A dificuldade real de executar uma ação coercitiva contra qualquer grande potência não poderia justificar o fato de que, no esforço por criar uma organização para preservar a paz, “se a mesma é digna desse título”, se desistisse a priori do uso da força armada contra um Estado por ser este mais aquinhoado em termos de poder militar. As medidas coercitivas que não contemplassem o uso de força armada, continuavam as instruções, poderiam ser determinadas, não só pelo Conselho de Segurança, mas também pela Assembleia Geral, que devia ao menos ser capaz de opinar sobre o assunto. Na hipótese de aplicação de sanções que não consistissem no emprego da força, nenhum Estado-membro poderia escusar-se a “cooperar lealmente” com a organização.326 Por fim, havia o tema da organização judiciária, em particular a criação da Corte Internacional de Justiça (CIJ), que Accioly tratou separadamente, em documento anexo às instruções. Em Dumbarton Oaks, as quatro potências preferiram encomendar a uma Comissão de Juristas das Nações Unidas que analisasse em reunião à parte os diferentes aspectos jurídicos envolvidos. Sua principal missão era decidir se deveria ser redigido um projeto inteiramente novo para a Corte ou se seria aproveitado, com as necessárias modificações, o Estatuto da Corte Permanente de Justiça Internacional (CPJI). No entender de Accioly, a antiga CPJI havia sempre funcionado “com excelentes resultados”. Seria recomendável introduzir no seu Estatuto tão somente as alterações aconselhadas pela experiência ou as que se justificassem pelas novas condições da vida 325 326

Ibid. p. 15. Ibid. p. 19-20.

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internacional. As seguintes mudanças foram sugeridas por ele: a) os candidatos à eleição para juiz da Corte deveriam ser apresentados diretamente pelos governos, e não pelos grupos nacionais da Corte de Arbitragem; b) o artigo 36 deveria ser modificado para tornar obrigatória a jurisdição da Corte, desaparecendo a chamada “cláusula facultativa”; c) mantida a faculdade da Corte para decidir por si mesma se determinado litígio entra ou não na sua esfera de competência, deveria ser-lhe atribuída capacidade para formular um compromisso entre as partes litigantes; d) precisava ser esclarecida a questão da competência da Corte ratione materiae, tendo em vista a exegese de alguns autores que pretendiam limitar a jurisdição da Corte aos casos exclusivamente de natureza internacional; e) o Estatuto deveria deixar consignado que a jurisdição da Corte só pode ser exercida depois que uma das partes, pelo menos, o solicite formalmente; f) seria conveniente precisar o alcance da faculdade da Corte de decidir ex aequo et bono; g) deveria ser explicitado no Estatuto que a Corte pode emitir pareceres consultivos, como o fazia a CPJI; e h) considerar a hipótese de se conferir à nova Corte o caráter de instância suprema de revisão relativamente aos tribunais arbitrais internacionais. Em benefício da proteção dos direitos humanos, Accioly aventou a possibilidade, sem no entanto aprofundá-la, de tornar a CIJ acessível a indivíduos, em certas condições, como no caso de particulares lesados por julgamentos de tribunais estrangeiros (julgamentos contrários ao direito internacional). O Brasil também era contra a ideia, defendida por alguns países latinoamericanos, de se criar uma Corte de Justiça regional, interamericana, independente da Corte da Haia.327 A Comissão de Juristas se reuniu em Washington, de 9 a 20 de abril de 1945, e dela fez parte, como representante do Brasil, o diplomata Antonio Camillo de Oliveira, que atuou segundo as instruções acima. A Comissão optou por tomar como base o Estatuto da CPJI e submeter à Conferência de São Francisco uma versão revista daquele texto. Nem todas as questões, contudo, puderam ser resolvidas pela Comissão. Dos temas que ficaram pendentes, a jurisdição obrigatória da CIJ era o mais polêmico. Em 12 de abril, Camillo de Oliveira interveio para defender o fim da “cláusula facultativa”, que, aliás, havia sido proposta originalmente por Raul Fernandes, em 1920.328 O prolongado debate marcou “funda divisão” no seio da Comissão, conforme relatou o representante brasileiro. Entre os países que apoiavam a jurisdição obrigatória, interessados em reforçar a ação da Corte da Haia, estavam Austrália, China, Egito, Iraque, Nova Zelândia, Tchecoslováquia, Turquia e todos os latino-americanos. As grandes potências, preocupadas em resguardar sua autonomia em relação àquele tribunal, se alinharam no campo oposto: EUA, França, Grã-Bretanha e URSS, além da Bélgica. Incapaz de tomar uma decisão por um ou outro grupo, a Comissão deixou à Conferência de São Francisco a responsabilidade de dar a última palavra.329

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Informação para o Senhor Ministro de Estado, Anexo nº 3, Rio de Janeiro, 3 abr. 1945, CDO, Maço 42.945. GARCIA, Eugênio Vargas. O Brasil e a Liga das Nações (1919-1926): vencer ou não perder. Porto Alegre/Brasília: Editora da UFRGS/FUNAG, 2000, p. 57-59. 329 Antonio Camillo de Oliveira a Leão Velloso, Relatório do delegado brasileiro ao Comitê Jurídico de Washington, encarregado de preparar o projeto de Estatuto de uma Corte de Justiça Internacional, São Francisco, 25 abr. 1945, CDO, Maço 42.987. 328

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Alinhamento com os Estados Unidos Enquanto isso, as mudanças na política interna sucediam rapidamente. As bases do regime autoritário iam sendo erodidas uma a uma e a crise do Estado Novo se revelava terminal. O poder de Vargas diminuía ostensivamente à medida que a liberalização política fincava raízes e a passagem para a democracia se tornava quase irreversível. Em 28 de fevereiro de 1945, foi confirmada oficialmente a realização de eleições diretas à presidência da República, por meio da Lei Constitucional no 9, publicada como um Ato Adicional à Constituição de 1937. Em 18 de abril, seria concedida anistia aos acusados de crimes políticos no Brasil desde 1934 – Luis Carlos Prestes seria um dos presos libertados. O aguardado fim da censura, com a extinção do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), ocorreria em 25 de maio. No lugar do DIP foi criado um Departamento Nacional de Informações subordinado ao ministro da Justiça. Três dias depois, o novo Código Eleitoral aprovou a Lei Agamenon, que fixou a data das eleições presidenciais para 2 de dezembro de 1945. Vargas anunciou que não seria candidato, mas muitos duvidaram da honestidade de sua declaração.330 Sem o mesmo férreo controle que detinha antes, Vargas acompanhava o processo político aparentemente com a esperança de permanecer no governo, se não com recurso a alguma manobra continuísta, pelo menos até a conclusão das negociações internacionais de paz. A Constituição outorgada em 10 de novembro de 1937 não era cumprida totalmente em virtude do estado de guerra. Mas o texto constitucional foi lembrado por partidários do governo para dar mais força ao argumento de que a saída prematura de Vargas prejudicaria o acompanhamento das conversações de paz. Pelo artigo 15, competia privativamente à União, entre outras atribuições: I) manter relações com os Estados estrangeiros, nomear os membros do corpo diplomático e consular, celebrar tratados e convenções internacionais; II) declarar a guerra e fazer a paz; III) resolver definitivamente sobre os limites do território nacional; IV) organizar a defesa externa, as forças armadas, a polícia e segurança das fronteiras; e V) autorizar a produção e fiscalizar o comércio de material de guerra de qualquer natureza. O artigo 73 era bem claro sobre onde residia o poder: cabia ao presidente da República, como “autoridade suprema do Estado”, dirigir a política interna e externa. Também estavam entre as atribuições de competência privativa do presidente da República, de acordo com o artigo 74: manter relações com os Estados estrangeiros; celebrar convenções e tratados internacionais ad referendum do Poder Legislativo; exercer a chefia suprema das forças armadas da União, administrando-as por intermédio dos órgãos do alto comando; decretar a mobilização das forças armadas; declarar a guerra, depois de autorizado pelo Poder Legislativo, e, independentemente de autorização, em caso de invasão ou agressão estrangeira; e fazer a paz ad referendum do Poder Legislativo. Como o Congresso não estava funcionando, alegava a propaganda estadonovista, Vargas “precisava” estar no Catete para tomar as decisões necessárias uma vez finda a guerra.331 Em meio ao torvelinho de eventos que agitava a cena política, foi designada a delegação que iria representar o Brasil em São Francisco. Não houve surpresas, embora alguns 330

Macedo Soares a Leão Velloso, Rio de Janeiro, 26 maio 1945, CDO, Maço 42.959; CARONE, Edgar. A Terceira República (1937-1945). São Paulo: Difel, 1976, passim. 331 Para o texto da Constituição de 1937, cf. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao, acesso em 15/4/2009.

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lamentassem a ausência de Oswaldo Aranha, depois de seus muitos anos à frente do Itamaraty. A delegação seria chefiada por Pedro Leão Velloso, na qualidade de ministro interino das Relações Exteriores. Os demais delegados eram os embaixadores Carlos Martins Pereira e Souza e Cyro de Freitas Valle; o general de divisão Estevão Leitão de Carvalho; o major-brigadeiro-do-ar Armando Figueira Trompowski de Almeida; o contra-almirante Silvio de Noronha; Antonio Camillo de Oliveira; e Bertha Lutz. Os principais assessores da delegação eram José de Alencar Netto, Octavio de Nascimento Brito, Márcio de Mello Franco Alves e Geraldo de Paula Souza. Henrique de Souza Gomes seria o secretário-geral da delegação, auxiliado por diversos diplomatas, entre eles Henrique Rodrigues Valle, Carlos Jacyntho de Barros e Mario Gibson Barboza, que chegaria a ministro das Relações Exteriores no governo Médici (1969-74).332 Os militares membros da delegação não seriam muito exigidos na Conferência. Mesmo na fase de preparação, exceto por um estudo preparado por iniciativa do general Leitão de Carvalho, a delegação sequer recebeu pareceres dos Ministérios da Guerra, Marinha ou Aeronáutica, que tratassem das medidas técnicas de natureza militar suscitadas pelo plano da organização mundial, em particular sobre a Comissão de Estado-Maior, à qual seria dada a direção estratégica das forças armadas postas à disposição do Conselho de Segurança. Como se recorda, prevista nos artigos 46 e 47 da Carta da ONU, a Comissão de Estado-Maior jamais funcionou de acordo com a concepção original definida para seu papel de comando operacional.333 Vargas foi conservador na sua escolha, exceto por incluir a única mulher como delegada: Bertha Lutz, filha do cientista Adolfo Lutz, zoóloga de profissão e líder do movimento feminista no Brasil. Engajada na luta internacional pelos direitos da mulher desde a década de 1920, Lutz havia sido fundadora da Federação Brasileira para o Progresso Feminino e participado da campanha pelo voto das mulheres, estabelecido em 1932 por decreto-lei assinado por Vargas. Quando foi convidada para a delegação brasileira, trabalhava como bióloga no Museu Nacional. Sua inclusão atendia a uma recomendação da Conferência de Chapultepec. Considerando a igualdade de direitos e deveres dos indivíduos, sem distinção de sexo, uma resolução fora aprovada no México sugerindo aos governos das Repúblicas americanas a levar em conta “a cooperação da mulher na escolha das suas respectivas delegações a conferências internacionais, inclusive a próxima Conferência de São Francisco”. Os Estados Unidos se adiantaram e Roosevelt nomeou Virginia Gildersleeve, ex-presidente da Federação Internacional das Mulheres Universitárias, para integrar a delegação norte-americana. O Brasil seguiu o exemplo.334 Escolhida a delegação e dadas as suas instruções, qual seria o sentido geral da participação brasileira em São Francisco? Considerando a política externa que Vargas vinha seguindo, eram quatro as posições básicas que o Brasil poderia adotar: 1) acompanhar os Estados Unidos; 2) associar-se ao grupo latino-americano; 3) buscar uma coalizão com o grupo mais 332

Para a relação completa dos membros da delegação brasileira, cf. Anexos deste livro. Estevão Leitão de Carvalho, “Proposta de Dumbarton Oaks: estudo dos assuntos de caráter militar”, São Francisco, 28 abr. 1945, CDO, Maço 42.992. 334 Resolução XXXI sobre cooperação da mulher nas reuniões internacionais. Acta final de la Conferencia Interamericana sobre Problemas de la Guerra y de la Paz. Cidade do México: Secretaría de Relaciones Exteriores, 1945, p. 56; GILDERSLEEVE, Virginia C. The making of the United Nations Charter: San Francisco, 1945, by a member of the United States delegation. Nova York: Macmillam Company, 1954; Martins a Leão Velloso, telegrama, Washington, 14 fev. 1945, AHI 51/5/7. 333

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amplo das potências menores; ou 4) perseguir uma posição independente, não alinhada a este ou aquele país ou grupo. Na realidade, as três últimas opções dependiam da primeira, ou seja, em caso de choque irremediável em matéria fundamental, prevalecia a orientação número um (seguir os EUA), à qual tudo mais deveria acomodar-se. Essa posição já se fazia clara há algum tempo e era constantemente reafirmada pelo governo brasileiro. Em novembro de 1944, Vargas fez chegar a Roosevelt uma mensagem, por intermédio do embaixador Carlos Martins, para assegurar o presidente norte-americano de que o Brasil iria “seguir a liderança dos Estados Unidos em todos os assuntos, não apenas na condução da guerra, mas nos assuntos políticos que afetam o hemisfério e em todos os assuntos econômicos”. [grifos meus] 335 Em Washington, não se esperava outra atitude de Vargas. O chefe da Divisão de Assuntos Brasileiros do Departamento de Estado, Philip Chalmers, reconhecia que a cooperação do governo brasileiro era tal que os diplomatas norte-americanos tinham o hábito de “take Brazil too much for granted”. A tendência no Departamento era prestar muito mais atenção aos problemas dos EUA, por exemplo, com a Argentina, a Bolívia ou El Salvador. Em perfil biográfico enviado a Adolf Berle Jr., embaixador norte-americano no Rio de Janeiro, Chalmers assim se referiu ao presidente brasileiro: Vargas é o verdadeiro árbitro da política externa brasileira, embora o ex-ministro do Exterior Aranha receba muito do crédito. Ele está convencido de que o futuro do Brasil está inextricavelmente ligado ao dos Estados Unidos e sua cooperação desde Pearl Harbor tem sido praticamente 100%. Para ele o sistema interamericano não é tão importante quanto as relações Brasil-Estados Unidos. Qualquer indicação de que os Estados Unidos consideram o Brasil no mesmo plano das outras Repúblicas americanas será ressentida, pois ele entende que a posição estratégica do Brasil e sua plena cooperação 336 dão direito a consideração especial ao país.

Corriam distantes os tempos de “equidistância pragmática” do Brasil vis-à-vis os grandes centros do poder mundial. A neutralidade na guerra era lembrança do passado. Em 1945, ou mesmo bem antes, o Brasil de Vargas estava plenamente identificado com as diretrizes estratégicas dos Aliados no conflito global. Sem precisar ser instado a isso, estava também pronto a adequar-se à visão norte-americana em todas as questões importantes, inclusive na política continental e na América do Sul. Por mais que as contingências da política interna ou medidas específicas na economia pudessem sugerir ensaios aparentes de autonomia, na diplomacia o alinhamento com os Estados Unidos era um fato. Nem todos estavam satisfeitos com essa situação. De Ottawa, onde servia como embaixador, Cyro de Freitas-Valle era um dos que se preocupavam com os efeitos do alinhamento apriorístico na política externa. Amigo de longa data de Leão Velloso, a quem chamava na intimidade de “Pedrito”, Freitas-Valle escreveu uma carta particular, em 13 de dezembro de 1944, para admoestá-lo em relação a um ponto que acreditava “errado na política certa do Itamaraty de amizade com Washington: o de se saber sempre, em qualquer vicissitude 335

Stettinius a Roosevelt, memorando ao presidente, encontro com o embaixador brasileiro, Washington, 14 nov. 1944, FDR Papers, President’s Official File, OF 11, Government of Brazil. 336 Chalmers a Berle, memorando, pessoal e confidencial, Washington, 27 jan. 1945, Berle Papers, Box 75, Correspondence with Philip O. Chalmers, Chief, Division of Brazilian Affairs; Chalmers, despacho, confidencial, Washington, 27 jan. 1945, NARA 832.00/1-2745.

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internacional, que o Brasil vai ficar invariavelmente com os Estados Unidos”. [grifos do autor] Freitas-Valle entendia que formar um bloco com os países americanos poderia não ser, em todas as circunstâncias, o melhor para o Brasil. O problema, na sua visão, era a perda de credibilidade decorrente da percepção de que o voto brasileiro nos foros multilaterais já era sabido de antemão. “Eu não sou ingênuo a ponto de ignorar quanto precisamos dos Estados Unidos e de seguir sua política. Mas é o fato que a eles estamos desservindo quando os demais nos tomam por seus caudatários”. Os outros países, por exemplo, seriam contrários a um posto permanente para o Brasil no Conselho de Segurança se isso representasse uma “duplicação do voto dos Estados Unidos”. Essa crença, frisou, não servia nem a Washington nem ao Rio de Janeiro, uma vez que “para fazer triunfar nossa política comum, é preciso que nos respeitem cada tanto as opiniões e sempre os interesses”. Freitas-Valle esperava uma contrapartida pela “maneira excepcional” com que o Brasil tratava os EUA, “indo ao extremo de ensinar nas escolas primárias o amor ao povo norte-americano”. A participação efetiva do Brasil na guerra trazia como corolário “aumentar suas responsabilidades no confuso mundo futuro e, assim, está no interesse dos EUA não apenas ajudar a dobrar nossos recursos, senão a decuplicá-los”. As relações bilaterais deveriam ser uma via de mão dupla: “Pois tanto devemos abrir os olhos para encarar no mundo que está a criar-se quanto abrir os olhos dos outros, de que precisamos, coisa que eles sabem, para mostrar que, em igual medida, eles precisam de nós”.337 Os principais nomes do Itamaraty, a começar por Leão Velloso, aplicado discípulo de Aranha, estavam convencidos de que os interesses brasileiros seriam mais bem servidos com o apoio contínuo e a intercessão oportuna dos Estados Unidos. Para Vargas, essa também era a maneira possível de extrair concessões e recompensas pela condição brasileira de “aliado preferencial” na América do Sul. Diante de uma evolução histórica que lhe foi sendo dada, e que tornara o envolvimento brasileiro na Segunda Guerra Mundial praticamente uma “não-escolha”, Vargas não detinha mais o poder de barganha que chegou a exibir em 1940-41.338 As exigências da aliança com os Estados Unidos perpassavam agora todo o espectro das relações bilaterais, nos campos político, econômico e militar, com reflexos no conjunto das relações do Brasil com a sua região e o resto do mundo. A margem de manobra era pequena e confinava o Brasil a um espaço exíguo para posições dissidentes fora dos ditames da aliança. Pragmático como sempre fora, restava a Vargas tirar o melhor proveito desse quadro e dos meios que lhe sobraram disponíveis. Um exemplo expressivo da expectativa brasileira de receber as compensações devidas por sua lealdade e sacrifício na guerra era, precisamente, a aspiração de obter um lugar de destaque no principal órgão da futura ONU: o Conselho de Segurança. Ainda o assento permanente para o Brasil Alguns temas laboriosamente esmiuçados em Dumbarton Oaks, como o sistema de votação no Conselho de Segurança, foram postergados para a consideração dos Três Grandes na 337

Freitas-Valle a Leão Velloso, carta, Ottawa, 13 dez. 1944, CPDOC, CFV ad 44.02.00. ALVES, Vágner Camilo. O Brasil e a Segunda Guerra Mundial: história de um envolvimento forçado. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2002; e D’ARAUJO, Maria Celina. O Estado Novo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 47-52. 338

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cúpula de fevereiro de 1945, na Crimeia. No entanto, nas muitas fontes disponíveis sobre Yalta, não aparecem registros de que haja sido discutida naquela reunião a possibilidade de ser alocado um assento permanente para o Brasil.339 Admite-se, por uma questão de método, que Roosevelt poderia ter levantado o assunto em conversa a sós com Churchill ou Stalin, à margem das sessões formais da Conferência, sem a presença de ministros, secretários ou assessores, e sem que ficassem notas ou transcrições que servissem de evidência. Essa hipótese, todavia, é improvável. Pode-se especular acerca das razões que levaram Roosevelt a arquivar sua proposta, entre elas a massa avassaladora de pendências mais urgentes a resolver, sua debilidade física crescente ou, também possível, que ele se havia deixado convencer por assessores de que, sem os apoios necessários da União Soviética ou da Grã-Bretanha, tratava-se de uma partida perdida. Mas o fato é que, como visto no Capítulo 2, depois das resistências enfrentadas em Dumbarton Oaks – inclusive dentro da delegação norte-americana – e da decisão de fechar em cinco o número de membros permanentes no Conselho, a questão do Brasil perdera momentum. O governo brasileiro nem havia sido previamente consultado pelos Estados Unidos quando a proposta surgiu pela primeira vez. Parecia ser o caso de um balão de ensaio, lançado por Roosevelt, que ao final não alçou voo, como outras tantas ideias para o pós-guerra. Antes que terminasse o ano de 1944, o assunto era dado por liquidado nos círculos governamentais em Washington. Recém-nomeado secretário de Estado, Edward Stettinius havia oficialmente informado à embaixada norte-americana no Rio de Janeiro que os Estados Unidos não iriam mais fazer qualquer movimento em favor do assento permanente brasileiro. Vargas deveria contentar-se com o “incentivo” dos EUA para que o Brasil concorresse às eleições para membros não permanentes.340 Assim, logo após Yalta, nos pontos de conversação que Roosevelt usaria na Conferência de São Francisco, preparados pelo Departamento de Estado, não se faz referência à matéria, a não ser para ressaltar, incidentalmente, que alguns “problemas importantes” surgiam para os EUA em função das “ambições brasileiras de ser uma potência mundial com representação constante em qualquer organização mundial”.341 No Brasil, não havia consenso sobre o que convinha fazer. Hildebrando Accioly, juntamente com Raul Fernandes e José Carlos de Macedo Soares, pertencia ao grupo que, dentro da comissão de notáveis que analisou o projeto de Dumbarton Oaks em 1944, tinha restrições 339

Foreign relations of the United States, The Conferences at Malta and Yalta, 1945. Washington: Department of State, Government Printing Office, 1955; The Yalta Papers, World War II Inter-Allied Conferences, The Library Collection, BACM Research; CARCER, Gonzalo Aguirre de (org.). Los documentos de Yalta. Madri: Instituto de Estudios Políticos, 1956; STETTINIUS Jr., Edward R. Roosevelt and the Russians: the Yalta Conference. Nova York: Doubleday, 1949; KIMBALL, Warren F. (ed.). Churchill & Roosevelt: the complete correspondence. III. Alliance declining, February 1944-April 1945. Princeton: Princeton University Press, 1984; FEIS, Herbert. Churchill, Roosevelt, Stalin: the war they waged and the peace they sought. Princeton: Princeton University Press, 1957; CHURCHILL, Winston S. The Second World War. Londres: Cassell & Co., 1955, vol. VI, Triumph and tragedy; CLEMENS, Diane Shaver. Yalta. Nova York: Oxford University Press, 1970; SNELL, John L. (ed.). The meaning of Yalta: big three diplomacy and the new balance of power. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1956; “Personalities who are mentioned in record of the Big Three Conference”, The New York Times, Nova York, 17 mar. 1955, NYT Archive, www.nytimes.com, acesso em 18/12/2009; etc. 340 Stettinius a Donnelly, telegrama, Washington, 18 dez.1944, Foreign relations of the United States [FRUS], 1944, vol. I. Washington: Department of State, Government Printing Office, 1966, p. 952. 341 Political Memoranda, State Department, March? 1945, FDR Papers, President’s Secretary’s File, Box 6, United Nations Conference II.

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quanto à participação do Brasil no Conselho de Segurança. Terá pesado na consideração do problema a memória da crise de 1926 na Liga das Nações e a retirada do Brasil, em meio a críticas e condenações, após o fracassado intento de obter uma cadeira permanente no Conselho Executivo daquela organização. À época, o isolamento internacional que deixara o Brasil “só na América” havia-se estendido à Europa, colocando o país na desagradável condição de estar virtualmente “só no mundo”.342 Para os céticos, evitar a repetição de uma situação constrangedora como a de 1926 parecia ser motivo forte a desestimular nova investida na organização mundial que se ia criar em 1945. Leão Velloso tentava manter-se neutro, mas reservadamente simpatizava com o grupo de Accioly. A outra corrente, encabeçada por Getúlio Vargas, contava com Carlos Martins, Cyro de Freitas-Valle e outros diplomatas e juristas que queriam ver o Brasil reconhecido por sua contribuição à guerra e pela grandeza de seu território, população e posição na América do Sul. Vez por outra circulavam manifestações espontâneas de apoio de diversos publicistas animados dos “mais elevados sentimentos patrióticos”. A experiência da Liga das Nações também era lembrada, mas por outro prisma, como o fez Levi Carneiro: “Creio que um dever de coerência, de continuidade, impõe-nos a apresentação dessa candidatura. Porque não minguaram as razões em que nos apoiávamos, há quase 20 anos, pleiteando um lugar no Conselho da Sociedade das Nações. Ao contrário, avultaram, e outras sobrevieram”. Carneiro mencionou algumas das credenciais que o Brasil possuía para aspirar ao cargo: o esforço militar brasileiro na guerra em curso; a relevância da posição estratégica do país; o fato de ser a décima nação do mundo em população; ser a maior nação latina, depois da França, sem ter assegurada sua participação no Conselho; grau de desenvolvimento econômico e acervo de matérias-primas ainda inexploradas; “sem falar na tradição liberal, democrática, ordeira, com que sempre se enobreceu o Brasil”.343 Bem ao seu estilo, Vargas instruiu Leão Velloso no sentido de procurar satisfazer as “justas aspirações do país”, sem deixar de levar em conta as ponderações e conselhos das autoridades que se pronunciaram em contrário na comissão de notáveis. A fórmula de pleitear um lugar permanente no Conselho para a América Latina, sem menção ao Brasil, surgiu como solução intermediária entre a resistência de algumas altas personalidades do meio diplomático e um sentimento difuso da opinião pública nacional favorável ao assento permanente. Pode-se dizer que se tratava de uma candidatura indireta. Confiava-se em que, se aprovado um assento permanente a mais no Conselho, o apoio norte-americano (especialmente de Roosevelt) garantiria a elevação do Brasil a esse posto. Seria uma consequência natural da pretendida entente BrasilEUA. Segundo um articulista, possivelmente vinculado à chancelaria, o expediente encontrado agradava a gregos e troianos: Os partidários da entrada do Brasil na representação permanente do Conselho ficaram satisfeitos, pois nenhum país da América Latina poder-lhe-ia disputar os títulos pela extensão territorial, população e, sobretudo, pelos serviços prestados à causa das Nações Unidas; e os que pensavam de modo diverso 344 aceitaram bem a fórmula, desde que ela não expunha o nosso país a uma direta recusa. 342

GARCIA, Eugênio Vargas. Entre América e Europa: a política externa brasileira na década de 1920. Brasília: Editora UnB/FUNAG, 2006, p. 423. 343 Levi Carneiro a Leão Velloso, memorando, Rio de Janeiro, 23 out. 1944, AHI Lata 651. 344 “A Conferência de São Francisco: o aumento dos lugares permanentes no Conselho de Segurança”, artigo especial para o Jornal do Commercio, sem indicação de autor, Rio de Janeiro, 20 jun. 1945, CDO, Maço 42.908.

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A fórmula teve a anuência de Vargas. Assim, no memorando encaminhado à embaixada norte-americana, em 4 de novembro de 1944, com os comentários do governo brasileiro sobre as propostas de Dumbarton Oaks, um dos pontos destacados foi a necessidade de que o Conselho de Segurança refletisse as diversas correntes de opinião e de interesses existentes no mundo. O Brasil declarou então que julgava “indispensável” atribuir à América Latina um assento permanente naquele órgão. A mesma posição seria levada à Conferência de Chapultepec, acolhida na Resolução XXX, com a recomendação de “dar adequada representação à América Latina no Conselho de Segurança”.345 Nos chamados “encontros de Blair House”, promovidos pelo Departamento de Estado para debater as propostas de Dumbarton Oaks com as embaixadas latino-americanas em Washington, Carlos Martins apresentou o pleito brasileiro, que ficou registrado na transcrição das reuniões. Ele procurou ligar a representação da região às necessidades de defesa do hemisfério e do próprio território norte-americano. A América Latina, do Golfo do México e do mar caribenho às longas costas dos países da América do Sul, constituiria “a zona mais acessível e efetiva para um ataque pelas nações europeias contra os Estados Unidos e o ponto mais vulnerável do continente inteiro”. O Conselho da futura organização internacional seria concebido com a finalidade de tomar medidas imediatas e efetivas para manter a paz e remediar a situação. Disse então Martins: Considerando a vulnerabilidade da América Latina, seria inadmissível excluí-la de um assento permanente no Conselho. Tal exclusão equivaleria a expor as Repúblicas latino-americanas a todos os perigos e consequências de um ataque ou de uma guerra sem dar a elas nenhuma garantia de participação permanente no órgão que é vital para a preservação da paz. [...] A presente guerra mostrou de um modo muito forte os perigos que nos ameaçam quando um conflito tem lugar em qualquer parte do mundo. A América Latina, portanto, não pode ausentar-se de participar na consideração de todas as questões quando esforços estão sendo feitos para resolver por meios pacíficos controvérsias internacionais que podem levar a conflitos. A constante cooperação da América Latina, na paz como 346 na guerra, exige que se lhe atribua lugar permanente no Conselho.

Nas instruções para a delegação do Brasil à Conferência de São Francisco, a parte relativa ao Conselho de Segurança ocupava lugar de relevo. Accioly, que como já mencionado era o responsável pela redação do texto oficial dessas instruções, tomou como ponto de partida a Resolução XXX de Chapultepec. Considerava “geral e legítimo” o desejo dos países latinoamericanos de se verem representados adequadamente no Conselho. Em Chapultepec, seis países se manifestaram favoráveis à concessão de um assento permanente à América Latina: Brasil, Colômbia, México, Panamá, Paraguai e Uruguai. Entretanto, alguns desses países, incluindo o Brasil, favoreceram fórmulas mais democráticas para a composição do Conselho, “suprimindo-se o privilégio dos lugares permanentes, contrário ao princípio da igualdade jurídica das nações”. A 345

Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores, ano de 1944. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1949, p. 27. 346 Essas razões teriam ainda mais peso, segundo Martins, quando a ação do Conselho visasse não só à manutenção da paz pela força, mas sobretudo a evitar a agressão ou o início de hostilidades. Cf. Registro de Reunião Informal com Representantes Diplomáticos de Certas Repúblicas Americanas, Washington, 31 jan. 1945, FRUS, 1945, vol. I, p. 42-43; Martins a Leão Velloso, telegrama confidencial, Washington, 1 fev. 1945, AHI 51/5/7.

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delegação do Brasil, em todo caso, “não insistiu sobre estes pontos, convencida de que: 1º) as grandes potências não abrirão mão do referido privilégio; 2º) dificilmente poderiam concordar em admitir mais algum lugar permanente no Conselho de Segurança”.347 Era, portanto, com incredulidade que o Itamaraty via a perspectiva de alterar o plano original de Dumbarton Oaks no tocante ao tamanho do Conselho, pré-definido com onze membros (cinco permanentes e seis não permanentes). A posição que a delegação brasileira deveria adotar em São Francisco seria então a seguinte: Na verdade, parece-nos inevitável a aceitação da ideia dos lugares permanentes, concedidos às cinco grandes potências. Se, todavia, for resolvido aumentar esse número para seis, o sexto lugar só poderá caber, logicamente, ao Brasil, devido à sua grandeza territorial, à sua população, às suas possibilidades econômicas e ao seu atual esforço de guerra, em prol da causa das Nações Unidas. Não julgamos, porém, que devamos pleitear a criação desse sexto lugar, porque: 1º) não estamos talvez em condições de arcar com as graves responsabilidades que acarreta semelhante posição; 2º) a escolha do Brasil levantaria, provavelmente, contra nós grandes invejas, da parte de várias nações latino-americanas; 3o) 348 não podemos concordar em que o mesmo lugar seja ocupado por nenhuma outra nação.

Accioly reconhecia que, em certo momento, o governo brasileiro chegara a manifestar publicamente o desejo de que se atribuísse uma cadeira permanente à América Latina, que “só poderia, logicamente, caber ao Brasil”. Mas, “com espírito mais realista”, a posição brasileira na matéria deveria ser outra, bem mais modesta: Isto é, a nossa atitude deverá ser: 1º) apoiar qualquer ideia tendente a democratizar o sistema de escolha do Conselho de Segurança; 2º) não pleitear a criação de um sexto lugar permanente; 3º) não concordar em que, na hipótese de ser criado esse lugar, o mesmo seja atribuído a qualquer outro país, que não o Brasil. A mera indicação, no Pacto, de que um sexto lugar caberá à América Latina só poderia suscitar complicações. Porque surgiriam logo estas duas delicadas questões: 1a) quem designaria o representante da América Latina? 2a) como se faria essa designação? Em qualquer caso, não cremos que o Brasil tivesse muitas probabilidades de obter sempre o apoio das chamadas ‘nações irmãs’. Na hipótese, provável, de serem apenas cinco os lugares permanentes, não devemos levantar objeção alguma, antes pelo contrário, a que um ou dois dos postos não permanentes sejam atribuídos à América Latina. Por outra parte, devemos pleitear a concessão de um desses lugares ao Brasil, na primeira eleição – ao menos por uma questão de prestígio. Acreditamos, aliás, que isto será obtido 349 facilmente, porque podemos apresentar títulos indiscutíveis em apoio de semelhante pretensão.

A julgar somente por essas instruções, o Brasil adotaria um perfil baixíssimo nas discussões sobre a composição do Conselho. Sequer deveria reivindicar a criação de um sexto lugar permanente para a América Latina. Não foi bem isso que ocorreu. A cautela seria sim uma das marcas características da atuação brasileira em São Francisco, em quase todos os itens da agenda. Mas, conforme salientado, a fórmula autorizada por Vargas foi a que prevaleceu. No âmbito da terceira comissão da Conferência, ao comitê 1 cabia analisar as emendas sobre a estrutura e o processo no Conselho de Segurança. O Brasil apresentou ali uma proposta de 347

Conferência de Organização Internacional das Nações Unidas, Instruções à Delegação do Brasil, Rio de Janeiro, 12 abr. 1945, CDO, Maço 42.942, p. 7. 348 Ibid. p. 15. 349 Ibid. p. 15-16.

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emenda à Carta que defendia a representação permanente da América Latina no Conselho. Era, de novo, a candidatura indireta. Na visita que fez a Washington, após a Conferência de Chapultepec, Leão Velloso desmentiu enfaticamente que Stettinius houvesse prometido a Vargas um assento permanente para o Brasil, por ocasião do encontro que ambos tiveram em fevereiro de 1945. Isso de fato era verdadeiro. Como visto no Capítulo 3, em resposta a indagação de caráter geral feita por Vargas, Stettinius nada disse sobre o Brasil e se limitou a indicar que, desde Dumbarton Oaks, continuavam inalterados os planos para a composição do Conselho de Segurança. Em Washington, o chanceler brasileiro declarou a jornalistas que o tema não havia sido discutido em Petrópolis, acrescentando que podia afirmar isso com certeza por haver estado presente à palestra entre Vargas e Stettinius. Expressou que o Brasil não iria empenhar-se em campanha para conseguir um lugar efetivo no Conselho, mas trabalharia para que se tivesse no órgão “uma representação adequada de qualquer dos países da América Latina”. Sintomaticamente, na audiência que Roosevelt lhe concedeu na Casa Branca, Leão Velloso não levantou a possibilidade de criação da sexta cadeira permanente para a região nem a hipótese de que esta fosse eventualmente atribuída ao Brasil.350 Entrementes, a morte de Roosevelt, imediatamente sucedido pelo vice-presidente Harry Truman, em 12 de abril de 1945, representou duro golpe às aspirações brasileiras. São muitos os fatores estruturais que incidem sobre a política internacional, mas é também da natureza do processo político que, fora do plano abstrato, as relações no dia a dia sejam conduzidas por pessoas. Na diplomacia, indivíduos às vezes podem fazer a diferença. E no terreno das afinidades pessoais, o quadro existente no relacionamento com os Estados Unidos mudara completamente, em sentido desfavorável ao Brasil. Roosevelt, com seu continuado apoio a Vargas, havia sido grande simpatizante da causa brasileira. Dele partira a instrução para que Stettinius levantasse a questão do sexto assento permanente para seu “fiel aliado” na Conferência de Dumbarton Oaks. O ex-secretário de Estado Cordell Hull, que sempre enaltecera o “bom vizinho” e havia sido um dos mentores da aliança de guerra entre os dois países, estava agora acamado e sem condições de exercer influência. O embaixador norte-americano, Jefferson Caffery, que a tudo acompanhara do Rio de Janeiro, nos anos mais difíceis do conflito, havia sido recentemente substituído por Adolf Berle, que apenas começava sua missão no posto. Nessa lista poderia ser igualmente incluído Sumner Welles, fora do Departamento de Estado desde meados de 1943. Quando era subsecretário de Estado, Welles se havia empenhado em fazer do Brasil o principal aliado dos EUA na América do Sul, em perfeita sintonia de propósitos com Oswaldo Aranha, seu principal confidente em assuntos hemisféricos e outro que também saíra de cena. Truman e Stettinius, a nova dupla no comando, não tinham histórico de envolvimento com assuntos brasileiros. A alavancagem que o Brasil em algum momento veio a possuir, pelo menos nesse terreno, havia-se evaporado.351 350

“O chanceler Leão Velloso avistar-se-á hoje com o embaixador da URSS”. A Manhã, Rio de Janeiro, 14 mar. 1945, AHI Lata 1718, Maço 35.481; Martins a Vargas, telegrama confidencial, Washington, 13 mar. 1945, CPDOC, GV c 45.03.13. 351 GELLMAN, Irwin F. Good neighbor diplomacy: United States policies in Latin America, 1933-1945. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1979, p. 174; McCANN Jr., Frank D. A aliança Brasil-Estados Unidos, 19371945. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1995, p. 358.

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Sem funções no governo, mas ainda participante do debate político, Sumner Welles escrevia periodicamente para os jornais e, em artigo que teve ampla repercussão no Brasil e em outros países, “lançou” a candidatura brasileira: “Agora que se ofereceu um assento permanente à França, parece muito lógico que outro grande país, o Brasil, igualmente credenciado pela sua população, superfície e importância mundial, que cresce rapidamente, obtenha prerrogativas semelhantes”, defendeu. Na tentativa algo inusitada de se desvincular da ideia, Leão Velloso negou em entrevista à imprensa que esse fosse o pensamento do governo brasileiro. Depois de dizer que absolutamente não tratara do assunto em Chapultepec, ressaltou: “Não pleiteamos nunca um lugar para o Brasil na nova entidade, mas para a América Latina. E tanto poderá ser o Brasil como qualquer outro país americano”. Dias depois, Leão Velloso reiterou que cabia ao Conselho de Segurança reconhecer se o Brasil devia ou não pertencer ao órgão: “Só a ele compete decidir, nós não pedimos nada”.352 Também com o fito de evitar estardalhaço e não fazer crer que o Brasil seria candidato, iniciativas espontâneas de apoio de outros países eram recebidas com reservas. O Panamá queria propor expressamente o nome do Brasil como membro permanente, mas foi desaconselhado a fazê-lo pelo Itamaraty. A Costa Rica e a Venezuela indicaram que apoiavam o Brasil, que se limitou a agradecer e a prometer que a coordenação entre as respectivas delegações continuaria nas discussões sobre o Conselho de Segurança.353 Eram comuns notícias na imprensa internacional que colocavam o Brasil como “candidato a figurar entre os grandes”, “reconhecido como potência de primeira ordem” ou manchetes similares. Correspondente da Associated Press em Washington opinou que o Brasil não pensava que haveria de ser sempre uma “potência menor” e por isso julgava-se em condições de ocupar seu próprio espaço. Um observador militar brasileiro, que preferiu o anonimato, previu a evolução do poder aéreo e naval do país, que, por suas bases militares e posição geográfica, logo seria “o guardião da navegação no Atlântico Sul”, justificando assim sua participação no Conselho encarregado de zelar pela paz mundial.354 Em São Francisco, com a Conferência em plena atividade, Leão Velloso abordou a questão em conversa com Stettinius, em 3 de maio. O secretário de Estado lhe respondeu que o aumento dos lugares permanentes no Conselho não havia sido tratado ainda pelos chefes das delegações das quatro potências patrocinadoras. Segundo o relato que Leão Velloso transmitiu a Vargas, Stettinius prometeu provocar a discussão do assunto na próxima reunião dos quatro países e manter a delegação brasileira informada. “Prometeu, também, que na hipótese de ser resolvida a criação de um sexto lugar permanente no Conselho de Segurança, ele sugeriria que

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“A inclusão do Brasil entre as grandes potências”, Sumner Welles, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 mar. 1945, CDO, Maço 42.907; AHI Lata 1718, Maço 35.481; “Recordando a nossa atuação na Conferência de Chapultepec”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20 mar. 1945, AHI Lata 1708; Boletim de Imprensa nº 8, São Francisco, abr. 1945, CDO, Maço 42.966. 353 Paulo Hasslocher a Leão Velloso, telegrama, Panamá, 6 abr. 1945; Leão Velloso a Hasslocher, telegrama, Rio de Janeiro, 7 abr. 1945; CDO, 949.(00), Terminação da Guerra. Tratado de Paz, Maço 92.167; Carlos Martins a Leão Velloso, telegrama, Washington, 20 dez. 1944, AHI Lata 651. 354 “Brazilians charge lack of recognition”, The New York Times, Nova York, 12 out. 1944; “A sugestão brasileira (de um observador militar)”, O Jornal, Rio de Janeiro, 2 dez. 1944, AHI Lata 1718, Maço 35.481; cf. também artigos de jornais diversos, CDO, Maços 42.883, 42.897, 42.907, 42.908.

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fosse oferecido ao Brasil”.355 Essa promessa Stettinius nunca cumpriu. Para cumpri-la era preciso que em algum momento fosse suscitada novamente a hipótese do sexto assento, mas ele próprio não tinha a mais leve intenção de reabrir uma questão que considerava fechada desde Dumbarton Oaks. Ciente de que era preciso fazer mais para levar adiante a reivindicação, Leão Velloso preparou uma minuta de carta a Cordell Hull, que se encontrava internado no Hospital Naval, em Bethesda. Ele e Roosevelt, dizia o texto, eram nos Estados Unidos os que melhor conheciam “a lealdade da conduta brasileira nesta guerra”, desde que o continente americano fora atacado. O testemunho de Hull era, consequentemente, “inestimável”. O Brasil desejava manter na paz a mesma “franca cooperação” com os EUA. O que o Brasil havia feito na guerra e o que poderia fazer no futuro para as Américas e para o mundo “merecia reconhecimento”. Tendo em vista a colaboração brasileira na defesa do Atlântico e na ligação com a África, era de se prever que o papel do país no futuro sistema de segurança mundial seria “ainda mais acentuado”. A carta, porém, não foi expedida. Talvez o chefe da delegação brasileira houvesse chegado à conclusão de que a iniciativa não teria muito futuro. Há meses afastado do Departamento de Estado, Hull estava muito longe do centro das decisões e não tinha condições nem mesmo físicas de intervir em favor do Brasil.356 Nesse ínterim, diversas emendas vinham sendo discutidas no comitê 1 (estrutura e procedimentos) da terceira comissão (Conselho de Segurança). Como já mencionado, o Brasil solicitou um assento permanente para a América Latina. Costa Rica, Paraguai e República Dominicana eram a favor de mais um lugar permanente para as Repúblicas americanas no Conselho, além daquele a ser ocupado pelos EUA. O México reiterou a fórmula que apresentara em Chapultepec: extinção da categoria de membro permanente, a ser substituída pela eleição, a cada intervalo de oito anos, de seis membros semipermanentes. No primeiro mandato de oito anos, esses seis países seriam EUA, Grã-Bretanha, URSS, China, França e uma República latinoamericana. A posição do México, contudo, evoluiu durante a Conferência, como a de tantos outros países. Primeiro, a delegação mexicana indicou que aceitaria a existência de membros permanentes se estes fossem escolhidos pela Assembleia Geral. Depois, admitiu retirar sua emenda relativa aos seis assentos semipermanentes se ficasse expressamente consignado na Carta que os membros permanentes seriam “os Estados que têm a maior responsabilidade pela manutenção da paz”. Finalmente, rendeu-se à indicação dos P-5, sem menção na Carta a critérios ou razões para a escolha daquelas potências.357 Uma questão encerrada Em 8 de maio, os delegados interromperam momentaneamente as negociações para celebrar o Dia da Vitória das forças aliadas na Europa. O júbilo tomou conta de muitas capitais do mundo. Do Rio de Janeiro, embalado pela notícia feliz, Vargas manifestou sua expectativa de 355

Leão Velloso a Vargas, telegrama secreto, São Francisco, 3 maio 1945, CDO, Pasta 602 (04) ONU Diversos 1945-1957; CPDOC, GV c 45.04.30. 356 Leão Velloso a Cordell Hull, minuta de carta não expedida, São Francisco, 5 maio 1945, CDO, Maço 42.999. 357 Documents of the United Nations Conference on International Organization, San Francisco, 1945 [UNCIO]. Nova York: United Nations Information Organization, 1945, vol. XI, p. 107-109, 253-254, 289 e 762-763.

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que o Brasil obtivesse um assento permanente. Em curto telegrama a Leão Velloso, o primeiro que o presidente brasileiro enviava ao chefe da delegação sobre assuntos da Conferência, Vargas parecia triunfante: “Nosso povo, desde ontem, festeja com entusiasmo a vitória comum. Pelas nossas bases milhares de aviões começarão, em breve, a passar em trânsito da Europa para a Ásia. Parece justo o reconhecimento nessa Conferência do valor da nossa colaboração e sacrifício, assegurando-nos um lugar permanente no Conselho”.358 Ao acusar recebimento da mensagem, Leão Velloso logo indicou que daria conhecimento a Stettinius do telegrama presidencial, a seu ver uma maneira de mostrar ao secretário de Estado que a aspiração brasileira partia, em primeiro lugar, do próprio chefe da nação. Aproveitou para prestar contas a Vargas de suas gestões em prol do assento permanente desde sua chegada a São Francisco: “Conheço a natural expectativa do povo brasileiro e, por conseguinte, essa tem sido a minha principal preocupação”. Mencionou a promessa de Stettinius de apoiar o Brasil na hipótese de ser aumentado o número de cadeiras no Conselho. Em sondagem junto ao secretário do Exterior britânico, Anthony Eden, este lhe dissera “com toda a franqueza” que era pessoalmente contrário a incluir novos membros no referido órgão. A justificativa da Grã-Bretanha era sempre a mesma: a necessidade de um Conselho pouco numeroso para que este fosse rápido e “eficiente” nas suas deliberações. Contatos com a delegação do Canadá, que também desejaria, “com toda a razão, um lugar idêntico para o seu país”, apontavam para possível apoio ao Brasil. E prosseguiu: Quanto aos países americanos, estou informado de que o México, e tenho a impressão de que também o Chile, se opõem terminantemente à pretensão do Brasil, ao contrário da Venezuela, cujo ministro das Relações Exteriores me declarou espontaneamente que o seu país considerava que o Brasil devia ter uma posição preponderante na América e que, por conseguinte, nos era inteiramente favorável na questão da permanência no Conselho de Segurança. Os demais, com exceção de Costa Rica e Panamá, não me inspiram confiança.

Em conclusão, parecia a Leão Velloso que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, em princípio, haviam considerado favoravelmente a hipótese da concessão de assentos permanentes ao Brasil e ao Canadá. “Depois hesitaram e parece que recuaram com receio de que a União Soviética pedisse a criação de um terceiro lugar para um dos seus satélites”. Essa seria a situação “à hora presente”. Leão Velloso finalizou: O assunto será tratado proximamente de maneira concreta e ficará esclarecido. Peço vênia para dizer a Vossa Excelência que acho que, em qualquer hipótese, podemos aceitar que nos coloquem na mesma posição que o Canadá, o qual, além do grande papel que desempenhou na guerra, tem sido de uma perfeita lealdade para conosco. Não podemos, porém, de maneira nenhuma, aceitar nos coloquem no 359 mesmo nível do México.

358

Vargas a Leão Velloso, telegrama reservado no 1, Rio de Janeiro, 8 maio 1945, CPDOC, GV c 45.04.30. O arquivo do Itamaraty guarda uma versão ligeiramente diferente do mesmo telegrama: “O nosso povo desde ontem festeja, com grande entusiasmo, a vitória comum. Pelas nossas bases milhares de aviões começarão, em breve, a passar para a Ásia. Parece-me justo o reconhecimento nessa Conferência do valor, da colaboração e do sacrifício do Brasil, assegurando-nos um lugar permanente no Conselho”. CDO, Maço 42.978. 359 Leão Velloso a Vargas, telegrama secreto, São Francisco, 10 maio 1945, CDO, Pasta 602 (04) ONU Diversos 1945-1957; CPDOC, GV c 45.04.30.

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A suposição de que os canadenses eram aliados na busca pela cadeira permanente, vale ressaltar, não era de todo correta. O Canadá não nutria simpatias pelo pleito brasileiro e tampouco aspirava a um “assento permanente canadense”, o que, ademais, a Grã-Bretanha não via com favor. O esforço de Londres, coordenado em consultas com os Domínios, visava a garantir desde o começo que um assento não permanente fosse sempre reservado à Comunidade Britânica. Nesse sentido, o Canadá introduziu nas suas propostas o “princípio funcional” da representação no Conselho, que deveria permitir eleições mais frequentes para certas potências médias que aliassem “poder e responsabilidade”, ou seja, fossem mais capazes de contribuir efetivamente para a manutenção da paz e da segurança internacionais, em comparação com Estados pequenos de parcos recursos.360 Para corresponder aos desejos expressos por Vargas, Leão Velloso escreveu uma carta a Stettinius, em 14 de maio, referindo-se de modo explícito e formal ao pleito brasileiro por um posto permanente. Lembrou da cópia que enviara a Stettinius do telegrama do presidente, com o alto parecer de Vargas sobre a questão. “Esse telegrama”, afirmou, “era a confirmação do que eu lhe dissera pessoalmente sobre a expectativa do povo brasileiro a esse respeito”. Salientou que a contribuição militar do Brasil para a guerra, cujo valor havia sido sempre reconhecido pelos Estados Unidos, justificava “plenamente” essa aspiração: A nossa contribuição consistiu, como é do conhecimento das autoridades militares, navais e aéreas americanas, na cessão de bases para o tráfego aéreo das forças dos Estados Unidos; e das nações aliadas, no patrulhamento do Atlântico Sul, e no envio de um corpo expedicionário à Europa, incorporado ao Exército do general Clark. Quando estivemos juntos em Trinidad, em caminho para a Conferência do México, tivemos o ensejo de ver, naquela base naval, o pavilhão brasileiro figurando no mar, à proa de embarcações de guerra brasileiras, ao lado do pavilhão americano, numa fraternidade de armas deveras emocionante.

Leão Velloso recordou ainda outro argumento que ele próprio apresentara a Stettinius durante uma conversa pessoal na Opera House, em São Francisco: “Eu lhe disse que a guerra demonstrara aos Estados Unidos e aos aliados a necessidade de nossa cooperação militar e que, com o progresso que farão as armas de agressão, a nossa situação geográfica conferia ao Brasil uma posição-chave na futura organização de segurança mundial”. Assim, aduziu o chanceler brasileiro, não era “por uma questão vã do prestígio que ao Brasil parece justo que lhe seja reservado um lugar especial nessa mesma organização”. E insistiu na ideia de que negar esse lugar causaria frustração no Brasil, com indesejáveis repercussões futuras: Não tenhamos dúvida sobre a profunda decepção que seria para o povo brasileiro verificar que não lhe são reconhecidos os sacrifícios que, com o povo dos Estados Unidos e do Canadá, ele foi o único a fazer na América em favor da vitória das armas aliadas. Desejo muito chamar a sua atenção para a importância desse ponto psicológico. Os prenúncios a respeito da paz vindoura não são, com razão, dos mais otimistas. É preciso evitarmos que, no futuro, sob a ameaça de outra guerra, os inimigos dos Estados Unidos possam explorar no meu país, para nos impedir de cooperar outra vez para o triunfo de 360

HILDERBRAND, Robert C. Dumbarton Oaks: the origins of the United Nations and the search for postwar security. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1990, p. 280, nota 8; CHAPNICK, Adam. The middle power project: Canada and the founding of the United Nations. Vancouver: University of British Columbia, 2005, p. 79-88 e 102; SOWARD, Frederic H. & McINNIS, Edgar. Canada and the United Nations. Nova York: Manhattan Publishing Company, 1956, p. 10-27.

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suas armas e para a sua defesa, o argumento de que o povo americano não soube dar o seu justo valor 361 ao grande esforço que agora fizemos e à nossa contribuição para a vitória comum.

Leão Velloso procurou vincular seu pedido às relações amistosas que ele próprio vinha cultivando entre os dois países: “Há três anos, como secretário-geral e como ministro interino das Relações Exteriores, tenho trabalhado com sinceridade e entusiasmo no interesse da amizade e da íntima cooperação que deve haver entre o Brasil e os Estados Unidos. Os representantes diplomáticos americanos no Brasil são testemunhas disso. O sentimento que me anima, dirigindo-lhe esta carta, é a preocupação de conservar, sem a mais leve alteração, as excelentes relações que felizmente existem entre os nossos países”.362 A carta de resposta de Stettinius tardaria a chegar, mas, antes disso, é possível que Leão Velloso haja sido avisado verbalmente por algum delegado norte-americano, no mesmo dia, da impossibilidade de atender à reivindicação do Brasil. Afinal, na sétima reunião do comitê 1 da terceira comissão, que também teve lugar em 14 de maio, à noite, a delegação brasileira retirou sua proposta relativa à representação permanente da América Latina no Conselho de Segurança, visto que isso implicaria aumento na composição total do órgão. Como resultado, o comitê tomou a decisão de “não favorecer a criação de um sexto assento permanente representando a América Latina”.363 Em consonância com a diretriz básica adotada, de não expor o Brasil a situações embaraçosas que denotassem qualquer sombra de fiasco, a retirada da proposta pelos delegados brasileiros evitou que seu texto fosse levado a votação e, com grande probabilidade, sofresse uma derrota. Este foi o dia em que, definitivamente, o Brasil “jogou a toalha” e considerou irrealizável a obtenção do assento permanente. Abandonada a proposição em favor da representação permanente latino-americana, o comitê dava o assunto por encerrado e, depois de submetido seu relatório à terceira comissão, não havia mais espaço na ordem dos trabalhos para reconsiderar temas fechados. Insistir seria inútil. E dada a discrição que a delegação brasileira preconizava para si mesma, como norma de conduta na Conferência, as chances de que isso acontecesse eram extremamente remotas. Poucos dias depois, em 19 de maio, Leão Velloso informou Vargas da carta que havia dirigido a Stettinius “para obrigá-lo a me dar uma resposta concreta por escrito”. A pretensão brasileira se baseava tanto na cooperação que havia sido prestada na guerra quanto na importância que se atribuía à posição do país no futuro plano de segurança mundial. Para agregar dramaticidade ao pedido de apoio, deixou entrever a possibilidade de eventuais “consequências, sobre as nossas relações com os Estados Unidos, da nossa decepção caso não fôssemos atendidos”. Mas Leão Velloso tinha consciência das dificuldades e, tudo indica, já sabia que a resposta norte-americana era negativa: Estou pronto a conceder que os Estados Unidos, cujas relações com a União Soviética atravessam uma fase crítica, tenham motivos, por causa disso, para não querer aumentar o número de lugares permanentes no Conselho, mas quero que isso me seja dito em um documento que possamos utilizar oportunamente. Fui procurado por alguns delegados das Repúblicas americanas menores, desejosos de 361

Leão Velloso a Stettinius, carta, São Francisco, 14 maio 1945, CDO, Maço 42.982. Ibid. 363 Relatório Resumido da Sétima Reunião do Comitê III/1, Prédio dos Veteranos, Sala 223, 14 maio 1945, 8:45pm. UNCIO, 1945, op. cit. vol. XI, p. 290. 362

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tomarem a iniciativa de nos ser concedido um lugar permanente, mas, não podendo contar com a unanimidade das nações do continente, tenho-os contido, para não expor publicamente o Brasil a um fracasso.

Leão Velloso observou que reinava descontentamento entre os países médios e pequenos presentes à Conferência, “devido ao modo prepotente como, segundo era de prever, os grandes estão conduzindo os trabalhos”. Algumas delegações, segundo ele, já falavam em retirarse da Conferência sem assinar a Carta das Nações Unidas, cuja forma final seria “muito provavelmente” o plano inicial de Dumbarton Oaks com as emendas introduzidas pelas mesmas quatro potências, “embora nessas emendas elas tenham procurado atender a algumas sugestões apresentadas pelas outras nações”.364 Vargas aprovou a démarche e o tom geral da atuação de Leão Velloso nos temas mais espinhosos que vinham sendo debatidos até aquele momento: “Estou de acordo com a atitude discreta e cautelosa que tem Vossa Excelência seguido nessa Conferência”.365 O presidente brasileiro não voltaria mais a tocar no assunto do assento permanente. Em 23 de maio, Leão Velloso e Carlos Martins conversaram com Nelson Rockefeller, secretário de Estado Assistente para as Repúblicas Americanas. O delegado norte-americano havia acabado de receber de Washington um telefonema de Stettinius, que lá se encontrava para tratar do andamento da Conferência com o presidente Truman. Rockefeller adiantou, com base no que Stettinius ouvira de Truman, que não haveria aumento do número de cadeiras permanentes. Em compensação, o Brasil podia contar com o apoio norte-americano a um assento não permanente com mandato de dois anos. Leão Velloso se apressou em comunicar a decisão a Vargas: Não nos será possível obter o lugar permanente pela razão que já expus a Vossa Excelência, isto é, a relutância das quatro potências em aumentar o número dos assentos do Conselho de Segurança. Teremos no mesmo Conselho, com o apoio dos Estados Unidos, um lugar não permanente por dois anos, quando a Assembleia proceder à eleição dos lugares dessa categoria, ao passo que o México ou outro país latino-americano será eleito apenas por um ano.

No mesmo telegrama, Leão Velloso salientou que haveria outras compensações, em particular a iniciativa que Truman em breve tomaria de propor o Rio de Janeiro como sede da próxima Conferência das Repúblicas americanas, em outubro de 1945, destinada a concluir o tratado substitutivo da Ata de Chapultepec (cf. Capítulo 3). Além disso, Truman também iria adotar as “necessárias medidas para o prosseguimento e aceleração do nosso pacto mútuo de assistência militar”. Essa assistência militar estava ameaçada pela cessação da Lei de Empréstimo e Arrendamento, situação que seria resolvida com a declaração de guerra do Brasil contra o Japão.366 Em conversa no dia seguinte com o embaixador Adolf Berle, Vargas tratou de alguns

364

Leão Velloso a Vargas, telegrama secreto, São Francisco, 19 maio 1945, CDO, Pasta 602 (04) ONU Diversos 1945-1957; CPDOC, GV c 45.04.30. 365 Vargas a Leão Velloso, telegrama confidencial, Rio de Janeiro, 21 maio 1945, CPDOC, GV c 45.04.30. 366 Leão Velloso a Vargas, telegrama secreto, São Francisco, 23 maio 1945, CDO, Maço 42.976 e Pasta 602 (04) ONU Diversos 1945-1957; CPDOC, GV c 45.04.30.

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assuntos bilaterais, mas, quanto a São Francisco, nada mencionou sobre o assento permanente, mesmo que fosse para comentar a decisão de Truman.367 A carta de resposta de Stettinius, agora mera formalidade, finalmente chegou em 13 de junho, reiterando – como esperado – que não haveria aumento dos assentos permanentes. O secretário de Estado assegurou Leão Velloso de que a aspiração do Brasil havia recebido “nossa mais simpática consideração” e havia sido “plenamente discutida e explorada” pelos Estados Unidos. O governo norte-americano tinha consciência da “cooperação cordial e completa” que existia entre os dois países, particularmente durante os recentes anos de conflito. Estava ciente também da “grande contribuição” que o Brasil havia dado na guerra contra o Eixo e da posição que o país iria assumir no futuro em apoio e colaboração à organização mundial e ao sistema interamericano para a manutenção da paz e da segurança internacionais. Ao mesmo tempo, continuou, as nações que patrocinavam a Conferência “sentiam a necessidade de envidar todos os esforços possíveis para preservar a flexibilidade da organização mundial” e, com esse objetivo, concluíram que era melhor “não haver mais designação permanente de assentos no Conselho de Segurança”. Desse modo, os assentos remanescentes ainda não preenchidos deveriam ser abertos ao processo eletivo. Ao concluir sua missiva, Stettinius procurou tranquilizar Leão Velloso e prometeu apoio à eleição do Brasil como membro não permanente: Eu espero muito sinceramente que você e o presidente Vargas e o povo brasileiro entenderão que esta decisão de modo algum reflete qualquer falta de consideração à importância da contribuição que o Brasil fez e continuará a fazer nos próximos anos à causa da paz e da segurança mundiais. Representa ao contrário uma visão circunstanciada dos melhores interesses da organização que nós aqui estamos conjuntamente nos esforçando para criar. Desejo acrescentar em nome da delegação dos Estados Unidos nossa própria esperança e expectativa de que o Brasil será eleito como um dos membros 368 iniciais [não permanentes] do Conselho de Segurança.

Desinteressado do assunto, o governo norte-americano parecia querer responsabilizar as outras potências que se opunham a um Conselho demasiadamente alargado. A Grã-Bretanha se encaixava nesse perfil, sustentando que um órgão com poucos membros seria “mais eficaz”. Mas a oposição britânica não se pautava apenas por isso. É de se notar que esse ponto ótimo de “eficiência” foi atingido precisamente depois que Churchill conseguiu incluir a França entre os cinco membros permanentes. Como já dito anteriormente, era politicamente difícil à GrãBretanha apoiar o Brasil se isso significasse a exclusão de seus Domínios, como Canadá ou Austrália. De 4 a 13 de abril de 1945, representantes da Comunidade Britânica se reuniram em Londres para conversações preparatórias a São Francisco. Era uma iniciativa com valor semelhante à que teve a Conferência de Chapultepec para as Américas. O governo britânico seguramente enfrentaria resistências se decepcionasse seus aliados de guerra e parceiros da Commonwealth no tema-chave da composição do Conselho de Segurança. Explicação mais singela, porém, válida também para a oposição soviética, consiste em reconhecer que o Brasil era indesejado simplesmente porque, uma vez no Conselho, representaria possivelmente mais um “voto certo” a favor dos Estados Unidos. 367

Berle a Stettinius, memorando, Rio de Janeiro, 24 maio 1945, Berle Papers, Box 76, Memoranda Dec. 1944-April 1945. 368 Stettinius a Leão Velloso, carta, São Francisco, 13 jun. 1945, CDO, Maço 42.918.

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Um artigo anônimo publicado no Jornal do Commercio, certamente escrito por alguém que estava em São Francisco e era ligado à delegação brasileira, tentou atribuir à União Soviética a responsabilidade maior pela decisão final de não se aumentar o número de membros permanentes. O confronto entre Molotov e o bloco latino-americano sobre o ingresso da Argentina nas Nações Unidas, logo nos primeiros dias da Conferência, teria tido como resultado a convicção do “inevitável veto soviético” a um assento permanente para a América Latina. Além disso, a mesma firmeza exibida pelos latino-americanos na defesa da Argentina não se verificou nos debates sobre a estrutura do Conselho de Segurança. O artigo apontou que a falta de unanimidade entre os países da região havia enfraquecido “enormemente” a tese de se dar representação permanente à América Latina. Comentou o articulista: Pode-se dizer que a culpa de não ter sido dado um lugar permanente no Conselho à América Latina foi devido à ação dos próprios países latino-americanos, forçando a entrada da Argentina e, em seguida, dividindo seus pontos de vista na matéria. No caso da Argentina, provocaram a indisposição da Rússia, que, naquela ocasião, não estava inteiramente destituída de razão; dividindo-se, cindindo-se na questão 369 em si, tiraram à ideia toda a força.

Agravando ainda mais a situação, tinha-se como “certo” que o Canadá, apoiado pela Grã-Bretanha, também aspirava a um posto permanente (wishful thinking que a delegação brasileira parecia acreditar com afinco). Escaldada pelo incidente argentino, a URSS teria ameaçado pressionar pela inclusão da Ucrânia, caso persistissem os pleitos do Brasil e do Canadá. Havia uma aritmética envolvida nesse cenário hipotético. Argumentava-se que para cada assento permanente adicional era preciso criar pelo menos mais um não permanente, a fim de manter a proporção originalmente desejada, com uma maioria de membros temporários. Se o Brasil e o Canadá fossem admitidos, o número de membros do Conselho deveria subir para 15. Se a URSS indicasse outro membro permanente (Ucrânia, Bielorússia, Polônia ou Tchecoslováquia), o número chegaria a 17 membros no total (oito permanentes e nove não permanentes). O risco de alargamento excessivo do órgão favorecia a posição daqueles países que, como a Grã-Bretanha, preferiam um Conselho de composição mais restrita. Em conversa com delegado brasileiro não especificado, que poderia ter sido o próprio autor do artigo no Jornal do Commercio, um delegado soviético (tampouco conhecido) disse que nomear um membro permanente latino-americano seria “uma injustiça para com a Ucrânia”. Opinou que o candidato natural da América Latina seria o Brasil, o maior e mais importante país da região em tamanho, população, produção e parte na guerra. Pois a Ucrânia, explicou, além de vasto território e população (65 milhões habitantes) maior que a do Brasil (então com 45 milhões), teria volume superior de produção e feito um esforço de guerra pelo menos dez vezes maior. E exclamava: “Veja que injustiça faria a Conferência se escolhesse um país da América Latina para um dos lugares permanentes e deixasse de fora a Ucrânia!”. O articulista que fez esse relato concluiu que a questão se tornara impossível de resolver e louvou “o tato e a sabedoria” da diplomacia brasileira no caso:

369

“A Conferência de São Francisco: o aumento dos lugares permanentes no Conselho de Segurança”, artigo especial para o Jornal do Commercio, sem indicação de autor, Rio de Janeiro, 20 jun. 1945, CDO, Maço 42.908.

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[...] Se tivéssemos seguido o ímpeto da primeira hora, se mais tarde, animados pelo apoio do presidente Roosevelt e da delegação americana, nos tivéssemos afoitado a apresentar francamente a nossa candidatura, teríamos de amargar uma recusa sem podermos culpar os homens, mas os acontecimentos. Se considerarmos bem os interesses em jogo, a febre de publicidade, a agitação reinante em torno dos problemas da Conferência, temos de convir que foi realmente extraordinário que em todo esse tempo não pronunciasse o nome do Brasil, como candidato a um lugar permanente. Tudo correu com seus altos e baixos, todas as modalidades do caso foram seguidas com prudência, discretamente, abrindo-nos a quem devíamos, reservando-nos em geral, e quando a questão teve o seu desfecho, no comitê III/1, e se votou definitivamente a composição do Conselho, o nome do Brasil não estava em causa e a decisão não o afetava senão como um Estado da comunidade latino-americana.

O artigo criticou especialmente a conduta soviética em São Francisco. A URSS revolucionária e comunista estaria atuando como “criadora de problemas”: A Rússia, por mais que se tenha querido disfarçar, está fazendo na Conferência de São Francisco o papel de um corpo estranho, incompreendido. Trouxe pontos de vista próprios, uma maneira especial de ver as coisas do Ocidente, o receio e a reserva de vinte anos de cordão sanitário e uma série de problemas peculiares ligados à preservação de seu território e à segurança do Estado soviético. Trouxe também valores novos, isto é, gente surgida da revolução e da guerra, a quem pouco importavam os 370 processos e as concepções de antes.

Esse artigo, de fonte oficiosa, imputava o malogro da candidatura do Brasil sobretudo às objeções soviéticas e à desunião latino-americana em São Francisco. Entre esses dois fatores, sem excluir outros tantos, o maior temor brasileiro, mais do que a intransigência de Moscou, era a possibilidade de reação negativa dos países latino-americanos. Isso se dava em parte pelo fato de que o Brasil se ressentia da inexistência de relação mais sólida com os vizinhos, a começar pela América do Sul. Ao dar prioridade incontestável à aliança com os Estados Unidos e pleitear um tratamento diferenciado dentro do contexto americano, não era de se surpreender que a América Latina acabasse relegada a plano secundário. O enquadramento hemisférico da política externa, no plano conceitual, e a ausência de iniciativas de aproximação com a vizinhança imediata, no plano concreto, representavam entraves à construção de uma parceria regional realmente efetiva. Pode-se sugerir que, ao tentar cultivar por todos os meios uma “relação especial” com os EUA, o Brasil pagava um preço político entre seus pares na sua própria região. A consciência da fragilidade da presença brasileira em seu entorno geográfico gerava apreensão no Itamaraty diante da hipótese de lançamento de campanha ostensiva a um lugar no órgão central da ONU. A solução diplomática que se perseguiu (reivindicar um assento permanente para a América Latina, ou seja, a candidatura indireta) foi a maneira de manter o tema em pauta sem o risco de “amargar uma recusa”, que poderia resultar em “desprestígio” para o Brasil, expondo a ataques o flanco débil de sua política externa. Da mesma forma, a atitude da delegação brasileira se explica em grande medida pela percepção de que se tratava, desde o início, de uma “questão encerrada”. Na avaliação que fez Leão Velloso, em seu relatório sobre a Conferência, as grandes potências não iriam ceder nem alterar a composição já decidida do quadro permanente do Conselho:

370

Ibid.

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A Conferência estendeu formalmente à França um dos cinco lugares permanentes no Conselho de Segurança, em cumprimento do que ficara assentado em Dumbarton Oaks entre os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, a União Soviética e a China, autores iniciais do Plano. Não descurei, entretanto, de sondar a possibilidade para o Brasil, embora se tratasse visivelmente de uma questão encerrada, de obter idêntico tratamento. Verifiquei logo que as quatro potências acima referidas não se mostravam dispostas, por prudência, a permitir que em São Francisco fosse reaberta a discussão em torno do aumento do número dos lugares permanentes do Conselho de Segurança. Assim, apesar de instado por 371 delegados de algumas Repúblicas latino-americanas, achei melhor abster-me. [grifos meus]

No relatório, Leão Velloso cita a carta dirigida a Stettinius em 14 de maio de 1945, na qual se referiu ao valor da cooperação do Brasil para a vitória das forças aliadas. A “decepção que poderia causar à opinião pública a exclusão do Brasil”, argumentava a carta, poderia ter “graves efeitos sobre a nossa atitude, na eventualidade futura de outro conflito mundial”. Leão Velloso considerou bem-sucedida essa démarche em virtude do “valioso apoio” obtido dos EUA para a posterior eleição do Brasil a um dos assentos não permanentes do Conselho de Segurança. Discrição, prudência e abstenção resumem bem a conduta brasileira, que teria sido ainda mais contida se não fosse pela necessidade de dar alguma satisfação às expectativas de Vargas. O presidente brasileiro, no entanto, estava muito mais preocupado com seu futuro político no Brasil e, distante das sutilezas das negociações multilaterais, não se engajou a fundo na busca do assento permanente. Talvez com Roosevelt ainda no poder Vargas pudesse haver tentado algo. Com a assunção de Truman, sequer se deu ao trabalho de pensá-lo. O ônus recaiu quase todo sobre Leão Velloso e seus colaboradores. Ironicamente, seria esperar muito do ministro interino que Vargas nunca quis confirmar no cargo ou dar força suficiente para falar com a mesma autoridade de seu predecessor, Oswaldo Aranha. Não obstante, seria exercício meramente especulativo imaginar se outra conjunção de fatores teria resultado em sucesso para o Brasil. A questão, a um tempo complexa e multifacetada, afetando interesses diversos na reorganização do mundo de pós-guerra, transcendia a esfera da ação individual ou personalística. O Brasil apostou na intercessão norteamericana como o caminho mais curto para alcançar seu objetivo. Essa estratégia falhou. Mas mesmo que, por hipótese, os Estados Unidos estivessem fortemente empenhados em apoiar a aspiração brasileira em 1945, não haveria aí garantia alguma de êxito, pois a nenhum país isoladamente era dado controlar o que seria feito do Conselho de Segurança, ainda que se tratasse da mais poderosa nação do planeta. A posição do governo norte-americano, aliás, evoluiu de 1944 para 1945, com marcante queda no interesse em reforçar o Brasil como seu principal aliado na América do Sul e no Hemisfério Ocidental. Essa linha havia sido seguida por Roosevelt em Dumbarton Oaks. Quando a Conferência de Yalta teve lugar, a conjuntura já havia em parte mudado. A guerra se aproximava do fim. O perigo maior havia passado. Ficara para trás a importância estratégica que o Brasil teve na luta contra o Eixo (bases aéreas no Nordeste) ou na contenção da Argentina “antiamericana”. Quando Truman assume, não era mais imperativo cultivar a amizade de Vargas ou tolerar abusos de seu regime personalista. Com o processo de redemocratização em marcha acelerada no país, Washington progressivamente irá “abandonar” Vargas, finalmente deposto em 371

Relatório da delegação do Brasil à Conferência das Nações Unidas para a Organização Internacional. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores, 1945, mimeo, p. 8. Biblioteca do MRE.

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outubro de 1945. Assim, quando mais o governo brasileiro ansiava pelo reconhecimento de sua lealdade, colhendo os frutos da relação diferenciada que pensava manter, os Estados Unidos já não privilegiavam o Brasil como antes. Este era só o início do desencantamento. Somente depois ficaria claro que o apoio norte-americano ao Brasil, no contexto da Segunda Guerra Mundial, tinha limites em termos de profundidade (não delegar atributos de hegemonia na América do Sul) e duração no tempo (conjuntura de polarização internacional e desejo de acuar a neutra Argentina). No pós-guerra, os Estados Unidos orientarão seus interesses segundo uma agenda global (Guerra Fria) e vão tentar restabelecer o equilíbrio na América do Sul, evitando privilegiar parceiros e tratando de manter a região firmemente sob sua órbita de influência. O Brasil, por sua vez, esperava continuar recebendo compensações dos EUA e tinha grandes expectativas a respeito. A dissonância de percepções e objetivos levará à frustração do governo Dutra após 1946, o que Gerson Moura bem definiu como “alinhamento sem recompensa”. Na verdade, o alinhamento é anterior a Dutra e começa no Estado Novo. Vargas, nesse sentido, será o primeiro a experimentar a amarga sensação, em 1945, de que a “relação especial” entre os dois países não era a panaceia para os problemas brasileiros.372 Tentativas de emendar a Carta Enquanto era inaugurada a Conferência de São Francisco, em 25 de abril de 1945, com a promessa de um mundo mais pacífico, no centro da Europa outro acontecimento de notável simbolismo também assinalava o advento de novos tempos. Exatamente no mesmo dia, tropas norte-americanas e soviéticas se encontravam em Torgau, no rio Elba, ao sul de Berlim, unindo pela primeira vez as frentes ocidental e oriental. Não ocorria ali somente o encontro das duas futuras superpotências do pós-guerra. O vazio produzido pela derrota da Alemanha significava o desaparecimento do inimigo comum que havia sido a razão de ser da aliança de guerra. As perguntas se entrelaçavam, ainda sem resposta. Os vencedores no conflito seguiriam unidos na paz? Qual seria a sorte das relações Leste-Oeste? A ONU que surgiria de São Francisco cumpriria sua função maior de “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra”? A dinâmica guerra versus paz era vivenciada concretamente pelo Brasil nas suas duas dimensões: militar e diplomática. Após conquistar Monte Castelo, Castelnuovo e Montese, as tropas da Força Expedicionária Brasileira seguiam avançando no norte da Itália, com o apoio do 1º Grupo de Aviação de Caça “Senta a Pua”. Nos últimos dias de abril, começou a rendição da 148a Divisão de Infantaria alemã aos soldados da FEB, em Collecchio e Fornovo di Taro. O governo brasileiro comemorou a “esplêndida vitória das armas brasileiras” na Itália. Os “pesados sacrifícios” feitos na luta, repetiam os boletins oficiais, granjeavam prestígio ao Brasil. Acreditava-se que os êxitos militares dos pracinhas dariam impulso à atuação dos delegados brasileiros no front diplomático em São Francisco.373 No aspecto organizacional, a delegação brasileira indicou representantes para acompanhar todas as comissões e comitês. Leão Velloso distribuiu instruções reservadas aos 372

Cf. Capítulo 5 e MOURA, Gerson. O alinhamento sem recompensa: a política externa do governo Dutra. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, Textos CPDOC, 1990, mimeo. 373 Boletins de Imprensa nº 11 e 14, São Francisco, abr./maio 1945, CDO, Maço 42.966.

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delegados e assessores para preveni-los de que, caso fossem obrigados a se pronunciar de forma imprevista sobre determinado assunto, a orientação da delegação era de fortalecer a Assembleia Geral e a Corte Internacional de Justiça e, de modo geral, “votar sempre pela solução mais liberal”. Outro documento interno da delegação alertava: “Urge evitar debates ociosos, discussões inúteis e trabalhar com elevado espírito de colaboração”. Além de participar do Comitê de Direção, ao qual tinham acesso todos os chefes de delegações, o Brasil logrou fazer parte do Comitê Executivo, mais restrito, formado por 14 membros: as quatro potências patrocinadoras e a França, além de Austrália, Brasil, Canadá, Chile, Irã, Iugoslávia, México, Países Baixos e Tchecoslováquia.374 Um dos maiores congressos internacionais até então já realizados, a Conferência não era um encontro trivial, como bem o demonstrava a complexidade de sua parte logística. Mais de 3.500 pessoas, entre delegados, secretários e funcionários, acudiram àquela cidade californiana. Cerca de 80 aviões foram cedidos pelos governos dos EUA, URSS e Grã-Bretanha para ajudar a trazer representantes de todas as partes do mundo. Nove trens especiais transportaram delegados de outros pontos do país até o destino final. Mais de 30 hotéis e três clubes acomodaram os hóspedes e serviram de escritórios. Dois grandes edifícios do Centro Cívico, o Prédio dos Veteranos e a Opera House, foram reservados para abrigar as principais atividades oficiais. Para garantir o deslocamento dos delegados de um lugar a outro da cidade, uma frota de veículos foi colocada à disposição, incluindo 215 carros tipo sedan, 48 limusines particulares, 25 jipes do Exército e 50 ônibus da Marinha. Na área de imprensa, mas de 2.500 jornalistas foram acreditados para cobrir o evento. O secretariado da Conferência consistia de 1.058 pessoas, sem contar os militares norte-americanos e os trabalhadores voluntários. Mais de 120 tradutores e intérpretes se ocupavam de traduzir documentos e acompanhar as reuniões, de dia ou de noite.375 Cinco eram as línguas oficiais da Conferência: inglês, francês, espanhol, russo e chinês, sendo as duas primeiras idiomas de trabalho. Na primeira reunião da Comissão de Iniciativas, Leão Velloso solicitou que o português também fosse incluído como língua oficial, mas Stettinius replicou que, apesar de sua boa vontade, não o aconselhava para não alongar os trabalhos. Contrariado, Leão Velloso escreveria depois uma carta ao secretário de Estado para manifestar o seu pesar e chamar a atenção para dois pontos: que o português era falado pela maioria dos habitantes da América do Sul e que existiam “milhares de jovens brasileiros, cuja língua é a portuguesa, lutando e morrendo na Europa”.376 Na mesma reunião, Molotov insistiu para que a presidência da Conferência fosse compartilhada por um colegiado das quatro potências patrocinadoras, o que daria à União Soviética posição de influência considerável. A postura soviética, muitas vezes defendida rispidamente por seus delegados, ameaçou criar logo cedo um ponto de atrito. Os EUA temiam que o precedente afetasse arranjos posteriores, como a direção do Secretariado da organização. Por sugestão britânica, definiu-se que a presidência das reuniões caberia a um sistema de rodízio entre os quatro países, mas, como deferência ao país anfitrião, Stettinius presidiria o Comitê de Direção e o Comitê Executivo. Essa primeira divergência entre as grandes potências levou Leão 374

Para as instruções reservadas de Leão Velloso aos delegados e assessores, cf. CDO, Maços 42.945 e 42.996. “The story of the United Nations Conference on International Organization, 1945”. UN Chronicle, www.un.org, acesso em 20/11/2008. 376 Leão Velloso a Stettinius, carta, São Francisco, 27 abr. 1945, CDO, Maço 42.980. 375

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Velloso a comentar que, na opinião geral, a Conferência havia começado “sob maus auspícios”.377 Logo ficaria evidente que a grande clivagem política na Conferência de São Francisco haveria de ser entre os Cinco Grandes e “o resto”, isto é, todos os outros países que não seriam membros permanentes do Conselho de Segurança, chamados por galhofa de “45 Pequenos”. O relatório do Brasil apontou essa separação como uma das causas da lentidão dos trabalhos e das dificuldades enfrentadas, “grandes potências de um lado, médias e pequenas potências de outro, cada grupo dividido por choques de forças e interesses também inevitáveis”. Normalmente, só eram levados a votação os problemas já encaminhados segundo a conveniência das potências patrocinadoras. E como o texto-base da negociação era o projeto de Dumbarton Oaks, a exigência de maioria de dois terços para mudar aquelas propostas (entre as delegações presentes e votantes) representava patamar deveras elevado que favorecia, por inércia, a manutenção da versão original.378 A esperança dos “45 Pequenos” era fazer valer sua influência numérica para emendar a Carta. Em caso de confronto aberto, com o poder de seus votos, as potências menores poderiam inclusive fazer a Conferência naufragar ou sabotá-la se recusando a aceitar a essência do plano de Dumbarton Oaks. Na aposta de muitos analistas, contudo, havia pouca chance de que isso fosse de fato acontecer. Como escreveu um jornalista norte-americano: As nações pequenas aceitaram relutantemente a ideia de uma virtual ditadura mundial das grandes potências, pelo menos por enquanto, porque elas sabem que não podem ter uma organização mundial, em vista das condições da guerra e do presente estado do mundo em geral, sem deixar que os grandes a comandem. E os países pequenos querem muito uma organização mundial. Eles entendem que sua própria existência no futuro depende da cooperação internacional e que as nações agressoras em outra guerra mundial iriam subjugá-los. Por isso eles estão aderindo, mas buscando através de emendas podar o domínio das grandes nações tanto quanto possível e conseguir tudo o que puderem da Conferência na forma de planos para a cooperação econômica e social e a aceitação de ideias amplas 379 de justiça, direitos humanos e direito internacional.

Note-se que a França, embora fosse um dos P-5, não estava formalmente entre os patrocinadores da Conferência, descontente por não haver sido convidada para Dumbarton Oaks e Yalta. A postura inicial da delegação francesa em São Francisco, chefiada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Georges Bidault, mesclava sentimentos contraditórios de exclusão e aceitação. Depois de ensaiar certa resistência, aparentando pretender colocar-se como campeã dos direitos dos pequenos Estados, a França decidiu aderir plenamente ao grupo principal com assento permanente e veto no Conselho. Os Quatro Grandes, no entanto, precisavam primeiro decidir entre eles o que fazer exatamente. A espera deixou os delegados franceses inquietos. Uma assessora francesa mais espirituosa reclamou: “É muito enervante. Não sabemos se somos ou não 377

Leão Velloso a Vargas, telegrama, São Francisco, 27 abr. 1945, CDO, Maço 42.967; RUSSELL, Ruth B. A history of the United Nations Charter: the role of the United States, 1940-1945. Washington, DC: The Brookings Institution, 1958, p. 633-635. 378 Relatório da delegação do Brasil à Conferência das Nações Unidas para a Organização Internacional. op. cit. p. 4 e 7. 379 “Small countries gain wider role”, Russell Porter, The New York Times, Nova York, 7 maio 1945, NYT Archive, www.nytimes.com, acesso em 4/1/2010.

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uma grande potência. De manhã, a França é uma grande potência, mas à tarde deixou de ser uma. E então, no dia seguinte, é elevada de novo a esse pedestal”.380 Em 4 de maio, a França foi enfim convidada a participar das reuniões das quatro potências e aceitou. De Gaulle se convenceu das vantagens dessa posição para o papel mundial que desejava assegurar à França no pós-guerra, coerente com sua ambição de restaurar la grandeur perdida do país. Para o líder francês, a segurança coletiva prometida pela ONU era complementar às alianças bilaterais e regionais que a França mantinha, como o pacto francosoviético de 1944. O projeto gaullista também incluía fazer da França uma das potências ocupantes na Alemanha derrotada e restabelecer a autoridade de Paris sobre seu império colonial na Indochina e no Oriente Próximo, usando a força se necessário, como demonstrado no episódio da intervenção francesa no Líbano e na Síria, em maio de 1945. Os dois países haviam sido colocados sob mandato francês da Liga das Nações após a Primeira Guerra Mundial e sua independência recente ainda não estava consolidada. Tropas francesas remanescentes na região tentaram forçar uma recomposição das lideranças políticas locais e a França chegou a bombardear Damasco no dia 29 de maio.381 A intervenção francesa causou impacto muito negativo em São Francisco por colocar em evidência os efeitos potenciais do veto. Mostrava de modo dramático e momentoso que países menores, quando agredidos por um membro permanente, não tinham a garantia de poder contar com a proteção do Conselho de Segurança. Enquanto aviões franceses bombardeavam sua capital, o primeiro-ministro sírio, Faris al-Khury, participava da Conferência das Nações Unidas chefiando a delegação de seu país. Segundo o anedotário que ainda hoje é lembrado, disposto a mostrar publicamente seu desagravo, al-Khury se sentou de propósito na cadeira reservada ao embaixador francês, que protestou e exigiu que seu assento fosse desocupado. Em resposta, o representante sírio teria dito: “Você não pôde me tolerar por 10 míseros minutos porque eu estava sentado em um lugar que não era meu... Vocês têm estado em um país que não é seu por mais de 25 anos!” 382 A coalizão das potências menores na Conferência foi liderada por Austrália, Nova Zelândia, Canadá, Colômbia, Brasil, México, Países Baixos e, em menor grau, Bélgica (estas duas últimas consideradas “potências médias” sobretudo em função dos territórios coloniais que ainda possuíam). O bloco latino-americano era o mais numeroso (19 países) e teve papel ativo em diversas questões, a exemplo do grupo europeu.383 A Ásia, incluindo o Oriente Médio, formava um conjunto heterogêneo demais para ter uma articulação mais efetiva. Dominada pelo 380

GILDERSLEEVE, Virginia C. The making of the United Nations Charter. Nova York: Macmillam Company, 1954, p. 335. 381 Para maiores informações sobre a visão francesa, cf. SOUTOU, Georges-Henri. La France et la création de l’ONU, 1944-1946, http://www.diplomatie.gouv.fr/fr/IMG/pdf/ONU_gh_soutou.pdf, acesso em 24/5/2009; “France lining up with big powers”, The New York Times, Nova York, 25 abr. 1945, NYT Archive, www.nytimes.com, acesso em 4/1/2010. 382 Apud MOUBAYED, Sami. Remembering the 29th of May, http://www.mideastviews.com/print.php?art=122, acesso em 18/1/2010. 383 Visões de conjunto sobre a contribuição latino-americana à Conferência podem ser encontradas in VOLPE, Alfred Edward. Latin America at San Francisco: the aims, attitudes, and accomplishments of Latin America at the United Nations Conference on International Organization. Stanford University, PhD Dissertation, 1950; e HOUSTON, John A. Latin America in the United Nations. Nova York: Carnegie Endowment for International Peace, 1956, Capítulo 1.

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colonialismo, a África foi o grande continente ausente de São Francisco. Apenas quatro países africanos estiveram representados: África do Sul, Egito, Etiópia e Libéria.384 As potências médias tentaram buscar uma posição diferenciada na Conferência. De Ottawa, Freitas-Valle sugeriu um entendimento com o Canadá, cujo primeiro-ministro, Mackenzie King, havia defendido a ideia de uma representação no Conselho de Segurança condizente com a capacidade dos países de, comprovadamente, dar maior contribuição aos objetivos da nova organização. Força e responsabilidade, tanto quanto possível, deveriam coincidir. A Austrália adotou linha similar. Tratava-se de reconhecer que, além das grandes potências, havia países com recursos e vontade que mereciam consideração especial. A participação militar e econômica desses países nas duas guerras mundiais devia ser levada em conta na composição do Conselho, na forma de eleições regulares como membros não permanentes e maior acesso às deliberações do órgão sobre comprometimento de tropas, sanções e outras medidas para manter a paz e a segurança. O artigo 44 da Carta da ONU, de certo modo, procurou garantir minimamente esse acesso ao permitir que Estados não-membros do Conselho de Segurança, quando cedessem forças armadas à ONU, pudessem participar das decisões relativas ao emprego desses contingentes.385 O Brasil se solidarizou com o Canadá e a Austrália nesse particular. Segundo FreitasValle, que participou dos debates no comitê 1 da terceira comissão, “os países que haviam tomado parte efetiva na guerra mediam pelos sacrifícios que fizeram o tamanho dos que seriam chamados a fazer em caso de novo conflito e, portanto, deveriam figurar em postos de maior responsabilidade”. Os pequenos Estados, por sua vez, enfatizavam que as diferentes regiões deviam estar representadas no órgão máximo da organização. Para acomodar essas demandas, foram inseridos na Carta da ONU (artigo 23.1) dois critérios para a eleição dos membros não permanentes: a) contribuição dos Estados-membros à manutenção da paz e da segurança internacionais e aos outros propósitos da organização; e b) distribuição geográfica equitativa. Os critérios estabelecidos no artigo 23.1 partiram de uma proposta da Grã-Bretanha, sensível ao pleito dos Domínios britânicos. Entre os “outros propósitos da organização” estaria, especialmente, a contribuição financeira ao orçamento da ONU.386 O grupo das potências menores tentou igualmente expandir os poderes da Assembleia Geral, mas se chocou com a relutância das grandes potências, unidas no propósito de manter intacta a preponderância do Conselho de Segurança e evitar supostos conflitos de competência. O Senador Arthur Vandenberg (EUA) repetia sem descanso que os membros permanentes deviam merecer a “confiança absoluta” das pequenas nações, uma vez que haviam merecido essa mesma confiança para defendê-las contra os países agressores e ganhar a guerra. Os soviéticos, na mesma linha, só que mais impacientes, reclamavam da falta de “gratidão” dos Estados fracos, que deveriam “ser vistos e não ouvidos”. Carlos Martins, representante brasileiro na segunda 384

GIRAULT, René, et al. La loi des géants, 1941-1964. Paris: Masson, 1993, p. 76-82. Freitas-Valle a Leão Velloso, telegrama, Ottawa, 21 mar. 1945, CDO, Maço 42.892; “Memorandum on the position of small powers in the proposed world organization”, 13 mar. 1945, FDR Papers, President’s Secretary’s File, Box 168, United Nations, 1942-45. 386 HOLBRAAD, Carsten. Las potencias medias en la política internacional. México: Fondo de Cultura Económica, 1989, p. 70-82; RUSSELL. A history of the United Nations Charter. op. cit. p. 648-649; Relatório das atividades da III Comissão da Conferência e do Comitê de Coordenação, bem como da I Reunião da Comissão Preparatória das Nações Unidas, Ottawa, 9 jul. 1945, CDO, Maço 42.949. 385

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comissão, estimava que a posição brasileira, embora favorável a uma Assembleia mais atuante, devia ajustar-se ao rumo que tomavam as discussões e à “situação especial” em que se encontravam as potências patrocinadoras. Em consequência, a delegação brasileira buscou adequar suas demandas às circunstâncias e abrandou seu nível de ambição na matéria. “Essa atitude foi, aliás, a que terminou por ser adotada pela maioria das outras nações”, anotou Martins em seu relatório.387 A delegação soviética pressionou vigorosamente para restringir os temas que a Assembleia Geral poderia considerar, por temer ingerência nos assuntos internos da URSS ou críticas ao movimento comunista internacional. A proposta neozelandesa de permitir a discussão de “qualquer assunto dentro da esfera das relações internacionais” era abrangente demais para ser aceita. Como solução de compromisso, obteve-se o reconhecimento do direito da Assembleia Geral de discutir questões que estivessem “dentro das finalidades da Carta”, ou que se relacionassem com as atribuições e funções de seus órgãos, bem como de fazer recomendações a respeito (artigo 10). Esse direito, todavia, seria matizado pelo artigo 12 da Carta: enquanto o Conselho de Segurança estivesse exercendo suas funções em qualquer controvérsia ou situação, a Assembleia Geral não poderia fazer recomendação alguma sobre o tópico em exame, a menos que assim solicitada pelo Conselho.388 No comitê 3 (cooperação econômica e social) da segunda comissão, foi debatido o estabelecimento do Conselho Econômico e Social (ECOSOC). Esse novo órgão seria, na visão brasileira, um “reconhecimento amplo e definitivo da interdependência econômica das nações”. O Brasil atuou para dar ao ECOSOC “um caráter mais dinâmico”, a fim de impedir que sua preocupação principal fosse apenas manter determinado status quo econômico para os países desenvolvidos. Queria-se evitar que a atenção do Conselho se voltasse mais para a reconstrução econômica das nações devastadas pela guerra, deixando de lado as necessidades de desenvolvimento de outras áreas, como a América Latina. As intervenções brasileiras, apoiadas por outros países, resultaram na inclusão, no artigo 55 da Carta, de menção expressa ao favorecimento pela ONU de “níveis mais altos de vida, pleno emprego e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social”.389 Sobre esse artigo, a delegação dos EUA se mostrou apreensiva com a possibilidade de que os Estados-membros estivessem assumindo obrigações para a realização de certos propósitos enumerados na Carta. A expressão “pleno emprego”, por exemplo, tinha na época conotação específica, associada a políticas keynesianas de intervenção estatal na economia. O argumento esgrimido com mais frequência era o temor (fundado ou não) de que o Congresso norte-americano poderia objetar tais compromissos, sob a alegação de interferência da ONU nos assuntos internos do país. Como usual, “a delegação brasileira procurou não criar dificuldades 387

VOLPE. Latin America at San Francisco. op. cit. p. 168; Carlos Martins a Leão Velloso, ofício, Washington, 5 jul. 1945, CDO, Maço 42.949. 388 LUARD, Evan. A history of the United Nations: the years of Western domination, 1945-1955 (vol. I). Nova York: St. Martin’s Press, 1982, p. 54-56. 389 Para mais informações sobre as origens do ECOSOC e a contribuição do Brasil, cf. ALVES, José Ricardo da Costa Aguiar. O Conselho Econômico e Social das Nações Unidas: apreciação crítica das propostas de reforma. Subsídios para a atuação diplomática do Brasil. Brasília: Instituto Rio Branco, Tese do LIV Curso de Altos Estudos, 2009; Relatório da delegação do Brasil à Conferência das Nações Unidas para a Organização Internacional. op. cit. p. 15 e relatório alusivo ao 3º Comitê da 2ª Comissão.

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aos americanos, sempre que pôde fazê-lo, sem prejudicar os nossos interesses e tratou de cooperar, na medida do possível, com o Comitê, em prol do objetivo comum de criar um Conselho Econômico e Social suscetível de fazer obra útil”, conforme resumiu José de Alencar Netto, delegado que acompanhou os debates. O artigo 55 foi adotado sob a condição de que nada no Capítulo IX da Carta poderia ser interpretado como chancela à intromissão da organização nos temas de domínio reservado dos Estados.390 Em São Francisco, a maior parte do tempo foi devotada à apreciação das dezenas de emendas ao projeto de Dumbarton Oaks, que juntas somavam mais de 400 páginas de texto. Como muitas emendas tratavam dos mesmos assuntos ou eram refinamentos bem-vindos à proposta original, as potências patrocinadoras recolheram diversas sugestões e apresentaram, adicionalmente, 24 emendas conjuntas. Uma importante novidade foi a parte relativa ao sistema internacional de tutela, que não constava do projeto de 1944, em virtude das preocupações então levantadas pelos britânicos. O objetivo era colocar sob a autoridade da ONU territórios dependentes que pudessem ser administrados e fiscalizados até atingir o auto-governo ou a independência. A maior resistência proveio novamente da Grã-Bretanha, secundada pela França. As duas metrópoles imperiais se opunham com obstinação às ideias anticolonialistas, esposadas pelos Estados Unidos e outros países predispostos favoravelmente à autodeterminação dos povos. As disposições sobre o assunto na Carta, incluindo a organização do Conselho de Tutela, foram adotadas com base no acordo de Yalta, que deu caráter voluntário ao sistema e preservou os interesses das potências mandatárias, que poderiam ser elas mesmas administradoras dos territórios tutelados. Pelo artigo 77 da Carta ficou definido que o sistema de tutela seria aplicado aos territórios das seguintes categorias, que viessem a ser colocados sob tal sistema por meio de acordos de tutela: a) territórios que estivessem sob mandato; b) territórios separados de Estados inimigos em consequência da Segunda Guerra Mundial; e c) territórios voluntariamente colocados sob o sistema de tutela por Estados responsáveis pela sua administração. Na negociação do artigo 2 da Carta, referente aos princípios que deveriam reger a organização, o Brasil propôs emenda visando a incluir as medidas de “coerção econômica” na cláusula que recomendava a todos os Estados-membros evitar recorrer à ameaça ou ao uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado. A moção foi arquivada por pressão da delegação dos Estados Unidos. No que se refere ao princípio da não intervenção nos assuntos internos e externos dos Estados, advogado pelo Brasil desde a Conferência de Chapultepec, como parte integrante do patrimônio jurídico do sistema interamericano, a forma de sua incorporação à Carta foi considerada satisfatória do ponto de vista do governo brasileiro. O artigo 2.7 da Carta estabeleceu que nenhum dispositivo autorizaria a ONU a intervir em assuntos que dependessem essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigaria os Estados-membros a submeter tais assuntos a uma solução. Esse princípio, porém, não prejudicaria a aplicação das medidas coercitivas constantes do Capítulo VII da Carta.391 Outra emenda brasileira dizia textualmente: “Todos os membros da organização deverão esforçar-se por praticar a política do Bom Vizinho”. A justificativa apresentada mostrava 390

José de Alencar Netto a Leão Velloso, relatório, São Francisco, 20 jun. 1945, p. 13, CDO, Maço 42.948. TRINDADE, Antonio A. Cançado. Posições internacionais do Brasil no plano multilateral. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte: UFMG, nº 52, janeiro/1981, p. 150-153. 391

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o grau de devotamento que se tinha no Brasil à figura do falecido Roosevelt: “Esta doutrina simples, sã e profundamente moral deveria levar à eliminação da violência e da guerra como instrumentos de política internacional. As lições do presente conflito são a mais adequada ilustração de seu significado. A adoção deste princípio pela Conferência seria um merecido tributo à memória do grande internacionalista que o defendia”. Por sugestão de Leão Velloso, enviada por escrito a Stettinius, foi organizada uma homenagem in memoriam a Roosevelt em 12 de maio, no Parque Nacional de Muir Woods. O Preâmbulo da Carta, de certo modo, acolheu a emenda brasileira ao declarar que os povos das Nações Unidas estavam resolvidos a “praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos”. [grifos meus] 392 Convém insistir, uma vez mais, que a realidade da guerra em nenhum momento esteve dissociada dos trabalhos da Conferência. A assombrosa mobilização militar dos Aliados e os custos astronômicos envolvidos, inclusive em vidas humanas, sustentavam moralmente as demandas das grandes potências que estavam na linha de frente da luta contra o Eixo e queriam moldar a nova organização mundial segundo suas prioridades. O que fazer se o poder estava de facto nas mãos dos mais fortes? Crucial para os interesses das potências menores era a possibilidade de, uma vez aprovada a Carta, poder futuramente emendá-la em conjuntura mais favorável. Eventual aceitação a contragosto do veto no Conselho de Segurança, assunto tratado mais adiante neste Capítulo, poderia ser matizada politicamente com a promessa de reconsiderar a extensão do privilégio em período de tempo mais afastado do calor dos combates e da epopeia bélica que tomara conta do mundo desde 1939. Assim, com o propósito de “atenuar a rigidez do veto”, o Brasil propôs que se convocasse uma Conferência de revisão da Carta dentro do prazo de cinco anos, a contar da primeira reunião formal da organização. A emenda brasileira, que passou a ser conhecida nos corredores como “emenda Velloso”, previa um mecanismo de revisão quinquenal, a cargo da Assembleia Geral. A justificá-la estava o fato de que o plano de Dumbarton Oaks se referia apenas a emendas ocasionais, apresentadas de modo regular, nada mencionando sobre a possibilidade de uma revisão geral da Carta. Quando essa revisão ocorresse, de acordo com a proposta brasileira, bastaria uma maioria de dois terços dos votos para que as decisões fossem aprovadas (não haveria, portanto, poder de veto por parte de nenhum país). O Canadá apresentou emenda semelhante, sugerindo uma Conferência especial após dez anos da entrada em vigor da Carta. Coube a Bertha Lutz, representando o Brasil no comitê 2 (participação, emendas e secretariado) da primeira comissão (disposições gerais), defender o ponto de vista brasileiro. Como havia oposição decidida das grandes potências, as duas emendas, a brasileira e a canadense, foram fundidas em emenda única, a fim de reunir maior número de apoios.393 Na visão de Lutz, o Brasil se colocou “na vanguarda da batalha revisionista”. A delegada brasileira tinha presente que a convocação da Conferência de São Francisco, antes de terminarem as hostilidades, se dava em momento em que “as chagas da guerra, os ódios, as desconfianças ainda estavam bem vivos” e eram visíveis “as anomalias jurídicas profundas da Carta em confecção”. Por conta dessa singularidade, o contexto clamava pela “facilidade de 392

Emendas às propostas de Dumbarton Oaks submetidas pela delegação brasileira, 6 maio 1945, UNCIO, 1945, op. cit. vol. III. 393 Leão Velloso a Exteriores (Macedo Soares), telegrama, São Francisco, 18 jun. 1945, AHI 76/3/20; Relatório da delegação do Brasil à Conferência das Nações Unidas para a Organização Internacional. op. cit. p. 12-13.

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revisão”, porque isso daria mais flexibilidade ao documento final a ser adotado. Lutz observou que a possibilidade de emendar a Carta de modo abrangente não era combatida somente pelos Grandes: “Os países europeus pequenos, fiéis à orientação geral de conseguir um documento internacional que unisse as potências vitoriosas e as obrigasse a defender a paz, não queriam deixar margem a quaisquer modificações futuras. Opunham-se tenazmente à revisão total”. Posteriormente, alguns países latino-americanos aderiram ao grupo contrário à revisão propugnada pelo Brasil. Lutz atribuiu a defecção a pressões sobretudo dos Estados Unidos: “Houve várias tentativas, pouco hábeis e bastante rudes da parte de certos delegados norteamericanos, no sentido de obrigar as delegações latino-americanas a abandonarem a orientação revisionista. O México e a maioria das Repúblicas pequenas da América Central abandonaram a nossa companhia, filiando-se à corrente anti-revisionista”.394 As potências patrocinadoras viam com reservas a ideia de revisão ampla com prazo determinado e também propuseram uma emenda a respeito, segundo a qual uma Conferência geral deveria reunir-se em data e local a serem escolhidos pelo voto de três quartos da Assembleia Geral, conjuntamente com os votos de sete membros indiscriminados do Conselho de Segurança. A chave, neste caso, era a necessidade de ratificação das emendas à Carta por dois terços dos Estados-membros, incluindo todos os cinco membros permanentes, o que lhes conferia na prática a capacidade de vetar qualquer mudança. O princípio foi aplicado também às emendas simples, apresentadas a qualquer tempo, independentemente de uma Conferência geral. Como escreveu Lutz, a opinião das grandes potências, cujo poderio lhes dera a vitória na guerra, “prevalecia quase sempre”. O artigo 108 da Carta da ONU conferiu mais esta prerrogativa às quatro potências patrocinadoras e à França: “As emendas à presente Carta entrarão em vigor para todos os Membros das Nações Unidas, quando forem adotadas pelos votos de dois terços dos membros da Assembleia Geral e ratificada de acordo com os seus respectivos métodos constitucionais por dois terços dos Membros das Nações Unidas, inclusive todos os membros permanentes do Conselho de Segurança”. Em 15 de junho, a emenda conjunta Brasil-Canadá, que previa uma Conferência de revisão entre o quinto e o décimo ano após a vigência da Carta, foi levada a votação no comitê 2 da primeira comissão. Embora vencendo por 23 votos a 17, ficou aquém da maioria de dois terços entre as delegações presentes e votantes, indispensável à aprovação de qualquer emenda em São Francisco. Logo em seguida, outra derrota. A África do Sul havia apresentando proposta similar, que determinava a convocação de uma “Convenção Constituinte” em qualquer período até a ONU completar dez anos de existência. De novo se obteve a maioria dos votos, 28 a 17, insuficiente, porém, para perfazer os dois terços necessários (30 votos). A margem apertada decepcionou os países que tentavam criar um contrapeso à perpetuação indefinida do poder de veto. Descartada por apenas dois votos, a proposta foi substituída por uma moção, que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha apresentaram, a despeito da inconformidade da União Soviética, pela qual se estabelecia que, se não fosse realizada a Conferência de revisão até a décima reunião da Assembleia Geral, um item sobre o assunto deveria ser colocado na agenda da referida reunião.

394

Bertha Lutz a Leão Velloso, relatório, Nova York, 20 jul. 1945, p. 13-14, CDO, Maço 42.949; cf. também Relatório da delegação do Brasil à Conferência das Nações Unidas para a Organização Internacional. op. cit. Relatório da 1ª Comissão (disposições gerais), 2º Comitê (participação, emendas e secretariado).

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Com esse adendo (parágrafo 3), foi aprovado o artigo 109 da Carta, conforme o projeto das potências patrocinadoras, com a seguinte redação: 1. Uma Conferência Geral dos Membros das Nações Unidas, destinada a rever a presente Carta, poderá reunir-se em data e lugar a serem fixados pelo voto de dois terços dos membros da Assembleia Geral e de nove membros quaisquer do Conselho de Segurança. Cada Membro das Nações Unidas terá voto nessa Conferência. 2. Qualquer modificação à presente Carta, que for recomendada por dois terços dos votos da Conferência, terá efeito depois de ratificada, de acordo com os respectivos métodos constitucionais, por dois terços dos Membros das Nações Unidas, inclusive todos os membros permanentes do Conselho de Segurança. 3. Se essa Conferência não for celebrada antes da décima sessão anual da Assembleia Geral que se seguir à entrada em vigor da presente Carta, a proposta de sua convocação deverá figurar na agenda da referida sessão da Assembleia Geral, e a Conferência será realizada, se assim for decidido por maioria de votos dos membros da Assembleia Geral, e pelo voto de sete membros quaisquer do Conselho de 395 Segurança.

O resultado não convenceu Lutz, para quem a hipótese de uso do veto pelos membros permanentes praticamente inutilizava o suposto benefício da proposição vencedora. De modo um tanto profético, tendo em vista que o artigo 109 nunca foi aplicado, a delegada brasileira já previa em 1945 que dificilmente seria realizada uma Conferência constituinte em dez anos, até mesmo pela ausência de um mecanismo convocador automático. A decisão ficaria dependente das considerações políticas do momento: Não posso deixar de manifestar a minha opinião de ser muito mesquinha a atitude das grandes potências de insistirem em derrotar uma emenda brasileira – e outras dos Domínios – para fazer aprovar uma sua própria, menos perfeita juridicamente. A persistência do direito de veto anula o valor da proposta americana-britânica. Não creio que seja convocada [uma] Conferência nos dez primeiros anos, já que não existe nenhum mecanismo convocador. Continuando o receio dos países europeus de verem modificada a proteção dos grandes, procurarão evitar a Conferência constituinte. Só resta uma possibilidade, a de que as potências não consigam manter a unanimidade e que procurem 396 espontaneamente modificar a Carta.

Ao longo da Conferência, Bertha Lutz se destacou mais por seu empenho em outro tema, que lhe era especialmente caro: a defesa dos direitos da mulher. Juntamente com Minerva Bernardino, da República Dominicana, e outras poucas delegadas e assessoras presentes que aderiram à iniciativa, sua liderança foi reconhecida pela própria delegada norte-americana, Virginia Gildersleeve. Lutz assim descreveu o quadro geral que encontrou no início dos trabalhos em São Francisco: O elemento feminino era muito reduzido. Éramos oito delegadas plenipotenciárias, cinco assessoras e mais algumas jornalistas ou chefes de secretaria das delegações. Perfazíamos ao todo 1,5% das delegações. As delegadas plenipotenciárias eram do Canadá, Estados Unidos, Santo Domingo, Brasil, 395

“Canada plan fails on revision parley: move, also backed by Brazil, lacks vote needed to allow early Charter changes”, The New York Times, Nova York, 16 jun. 1945, NYT Archive, www.nytimes.com, acesso em 4/1/2010; RUSSELL. A history of the United Nations Charter. op. cit. p. 747-749. 396 Bertha Lutz a Leão Velloso, relatório, Nova York, 20 jul. 1945, p. 15, CDO, Maço 42.949.

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Uruguai, Grã-Bretanha e da China. As assessoras provinham da Venezuela, do México e da Austrália. As outras senhoras estavam distribuídas pelas delegações francesa, persa e equatoriana. Havia duas correntes de opinião: a delegada americana, bastante anacrônica, e as duas inglesas se opunham às medidas favoráveis à mulher, sob a alegação errônea de que nos seus países as mulheres tinham obtido todas as suas reivindicações. Em nome do Brasil, tomei a iniciativa de congregar as outras delegadas e assessoras em redor de um programa que visava à consignação expressa do direito da mulher de ocupar quaisquer cargos na Organização, inclusive os eleitos, e a consagração pela Carta do princípio 397 da igualdade dos seres humanos sem distinção de sexos.

Na primeira comissão, Lutz se bateu para que fosse expressamente reconhecido às mulheres o direito de ocupar qualquer cargo na estrutura do Secretariado da organização, mesmo aqueles que fossem preenchidos como resultado de eleições, além de se consagrar na Carta da ONU o princípio fundamental da igualdade dos seres humanos, sem distinção de sexo, credo, língua ou raça. Graças às diligências do grupo de delegadas, o Preâmbulo da Carta reafirmou “a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas”. O artigo 8 da Carta, fruto igualmente de emenda apresentada pelas delegadas, estabeleceu que “as Nações Unidas não farão restrições quanto à elegibilidade de homens e mulheres destinados a participar em qualquer caráter e em condições de igualdade em seus órgãos principais e subsidiários”. Lutz ainda apresentou, em nome do Brasil, uma declaração pela qual solicitava o estabelecimento de uma comissão para estudar a condição da mulher, ao amparo do Capítulo sobre cooperação internacional econômica e social. Sua defesa no comitê 3 (cooperação econômica e social) da segunda comissão (Assembleia Geral) enfatizou a privação de direitos (exclusão da mulher da vida política nos países fascistas, por exemplo) e a colaboração das mulheres no esforço bélico. A mobilização feminina em São Francisco, em particular a proposta da delegada brasileira, abriu o caminho para a criação, em 1946, da Comissão da ONU sobre o Status da Mulher, órgão subsidiário do ECOSOC.398 No mesmo comitê 3 da segunda comissão, outra participação ativa nos bastidores foi a do médico sanitarista Geraldo de Paula Souza, diretor do Instituto de Higiene de São Paulo e um dos representantes do Brasil naquele comitê. Coordenando-se com outros “delegados doutores”, como Karl Evang, da Noruega, e Szeming Sze, da China, Souza trabalhou para que a Conferência aprovasse a criação de uma agência especializada do sistema das Nações Unidas para tratar dos problemas da saúde pública, a partir da experiência bem-sucedida do Comitê de Higiene da Liga das Nações. O primeiro passo nesse sentido seria obter a inclusão de referências à saúde ou a assuntos sanitários na Carta da ONU, o que se conseguiu. A delegação brasileira também circulou um memorando, em 17 de maio, chamando a atenção para o tema, que vinha sendo tratado apenas secundariamente pela Conferência. Na percepção de Souza, sem o esforço de convencimento que foi feito, a questão sanitária internacional “teria passado em completo olvido”. Em seguida, no entendimento de que a medicina era um dos pilares da paz, o Brasil e a China apresentaram declaração conjunta recomendando a convocação de uma Conferência geral, dentro de alguns meses, com vistas a estabelecer uma organização internacional de saúde. Com base na declaração sino-brasileira, aprovada por unanimidade, tiveram início os trabalhos 397 398

Ibid. p. 4-5. Ibid. p. 11-12, 18 e 22-23.

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preparatórios para que depois fosse fundada, em 1948, a Organização Mundial da Saúde (OMS), com sede em Genebra.399 Sobre a Corte Internacional de Justiça, como já visto, a Comissão de Juristas que se havia reunido em Washington não chegara a acordo sobre a jurisdição obrigatória da CIJ, composta por 15 juízes. A mesma divergência se repetiu em São Francisco. Em resposta à demanda generalizada das potências menores em favor da obrigatoriedade, EUA e URSS ameaçaram não aderir ao novo tribunal que se ia criar. Um terceiro grupo, que incluía Brasil, Canadá e Peru, passou a admitir uma solução intermediária que reconciliasse a opinião das delegações. Antonio Camillo de Oliveira, representando o Brasil no comitê 1 (CIJ) da quarta comissão (organização judiciária), adiantou que sua delegação “já não abrigava a menor ilusão quanto à sorte reservada pela Conferência à tese da jurisdição obrigatória”. Por isso, continuou, estava autorizado a votar por qualquer fórmula conciliatória “suscetível de satisfazer a maioria do Comitê”.400 O procedimento adotado, de resto nada original, foi manter a “cláusula facultativa” com uma redação similar àquela da CPJI. Assim, qualquer Estado signatário do Estatuto poderia declarar que reconhece como obrigatória, de pleno direito e sob condição de reciprocidade, a jurisdição da CIJ sobre os litígios definidos no artigo 36. Ficaria ao critério discricionário de cada Estado soberano decidir se aceita ou não submeter-se compulsoriamente à Corte da Haia, considerando que das suas sentenças não cabe recurso. Resolvido esse ponto, além de outros menos controversos, foi dado por aprovado o Estatuto do principal órgão judiciário da ONU, incluído como anexo à Carta de São Francisco. De acordo com a posição que adotara desde o princípio, o Brasil declarou, em 12 de março de 1948, que reconhecia por um período de cinco anos a jurisdição obrigatória da CIJ, sob condição de reciprocidade. Findo esse período, em 1953, o Brasil não renovou sua declaração relativa à jurisdição obrigatória.401 A Conferência também estabeleceu o caráter superior da Carta na hierarquia das normas de direito internacional público. No caso de conflito entre as obrigações impostas pela Carta aos Estados-membros da organização e as obrigações resultantes de qualquer outro acordo internacional, as primeiras prevalecerão (artigo 103). Ademais, o tratado que não for registrado na ONU não poderá ser invocado perante qualquer dos órgãos das Nações Unidas. O artigo 25, apesar de curto, se revestiu de importância fundamental. Por esse dispositivo, os Estados-membros concordam em aceitar e executar as decisões do Conselho de Segurança, de acordo com a Carta. Na prática, reconhece-se que as decisões do órgão, como suas resoluções por exemplo, têm caráter vinculante e devem ser obrigatoriamente cumpridas, mesmo

399

Geraldo de Paula Souza a Leão Velloso, relatório anexo ao Ofício nº 257, São Francisco, 12 jun. 1945, CDO, Maço 42.949; World Health Organization: the mandate of a specialized agency of the United Nations. Geneva Foundation for Medical Education and Research, http://www.gfmer.ch/TMCAM/WHO_Minelli/P1-1.htm, acesso em 4/7/2008. 400 Antonio Camillo de Oliveira a Leão Velloso, relatório, São Francisco, 25 jun. 1945, CDO, Maço 42.949; Relatório da delegação do Brasil à Conferência das Nações Unidas para a Organização Internacional. op. cit. 4ª Comissão, 1º Comitê, Organização judiciária, Corte Internacional de Justiça. 401 IBRI. Brazil and the United Nations. Rio de Janeiro: Brazilian Institute of International Relations, 1957, p. 284286.

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se não há referência explícita aos poderes do Capítulo VII, que sabidamente incluem a imposição de sanções e o uso da força.402 No que concerne à revisão dos tratados, o Brasil fez sugestões no sentido de incluir na Carta um parágrafo para atribuir à Assembleia Geral a faculdade de convidar a parte ou as partes contratantes de um tratado executório a se porem de acordo para sua anulação ou revisão, caso fosse alegada a caducidade ou injustiça de sua permanência. Esse princípio, como reconheceu Leão Velloso, “suscitou desconfiança e despertou suscetibilidades”. Alguns países externaram preocupação com a possibilidade de que os inimigos derrotados na guerra se valessem desse dispositivo para rever os tratados de paz. Outros, inclusive alguns sul-americanos, demonstraram receio de uma renegociação dos seus tratados de limites. Não ficaram claras as razões que teriam levado o Brasil a fazer essa sugestão. Aparentemente, sua origem partira de uma consideração exclusivamente jurídico-doutrinária de Accioly, sem motivação política concreta. “Não se achando empenhado em rever nenhuma das suas obrigações contratuais”, explicou o relatório da delegação brasileira, “o Brasil não tinha interesse senão em defender um princípio que lhe se afigura justo”. Getúlio Vargas, que ignorava estivesse o tema sendo tratado na Conferência, foi procurado no Palácio do Catete pelo embaixador chileno no Rio de Janeiro, que pediu, em nome de seu governo, para não ser aberta a possibilidade de revisão de quaisquer tratados – o Chile antevia complicações com o Peru e a Bolívia sobre a questão de Tacna e Arica e a saída boliviana para o mar. Os países da América do Sul se dividiram em campos opostos e, sentindo a delicadeza do assunto, o Brasil retirou sua proposta para não criar embaraços adicionais.403 Em uma das sessões plenárias da segunda comissão, em 19 de junho, quando se debatiam as condições para a participação dos Estados na nova organização, a situação do governo do general Franco na Espanha foi trazida à baila pelo México. Diversos países (EUA inclusive) se associaram a uma moção introduzida pelo representante mexicano, Quintanilla, exembaixador em Moscou, por meio da qual se declarava que nenhum governo do Eixo, nem os impostos pelo poder militar dos ex-inimigos, poderia pleitear ingresso na ONU. Para Leão Velloso, toda a discussão era extemporânea. Os delegados brasileiros pareciam suspeitar de influências obscuras e achavam desnecessário, naquele contexto, desfazer-se tão apressadamente dos princípios da universalidade de representação e da não intervenção nos negócios internos de outros Estados. Consultado a respeito, Vargas indicou que a delegação deveria votar contra ou abster-se, evitando em todo caso uma “atitude isolada”, que poderia ter má repercussão. Não houve, contudo, votação. Em meio a discursos exaltados contra Franco, a moção mexicana foi aceita por aclamação e o Brasil acompanhou o consenso. Leão Velloso destacou que o Brasil havia seguido o movimento da maioria, “sob pena de ficar isolado”.404 De modo geral, como preconizado pelos países latino-americanos, incluindo o Brasil, o texto da Carta deu mais espaço aos princípios da justiça e do direito internacional, virtualmente 402

“Security Council action under Chapter VII: myths and realities”. Special Research Report, 23 jun. 2008, nº 1, Security Council Report, www.securitycouncilreport.org, acesso em 5/1/2010. 403 Vargas a Leão Velloso, telegrama, Rio de Janeiro, 21 maio 1945, CDO, Maço 42.970; Relatório da delegação do Brasil à Conferência das Nações Unidas para a Organização Internacional. op. cit. p. 10-11. 404 Ibid. op. cit. p. 16. Leão Velloso a Vargas, telegramas, São Francisco, 16 e 20 jun. 1946; Vargas a Leão Velloso, telegrama, Rio de Janeiro, 18 jun. 1945, CDO, Maços 42.967, 42.970 e 42.971; e AHI 76/3/20.

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ausentes do plano de Dumbarton Oaks. Nesse aspecto, os debates em São Francisco foram úteis pelo menos para assinalar que a paz e a segurança não eram apenas uma questão de manter a ordem. Tinham a ver também com o estabelecimento do império da lei nas relações internacionais, segundo valores morais que levassem em conta a justiça e a igualdade. A paz regulada só pela força seria efêmera. Um diplomata peruano, que testemunhou o desenrolar das negociações, sintetizou os anseios que inspiraram a atuação de muitos delegados: Em Dumbarton Oaks predominou um espírito cerradamente pragmático e realista: segurança internacional pela polícia das grandes potências. Na Conferência de São Francisco soprou o alento dos povos latinos e das pequenas nações. Os primeiros por sua tradição católica e jurídica e as segundas por sua situação política e sua própria juventude tinham que respaldar toda reforma idealista. A nova Carta deveria inspirar-se no Direito Internacional, e a segurança e a paz deveriam ter como base a 405 Justiça.

Em 1945, porém, o ideal de uma organização internacional ancorada nesses princípios tinha diante de si um desafio gigantesco para poder se afirmar plenamente. Em seu livro sobre a “crítica à ordem injusta”, Alexandre Parola destacou declaração do embaixador e ex-chanceler Araujo Castro feita em 1969, durante sessão da ONU sobre o fortalecimento da segurança internacional: “Em São Francisco, esquecemos que o caminho mais seguro para a paz e a harmonia entre as nações é o da justiça, não o do poder”.406 Mesmo assim, as emendas defendidas pelas potências menores não foram perdidas. A consciência do mundo ainda podia ser divisada na Carta e em sua mensagem de esperança na humanidade. A chama não se apagou no espírito dos que tinham fé em algo maior. Declaração de guerra ao Japão A imprensa brasileira noticiou sem grande destaque o desenrolar da Conferência, com poucos comentários editoriais. Predominavam as transcrições de informes telegráficos de correspondentes internacionais, principalmente William Lander, da United Press. Os assuntos de política interna (eleições presidenciais, novos partidos), bem como as notícias do final da guerra (rendição alemã, regresso da FEB, etc.), atraíam mais interesse do que o conclave diplomático das Nações Unidas. Era frequente também que os delegados brasileiros municiassem a imprensa oficiosa, sobretudo do Rio de Janeiro, com matérias e boletins de informação sobre questões correntes da Conferência, prática comum nas relações entre o Estado Novo e os órgãos de comunicação. A propósito, era notória a ausência de um debate mais amplo no país sobre o pósguerra e o papel do Brasil. Não era preocupação de Vargas promover esse debate. Desde a divulgação do projeto de Dumbarton Oaks, vozes isoladas se queixavam da falta de transparência e do fato de que “a política exterior não deve ser orientada por uma só cabeça”, devendo ser

405 406

BELAÚNDE, Victor Andrés. La Conferencia de San Francisco. Lima: Editorial Lumen, 1945, p. 107. PAROLA, Alexandre Guido Lopes. A ordem injusta. Brasília: FUNAG, 2007, p. 21.

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debatida e legitimada pela opinião pública, “em estrita obediência aos princípios liberais pelos quais lutam valorosamente os nossos soldados no solo italiano contra as forças totalitárias”.407 Aproveitando-se do fim da censura, algumas críticas ganharam as páginas dos jornais, como o editorial do Diário Carioca, que recriminou Vargas por supostamente não dar a devida importância à Conferência, a começar pela composição da delegação brasileira e pela escolha de seu chefe, que não era nem ministro efetivo: “É um chanceler de emergência que o Sr. Vargas não confirmou no posto, preferindo até deixar um interino no Itamaraty para substituir outro interino”. De modo um tanto jocoso, o periódico emendou: “Neste país só quem não quer ser interino é o Sr. Getúlio, que persiste em ser permanente, presidente ad perpetuum, enquanto o ajudar engenho e arte”. O editorial, politicamente motivado contra o governo, sustentava que a delegação brasileira não tinha grandes juristas ou especialistas em economia e finanças. “Assim, portanto, não é de admirar que todas as propostas brasileiras vão sendo rejeitadas sem discussão”. Exemplo do “desprestígio” do Brasil, dizia o jornal, era o fato de que a pretensão de obter um assento permanente no Conselho de Segurança havia sido barrada ab ovo: “Se o propósito do Sr. Getúlio Vargas é desmoralizar o país no estrangeiro, depois de o haver escravizado internamente, pode jactar-se de ter atingido o seu programa”.408 Um artigo publicado em O Jornal, de autoria de Olimpio Guilherme, usou de termos duros para achacar a delegação brasileira, taxando-a como “muito fraca, uma das mais insignificantes, se não mesmo a mais mesquinha de quantas, nos últimos tempos, temos mandado para representar-nos em assembleias por aí afora”. No dia seguinte, o jornal A Manhã saiu em defesa dos delegados brasileiros: “Só a exagerada vontade de oposição poderia encontrar motivo para atacar nossa delegação e seu eminente chefe”, que estariam cumprindo da melhor forma seu mandato na Conferência, “onde o trabalho é de conjunto e de ordem jurídica, salvo determinados problemas que não nos afetam”.409 Registre-se que, durante a Conferência, surgiu o problema da continuidade da assistência militar que os Estados Unidos prestavam ao Brasil. Essa cooperação militar não poderia mais ser feita pelo sistema de Empréstimo e Arrendamento. Por lei, o Lend & Lease só se aplicava a países que estivessem em guerra. Como a participação brasileira no conflito havia cessado com o fim das hostilidades na Europa, o acordo deveria ser terminado. A solução disponível seria entrar na campanha contra o Japão. Essa possibilidade foi avaliada em Washington. Para a comissão coordenadora dos Departamentos de Estado, Guerra e Marinha dos EUA, do ponto de vista militar, era indiferente a contribuição que o Brasil fosse capaz de dar no Extremo Oriente. Poderia talvez ser cogitado o envio de uma força simbólica, com elementos da aviação brasileira. Feitas as consultas internas pertinentes entre os órgãos interessados, Stettinius propôs então que o Brasil declarasse guerra ao

407

“O Brasil e a organização internacional da paz”, Carlos A. Dunshee de Abranches. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, dez. 1944, AHI Lata 1718, Maço 35.481. 408 “A nossa opinião: o Brasil em S. Francisco”, Diário Carioca, Rio de Janeiro, 10 maio 1945, CDO, Maço 42.907. 409 Macedo Soares a Leão Velloso, telegramas, Rio de Janeiro, 15 e 16 maio 1945, CDO, Maços 42.988 e 42.970; e AHI 76/3/21.

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Japão, participando apenas das operações aéreas no Pacífico, sem necessidade de enviar um corpo expedicionário.410 Vargas considerava a interrupção do Lend & Lease “muito prejudicial aos nossos interesses e pouco amistosa”, já que em termos práticos o Brasil vinha ajudando na guerra contra o Japão. A Marinha brasileira havia tomado para si o patrulhamento do Atlântico Sul, a fim de que os navios norte-americanos pudessem seguir para o Pacífico. Do mesmo modo, as bases no Nordeste estavam sendo utilizadas por aviões aliados de passagem da Europa para a Ásia. Em entrevista a correspondentes brasileiros, Vargas declarou que o Brasil daria a colaboração que fosse solicitada pelos Estados Unidos na luta contra o inimigo japonês. Reservadamente, Vargas já havia decidido que iria declarar o estado de guerra com o Japão para assegurar a continuação do suprimento de armas por Empréstimo e Arrendamento.411 Em 4 de junho, em reunião ministerial secreta no Catete, presidida por Vargas, a medida foi aprovada por unanimidade. Ainda na mesma reunião, Vargas leu a correspondência telegráfica trocada com Leão Velloso e elogiou a “atuação discreta e eficiente” do chefe da delegação brasileira em São Francisco. Dois dias depois, a decisão foi tornada pública: o Brasil estava oficialmente em guerra com o Império do Japão.412 O decreto presidencial que declarou o estado de guerra, com apenas três artigos, explicava em seus consideranda que o Brasil tinha presente os compromissos interamericanos de assistência e defesa mútua, todos “em pleno vigor” e reiterados na recente Conferência de Chapultepec. Derrotadas as nações agressoras no continente europeu, o poderio total dos Estados Unidos, aliado do Brasil, se transferia agora para os teatros de operações do Pacífico. Além disso, encerrada a participação bélica brasileira na Europa, os objetivos das Nações Unidas reclamavam a participação de todos os Estados do continente americano “na luta final pela liberdade dos povos unidos”. No mesmo dia 6, despachos telegráficos de agências de notícias internacionais, reproduzidos pela Folha da Manhã, informavam que havia sido vencida a resistência organizada nipônica na ilha de Okinawa, que estava sendo convertida no “principal trampolim para a invasão do território metropolitano do Japão”.413 O Itamaraty comunicou imediatamente a decisão brasileira à Embaixada da Suécia no Rio de Janeiro, que representava os interesses japoneses no país. O ato foi justificado pelo governo brasileiro como “consequência lógica” da política que o Brasil adotara em face do ataque desfechado “insólita e traiçoeiramente” contra os Estados Unidos em Pearl Harbor, em 1941. Em janeiro de 1942, o Brasil havia rompido as relações diplomáticas e econômicas com o Japão, atendendo à recomendação da III Reunião de Consultas do Rio de Janeiro e em sinal de solidariedade a uma nação americana agredida. “Sempre entendemos que a guerra nunca estaria

410

SILVA, Hélio. 1944 - O Brasil na guerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974, p. 275-276; Leão Velloso a Vargas, telegrama secreto, São Francisco, 23 maio 1945, CDO, Maço 42.976 e Pasta 602 (04) ONU Diversos 1945-57; CPDOC, GV c 45.04.30. 411 Vargas a Leão Velloso, telegrama confidencial, Rio de Janeiro, 26 maio 1945, CPDOC, GV c 45.04.30. 412 Macedo Soares a Leão Velloso, telegrama secreto e pessoal, Rio de Janeiro, 4 jun. 1945, CPDOC, GV c 45.04.30 e AHI 76/3/21. 413 “Declarado, por decreto do Presidente da República, o estado de guerra entre o Brasil e o Japão”, Folha da Manhã, São Paulo, 7 jun. 1945, Arquivos do jornal Folha de São Paulo.

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terminada para nós enquanto não estivesse terminada para os Estados Unidos”, declarou Leão Velloso.414 Naquele momento, alguns se colocavam a questão: se viesse a prolongar-se a guerra contra o Japão no Pacífico, que papel estaria reservado à ONU? Tratava-se, afinal, de um “inimigo tenaz e fanático, disposto a vender caro a derrota”, conforme viam as autoridades brasileiras. A ONU, que estava sendo instituída precisamente para manter a paz, não deveria atuar desde já e mostrar ao mundo se iria ou não atender às expectativas de seus criadores? A resposta aventada por Leão Velloso, tão “lógica” quanto a entrada do Brasil na refrega, supunha que a organização mundial teria sim de intervir no conflito e a primeira ação do Conselho de Segurança talvez fosse voltada contra o Japão na Ásia. É lícito então afirmar que, caso essa possibilidade viesse a se materializar, as duas alianças – da guerra e da paz – seriam uma só. Na prática, isso teria feito da ONU, em 1945, a continuação da guerra por outros meios. A batalha do veto no Conselho de Segurança As conversações em Dumbarton Oaks demonstraram que o núcleo duro da nova organização mundial se encontrava nos poderes a serem conferidos ao seu Conselho de Segurança. Para usufruírem de uma posição de poder sobre o órgão (controle) e ao mesmo tempo não serem por ele ameaçados (imunidade), os Quatro Grandes (e mais tarde a França) concordaram em que o veto dos membros permanentes era condição sine qua non para o projeto da ONU. A fórmula de Yalta definiu em termos gerais o alcance do veto. Para torná-lo mais palatável às potências menores, por sugestão dos Estados Unidos, não seria possível usar dessa prerrogativa nas questões processuais ou nos casos em que o membro permanente fosse parte de uma controvérsia cuja solução estivesse adstrita a meios pacíficos. Não era o veto absoluto, como queria a União Soviética desde o início, mas era aquele que realmente tinha importância, porquanto continuava sendo aplicável a todas as demais questões substantivas, incluindo qualquer medida do Conselho que resultasse em sanções ou uso da força, mesmo se um dos membros permanentes estivesse envolvido na controvérsia (cf. Capítulo 1). Comentando a respeito dos resultados de Yalta, o embaixador Carlos Martins avaliou que a Conferência havia definido “o novo realismo político”, consciente da necessidade de promover a concórdia entre as grandes potências. Essa concepção realista, entretanto, seria imperfeita se as potências “primeiro, entrassem em entendimentos exclusivos; segundo, não tomassem em conta a situação e direitos das pequenas potências; e, terceiro, tentassem cristalizar em formas rígidas as vantagens de sua preponderância”.415 As potências patrocinadoras chegaram a São Francisco com o firme propósito de não abdicar do veto, a despeito de qualquer reação contrária que pudesse aflorar. Na delegação norteamericana, podia haver dissenso em relação a minúcias ou a alguns ajustes de redação, mas não no essencial. A lógica era não permitir que uma maioria de Estados-membros, sem poder militar 414

Declarações do ministro Leão Velloso a respeito do estado de guerra entre o Brasil e o Japão. São Francisco, jun. 1945, CDO, Maço 42.885; “Brazil declares war on Japanese”, The New York Times, Nova York, 7 jun. 1945, NYT Archive, www.nytimes.com, acesso em 4/1/2010. 415 Carlos Martins a Macedo Soares, ofício, Washington, 12 mar. 1945, CDO, Maço 42.891.

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significativo, votasse por uma guerra que Washington não queria, comprometendo forças norteamericanas. Os Estados Unidos deviam poder dizer “não”. O veto seria sua melhor garantia. A União Soviética pensava da mesma maneira e estava resoluta em erigir um escudo contra ameaças à sua segurança e soberania, tanto na ONU quanto ao redor de suas fronteiras. Na visão de Virginia Gildersleeve, delegada norte-americana, a justificativa fazia todo o sentido: Nossa delegação estava certa de que a Carta nunca seria ratificada pelo Senado a não ser que nós tivéssemos o veto. Eles [os Senadores] jamais concordariam que um voto de outras nações obrigassem este país, contra sua própria vontade, a usar suas forças armadas ou sacrificar alguma parte de seu território ou de qualquer outro modo renunciar ao controle de seus próprios assuntos. Além dessa questão prática de obter a aprovação da Carta, havia algumas razões bastante convincentes para incluir o veto. Com ou sem o veto expressamente declarado na Carta, nós acreditávamos, nada poderia ser feito realmente pela organização mundial sem a aprovação unânime das cinco grandes potências. 416 Então por que não colocar esse fato preto no branco?

Cedo começaram a transparecer as ambiguidades da fórmula decidida em Yalta. Limitar o veto à solução pacífica de disputas, nas quais um membro permanente fosse parte, acarretava que os demais membros permanentes continuariam em condições de vetar uma decisão na matéria. Se, por exemplo, uma questão surgisse entre dois pequenos Estados, todos os membros permanentes poderiam exercer seu veto livremente. Por que não simplesmente aboli-lo em todas as questões passíveis de serem resolvidas pacificamente? Isso não fortaleceria a capacidade do Conselho de obter resultados concretos com sua intervenção? Herbert V. Evatt, ministro das Relações Exteriores da Austrália, levantou essas objeções de modo virulento e, com seu estilo combativo, assumiu a liderança dos países refratários à ideia de sacramentar um mandato “ditatorial” às grandes potências, sem ao menos questioná-lo. Em apoio à cruzada contra o veto, a delegação australiana propôs uma emenda, entre várias outras, que proibia seu uso na resolução pacífica de controvérsias. Outras emendas, mais radicais, visavam a impedir que a ação individual de uma grande potência bloqueasse decisões do Conselho.417 Para a América Latina, o veto suscitava preocupações adicionais. Como visto no Capítulo 3, os países latino-americanos fizeram grande esforço em São Francisco para sustentar a autonomia do sistema interamericano, a fim de harmonizá-lo com a organização internacional. O objetivo principal era minimizar a interferência do Conselho de Segurança nos assuntos exclusivamente hemisféricos. O sistema concebido pela Ata de Chapultepec tinha utilidade tanto para a defesa externa do continente quanto para a segurança coletiva intra-regional. Não havia sido tarefa fácil, na década de 1930, obter dos Estados Unidos garantias em favor da não intervenção. O veto ameaçava dar de novo “mãos livres” a Washington, voltando o relógio às eras pregressas do unilateralismo do século XIX e do big stick. O sistema interamericano, destituído de qualquer tipo de veto, era em geral percebido como mais democrático pelos latinoamericanos, ao contrário do Conselho de Segurança proposto. Se usado por uma potência extracontinental, como a URSS, o veto também poderia impedir que os países da região 416

GILDERSLEEVE, Virginia C. The making of the United Nations Charter. Nova York: Macmillam Company, 1954, p. 338. 417 UNCIO, 1945, op. cit. vol. XI, p. 119; HUDSON, W. J. Australia and the new world order: Evatt at San Francisco, 1945. Canberra: Australian National University Press, 1993, p. 72-91.

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acionassem o Conselho para se defender e repelir agressões. Os delegados da América Latina se perguntavam então de que serviria o órgão da ONU para os seus países...418 Os debates em nível de comitê revelavam mais claramente as diferenças de opinião. O delegado das Filipinas atacou o veto por entender que os membros permanentes deveriam cumprir as decisões tomadas pela maioria do Conselho. O Egito indicou que só aceitaria o veto se houvesse uma cláusula obrigatória na Carta para emendá-lo posteriormente. A Bolívia e a Argentina apoiavam a proposta de remover o veto sobre a resolução pacífica de controvérsias. Cuba propôs que as decisões do Conselho fossem aprovadas por maioria de dois terços. A Grécia e a Iugoslávia se manifestaram em defesa do veto. A Noruega divergiu dos Países Baixos ao alegar que a força da opinião pública seria suficiente para prevenir o uso indiscriminado do veto. Havia divisão também na Comunidade Britânica: Grã-Bretanha e África do Sul a favor, Austrália, Canadá e Nova Zelândia contra o veto.419 De acordo com Leão Velloso, o direito de veto era “profundamente impopular entre os Estados representados em São Francisco, sobretudo pela extensão que lhe foi dada até nos casos mais elementares de solução pacífica dos conflitos internacionais”. As grandes potências haviam manifestado “claramente” a intenção de não abrir mão do princípio da unanimidade do voto dos P-5. Na crise que se produziu, a posição brasileira ficou definida da seguinte forma: Declaramos que o Brasil seria, por princípio, contrário à outorga do veto, por não acreditar que o mesmo auxiliasse qualquer ação rápida; portanto, apoiaria as emendas que restringissem o seu uso mas, para dar mais uma prova do desejo de auxiliar o bom êxito da Conferência, no caso de nenhuma emenda ser adotada e o seu voto ser necessário para formar maioria, a Delegação estaria pronta a votar em favor do texto original, isto é, do veto. Acentuou, entretanto, a necessidade de se proceder à revisão 420 da Carta dentro de um prazo fixo, cuja ratificação não estaria sujeita ao veto.

Em 18 de maio, por pressão das potências menores, o comitê 1 da terceira comissão decidiu criar um subcomitê para analisar a questão do veto e recolher os comentários das delegações interessadas. Os países membros do subcomitê III/1/B trabalharam rapidamente e, em 21 de maio, submeteram às quatro potências patrocinadoras um questionário com 23 perguntas sobre o exercício do poder de veto. Sua finalidade era dupla: obter esclarecimentos sobre aspectos específicos do uso do veto, à luz de diversas cláusulas da Carta, e forçar as grandes potências a se manifestarem formalmente sobre a real extensão do privilégio.421 A situação se tornara incômoda para os P-5. Se a rebelião fosse adiante – e entre os rebeldes estavam muitos latino-americanos – talvez fosse difícil reunir os dois terços de votos necessários para fazer aprovar a fórmula de Yalta sem alterações.

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VOLPE. Latin America at San Francisco. op. cit. p. 148, 157-159 e 167; BELAÚNDE, Victor Andrés. La Conferencia de San Francisco. Lima: Editorial Lumen, 1945, p. 9-10. 419 “Big Four compromise on veto awaited”, The New York Times, Nova York, 22 maio 1945, NYT Archive, www.nytimes.com, acesso em 4/1/2010. 420 Relatório da delegação do Brasil à Conferência das Nações Unidas para a Organização Internacional. op. cit. p. 11-12. 421 Cf. Anexos para o texto integral do questionário e da declaração de resposta. Questionário submetido pelos Estados membros do subcomitê III/1/B aos quatro governos patrocinadores da Conferência de São Francisco: Estados Unidos, Reino Unido, União Soviética e China. UNCIO, 1945, op. cit. vol. XI, p. 699-709.

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O Brasil via a causa com simpatia, mas não a ponto de se colocar em oposição frontal à delegação dos Estados Unidos. No mesmo dia em que o questionário foi entregue, em sessão do comitê 1, Cyro de Freitas-Valle declarou que o Brasil “firmemente” se opunha, por questão de princípio, à concessão do poder de veto aos membros permanentes e não acreditava na efetividade do sistema de veto para uma ação rápida do Conselho. Lembrou que a regra da unanimidade, adotada no Conselho da Liga das Nações, havia demonstrado “na prática sua ineficiência e rapidamente se constituiu na malsinada arma que para sempre desacreditaria” aquela organização. De acordo com tal modo de pensar, a delegação brasileira votaria a favor de todas as propostas que diminuíssem as chances de ser exercido o veto, notadamente a emenda apresentada pela Austrália, cuja adoção era “desejada por numerosas delegações”. Entretanto, ressaltou Freitas-Valle, com o intuito de demonstrar uma vez mais que a principal preocupação do Brasil era “contribuir para o completo êxito desta Conferência”, se nenhuma emenda alcançasse a maioria necessária para sua aprovação, então – caso o voto brasileiro fosse “útil para formar maioria” – o representante do Brasil tinha instruções para declarar-se em favor do parágrafo 3º da Seção C (a fórmula de Yalta). Explicou: “Tal passo construtivo é dado para demonstrar que nós acreditamos na boa-fé com que as quatro potências patrocinadoras reclamam como necessidade indeclinável para a manutenção da paz que se lhes outorgue o direito de veto e que confiemos que dele façam um uso prudente”. Freitas-Valle ainda fez um apelo às quatro potências para que, correspondendo a tal gesto de boa vontade, atentassem ao “sentimento geral das potências médias e dos Estados pequenos” e, ao menos, facilitassem a revisão da Carta depois de algum tempo de sua experiência. Citou a proposta brasileira de revisão periódica a cada cinco anos, assim como a sugestão canadense no mesmo sentido. “Seria um gesto que talvez reunisse os aplausos gerais o de estabelecer desde já que se procederia dentro de alguns anos à revisão da Carta, em uma reunião como a atual, em que se delibera por dois terços de votos e em que não existe o veto. É o que querem todos e é o ponto de vista do Brasil”, concluiu.422 No afã de encontrar algum expediente conciliatório, o Brasil procurou uma compensação que permitisse apaziguar as delegações descontentes com os poderes excessivos que estavam na iminência de serem reconhecidos aos membros permanentes. A proposta de convocação de uma Conferência de revisão da Carta no prazo de cinco anos (originalmente uma ideia de Freitas-Valle, depois chamada de “emenda Velloso”) oferecia uma abertura para eventual atenuação ou mesmo, idealmente, eliminação do veto. Afinal, nessa nova Conferência constituinte qualquer emenda poderia ser adotada por maioria de dois terços (sem veto). Seria o meio de fazer com que a opinião pública nos países contrários ao veto compreendesse e aceitasse tal concessão, que se pretendia provisória, de caráter emergencial, dada a “situação anormal” do mundo. Passados alguns anos e superada essa conjuntura, a Carta seria revista e os privilégios antidemocráticos poderiam ser abolidos.423 Como visto antes neste Capítulo, o alvitre brasileiro não foi suficiente para derrubar a moção vitoriosa das potências patrocinadoras sobre as emendas à Carta (artigos 108 e 109), que lhes deu o poder de veto sobre tentativas de eliminar o veto. 422

Palavras pronunciadas pelo embaixador Freitas-Valle no 1º Comitê da III Comissão, São Francisco, 21 maio 1945, in Relatório das atividades da III Comissão da Conferência e do Comitê de Coordenação, bem como da I Reunião da Comissão Preparatória das Nações Unidas, Ottawa, 9 jul. 1945, CDO, Maço 42.949. 423 Boletim de Imprensa nº 34, São Francisco, maio 1945, CDO, Maço 42.966 e documentos avulsos no Maço 42.883; Leão Velloso a Exteriores (Macedo Soares), telegramas, São Francisco, 5 e 12 jun. 1945, AHI 76/3/20.

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Complicando ainda mais o quadro, a frente comum das grandes potências se desfez quando Andrei Gromyko, que chefiava a delegação soviética após a partida de Molotov, declarou em reunião reservada que seu país tinha outro pensamento sobre o sistema de votação no Conselho. A divergência se centrava na exata interpretação da fórmula de Yalta. Para os Estados Unidos, o poder de veto só deveria ser exercido em questões substantivas (casos de investigações de controvérsias internacionais, aplicação de sanções ou emprego de forças armadas para impor a paz). A União Soviética agora sustentava que o veto deveria aplicar-se a todas as questões, inclusive à simples discussão de uma controvérsia. Para Stettinius, era um retrocesso. Para Gromyko, uma questão de ponto de vista. Em 1º de junho, novas instruções recebidas de Moscou confirmaram que a “posição final” da URSS era esta: o veto valia tanto para o debate quanto para decisões de qualquer natureza. “Essa falta de concordância na interpretação de uma fórmula produziu crise tão séria e prolongada que chegou a ameaçar o resultado da Conferência, paralisando-lhe os trabalhos técnicos e levando-a à dissolução”, comentaria depois Leão Velloso em seu relatório.424 Nos primeiros dias de junho, o desacordo entre as potências sobre a extensão do veto havia praticamente interrompido a Conferência, à espera da solução para o impasse. A desunião dos P-5, antes escamoteada, se tornara flagrante. O colapso da reunião parecia iminente. “Toda a atividade da Conferência tem estado circunscrita a conciliábulos privados e infindáveis entre os representantes das cinco grandes potências, causando isso séria impaciência no seio das outras delegações”, registrou Leão Velloso.425 Em novo telegrama a Vargas, o chanceler brasileiro comentou sobre os esforços que a delegação vinha fazendo “para conseguir que o Brasil em São Francisco não ficasse aquém nem fosse além do que lhe convinha”. Na sua avaliação, a impressão geral sobre o futuro da Conferência era, naquele momento, “pessimista”. Admitia-se francamente a hipótese do seu adiamento, sem haver concluído a tarefa para a qual havia sido convocada, em virtude dos obstáculos no problema do veto. “A questão é complexa à vista de divergências existentes entre as próprias cinco grandes potências”, notou Leão Velloso: No que diz respeito à oposição das potências médias e pequenas contra o veto, o Brasil está procurando uma solução, que parece aceitável, mediante a proposta da revisão do estatuto da nova organização internacional dentro de cinco anos. Isso dá uma esperança de que, nesse momento, as disposições sobre o veto possam ser revistas num ambiente melhor. Por outro lado, sugeri a alguns membros da delegação americana, como solução democrática, uma disposição sobre o veto nos termos da Constituição dos Estados Unidos, isto é, com recurso à Assembleia, coisa que seria bem aceita pela 426 opinião pública deste país. Vamos ver.

Com seus recursos praticamente esgotados, Stettinius vislumbrou então uma alternativa. Harry Hopkins, ex-colaborador íntimo de Roosevelt, acostumado a missões especiais durante a guerra para contatos secretos com líderes aliados, havia sido enviado por Truman para tratar diretamente com Stalin de assuntos relacionados à Polônia e outras questões internacionais. 424

CAMPBELL, Thomas M. Masquerade peace: America’s UN policy, 1944-1945. Tallahassee: Florida State University Press, 1973, p. 180; Relatório da delegação do Brasil à Conferência das Nações Unidas para a Organização Internacional. op. cit. p. 12. 425 Leão Velloso a Exteriores (Macedo Soares), São Francisco, 4 jun. 1945, CDO, Maço 42.971. 426 Leão Velloso a Vargas, telegrama, São Francisco, 6 jun. 1945, CDO, Maços 42.967 e 42.971.

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Autorizado pela Casa Branca, Stettinius telegrafou a Moscou para explicar a situação e instruir Hopkins a dizer que os Estados Unidos não iriam aceitar a “interpretação inteiramente nova e impossível” que o governo soviético estava dando ao acordo de Yalta. A gestão deu resultado. Quando o problema foi levado a Stalin, com Molotov igualmente presente, o marechal não parecia muito abalado com todo o frenético debate em São Francisco e assentiu à visão norteamericana, qualificando a matéria de “insignificante”.427 Essa inesperada mudança de posição tinha a marca negociadora do Kremlin. Mesmo que Stalin de fato considerasse o imbróglio do veto um tema esotérico, ou excessivamente técnico, ele havia conseguido o mais importante de Truman, por intermédio de Hopkins, que era garantir a influência soviética na formação do novo governo polonês, liderado pelo comitê de Lublin. A disputa, estratégica para Moscou e vital para a segurança da URSS, vinha-se arrastando desde 1944. Este era um quid pro quo bastante razoável para Stalin: o domínio da Europa Oriental e a proteção das fronteiras soviéticas em troca de sua adesão à ONU, tal qual os aliados ocidentais desejavam, mantido o veto nas decisões verdadeiramente cruciais sobre imposição da paz. Por mais que Truman desconfiasse das intenções de Stalin, e seu enfoque em 1945 já era mais incisivo do que o apaziguamento suave outrora buscado por Roosevelt, o Exército soviético ocupava militarmente a Polônia e os Estados Unidos pouco podiam fazer a respeito naquele momento. É sintomático da centralidade da ONU na grande estratégia norte-americana que os EUA estivessem dispostos a não escalar o conflito em torno da Polônia para, entre outras compensações, obter o endosso da URSS ao projeto da organização internacional. Um preço muito alto Enquanto prosseguiam as transações sigilosas, os delegados das potências menores permaneceram todo o tempo sem saber exatamente o que se passava e a maioria soube apenas pelos jornais que o impasse com Stalin havia sido superado. Anunciada a concordância das grandes potências sobre a interpretação do acordado na Crimeia, o embate voltou a se dar entre os P-5 e “o resto”, que ainda aguardava um posicionamento em relação às 23 questões formuladas em 21 de maio. Em sua declaração de 8 de junho, à qual se associou a delegação da França, as quatro potências patrocinadoras evitaram responder item por item ao questionário e preferiram fazer uma exposição geral sobre a “questão da unanimidade dos membros permanentes”. Explicaram sua visão das regras de procedimento sugeridas e destacaram que decisões e ações do Conselho de Segurança podiam ter “grandes consequências políticas”. Mesmo no caso de resolução pacífica de controvérsias, uma “cadeia de eventos” poderia exigir do Conselho que, ao final, invocasse medidas coercitivas. Lembraram que decisões substantivas do Conselho da Liga das Nações podiam ser tomadas somente pelo voto unânime de todos os seus membros, fossem eles permanentes ou não. A partir disso, argumentaram, não se estava criando um direito novo na ONU: 427

SCHLESINGER, Stephen C. Act of creation: the founding of the United Nations. Cambridge, MA: Westview Press, 2003, p. 204 e 216-219; HEARDEN, Patrick J. Architects of globalism: building a new world order during World War II. Fayetteville: University of Arkansas Press, 2002, p. 199.

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A fórmula de voto de Yalta substitui a regra de completa unanimidade do Conselho da Liga por um sistema de maioria qualificada de voto no Conselho de Segurança. De acordo com esse sistema, membros não permanentes do Conselho de Segurança não teriam individualmente um “veto”. No que se refere aos membros permanentes, não se trata, de acordo com a fórmula de Yalta, de investi-los com um novo direito, a saber, o direito de veto, um direito que os membros permanentes do Conselho da Liga sempre tiveram. A fórmula proposta para que o Conselho de Segurança possa agir por uma maioria de sete tornaria a operação do Conselho menos sujeita à obstrução do que como era o caso de 428 acordo com a regra de completa unanimidade da Liga das Nações.

Na fórmula que ora se propunha, as cinco principais potências não poderiam agir por si mesmas, visto que qualquer decisão do Conselho teria de incluir os votos afirmativos de ao menos dois dos membros não permanentes. Em tese, alegaram, seria possível a um grupo de cinco membros não permanentes exercer um “veto”. Fizeram, ainda, um chamado à compreensão do que estava em jogo: “Em vista das responsabilidades primárias dos membros permanentes, não se pode esperar que eles, na condição atual do mundo, assumam a obrigação de agir em assunto tão sério quanto a manutenção da paz e da segurança internacionais em consequência de uma decisão com a qual não tivessem concordado”. A propósito, essa rationale foi empregada à exaustão durante a Conferência, de diferentes maneiras. Em 28 de maio, em declaração pelo rádio, Stettinius afirmou: “Não é uma questão de privilégio, mas de usar a presente distribuição de poder militar e industrial no mundo para a manutenção da paz”. Os membros permanentes eram essenciais, disse ele, “pois sem sua força e sua unânime vontade pela paz o Conselho seria incapaz de impor suas decisões”. Gromyko também insistia no princípio da unidade: “Se o problema da paz deve ser resolvido, deve haver confiança mútua e harmonia entre as maiores potências mundiais, e elas devem atuar em harmonia”. Visto em retrospecto, é irônico verificar que esse apelo partia justamente do delegado soviético que ficaria conhecido no Ocidente como Mr. Nyet, em virtude do elevado número de vetos que apôs no Conselho de Segurança, em nome da URSS, nos anos da Guerra Fria.429 A declaração de 8 de junho também aludia ao chamado “veto duplo” ao sugerir que, se houvesse dúvida quanto a definir se uma questão seria ou não processual, decisão a respeito precisaria ser “tomada pelo voto de sete membros do Conselho de Segurança, incluindo os votos afirmativos dos membros permanentes”. No entanto, a validade jurídica dessa interpretação foi questionada e a prática posterior do Conselho nesse particular tampouco esclareceu a questão. Por um acordo informal entre os P-5, o “veto duplo” não é usado desde 1959.430 Mais importante ainda, as potências indicaram em sua declaração que, por todas aquelas razões, haviam decidido concordar com a fórmula de Yalta e apresentá-la à Conferência de São Francisco “como essencial para que uma organização internacional seja criada”. [grifos meus] Essa condicionalidade sugerida “para que a organização fosse criada”, embora casualmente enxertada na declaração, resumia a barganha central da Conferência. Para as grandes 428

Declaração das delegações dos quatro governos patrocinadores sobre o procedimento de voto no Conselho de Segurança. UNCIO, 1945, op. cit. vol. XI, p. 710-714. 429 SCHLESINGER. Act of creation. op. cit. p. 201. 430 BAILEY, Sydney D. & DAWS, Sam. The procedure of the UN Security Council. Oxford: Clarendon Press, 1998, p. 240-249.

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potências, o poder de veto era ponto não negociável do plano de Dumbarton Oaks. Por que então se dariam ao trabalho de convocar uma conferência internacional se não para obter o endosso dos países pequenos e médios ao projeto? Era sem dúvida uma forma de legitimá-lo como instrumento de direito internacional, cuja consequência foi institucionalizar, na Carta da ONU, uma desigualdade jurídica entre os Estados. Ainda que fossem introduzidas emendas sobre tópicos acessórios, as grandes potências estavam confiantes de que, ao se exporem ao debate sobre Dumbarton Oaks, o resultado final não afetaria seus interesses vitais. Os termos do armistício, os arranjos territoriais e outros temas da paz com os inimigos, por exemplo, seriam tratados depois, separadamente, no formato big three only (caso da Conferência de Potsdam). A Conferência de São Francisco foi pensada como uma iniciativa de risco controlado. Os P-5 diriam aos demais países: “Esta é a nossa proposta, pegue-a ou deixe-a!” Às potências menores seria dado o direito de deliberar, desde que o cerne da proposta não fosse alterado. Isso incluía a aprovação do veto. Sem ele – e esta era a ameaça que pairava no ar – não haveria organização mundial. Cada país seria deixado à sua própria sorte para se defender de futuras agressões. A segurança de cada um dependeria dos seus próprios recursos. As Nações Unidas não viriam ajudá-los. Assumia-se, assim, que a “paz” (isto é, a proteção contra o Eixo ou qualquer novo agressor de peso) era um ganho desejado por todos.431 A “responsabilidade especial” das grandes potências na manutenção da paz e da segurança internacionais era apresentada não como uma benesse, mas como um “fardo” que não havia sido buscado. Afinal de contas, seguia o argumento, foram essas as potências que reuniram a força necessária para vencer a terrível guerra desencadeada pelo delírio nazifascista, com enormes sacrifícios de vidas humanas e inumeráveis perdas materiais. A elas caberia continuar provendo segurança aos Estados “amantes da paz”. Com o veto, essa mesma responsabilidade era projetada para o pós-guerra. A Carta consagrou o privilégio aos P-5 com o beneplácito do resto dos Estados-membros, persuadidos e pressionados pela circunstância atípica da Segunda Guerra Mundial. Em São Francisco, as grandes potências jogaram com o passado recente (a guerra que terminava) para moldar o futuro (a segurança ficaria a cargo dos mais fortes). Não só de persuasão se valeram os defensores do veto. Além do jogo de forças próprio do tabuleiro multilateral, a pressão também foi explícita e intensa no tabuleiro do “mundo real”, atingindo em cheio o plano das relações bilaterais. Munido dos relatórios do serviço de espionagem montado pela inteligência norte-americana, Stettinius chamou individualmente para encontros em sua suíte, no Hotel Fairmont, diversos chefes de delegação de pequenos Estados, que foram enfaticamente precavidos das graves consequências com que se deparavam: ou a fórmula de Yalta era aprovada ou não haveria uma Organização das Nações Unidas. Os latinoamericanos, com seus 19 votos, eram mantidos sob rédea curta por Nelson Rockefeller, a pedido de Stettinius. A ameaça direta era de que, se não votassem com os EUA, podiam esperar com certeza uma atitude norte-americana “menos amigável” no futuro. Leão Velloso sabia disso e não arriscou uma confrontação. Em dado momento crítico, Truman ligou para o primeiro-ministro da Austrália para cobrar que Evatt moderasse sua campanha. Aquele era, pode-se dizer, um ultimato

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KANE, Keith. The Security Council. Foreign Affairs. Nova York: vol. 24, no 1, 1945, p. 24.

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polido. Se algum observador desatento ainda nutria dúvidas a respeito, a política do poder definitivamente invadira os procedimentos da Conferência.432 Depois que tudo já havia sido dito, examinado e discutido, chegara a hora da decisão. O comitê 1 da terceira comissão procedeu, em 12 de junho, à votação das emendas em pauta. O ambiente estava carregado. Delegados da Austrália, Nova Zelândia, Países Baixos, Colômbia, Cuba e de diversos países da América Latina ainda tentavam forçar uma revisão do veto. O representante do Líbano, o primeiro a falar, disse que seu país era “pequeno” e por isso sentia que sua única garantia de independência e liberdade contra agressões residia em uma organização internacional bem-sucedida. Embora o veto fosse “um mal”, sua delegação o aceitava, porque a alternativa seria “milhares de vezes pior”. Outros países intervieram para explicar suas posições. O delegado colombiano, por exemplo, advertiu que colocar as questões de paz e guerra nas mãos de qualquer uma das cinco potências era “um erro”. O veto significava submeter os interesses de quatro potências à vontade de apenas uma. O resultado, antecipou, “seria sempre um acordo para não agir”. O drama, todavia, não estaria terminado sem um lance teatral para a plateia, protagonizado pelo Senador texano Tom Connally, o mesmo delegado que em Chapultepec havia feito um apelo dramático aos países latino-americanos para que aceitassem o entendimento dos EUA sobre os acordos regionais. Connally alertou os recalcitrantes que eles poderiam voltar para casa se quisessem e vangloriar-se de haverem “derrotado o veto”. Mas poderiam dizer também: “Nós rasgamos a Carta!”. Ato contínuo, rasgou violentamente a minuta da Carta que tinha em suas mãos e arremessou os pedaços sobre a mesa, encarando raivoso um a um os delegados estupefatos.433 Na votação realizada pouco depois, quase à meia-noite, a emenda da Austrália, que visava a restringir o exercício do veto, foi rejeitada por 20 votos a 10, com 15 abstenções. Votaram a favor da emenda a Austrália, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Irã, México, Nova Zelândia, Países Baixos e Panamá. O Brasil deu seu apoio, mas em face da derrota da emenda australiana, conforme a posição que havia assumido de não comprometer o “bom êxito da Conferência”, no dia seguinte, 13 de junho, aceitou a fórmula de Yalta e deu seu voto favorável ao veto, que foi aprovado pelo comitê por 30 a 2, com 15 abstenções e 3 ausências. Os dois países que votaram contra o veto foram Colômbia e Cuba.434 A redação final adotada repetiu a de Yalta e resultou no artigo 27 da Carta da ONU, cujo texto é o seguinte: 1. Cada membro do Conselho de Segurança terá um voto. 2. As decisões do conselho de Segurança, em questões processuais, serão tomadas pelo voto afirmativo de nove Membros. 3. As decisões do Conselho de Segurança, em todos os outros assuntos, serão tomadas pelo voto afirmativo de nove membros, inclusive os votos afirmativos de todos os membros permanentes, ficando estabelecido que, nas decisões previstas no Capítulo VI e no parágrafo 3 do artigo 52, aquele que for parte em uma controvérsia se absterá de votar. 432

CAMPBELL. Masquerade peace. op. cit. p. 186-188; HURD, Ian. After anarchy: legitimacy and power in the United Nations Security Council. Princeton: Princeton University Press, 2007, p. 108-110. 433 A cena foi narrada pelo próprio Connally em seu livro de memórias e está subentendida na documentação oficial da Conferência de São Francisco. UNCIO, 1945, op. cit. vol. XI, p. 486-493; DIVINE, Robert A. Second chance: the triumph of internationalism in America during World War II. Nova York: Atheneum, 1967, p. 296. 434 UNCIO, 1945, op. cit. vol. XI, p. 120-121 e 494-495; “Yalta voting formula for Council is approved, 30 to 2, by Committee”, The New York Times, Nova York, 14 jun. 1945, NYT Archive, www.nytimes.com, acesso em 4/1/2010.

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Ao transmitir a Vargas o resultado das votações e explicar a posição que havia sido assumida pela delegação brasileira desde 21 de maio, Leão Velloso utilizou o argumento de que uma nação que estivesse disposta a firmar a Carta constitutiva da nova organização internacional não poderia “votar contra o mais fundamental talvez dos seus dispositivos”. Em comunicação ao Itamaraty, salientou que “manifestamo-nos contra o exercício do direito de veto, mas sempre preferimos sua concessão ao malogro da Conferência”. Era preferível, em suma, deixar São Francisco com a Carta a sair sem ela. No relatório que seria preparado sobre as atividades da delegação, Leão Velloso também parecia querer se justificar: “Nem poderíamos agir de outro modo. Se o tivéssemos feito, decerto não poderíamos assinar o estatuto da nova organização mundial e teríamos de ficar à margem da comunidade das nações”.435 Superado o obstáculo principal para que a ONU viesse a existir, a atmosfera se desanuviou um pouco. Sempre havia, durante toda a Conferência, almoços, jantares, recepções, coquetéis e todo tipo de atividade social com o propósito de entreter os delegados e, ao mesmo tempo, proporcionar ocasiões de diálogo informal sobre os temas da agenda. No dia 18 de junho, Rockefeller organizou um jantar de gala para as delegações no St. Francis Yacht Club, na Baía de São Francisco. O ponto alto do evento era um número musical de Carmem Miranda, apresentada como the Brazilian bombshell. Consta que o espetáculo teria sido um estrondoso sucesso.436 De volta às salas de trabalho, os delegados de 50 países, representando mais de 80% do total da população mundial à época, após 62 dias de trabalho e centenas de reuniões, enfim concluíram a Carta. O texto final foi fechado pelo Comitê de Coordenação, do qual fazia parte Freitas-Valle, em reunião que atravessou a noite e se encerrou às 5 da manhã. Na Sessão Plenária de 25 de junho, os delegados se levantaram para expressar a aprovação de cada país, concluindose a votação com aplausos e ovações. Para alguns, era um marco na história da civilização. Para outros, apenas o melhor que havia sido possível conseguir. A revista Time foi comedida em sua descrição: “uma Carta escrita para um mundo de poder, temperada por um pouco de razão”.437 A cerimônia de assinatura, no dia 26, começou com a China, considerada a primeira nação a ser atacada na Segunda Guerra Mundial. Essa ordem definida pelo protocolo visava a contornar a possibilidade de que, caso aplicada a sequência alfabética em inglês desde o início, a Argentina fosse o primeiro país a firmar a Carta. A Conferência foi encerrada em sessão solene com pronunciamentos do presidente Truman, das potências patrocinadoras e de outros cinco países como representantes de diferentes nacionalidades e áreas geográficas.438 O Brasil foi escolhido como um desses cinco países e Leão Velloso fez um discurso sóbrio, com elogios ao país anfitrião e exortações de confiança na Carta recém-concluída: “Poderá conter os defeitos de toda obra humana. Mas dela não se poderá dizer que não foi feita por homens capazes, animados da mais profunda boa-fé”. O chanceler brasileiro sublinhou que, 435

Leão Velloso a Vargas, telegrama, São Francisco, 13 jun. 1945, CPDOC, GV c 45.04.30; Leão Velloso a Exteriores (Macedo Soares), telegrama, São Francisco, 13 jun. 1945, CDO, Maço 42.910; Declarações do ministro Leão Velloso à imprensa do Rio de Janeiro, s/d, CDO, Maço 42.885; Relatório da delegação do Brasil à Conferência das Nações Unidas para a Organização Internacional. op. cit. p. 12. 436 SCHLESINGER. Act of creation. op. cit. p. 243. 437 DIVINE. Second chance. op. cit. p. 297. 438 “The story of the United Nations Conference on International Organization, 1945”. UN Chronicle, www.un.org, acesso em 20/11/2008.

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perante a lei, “não existem nações grandes, médias e pequenas”. Todas teriam os mesmos direitos. Os países signatários da Carta estavam dispostos a cooperar para que o respeito à lei fosse o princípio básico de suas relações e para que só se admitisse o recurso à força “quando for preciso fazê-la respeitar”. Nesse particular, a principal responsabilidade caberia, “sem dúvida”, às grandes potências, que receberam em São Francisco poderes especiais “em reconhecimento dos elementos que fazem com que a paz repouse, de preferência, sobre os seus ombros”. Transpareciam em suas palavras todas as angústias da batalha do veto, travada por semanas a fio: Quarenta e cinco nações fizeram-lhes [aos P-5] as maiores concessões, inclinando-se diante do apelo por elas dirigido repetidamente sobre a necessidade de sua ação unânime para assegurar a ordem internacional. Não lhes foi negada a confiança pedida. Todos reconhecemos, de resto, que as circunstâncias justificavam a concessão de tais prerrogativas. Temos a sincera esperança de que o 439 futuro nos dará razão.

Ao que parece, o futuro não lhe deu razão. Nos anos seguintes, o uso reiterado do veto (ou a simples ameaça de usá-lo) teria um efeito nefasto e paralisante sobre a capacidade de agir do Conselho de Segurança. É interessante constatar a mudança de opinião do próprio Leão Velloso, pouco mais de um ano depois da conclusão da Carta. Em outubro de 1946, no discurso que proferiu como representante do Brasil na Assembleia Geral da ONU, em Nova York, seu julgamento já era um tanto diverso: “Se considerado à luz do princípio da igualdade de todos os Estados perante a lei, o artigo 27 foi um preço muito alto pago por pequenos e médios países pela obtenção da Carta”. O Brasil havia decidido, disse ele, que “era necessário confiar nas grandes potências” e que estas, enquanto beneficiárias, estariam obrigadas a honrar essa confiança. Não parecia mais ser o caso. Em setembro de 1950, foi a vez de Freitas-Valle, também discursando na Assembleia Geral, revelar certa decepção com a prática dos membros permanentes do Conselho de Segurança. Freitas-Valle citou trecho da declaração que ele mesmo havia feito em São Francisco, quando dissera confiar de boa-fé no “uso prudente” do veto. “Nenhum de nós, hoje, reiteraria essas palavras, pois a verdade é – e todos a sabemos – que houve abuso do direito do veto”.440 Com o passar do tempo, essa frustração apenas faria aumentar. Em seu Tratado de direito internacional público, Hildebrando Accioly, outro participante do processo de criação da ONU, escreveu em 1956: Essa exigência do voto de todos os membros permanentes [no artigo 27] é indiretamente o reconhecimento do direito de veto de qualquer deles, contra a maioria ou, até, a unanimidade dos demais. Esse poder negativo, do qual a União Soviética tem abusado, já paralisou muitas vezes a ação 441 do Conselho de Segurança e constitui uma das fraquezas da Organização das Nações Unidas.

439

O texto completo do discurso está incluído nos Anexos. VELLOSO, Pedro Leão. O Brasil na Conferência de S. Francisco. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945, p. 37-43. 440 SEIXAS CORRÊA, Luiz Felipe de (org.). O Brasil nas Nações Unidas (1946-2006). Brasília: Ministério das Relações Exteriores, FUNAG, 2007, p. 39 e 69. 441 ACCIOLY, Hildebrando. Tratado de direito internacional público. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores, 1956, vol II, p. 14.

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Muito poderia ser dito – e já o foi por diversos autores em décadas de análises desde 1945 – sobre o veto e suas consequências. Há aqueles que condenam o Conselho de Segurança por muitas vezes não alcançar o consenso necessário e não tomar as decisões de interesse vital para a manutenção da paz no mundo. Quando deixa de atuar nas horas críticas, diz-se comumente, o Conselho se expõe ao risco de se tornar “irrelevante”. Na verdade, um dos problemas mais graves parece residir precisamente na própria existência do veto, que na maior parte das vezes é o responsável pela inação que acomete o órgão. Não importa se se trata de uma falha de origem ou uma contradição inerente à dinâmica política dentro, fora e ao redor do Conselho. O fato é que o voto da maioria dos membros, que teoricamente permitiria superar impasses e passar à ação, vem a ser anulado pelo potencial recurso unilateral do veto por um único membro. O controle e a imunidade que as grandes potências desejavam assegurar para si mesmas desde o início, quando a ONU ainda estava sendo forjada, tornaram o Conselho de Segurança refém dos humores instáveis, nem sempre justificados, dos big five de 1945. Essa peculiaridade era claramente percebida pelos contemporâneos. Uma típica visão externada na época alegava que, por ser a organização um clube de nações soberanas, as regras básicas da “prática democrática” não seriam de imediato aplicáveis, sobretudo no Conselho. A desigualdade de facto entre seus membros poderia resultar em “maiorias numéricas fracas contra minorias poderosas”.442 Em síntese, a guerra havia sido travada e ganha em nome dos princípios democráticos e liberais, mas o poder – e não a democracia – contaria mais no reordenamento da política internacional.

442

LEE, Dwight E. The genesis of the veto. International Organization. Cambridge: vol. 1, no 1, 1947, p. 33; cf. também GRIGORESCU, Alexandru. Mapping the UN-League of Nations analogy. Global Governance. Boulder: vol. 11, nº 1, 2005, p. 33-35.

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CAPÍTULO 5 APÓS A CARTA: A ONU TOMA FORMA

Lutamos na guerra passada e fomos inteiramente esquecidos e recusados na partilha dos despojos. Getúlio Vargas

O saldo da Conferência Em 1945, o Brasil assinou a Carta da ONU e se tornou um de seus membros fundadores. Enquanto os delegados regressavam da Califórnia, surgiam as primeiras avaliações sobre o alcance da contribuição de cada país na elaboração daquele instrumento internacional. Depois de São Francisco, Pedro Leão Velloso se deslocou junto com o secretário de Estado Edward Stettinius a Washington, onde foi hóspede de Nelson Rockefeller. Em audiência com o presidente Harry Truman, acompanhado do embaixador Carlos Martins, o chanceler brasileiro transmitiu o desejo de Getúlio Vargas de colaborar em todos os sentidos com a nova administração nos EUA. Na sua volta ao Brasil, em 8 de julho, após fazer a viagem em avião especial cedido pelo governo norte-americano, Leão Velloso reuniu a imprensa no Itamaraty para um briefing e declarou: “Se a Conferência de São Francisco não realizou um trabalho perfeito, conseguiu, entretanto, dar ao mundo uma Carta política bastante realista, adaptada às circunstâncias, tantas vezes desagradáveis, da vida internacional”.443 Os jornais simpáticos ao Estado Novo, como de costume, enalteceram o desempenho brasileiro: “O Brasil sai dessa Conferência com prestígio incontestado, devido ao tato, competência, tino e fina visão política do chanceler brasileiro”, estimou o Jornal do Commercio.444 Fora dos círculos oficiais, a apreciação corrente não era tão benfazeja. A crítica mais comum salientava que “não se ouvira a voz do Brasil em São Francisco”. Por conseguinte, a palavra do Brasil estaria ausente da Carta da ONU. Essa percepção era encontrada em alguns depoimentos da época. O capitão de fragata João Pereira Machado, oficial da adidância naval do Brasil em Washington e amigo de Vargas, havia integrado a delegação brasileira como assessor militar. Na sua opinião, os oficiais graduados da delegação (general Leitão de Carvalho, brigadeiro Trompowski e almirante Noronha) tiveram “pouco trabalho”, pois eram escassos os assuntos propriamente técnico-militares tratados. Machado escreveu uma carta ao presidente com suas impressões pessoais sobre a Conferência:

443

Leão Velloso a Exteriores (Macedo Soares), telegramas, São Francisco, 25 e 26 jun. 1945, AHI 76/3/20; Declarações do ministro Leão Velloso à imprensa do Rio de Janeiro, 8 jul. 1945, CDO, Maço 42.885. 444 “A Conferência de S. Francisco: as decisões finais da Conferência”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, reproduzido no Jornal do Brasil de 26 jun. 1945, CDO, Maço 42.908.

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Os ossos de Rio Branco e Ruy Barbosa devem ter tremido nos túmulos em que repousam. Foi fraquíssima, apagada, quase nula, a nossa atuação. É possível que tenha sido de caso pensado; é possível que o chefe [da delegação] tenha agido em cumprimento de ordens. A impressão, porém, foi péssima. Sentimo-nos mal e tivemos de sorrir ante as piadas dos jornais americanos, que estranharam o silêncio brasileiro em face da verborreia dos demais latino-americanos. Faltou-nos um chefe; faltounos um homem dinâmico, que soubesse empolgar, conduzir, orientar. Faltou-nos alguém, com prática parlamentar, com prática de assembleias semelhantes, para lidar com as raposas velhas, astutíssimas e experimentadas que por lá abundavam. Creio que o Oswaldo [Aranha], com todos os seus defeitos, teria sido outra coisa. [...] O ministro Leão Velloso, ótimo homem, possivelmente excelente diplomata, incapaz de ofender a uma mosca importuna, não me pareceu à altura da situação.

O oficial da Marinha acrescentou que “não tendo se reunido, não tendo recebido qualquer diretiva, qualquer orientação, por parte da chefia da delegação, os brasileiros tiveram que guiar-se pelo bom senso e pela única forma aconselhada pelo chefe, isto é, votarmos, sempre que possível, pelo sentido mais liberal e, também, desde que possível, de acordo com a delegação americana”.445 Também membro da delegação, então como jovem secretário, Mario Gibson Barboza deixou seu julgamento à posteridade em seu livro de memórias. Segundo ele, apesar de bons delegados e um ou outro assessor mais capaz, “nossa representação não vinha adequadamente preparada para uma reunião daquele porte e com aqueles objetivos”. Havia faltado à delegação “uma diretiva comum, um planejamento de atuação, uma visão de conjunto dos objetivos a serem perseguidos”. No caso da aspiração a um assento permanente no Conselho de Segurança, Gibson Barboza assim se exprimiu: Não sei ao certo se nossa reivindicação foi defendida com vigor e competência. Mas suspeito que não, pelo que nos chegava a nós, modestos secretários da delegação. Apesar das nossas naturais limitações hierárquicas, presenciávamos frequentemente as discussões e conversas dos membros mais graduados da nossa representação. Ficou-me, assim, a impressão de que nossa atuação não foi das mais 446 combativas.

Como visto nos Capítulos precedentes, a autocontenção foi de fato erigida como o modus operandi por excelência da delegação brasileira. Por causa disso, na leitura política de muitos contemporâneos, a atitude discreta do Brasil em São Francisco foi interpretada como falta de determinação, ou empenho insuficiente, o que teria levado a resultados “invisíveis”. Pouco depois de retornar ao Rio de Janeiro, em palestra que proferiu na Academia Brasileira de Letras, sob o patrocínio do Pen Club do Brasil, Leão Velloso procurou defender seu ponto de vista ao fazer seu próprio relato da Conferência: Chegou aos meus ouvidos a crítica de que não existe a palavra do Brasil na Carta das Nações Unidas. Ora, a verdade é que essa palavra existe, apesar de tudo, através de todo o instrumento, desde o preâmbulo, quando o mesmo se refere à igualdade dos direitos do homem e da mulher, até às suas disposições transitórias, como acabo de mostrar a propósito da cláusula sobre a revisão. Não sendo lícito ao Brasil, pelas razões que já dei, impor a sua orientação aos trabalhos de uma reunião diplomática de cinquenta nações, que teriam os seus censores esperado que fizesse o delegado

445 446

João Pereira Machado a Vargas, carta pessoal e confidencial, Washington, 4 jul. 1945, CPDOC, GV c 45.04.30. BARBOZA, Mario Gibson. Na diplomacia o traço todo da vida. Rio de Janeiro: Record, 1992, p. 20-21.

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brasileiro? Assumir uma atitude negativa, de protesto e crítica? Se eu fosse uma criatura pessoalmente 447 vaidosa, é o alvitre que teria adotado, conquistando publicidade e aplausos.

Na exposição de motivos que submetia a Carta à aprovação do presidente da República, Leão Velloso recordou “o movimento geral para melhorar a Carta no afã de dar-lhe um caráter mais liberal”. Destacou a emenda brasileira sobre o princípio da não intervenção e o esforço em prol de uma revisão oportuna dos termos do instrumento acordado na Conferência, não obstante “as circunstâncias excepcionais do momento em que ela se realizou”, com a guerra ainda em curso. A Carta daí resultante não era a “ideal” para o estabelecimento da paz e da segurança mundiais: As propostas, que lhe serviram de alicerce, foram elaboradas pelas maiores potências militares do mundo, que, pela força dos acontecimentos, tinham, como têm, hoje, à sua mercê, as nações médias e pequenas, e seu objetivo único era evitar a repetição das guerras e garantir a segurança internacional. No intuito de colimar tal escopo, as grandes potências se outorgavam poderes irrestritos, exigindo dos países menores em poderio militar um largo e demasiado crédito. A ação das potências médias e pequenas, em São Francisco, foi no sentido de atenuar a rigidez e a extensão desses poderes, limando asperezas e exclusivismos e procurando uma justa participação de todos os Estados na obra da paz e 448 segurança entre os povos.

O Brasil formou entre os países que pugnaram por modificar as propostas de Dumbarton Oaks, obtendo, de acordo com o chanceler brasileiro, “sensível melhoria” da Carta em quase todos os seus capítulos. Fez ver que o projeto primitivo não continha em lugar algum a palavra “justiça” nem fazia referência a princípios do direito internacional. No que concerne à Assembleia Geral, suas atribuições foram ampliadas e foi-lhe reconhecido o direito de discutir quaisquer questões que se enquadrem nos objetivos da Carta, assim como o direito de fazer recomendações aos Estados-membros e ao Conselho de Segurança. Note-se que o artigo 10 da Carta prevê que “a Assembleia Geral poderá discutir quaisquer questões ou assuntos que estiverem dentro das finalidades da presente Carta ou que se relacionarem com as atribuições e funções de qualquer dos órgãos nela previstos”. Com relação às recomendações, todavia, remetese ao estipulado no artigo 12, isto é, “enquanto o Conselho de Segurança estiver exercendo, em relação a qualquer controvérsia ou situação, as funções que lhe são atribuídas na presente Carta, a Assembleia Geral não fará nenhuma recomendação a respeito dessa controvérsia ou situação, a menos que o Conselho de Segurança a solicite”. Diversas outras faculdades entraram na competência da Assembleia, como recomendar medidas para a solução pacífica de qualquer situação internacional, supervisionar a ação do Conselho de Tutela e aprovar o orçamento da ONU. Leão Velloso mencionou, ainda, o propósito aventado na Conferência de “aumentar em dois” [sic] o número de membros permanentes do Conselho de Segurança. Sem fornecer detalhes, indicou que “certas divergências” e, sobretudo, a “ambição” de outros países de ocupar tais postos, “fizeram com que se tivesse de abandonar a ideia”, considerando a dimensão que tomaria o Conselho, “o qual 447

VELLOSO, Pedro Leão. O Brasil na Conferência de S. Francisco. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945, p. 19-20. A palestra foi reproduzida no Jornal do Commercio de 26 ago. 1945, CDO, Maços 42.908 e 42.948. 448 Leão Velloso a Vargas, exposição de motivos, Divisão de Atos Internacionais, Rio de Janeiro, 28 ago. 1945, CDO, Maço 42.886.

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convém seja um órgão de pronta decisão e rápida ação”. São citadas, na exposição de motivos, as “candidaturas” a assentos permanentes, em São Francisco, de Austrália, Canadá, Bélgica, Países Baixos e Ucrânia. Não se fala no documento de uma candidatura do Brasil, apenas de “representação adequada à América Latina no Conselho de Segurança”, conforme a linguagem adotada pela Resolução XXX da Conferência de Chapultepec.449 A delegada Bertha Lutz, que teve papel importante na questão das emendas à Carta e logrou incluir artigos em favor dos direitos da mulher, assinalou o significado histórico da obra concluída em São Francisco, “a segunda tentativa de organização internacional destinada a impedir a recrudescência periódica da guerra fratricida que enluta a história da civilização humana”. A época da Conferência contribuiu para aumentar a complexidade do problema, avaliou Lutz. As delegações de países afastados da luta tinham em mira “um instrumento juridicamente perfeito”, ao passo que bom número de pequenos países, sobretudo europeus, “tinham por demais presentes ao espírito os horrores da ocupação estrangeira para se interessarem por tais propósitos”. Visavam, portanto, “unicamente a impossibilidade de recrudescer a guerra”. E acrescentou: “Não querendo confessar abertamente a sua incapacidade de sobreviver sem a proteção acolhedora das grandes potências, lutavam contra qualquer liberalização que pudesse importar em modificações futuras da Carta ou permitir aos grandes países o repúdio de qualquer obrigação internacional”. O juízo emitido por Lutz é crítico em relação ao resultado alcançado após dois meses de espinhosas negociações: A impressão definitiva que tenho da Carta e da Organização é de que o seu principal objetivo é o de proteger o Velho Mundo contra a guerra. Não existisse esse centro de luta, cujas ondas cada vez mais fortes se propagam em direção centrífuga até as praias do Novo Mundo, seria desnecessária a Carta, pois o sistema interamericano é mais flexível, mais são e mais perfeito. [...] A Carta é bastante heterogênea e um tanto falha e a redação deixa muito a desejar. São defeitos estes que agora será muito difícil remediar, mormente considerando os óbices consideráveis às emendas simples e à revisão total. Na sua aplicação seremos obrigados a recorrer à praxe anglo-saxônica de confiar mais no 450 crescimento do direito que no texto da lei.

Na avaliação de Cyro de Freitas-Valle, malgrado o elevado número de emendas apresentadas em São Francisco, o Conselho de Segurança, a “mola mestra da organização”, manteve praticamente intactos os seus poderes, bem como a aura de entidade “todo-poderosa” que havia presidido sua concepção em Dumbarton Oaks. As potências menores (Brasil incluído) tentaram mudar disposições fundamentais do plano de 1944: “Mas prevaleceu a força, pois bem que se percebeu que os big five não cederiam no que julgavam direitos oriundos dos sacrifícios incorridos e do dever de evitar sua renovação”. Segundo o delegado brasileiro, só se modificou fundamentalmente o texto original para estabelecer o princípio de que o Conselho deveria remeter anualmente ao menos um relatório para exame da Assembleia Geral. Como visto no Capítulo 4, não logrou aprovação a emenda brasileira que propunha uma “revisão periódica fácil” da Carta, com o intuito de “suavizar a brutalidade da outorga do veto”. O clima político prevalecente na Conferência teve, indubitavelmente, marcante influência no seu resultado final. 449

Leão Velloso a Vargas, exposição de motivos, Divisão de Atos Internacionais, Rio de Janeiro, 28 ago. 1945, CDO, Maço 42.886. 450 Bertha Lutz a Leão Velloso, relatório, Nova York, 20 jul. 1945, p. 1-5 e 23, CDO, Maço 42.949.

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Freitas-Valle ressaltou que “a autoridade dos grandes derivava de seus grandes sofrimentos, de sua maior experiência da desgraça que é a guerra, do cataclismo que foi e ainda está a ser esta, que precisa ser a última”. Entre a lamúria e o conformismo, Freitas-Valle anotou: O veto foi, de todas as concessões permitidas, a que mais custou. O conflito do idealismo dos pequenos com o pragmatismo dos grandes então se revelou em toda a sua força. E, entretanto, o direito de veto é uma coisa que decorre da circunstância de existirem grandes potências e pequenos Estados. O Senador Connally [delegado dos EUA] vivia a repetir isto mesmo em seus discursos e não deixava 451 de ter razão.

De acordo com seu artigo 110, a Carta da ONU entraria em vigor depois do depósito de ratificações pelos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança e pela maioria dos outros Estados signatários. Os Estados Unidos foram o primeiro país a concluir os processos internos de ratificação, em 8 de agosto de 1945. A Carta foi aprovada no Brasil pelo decreto nº 7.935, de 4 de setembro, e ratificada dias depois, em 12 de setembro, por ato do Executivo, já que não havia Legislativo em funcionamento. A base legal para sua aprovação pelo governo brasileiro foi o artigo 180 da Constituição de 1937, segundo o qual “enquanto não se reunir o Parlamento nacional, o presidente da República terá o poder de expedir decretos-leis sobre todas as matérias da competência legislativa da União”. O depósito da ratificação brasileira junto ao governo dos EUA se deu em 21 de setembro. A Carta foi promulgada pelo decreto nº 19.841, de 22 de outubro, assinado por Vargas e Leão Velloso. Com a entrega do número exigido de instrumentos de ratificação, no dia 24 de outubro de 1945, a Carta entrou formalmente em vigor. A partir de 1948, essa data passou a ser celebrada como o Dia das Nações Unidas.452 Comissão Preparatória das Nações Unidas O mundo já tinha a Carta, agora restava implementá-la. Para esse fim, ao final da Conferência de São Francisco, os países participantes decidiram criar uma Comissão Preparatória das Nações Unidas, com um representante de cada governo signatário da Carta, a fim de tomar as medidas práticas necessárias para as primeiras sessões da Assembleia Geral, do Conselho de Segurança e demais órgãos da ONU, incluindo o Secretariado da organização. A Comissão realizou sua primeira sessão logo no dia seguinte ao encerramento da Conferência, em 27 de junho. A reunião foi curta. Esgotados após dois meses de extenuantes labores, enquanto a maioria se comprazia da “missão cumprida” e retornava a suas casas, os poucos delegados que ficaram não estavam de modo algum propensos a começar nova e complexa tarefa àquela altura. Persuadidos pelo anticlímax, decidiram apenas que a Comissão Preparatória funcionaria em Londres, sob os auspícios do governo britânico, assim que a Carta entrasse em vigor. Antes disso, para coordenar as atividades da Comissão, haveria um Comitê 451

Freitas-Valle, Relatório das atividades do Comitê 1 da Comissão III e “Palavras Finais”, in Relatório das atividades da III Comissão da Conferência e do Comitê de Coordenação, bem como da I Reunião da Comissão Preparatória das Nações Unidas, Ottawa, 9 jul. 1945, CDO, Maço 42.949. 452 Diário Oficial, nº 250, Seção I, Atos do Governo, 5 nov. 1945, p. 575 et seq; RANGEL, Vicente Marotta. Direito e relações internacionais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 27.

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Executivo, nomeado a partir do comitê que existia durante a Conferência, no qual figurava o Brasil, representado por Freitas-Valle. Assim, além dos P-5, os mesmos países que haviam participado do Comitê Executivo em São Francisco continuariam suas funções em Londres: Austrália, Brasil, Canadá, Chile, Irã, Iugoslávia, México, Países Baixos e Tchecoslováquia.453 Em 16 de agosto de 1945, começaram em Londres as reuniões desse novo Comitê Executivo, que devia preparar recomendações para que a organização fosse posta em funcionamento no espaço de alguns meses. Freitas-Valle acompanhou de perto os debates, que se estendiam a dez subcomitês, assessorado pelos diplomatas Vasco Leitão da Cunha, Henrique Valle, Carlos Eiras, George Álvares Maciel e outros. Como o grupo era pequeno no Comitê Executivo, com 14 pessoas, os chefes de delegação tinham muitas oportunidades para intervir e participar das discussões. Foi, aliás, por uma proposta brasileira que, em nome da transparência, o Comitê Executivo decidiu remeter periodicamente, aos demais 37 Estados-membros que integravam a Comissão Preparatória, informação sobre os progressos que iam sendo alcançados.454 Para Freitas-Valle, o Comitê Executivo foi dominado pelo representante soviético, Andrei Gromyko, cuja atitude era “negativa”. Seu objetivo central era, a todo custo, reforçar o Conselho de Segurança. A União Soviética foi o último dos cinco membros permanentes a entregar seu depósito de ratificação, ciente de que, sem sua adesão, a Carta teria sua força diminuída. O delegado brasileiro avaliou que, enquanto permanecia em dúvida a ratificação por Moscou, Gromyko procurava obter o máximo de concessões das potências ocidentais. A tática teria surtido efeito e o Comitê em geral tratou de acomodar os interesses da URSS. Na visão de Freitas-Valle, “o que a delegação soviética desejava era que não se precisassem as atribuições dos vários órgãos das Nações Unidas, evidentemente para deixar que delas tomasse conta o Conselho de Segurança”.455 Um ponto largamente debatido foi a escolha do país que deveria sediar a organização mundial. Não eram poucos os que defendiam que a ONU ficasse em território europeu. Argumentava-se que a Europa, referência cultural de grande parte do mundo, com conexões e facilidades de transportes e comunicações que a ligavam à maioria dos Estados-membros, era também, em termos potenciais, o centro de maior instabilidade internacional. Na sua função de manter a paz e a segurança, a ONU devia estar próxima dos lugares onde seria mais necessária, do contrário poderia ver-se acometida de distanciamento oficial e ausência de realismo. Outros sustentavam que seria negativo para a organização estar localizada no território de um dos P-5. Tal país poderia exercer influência indevida e extrair vantagens dessa condição. O poder global precisava ser distribuído de modo mais equitativo e era inconveniente que, além das sedes do FMI e do BIRD, os Estados Unidos também abrigassem a ONU. Melhor seria colocá-la em um país pequeno, neutro, afastado das principais contendas internacionais.

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Relatório da delegação do Brasil à Conferência das Nações Unidas para a Organização Internacional. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores, 1945, mimeo, p. 15. Biblioteca do MRE; Leão Velloso a Exteriores (Macedo Soares), telegrama, São Francisco, 19 jun. 1945, AHI 76/3/20. 454 Freitas-Valle, Relatório das atividades da III Comissão da Conferência e do Comitê de Coordenação, bem como da I Reunião da Comissão Preparatória das Nações Unidas, Ottawa, 9 jul. 1945, CDO, Maço 42.949; Freitas-Valle a Leão Velloso, ofício, Londres, 31 out. 1945, CDO, Maço 40.235. 455 Freitas-Valle a Leão Velloso, ofícios, Londres, 31 out. 1945, CDO, Maço 40.235.

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Aqueles em favor dos EUA retrucavam que a Europa não era o único centro de dificuldades e outras áreas, no Pacífico e nas Américas, exigiam igual atenção. A ONU deveria ser verdadeiramente internacional e não apenas uma organização regional. A Liga das Nações havia fracassado apesar de estar na Europa. Ressuscitar Genebra seria uma péssima ideia, até mesmo porque o governo suíço, preocupado em salvaguardar seu status de neutralidade, não queria envolver-se desta vez. Um novo começo requeria uma nova atmosfera. Um espírito de cooperação genuína deveria guiar a ação da ONU, sem importar o local de sua sede. Caso os EUA fossem escolhidos, concluíam os adeptos dessa opção, isso também ajudaria a assegurar o apoio daquele país à organização, fator considerado essencial à luz do precedente isolacionista pós-Primeira Guerra Mundial, de triste memória.456 A questão, em princípio, não era julgada de interesse maior para o Brasil, com base na percepção de que “estando o Brasil fora de cogitação, não temos preferência”. Leão Velloso opinou que “em face da divisão e intransigência de opiniões, devemos ser solidários e votar com os Estados Unidos”. Parecia-lhe, porém, que a sede devia ficar na Europa, cuja política iria suscitar o maior número e os mais complexos problemas a resolver. Eventual escolha, por exemplo, de São Francisco, distante do teatro dos acontecimentos que mais provavelmente poderiam perturbar a paz nos anos seguintes, “daria a impressão, até certo ponto, de um deslocamento do centro da política mundial para o Pacífico”.457 Em 3 de outubro, o Comitê Executivo votou a favor dos Estados Unidos como sede permanente da organização, em cidade a ser definida posteriormente (9 votos a favor, 3 contra e 2 abstenções). Stettinius, como parte interessada, absteve-se de votar. Freitas-Valle relatou que, ao emitir seu voto favorável aos EUA, se sentira incomodado, porque pessoalmente preferia que a sede fosse na Europa e as instruções que havia recebido indicavam, no seu entender, a mesma predileção. “Parece-me necessário autorizar-me a votar com maior elasticidade, sem acompanhar sempre os Estados Unidos da América, sobretudo para desfazer a impressão de que somos duplicação de seu voto”, queixou-se. Leão Velloso não gostou do comentário e foi categórico em sua resposta: “Nós devemos acompanhar os Estados Unidos em questões de importância capital para a sua política. Não me passou nunca pela cabeça que Você pudesse interpretar de outra maneira o nosso pensamento”. E completou: “De resto, o caso da escolha da sede não devia constituir exemplo para o seu reparo à falta de elasticidade de suas instruções, uma vez que, como Você mesmo informa, os Estados Unidos se haviam abstido de votar”. A contrarréplica de Freitas-Valle foi apaziguadora: “Jamais pensava em formular um reparo que não está em meu espírito. O pedido de autorização para agir com elasticidade foi produto do desejo de melhor servir a Vossa Excelência”.458 Mesmo com a recomendação aprovada pelo Comitê Executivo, a Comissão Preparatória reabriu novamente toda a discussão. Nos EUA, não havia ainda decisão quanto à localização exata e surgiram movimentos a favor de cidades como Filadélfia, Boston, Nova York e São Francisco. Contra esta última, os britânicos argumentaram que não existia capital alguma 456

Yearbook of the United Nations, 1946-47. Nova York: UN Department of Public Information, 1947, p. 41-42; cf. também LUARD, Evan. A history of the United Nations: the years of Western domination, 1945-1955 (vol. I). Nova York: St. Martin’s Press, 1982, p. 79-85. 457 Leão Velloso a Freitas-Valle, telegramas, Rio de Janeiro, 11 set. e 8 out. 1945, AHI 79/4/9. 458 Freitas-Valle a Leão Velloso, telegramas, Londres, 4, 5 e 11 out. 1945, AHI 79/3/20; Leão Velloso a FreitasValle, telegrama pessoal e reservado, Rio de Janeiro, 9 out. 1945, AHI 79/4/9.

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no raio de duas mil milhas daquela cidade californiana, igualmente rejeitada pelos soviéticos em função de sua larga distância de Moscou. Em 22 de dezembro, votou-se pela costa leste norteamericana para a futura sede permanente da ONU. Freitas-Valle explicou que o sentido político da decisão era colocar a sede no lugar mais próximo possível da Europa. Não se pretendia com isso desqualificar tecnicamente a costa oeste ou a cidade de São Francisco. Mais tarde, Nova York seria enfim selecionada. A decisão foi tomada pela Assembleia Geral, em Londres, em 14 de fevereiro de 1946. Naquele mesmo ano, uma oferta de US$ 8,5 milhões para a compra de local às margens do rio Hudson, em Turtle Bay, feita por John D. Rockefeller Jr., viabilizou a escolha definitiva de Manhattan como sede.459 Com a entrada em vigor da Carta, o Comitê Executivo aprovou seu relatório final em 27 de outubro, a fim de que a Comissão Preparatória desse continuidade aos trabalhos. No sistema de rodízio aplicado à presidência, o Brasil foi então eleito para presidir o Comitê Executivo, primeiro país a ocupar esse cargo depois das cinco grandes potências. Coube assim a Freitas-Valle apresentar o relatório do Comitê à Comissão Preparatória, na abertura de sua segunda sessão, em 24 de novembro. Em sua intervenção naquele dia, o delegado brasileiro sublinhou o espírito de “harmonia” reinante no Comitê (“we were a very happy family”), que havia chegado a acordo unânime em cerca de 90% de suas recomendações. Sua sugestão era de que a Comissão se concentrasse em resolver os 10% restantes e referendasse com rapidez aquilo que o Comitê já havia aprovado sem qualquer dissenso.460 Naquela conjuntura, entre delegados e observadores da cena política a percepção mais comum era de pessimismo. O cronograma estava bastante atrasado. A primeira Assembleia Geral, que se pensava inicialmente poder inaugurar-se em novembro de 1945, teve de ser adiada para janeiro de 1946. O atraso não era provocado somente pela vagareza nas deliberações da Comissão. Era reflexo do desfazimento gradual da aliança de conveniência que derrotou o nazifascismo e de pelo menos três fatores que colaboravam para retardar a instalação definitiva da ONU: a obstrução soviética, movida pelo receio da URSS de ver a organização cooptada pelo Ocidente; a indecisão norte-americana, ainda oscilante entre cooperar ou endurecer com Stalin; e a debilidade europeia, cujas potências outrora dominantes se encontravam em estado de penúria econômica e ainda buscavam se recompor das pesadas perdas sofridas durante a guerra. “Sem comida, sem roupa, sem remédio e sem casa e carvão, espera-se na Europa com horror um inverno dramático”, vaticinava Freitas-Valle. Da capital britânica, onde o dia a dia era vivido com dificuldades de toda ordem, Freitas-Valle pintou um quadro sombrio para todo o continente europeu: “A UNRRA não tem dimensões para enfrentar a situação. A Rússia sofreu demais para pensar nos outros e, de resto, desconfia de todos. Espera-se com simplicidade, como coisa inevitável, a morte por frio e por epidemia de vários milhões de europeus”.461 Uma Europa combalida pouco tinha a oferecer para aplainar os desacordos entre EUA e URSS. O fosso Leste-Oeste ia se alargando. Os focos de tensão se multiplicavam: disputa pelo controle dos estreitos de Dardanelos, atritos na questão da Palestina, conflitos internos na China, revolta indonésia contra a metrópole colonial holandesa, etc. Jornalistas apontavam que o 459

Freitas-Valle a Leão Velloso, telegrama, Londres, 23 dez. 1945, AHI 79/3/20; Freitas-Valle a Leão Velloso, carta, Londres, 7 out. 1945, CPDOC, CFV ad 44.09.20. 460 Relatório do Comitê Executivo, documento anexo ao ofício de Freitas-Valle a Leão Velloso, Londres, 9 dez. 1945, CDO, Maço 40.235. 461 Freitas-Valle a Leão Velloso, telegrama, Londres, 22 out. 1945, CDO, Maço 40.235.

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problema mais grave era de gerenciamento de crise. As grandes potências haviam enveredado por um caminho de recriminações mútuas e pareciam “incapazes de andar juntas em qualquer iniciativa de importância”. A consequência imediata era o enfraquecimento da confiança popular na ONU, que precisava entrar logo em ação, “antes que o mundo seja novamente fracionado em vários agrupamentos armados e opostos”.462 Em um tópico, porém, concordavam as grandes potências: na ONU, as decisões fundamentais deveriam caber ao Conselho de Segurança, preservando-se a sua liberdade de ação. Lembravam que a Carta estaria a seu favor e lhes dava esse direito. O artigo 34 conferiu poderes ao Conselho para investigar “qualquer controvérsia ou situação suscetível de provocar atritos entre as nações ou dar origem a uma controvérsia”, a fim de determinar se pode haver ou não ameaça à manutenção da paz e da segurança internacionais. Da mesma forma, na aplicação dos dispositivos do Capítulo VII, o artigo 39 estabeleceu que compete ao Conselho determinar a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão. Na Comissão Preparatória, os membros permanentes não estavam interessados em estabelecer regras que enrijecessem sobremaneira o órgão. A delegação norte-americana deixou claro que desejava apenas o “mínimo indispensável” ao seu funcionamento. O objetivo não declarado era resguardar a maior flexibilidade possível para que o Conselho tivesse ampla latitude ao tomar qualquer decisão, sem escolhos procedimentais que atravancassem sua capacidade de julgar e agir politicamente, caso a caso. Nesse sentido, ao interpretar o artigo 30 da Carta, segundo o qual o Conselho de Segurança deveria adotar “seu próprio regulamento interno”, os P-5 em geral sustentavam (como ainda o fazem) que o órgão era “the master of its own procedure”. Suas regras de procedimento, adotadas em 1946, continuam até hoje “provisórias”, como a demonstrar que podem ser revistas ou suspensas a qualquer momento. Não obstante tal exegese, é óbvio que o Conselho, mesmo sendo uma instituição eminentemente política, não pode atuar à revelia do direito internacional ou da Carta da ONU e, por isso mesmo, não está “acima da lei”. O presidente da Comissão Preparatória era o colombiano Eduardo Zureta Angel, cuja eleição havia recebido apoio brasileiro. O Brasil esteve representado por delegados em todas as sessões dos oito comitês da Comissão Preparatória: Assembleia Geral; Conselho de Segurança; Conselho Econômico e Social; Tutela; problemas legais e CIJ; administração e orçamento; Liga das Nações; e questões gerais. A delegação brasileira fez questão de assinalar que nenhum outro país latino-americano tivera histórico parecido, igualado somente pelos EUA e pela maioria europeia. A maior parte da agenda era devotada a questões processuais dos órgãos da ONU ou minúcias técnicas, embora isso não livrasse as reuniões de longas e tediosas querelas sobre parágrafos específicos ou uma palavra bem ou mal colocada. No comitê que discutiu assuntos administrativos e orçamentários, de suas 24 sessões a mais breve foi justamente a última, porque “todos os delegados temiam tocar numa das pedras de um edifício arguido à custa de grandes esforços e de cuja estrutura não estavam muito seguros”.463 A coordenação multilateral entre o grupo latino-americano na ONU deu seus primeiros passos. O interesse imediato era reservar postos para países da região, obedecendo a 462

“Urgente necessidade da organização internacional”, Louis Keemle, Nova York, United Press, especial para o Correio da Manhã, 9 nov. 1945, CDO, Maço 40.235. 463 Yearbook of the United Nations, 1946-47. op. cit. p. 36; Mendes Viana a Freitas-Valle, Relatório sobre as atividades do Comitê nº 6 (Administração e Orçamento) da Comissão Preparatória das Nações Unidas, Londres, 28 dez. 1945, CDO, Maço 40.235.

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uma rotação equitativa. Em termos políticos, alternava-se entre posições pró-EUA (travestidas de “solidariedade continental”) ou autenticamente latino-americanas. Em reunião do grupo, em 19 de novembro, Freitas-Valle sugeriu que a América Latina não votasse em bloco na Comissão. Seria melhor se cada país se inspirasse no “comum idealismo americano”. A preocupação brasileira era guardar certa autonomia e evitar que o grupo, nas suas articulações prévias, resolvesse suas diferenças pelo voto, ao invés do consenso, vinculando todos os países à solução aceita pela maioria. Freitas-Valle indicou que o Brasil, nesses casos, não iria considerar-se obrigado pelas decisões da maioria na hora de emitir seu voto perante a Assembleia. Pode-se argumentar que o Brasil talvez preferisse manter-se isento de compromissos junto ao bloco latino-americano para, em caso de necessidade, votar com os EUA mesmo não estando acompanhado dos países da região. Essa possibilidade, contudo, seria mais teórica do que real, dada a capacidade norte-americana de arregimentar votos da América Latina nos assuntos de interesse direto de Washington.464 No caso das línguas oficiais da organização, a delegação brasileira divergiu da proposta do Equador, apoiada pela URSS, de usar o inglês, francês, espanhol, russo e chinês como idiomas de trabalho. O Brasil preferia que fossem usados apenas o inglês e o francês.465 A Comissão Preparatória foi, em suma, uma ocasião para testar a prática do multilateralismo onusiano antes da ONU. Afastado da Liga das Nações desde 1926, o governo brasileiro tinha muito a ganhar com essa experiência. Concluídos os trabalhos da Comissão, em 23 de dezembro de 1945, Freitas-Valle enviou ao Itamaraty considerações a latere sobre a preparação que se fazia necessária para as reuniões internacionais de que o Brasil participasse. Reuniu sugestões práticas para melhorar a eficiência do serviço das delegações, tais como tomar providências com antecipação, coletar material a respeito da agenda dos encontros, redigir instruções e nomear representantes com tempo hábil para que não partissem atrasados. A falta de instruções detalhadas muitas vezes levava à improvisação. A Secretaria de Estado, no Rio de Janeiro, devia estar aparelhada para tal e centralizar o acompanhamento de cada evento. As delegações também precisariam ser dotadas de pessoal, recursos e instalações em nível adequado, incluindo atenção ao pagamento das diárias. Tudo isso ajudaria a fortalecer a presença brasileira, pois “o relevo do Brasil não existia faz um quarto de século” e seria agora “uma realidade”. Entretanto, para manter essa situação de “destaque”, ponderou Freitas-Valle, era indispensável lastreá-la com uma colaboração eficiente: “Deixar de prestá-la seria comprometer esse mesmo prestígio”. Outra sugestão era incluir nas delegações “homens públicos, representativos de todos os partidos brasileiros”, a exemplo do que vinham fazendo EUA, França, Canadá e outros governos, que convidavam parlamentares de expressão para compor suas delegações.466 A primeira campanha a um assento não permanente A propaganda do Estado Novo procurou vender a ideia de que o Brasil havia saído da guerra com sua reputação internacional em alta. No front militar, a FEB brilhara na Europa e 464

Freitas-Valle a Leão Velloso, telegrama, Londres, 20 nov. 1945, CDO, Maço 40.235. Freitas-Valle a Leão Velloso, telegrama, Londres, 7 dez. 1945, CDO, Maço 40.235. 466 Freitas-Valle a Leão Velloso, ofício, Londres, 31 dez. 1945, CDO, Maço 40.235. 465

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dividia com os Aliados o merecido gáudio pela vitória. No front diplomático, Chapultepec e São Francisco teriam sido dois êxitos para os negociadores brasileiros na grandiosa tarefa comum de construir um futuro de paz no continente americano e no mundo. Em seu pronunciamento na Hora da Independência, em 7 de setembro de 1945, Getúlio Vargas realçou com otimismo o valor da atuação externa de seu governo: A posição do Brasil na vida internacional nunca foi de tanto prestígio e segurança. Sustentamos com as nossas próprias armas o direito de existir entre os povos livres. Finda a luta, não reclamamos vantagens. Queremos, antes de tudo, que, na recomposição das relações entre os povos, prevaleçam os princípios de justiça e igualdade. Depois das deliberações de São Francisco, a próxima reunião de chanceleres americanos em nossa capital vai assentar o que nos cumpre fazer na reafirmação do pacto continental. A escolha é uma honra para nós e concorrerá para fortificar os postulados básicos da 467 solidariedade interamericana.

O intento malogrado de obter um assento permanente no Conselho de Segurança não turvava esse cenário de contentamento. A candidatura brasileira, tratada sempre com reservas e confidencialidade, passara virtualmente despercebida por muitos. Uma outra oportunidade agora se apresentava. Esperando contar com o apoio antecipado dos Estados Unidos, o Brasil ainda poderia ser eleito pela Assembleia Geral para um assento não permanente no Conselho. No Ministério das Relações Exteriores, a Divisão Política e Diplomática (DPD) ficaria encarregada de acompanhar e coordenar o assunto, sob a supervisão do gabinete do ministro. É de interesse constatar que, das candidaturas que poderiam ser apresentadas para as primeiras eleições aos órgãos principais da ONU, o Brasil optou por concorrer ao Conselho de Segurança porque calculava que ali se iria jogar a partida principal, dada a posição-chave conferida ao órgão na estrutura da organização. Que o governo Getúlio Vargas haja tomado essa decisão não deixa de ser digno de nota. Apesar da importância do tema do desenvolvimento econômico para Vargas e da expectativa existente em relação ao tratamento das questões econômicas e sociais no ECOSOC, tal não implicava renunciar a um papel para o Brasil na esfera da segurança internacional. Com efeito, o Brasil perseguiria uma vaga no Conselho de Segurança, mas sintomaticamente não no ECOSOC. A campanha teve início seriamente com o envio pelo Itamaraty da circular telegráfica nº 126, de 10 de setembro de 1945, a todas as missões diplomáticas do Brasil no exterior. A circular confidencial recordava que, para a eleição dos seis membros não permanentes do Conselho, o artigo 23 da Carta havia estabelecido os seguintes critérios: a contribuição dos Estados-membros para a manutenção da paz e da segurança internacionais, assim como aos outros fins da organização; e uma distribuição geográfica equitativa. De acordo com o critério geográfico, assumia-se caber “incontestavelmente” ao continente latino-americano um dos referidos lugares. Já com relação ao critério de contribuição para a manutenção da paz e outros objetivos da organização, apontava a circular, “é evidente que, na América Latina, nenhum país tem os títulos que reúne o Brasil para aspirar a fazer parte do Conselho de Segurança”:

467

A Conferência interamericana mencionada por Vargas, prevista para outubro de 1945 no Rio, foi adiada e só se realizou em 1947 (cf. Capítulo 3). VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil, vol. XI. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1947. p. 182.

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Além do papel que, em função de sua posição-chave no continente, sobre o Atlântico, o território brasileiro representou, por meio de suas bases aéreas, nas operações militares defensivas e ofensivas dos Aliados, o Brasil tomou parte efetiva na guerra, patrulhando com a sua marinha e aviação o Atlântico Sul e combatendo com o seu exército na Itália. É sabido que em muitos países latinoamericanos o ciúme despertado pela posição internacional que o Brasil conquistou mercê de sua atitude, esforços e sacrifícios até de vidas concorre para obscurecer o conceito sobre o nosso papel na guerra e os direitos que com isso adquirimos. Nos países extracontinentais, porém, onde não existem os mesmos recalques a nosso respeito, não há quem não reconheça os serviços que prestamos à causa 468 aliada.

Como se falava em eventual convocação da Assembleia Geral para novembro, era chegado o momento de cuidar da eleição do Brasil. “Não queremos entrar para o Conselho de Segurança por questão de vaidade e sim de equidade e justiça tão somente”. Os chefes de missão ficavam autorizados a agir nesse sentido e informar o governo junto aos quais estavam acreditados sobre a aspiração brasileira e os seus motivos: “Vossa Excelência agirá como achar mais acertado e oportuno, comunicando-nos os resultados dos seus passos. Ao sentir a reação do seu interlocutor decidirá se a sua démarche deve conservar o caráter de uma simples sondagem ou ir ao ponto de obter do mesmo que comprometa o seu voto”. Nas gestões que fossem feitas nas capitais, deveriam ser usados os argumentos em favor da candidatura brasileira, que eram “muito fortes”. Se contasse com o apoio unânime dos países americanos, inclusive o Canadá, o Brasil teria “quase ganho de causa”. No entanto, a circular deixa transparecer preocupação com a reação dos países latino-americanos, recomendando aos embaixadores na região “o máximo cuidado e tato na maneira de proceder”.469 O receio de que a candidatura pudesse ser mal recebida na América Latina era sintomático da falta de confiança e de qualidade nas relações do Brasil com seus vizinhos, um problema muito mais profundo do que o alegado “ciúme” pela posição internacional relativa que o país havia hipoteticamente conquistado com sua atitude na Segunda Guerra Mundial. De costas para a região, mais interessado em preservar e aprofundar a “relação especial” com os Estados Unidos, o governo brasileiro tinha dificuldade em desatar esse nó de sua política externa. Recebida a instrução, as embaixadas começaram a se movimentar. Aos argumentos apresentados pela Secretaria de Estado outros foram sendo agregados. Em primeiro lugar vinha sempre a contribuição brasileira ao esforço de guerra dos Aliados. O Brasil se havia perfilado em 1942 “ao lado das Nações Unidas e da causa do direito e da justiça”, quando ainda era incerto o desfecho do conflito e alguns observadores neutros opinavam pela vitória alemã. Somente da base aérea de Natal saíram por dia, durante a Batalha de El Alamein, 1.300 aviões de bombardeio e caças norte-americanos que, atravessando o Atlântico em uma escala (na Ilha de Ascensão), aterrissavam em Bathurst, na costa da África (hoje Banjul, capital da Gâmbia), e de lá se dirigiam para a Líbia, onde “mudaram radicalmente a sorte da batalha, podendo, graças a esse apoio, vencer o general Montgomery as aguerridas legiões de Rommel”. O patrulhamento do Atlântico Sul pelas forças brasileiras de mar e ar aliviou desse serviço várias unidades da esquadra norteamericana, que puderam assim reforçar a sua frota do Pacífico. Os cruzadores e destróieres da Marinha de Guerra brasileira, bem como a sua aviação, afundaram diversos submarinos 468

Exteriores (Leão Velloso) às Missões Diplomáticas, circular telegráfica nº 126, confidencial, Rio de Janeiro, 10 set. 1945, CDO, Maço 40.275. 469 Ibid.

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germânicos, que hostilizavam e torpedeavam navios mercantes no litoral do continente americano. Perdeu o Brasil, postos a pique, por torpedeamento, 32 navios da sua Marinha mercante (total superior a 200 mil toneladas, o que representava mais de um terço de toda a sua frota comercial), “morrendo nesses traiçoeiros ataques mais de mil brasileiros”. A FEB combateu os alemães na Itália, havendo para isso mobilizado milhares de homens. “Várias centenas de brasileiros lá ficaram para sempre, mortos no campo de batalha”, depois de oferecer suas vidas para uma causa comum a todos os países aliados. O Brasil, em vista de tudo disso, “amparado pelo espírito dos seus filhos tombados em defesa do direito e contando com o fraternal apoio dos seus irmãos do continente”, julgava-se em condições de ingressar no Conselho de Segurança. Esse arrazoado era usado pelos diplomatas brasileiros, com diferentes variações, nas gestões formais e informais realizadas bilateralmente junto às chancelarias locais ou, em alguns casos, junto ao chefe de Estado ou de governo do país em questão. Um típico fecho de nota solicitando apoio era redigido da seguinte maneira: O governo brasileiro que, com profunda simpatia e gratidão se recorda da fraternal amizade dispensada pelo povo e pelo governo desse país, tem a certeza que o seu primeiro mandatário impartirá as instruções necessárias a seus representantes junto à Assembleia das Nações Unidas, a fim de que o voto dessa nobre nação seja favorável ao Brasil. Pode ficar certo Sua Excelência o Presidente da República [do país X] que um gesto favorável ao Brasil não ficará esquecido e que cada brasileiro terá, no seu coração, um sentimento muito profundo de carinho grato para os seus irmãos [nacionais 470 do país X].

Em solicitação especial dirigida à embaixada brasileira em Washington, o Itamaraty lembrou que o valor da contribuição do Brasil para a Administração de Assistência e Reabilitação das Nações Unidas (UNRRA) era mais do que o dobro da soma de todos os outros países latinoamericanos reunidos, isto é, US$ 30 milhões contra US$ 12 milhões. O embaixador Carlos Martins foi solicitado a recordar o compromisso assumido pelo governo norte-americano, em São Francisco, de apoiar a eleição do Brasil. “É essencial que ele [o governo dos EUA] o faça junto aos outros membros permanentes do Conselho, que hão de proceder, conforme suponho, ao trabalho prévio de coordenação de votos”, lembrou Leão Velloso. Os concorrentes diretos do Brasil seriam o México e o Chile, ambos participantes do Comitê Executivo da Comissão Preparatória das Nações Unidas. Além disso, existiam as fortes candidaturas da Austrália e do Canadá. As eleições seriam, portanto, “renhidas”. O Brasil deveria estar preparado “para muitas surpresas”. Diante desse quadro, Leão Velloso evocou implicitamente a memória da colaboração norte-americana na Conferência da Paz de 1919, quando o Brasil foi indicado pelo Pacto como membro não permanente do Conselho Executivo da Liga das Nações, graças ao respaldo decisivo do presidente Wilson: “Nós temos o direito, pela nossa atitude e pelos nossos sacrifícios na guerra, a contar inteiramente com a amizade dos Estados Unidos, como contamos depois da guerra de 1914. Não é possível que ela nos venha a falhar agora que a nossa cooperação, inclusive militar, se tornou ainda mais íntima”.471 470

A título de exemplo, cf. memorando confidencial preparado pela embaixada do Brasil em Tegucigalpa, s/d, 1945, CDO, Maço 40.275. 471 Leão Velloso a Carlos Martins, telegrama, Rio de Janeiro, 24 set. 1945, AHI 52/2/5. Para o apoio de Wilson ao Brasil na Conferência da Paz de 1919, cf. GARCIA, Eugênio Vargas. Entre América e Europa: a política externa brasileira na década de 1920. Brasília: Editora UnB/FUNAG, 2006, p. 64-73.

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As primeiras reações à candidatura brasileira foram encorajadoras. Colômbia, Paraguai, Peru, República Dominicana e Uruguai acenavam com inclinações positivas. O chanceler peruano declarou que, com o Brasil no Conselho de Segurança, “o Peru se sentiria tão bem como se ele próprio ali estivesse”. Na expectativa de conseguir o endosso da América Latina, Leão Velloso recomendou a Freitas-Valle que se coordenasse com o grupo latinoamericano em Londres e explorasse a possibilidade de um acordo regional para a distribuição dos postos que seriam objeto de eleição nos diversos órgãos da ONU.472 Entre os membros permanentes, a maior incógnita era a União Soviética. Os dois países haviam estabelecido relações diplomáticas há pouco tempo e Leão Velloso mantivera um encontro bilateral amigável com Molotov, à margem da Conferência de São Francisco. Mas as disposições de Stalin não podiam ser inferidas automaticamente. Os representantes da URSS, com sua “habitual reserva e temor”, não tomavam iniciativas sem instruções expressas. A poucos dias da votação, de modo um tanto enigmático, diplomatas da embaixada soviética em Londres disseram que consideravam “assegurada” a eleição do Brasil e, ao mesmo tempo, reclamaram da demora na instalação da embaixada brasileira em Moscou... A formulação ambígua não dava margem suficiente de certeza para concluir que, estando “assegurada” a eleição, o voto soviético seria de fato dado ao Brasil.473 Com exceção do caso particular dos EUA, a Grã-Bretanha foi a primeira das grandes potências a sinalizar seu apoio. De Londres, o embaixador Moniz de Aragão informou que o subsecretário permanente do Foreign Office, Alexander Cadogan, havia acolhido “com muita simpatia” a pretensão brasileira. O assunto ainda seria submetido ao Conselho de Ministros, mas tudo que dependesse da chancelaria britânica seria feito no sentido de favorecer o desejo do Brasil. Cadogan também comentou, em caráter reservado, que outros países da América Latina já haviam feito gestões similares, mas que ele pessoalmente considerava que nenhum outro teria “direitos iguais” aos do Brasil.474 O governo da França considerava ser a aspiração brasileira “baseada nos mais legítimos motivos” e não tinha dúvida de que caberia ao Brasil um posto no Conselho. O Quai d’Orsay prometeu oficialmente o voto francês.475 Na China, a embaixada brasileira em Chungking se valeu de elementos favoráveis das relações bilaterais para reforçar o pedido do apoio: o Brasil havia sido o primeiro país da América Latina a estabelecer relações diplomáticas com a China, o primeiro país do mundo a reconhecer a República da China em 1913, e o primeiro país latino-americano a enviar um embaixador e celebrar um novo tratado igualitário, “apesar de nunca haver abusado do direito de extraterritorialidade, nem haver discriminado contra a imigração chinesa”. O voto da China, que tinha presente “a boa amizade do Brasil”, era dado como praticamente certo.476 Na América do Sul, o governo brasileiro esperava com impaciência notícias da Argentina, principalmente após os bons ofícios oferecidos em Chapultepec e a ingente defesa que 472

Cf. Leão Velloso a Freitas-Valle, telegrama, Rio de Janeiro, 26 set. 1945; e correspondência completa sobre a candidatura brasileira no Maço 40.275, CDO, em Brasília. 473 Moniz de Aragão a Leão Velloso, telegramas, Londres, 24 set. 1945 e 8 jan. 1946, CDO, Maço 40.275. 474 Moniz de Aragão a Leão Velloso, telegrama, Londres, 12 set. 1945, CDO, Maço 40.275. 475 F. de Castello-Branco Clark a Leão Velloso, telegramas, Paris, 15 e 22 set. 1945, CDO, Maço 40.275. 476 Joaquim E. Nascimento Silva a Leão Velloso, telegrama, Chungking, 15 set. 1945; Moniz de Aragão a Leão Velloso, telegrama, Londres, 21 set. 1945, CDO, Maço 40.275.

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o Brasil fizera do país vizinho em São Francisco. Leão Velloso estava particularmente interessado em manter um equilíbrio entre Washington e Buenos Aires: “Convém que a nossa atitude de solidariedade com os Estados Unidos não desatenda à circunstância de sermos vizinhos imediatos e amigos da República Argentina. Devemos evitar parecer hostis à República platina, embora solidários com os Estados Unidos”.477 Mas a política interna na Argentina vivia momento de crise e não havia como auscultar a opinião do governo Farrell. Em outubro de 1945, Perón havia sido obrigado a renunciar à vice-presidência e, preso por quatro dias, retornou após grandes manifestações populares para anunciar sua candidatura às eleições presidenciais. Em meados de novembro, com a situação política mais calma, o apoio argentino pôde ser confirmado. O ministro das Relações Exteriores da Argentina afirmou ao encarregado de negócios brasileiro em Buenos Aires, Décio Martins Coimbra, que o Brasil, por sua participação e serviços prestados na guerra, “mais do que qualquer outra nação da América” tinha direito a um lugar no Conselho. Seria, pois, “profundamente grato à Argentina, dentro do espírito de nossa tradicional amizade”, votar a favor do Brasil. O chanceler argentino ressaltou que “em primeiro lugar e fora de dúvida estaria o Brasil”. A Argentina só votaria no México se fosse atribuído àquele país outro lugar no Conselho.478 Em 27 de novembro, levantamento realizado pela Divisão Política e Diplomática indicava o apoio da maioria dos países centro-americanos e de todos os países da América do Sul. O Chile havia decidido concorrer somente ao ECOSOC e garantiu que votaria no Brasil. Todos os cinco membros permanentes haviam prometido prestigiar a candidatura brasileira. As perspectivas eram igualmente promissoras na Europa e na Ásia. No entanto, uma complicação inesperada surgiu quanto à duração do mandato que se pleiteava. Para evitar que todos os seis membros temporários saíssem ao mesmo tempo, alterando em demasia a composição do Conselho de uma só vez, a metade desses assentos seria renovada ao final do primeiro ano, estabelecendo-se a partir daí o procedimento regular de substituição de três membros não permanentes a cada eleição anual. Por isso, no primeiro escrutínio, estavam em disputa três assentos com mandato de dois anos e três por somente um ano. O governo brasileiro atribuía a máxima prioridade ao assento pelo período de dois anos. Temia, contudo, que o México reivindicasse o mesmo e que outros países não atentassem para a diferença entre um e outro caso. Para precaver-se de sobressaltos, Leão Velloso pediu que Carlos Martins, em Washington, cobrasse mais empenho do Departamento de Estado nesse aspecto, que se estimava crucial: Torna-se conveniente que esse governo insista para que a eleição do Brasil para o Conselho de Segurança seja por dois anos e não por um apenas, atentos os nossos títulos que os Estados Unidos bem conhecem. O papel que representamos no continente e a nossa beligerância efetiva conferem ao Brasil títulos indisputáveis. Parece que a Grã-Bretanha trabalha por conseguir um lugar por dois anos para a Austrália ou o Canadá. O mesmo faz a Rússia em favor da Ucrânia. A opinião pública brasileira ficaria justamente desapontada se se pretendesse que o Brasil e a América Latina se devessem resignar com a eleição por um ano. Os Estados Unidos precisam fazer valer o seu prestígio a fim de evitar esse 479 fato. 477

Leão Velloso a Freitas-Valle, telegrama confidencial, Rio de Janeiro, 10 nov. 1945, AHI 79/4/9. Décio Martins Coimbra a Leão Velloso, telegrama confidencial, Buenos Aires, 21 nov. 1945, CDO, Maço 40.275; Leão Velloso a Freitas-Valle, telegrama, Rio de Janeiro, 23 nov. 1945, AHI 79/4/9. 479 Leão Velloso a Carlos Martins, telegrama confidencial, Rio de Janeiro, 27 nov. 1945, AHI 52/2/5. 478

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Para Freitas-Valle, os dois primeiros anos é que dariam a medida do que a organização seria ou não capaz de fazer. O Conselho teria “importância decisiva” nesse processo, ditando o ritmo da ação empreendida para dirimir conflitos ou suprimi-los. Era “inacreditável”, escreveu, que nem todos percebessem a importância para o Brasil de ser eleito por dois anos. Lamentou, a propósito, que na Europa “não se deve ignorar que o nosso nome não tem prestígio, mesmo depois do que fizemos na guerra”. Leão Velloso também lastimou a falta de reconhecimento pelos serviços prestados pelo Brasil: “Não é justo que se relegue a um terceiro plano o Brasil, o qual além dos seus títulos próprios reúne o de representante da América Latina”.480 Em 15 de dezembro, o grupo latino-americano reunido em Londres decidiu unanimemente endossar as candidaturas do Brasil e do México. O grupo também passou a reivindicar que quatro países da região fossem eleitos para o ECOSOC. O ensejo levou o Itamaraty a expedir nova circular telegráfica orientando as missões diplomáticas para que insistissem, mesmo nos países que já haviam expressamente comprometido seu voto com o Brasil, no interesse brasileiro por um mandato de dois anos.481 Em resposta, Carlos Martins informou que o delegado norte-americano havia recebido ordens para votar no Brasil (por dois anos) e no México (um ano). Não satisfeito, Leão Velloso retrucou que esperava do governo dos Estados Unidos não apenas o seu voto, mas sobretudo “seu valioso apoio em favor da nossa candidatura”. Assegurados os votos da quase totalidade das Repúblicas americanas, o Brasil precisaria da oportuna intervenção norte-americana “junto às nações extracontinentais”.482 Às vésperas da eleição, pelos cálculos do Itamaraty, o Brasil podia contar com todos os países americanos, com exceção de Canadá, El Salvador, Haiti e Honduras, que ainda não haviam definido posição de maneira formal. Também estariam garantidos os sufrágios de Arábia Saudita, Bélgica, Dinamarca, Egito, França, Líbano, Luxemburgo, Irã e Turquia, entre outros. Como o governo brasileiro receava, alguns países haviam prometido votar no México, acreditando haver dois lugares idênticos para aquele país e o Brasil, e agora deviam precisar qual a duração do mandato de cada um. A delegação mexicana ainda tentou amealhar votos à última hora para o mandato de dois anos, provocando discussões entre os países latino-americanos, a maioria deles tendente a conferir ao Brasil o período mais longo no Conselho. Com base em entendimento havido no grupo latino-americano de que caberia ao Brasil o mandato maior, a atitude mexicana causou estranheza ao governo brasileiro. Freitas-Valle registrou que “o glorioso resultado da campanha não deve impedir que o embaixador do Brasil do México conte lá como fomos, aqui, desajudados pelo México, único entre os demais cinquenta países a proceder de tal maneira”.483 480

Freitas-Valle a Leão Velloso, carta, Ottawa, 29 jul. 1945, CPDOC, CFV ad 44.09.20; Freitas-Valle a Leão Velloso, telegrama confidencial, Londres, 15 out. 1945, AHI 79/3/20; Leão Velloso a Freitas-Valle, telegrama confidencial, Rio de Janeiro, 29 nov. 1945, CDO, Maço 40.275. 481 Freitas-Valle a Leão Velloso, telegrama, Londres, 17 dez. 1945; Exteriores (Leão Velloso) às Missões Diplomáticas, circular telegráfica nº 169, reservada, Rio de Janeiro, 19 dez. 1945, CDO, Maço 40.275. 482 Carlos Martins a Leão Velloso, telegrama, Washington, 20 dez. 1945; Leão Velloso a Carlos Martins, telegrama confidencial, Rio de Janeiro, 3 jan. 1946, CDO, Maço 40.275 e AHI 52/2/6. 483 Leão Velloso a Freitas-Valle, telegrama, Rio de Janeiro, 7 jan. 1946; Souza Dantas a Leão Velloso, telegrama, Londres, 10 jan. 1946; Freitas-Valle a Leão Velloso, telegrama, Londres, 14 jan. 1946; Leão Velloso à embaixada no México, telegrama, Rio de Janeiro, 17 jan. 1946; CDO, Maço 40.275.

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Convém assinalar que, à luz do artigo 23.1 da Carta, a necessidade prática de preencher os seis assentos não permanentes colocou o problema de como distribuí-los de forma geograficamente equitativa. Antes da eleição pela Assembleia Geral, um acordo de cavalheiros foi alcançado em Londres pelos P-5, tacitamente aceito pelos demais países, para se chegar à seguinte distribuição informal: dois assentos para a América Latina, um para a Europa Ocidental, um para a Europa Oriental, um para o Oriente Médio e um para a Comunidade Britânica.484 Em 9 de janeiro de 1946, em reunião informal restrita aos membros permanentes, destinada a repassar candidaturas às vagas que seriam preenchidas nos diferentes órgãos da ONU, todos os cinco adiantaram que apoiariam o Brasil. A lista dos EUA, idêntica à da Grã-Bretanha, previa Brasil, Canadá e Países Baixos para mandatos de dois anos e Egito, México e Polônia para um ano. A URSS sugeriu Brasil, Canadá e Polônia (dois anos), e Bélgica, Noruega e Síria (um ano). A China optava por Brasil, Bélgica, Canadá, Irã, México e Tchecoslováquia. A França endossaria a escolha de Brasil, Bélgica ou Países Baixos, Polônia, Canadá, México e Egito ou Irã. Como se quisesse se certificar de algo em que tinha dúvida, Alexander Cadogan perguntou se era realmente “necessário” ter dois Estados latino-americanos no Conselho de Segurança, ao que o representante norte-americano, Adlai Stevenson, respondeu pela afirmativa. Ainda na mesma reunião, Gromyko opinou que seria “mais justo” ter somente o Brasil no Conselho, pois assim seria evitada uma super-representação da América do Norte na hipótese de que o México fosse igualmente eleito, ladeando os EUA e o Canadá.485 Finalmente, em 12 de janeiro, respeitando a distribuição sugerida no acordo de cavalheiros das grandes potências, a Assembleia Geral elegeu, como membros não permanentes, Austrália, Brasil e Polônia, para mandatos de dois anos, e Egito, México e Países Baixos, por um ano. O Brasil foi o mais votado logo na primeira rodada, com 47 de um total de 50 votos válidos. Em seguida vieram Egito (45 votos), México (45), Polônia (39) e Países Baixos (37). A Austrália só obteve a eleição depois de disputar uma segunda votação com o Canadá, já que no primeiro escrutínio nenhum dos dois havia atingido a maioria de dois terços. Na definição do mandato de dois anos, o Brasil foi de novo o mais votado (41 votos). O México recebeu apenas 11 votos. Quanto ao ECOSOC, o Brasil não se lançou candidato, como já assinalado, e quatro países da América Latina foram eleitos: Chile, Colômbia, Cuba e Peru.486 O esforço havia sido recompensado e o governo brasileiro festejou a “brilhante vitória”, pela quase unanimidade dos votos. O Brasil via satisfeita, na opinião de Freitas-Valle, “sua única e legítima aspiração no seio das Nações Unidas”: pertencer ao Conselho de Segurança. Segundo o Itamaraty, ao ser divulgada, “essa notícia teve a maior repercussão no país, sendo comentada favoravelmente e com grande destaque por todos os órgãos da imprensa brasileira”.

484

BAILEY, Sydney D. & DAWS, Sam. The procedure of the UN Security Council. Oxford: Clarendon Press, 1998, p. 142-144. 485 Foreign relations of the United States [FRUS], 1946, vol. I. Washington: Department of State, Government Printing Office, 1972, p. 146-147. 486 Official records of the First Part of the First Session of the General Assembly. Plenary Meetings of the General Assembly, verbatim record, 10 January-14 February 1946, Central Hall, Westminster, London, 1946, p. 71 et seq.; Souza Dantas a Leão Velloso, telegramas, Londres, 12 e 14 jan. 1946, CDO, Maço 40.275.

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Único país latino-americano a enviar soldados para combater no continente europeu, o Brasil teve assim um pouco do reconhecimento que buscava, ainda que temporário.487 Pode-se dizer que, na composição do Conselho de Segurança, o resultado das eleições de 1946 foi mais influenciado pela “distribuição geográfica equitativa”, requerida no artigo 23.1 da Carta, do que pelas credenciais dos candidatos no tocante à contribuição para a paz e a segurança internacionais. Na disputa pelo assento da Comunidade Britânica, por exemplo, a Austrália alegou que, caso o Canadá fosse eleito, o Conselho contaria com três países da América do Norte (somando-se EUA e México), ao passo que a região do Pacífico e da Oceania ficaria ausente. Europa, América Latina e Oriente Médio forneceram os demais membros não permanentes. Na prática, o critério geográfico irá prevalecer nas eleições seguintes do Conselho, com os grupos regionais endossando seus respectivos candidatos. A distribuição de assentos prevista no acordo de cavalheiros de Londres será respeitada até o aumento no número de postos eletivos na reforma de 1963-65, quando um novo padrão é adotado pela Assembleia Geral. O tamanho do Conselho, resultante daquela reforma, com um total de 15 membros (cinco permanentes e dez não permanentes), desde então não foi mais alterado, a despeito do aumento significativo no número de Estados-membros da organização (atualmente são 192). A distribuição geográfica vigente ainda hoje no Conselho prevê cinco assentos para a África e a Ásia, dois para a América Latina, dois para a Europa Ocidental e Outros Estados, e um para a Europa Oriental.488 Vargas cai, a diplomacia continua A campanha pelo assento não permanente transcorreu em meio a um cenário interno convulsionado. O Estado Novo tinha seus dias contados. A volta dos contingentes da FEB reforçou a ala militar favorável ao restabelecimento das instituições democráticas representativas. A sucessão presidencial ganhava as ruas e os candidatos se mobilizavam no novo jogo partidário. O apoio dos “queremistas” a Vargas, com a surpreendente adesão dos comunistas, levou muitos membros da oposição udenista a temer que o presidente usasse o recém-legalizado Partido Comunista Brasileiro para manter-se no poder, amparado pelas massas operárias. Conspiradores se articulavam à socapa. Em 22 de junho de 1945, a decretação da Lei dos Atos Contrários à Economia Nacional, conhecida como “Lei Malaia”, de inspiração nacionalista e antitruste, parecia indicar que o governo dava uma guinada à esquerda. Essa nova tendência havia começado em janeiro, com a Instrução Interministerial no 7, que estabeleceu maior controle das importações. Nesta fase, Vargas aparentemente tentava mobilizar os trabalhadores para reconfigurar sua base de sustentação e dar caráter mais “popular” ao regime, talvez buscando assegurar sobrevida a seu projeto político.489 A política externa, todavia, permanecia a mesma. 487

Exteriores (Leão Velloso) às Missões Diplomáticas, circular telegráfica nº 179, Rio de Janeiro, 14 jan. 1946, CDO, Maço 40.275; Freitas-Valle a Leão Velloso, ofício, Londres, 17 set. 1945, CDO, Maço 40.235; Yearbook of the United Nations, 1946-47. op. cit. p. 60. 488 SIMMA, Bruno (ed.), The Charter of the United Nations: a commentary. Oxford: Oxford University Press, 2002, vol. I, p. 437-442. 489 CORSI, Francisco Luiz. Estado Novo: política externa e projeto nacional. São Paulo: Editora UNESP/Fapesp, 2000, p. 273-279.

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Em audiência que concedeu ao embaixador norte-americano no Rio de Janeiro, Adolf Berle Jr., Vargas reafirmou seu apreço por Truman e disse que o Brasil era uma “potência americana e não ainda uma potência mundial”. Assim sendo, a política brasileira devia ser a de “seguir a orientação dos Estados Unidos em todos os assuntos de além-mar”. Nas suas primeiras impressões enviadas a Truman sobre a situação geral do país, Berle apontou que o Brasil não era a maior preocupação norte-americana. A colaboração de Vargas vinha sendo “completa”, ainda que a oposição insistisse que o motivo para tanto era a “pressão popular”. As candidaturas mais fortes às eleições eram de líderes que também vinham cooperando com os EUA e continuariam a fazê-lo depois. “Nada a temer nesse setor”, assinalou Berle. Vargas, que em abril aceitara, sem entusiasmo, estabelecer relações diplomáticas com a URSS, estaria preocupado com a política de Stalin na Europa, não tanto pela problemática europeia em si, mas sobretudo pelos métodos soviéticos de intromissão interna nos outros países por meio dos Partidos Comunistas.490 Ao fazer essa afirmação, talvez Vargas quisesse tranquilizar Berle de que eventual associação sua com o queremismo não significaria aproximação com Moscou... Muito antes de ser eleito, o general Eurico Gaspar Dutra, ministro da Guerra e candidato a presidente pela coligação PSD-PTB, reproduzia o pensamento de Vargas em sua plataforma política. Conforme declarações publicadas no Jornal do Commercio de 2 de abril de 1945, Dutra percebia os laços de amizade Brasil-EUA como “fortes e indestrutíveis”: Os povos de nossas duas democracias [sic] atestam, no referente às suas mútuas relações, o que pode haver de mais longo e mais persistente, em aproximação, entendimentos e solidariedade. É um exemplo e um modelo. E os Estados Unidos da América têm para nós o valor de uma amizade indestrutível e a certeza de uma assistência preciosa e infalível, confirmados em quase século e meio de mútua identidade de ações e plena solidariedade na guerra, como na paz. No exemplo que pusemos na execução de nossos compromissos militares com as Nações Unidas, cabe assegurar, de público, que 491 devemos nosso êxito principalmente à colaboração sem restrições dos Estados Unidos.

Há muito as lideranças antigetulistas tentavam aliciar a embaixada norte-americana para ser mais ativa em prol do movimento democrático crítico ao Estado Novo. Berle via progressos na liberalização do regime brasileiro, que, segundo ele, não poderia ser comparado ao da Argentina, onde Perón comandaria um “Estado policial brutal que não vai a lugar algum”. Contanto que Vargas permanecesse na linha correta, a melhor política seria dar “encorajamento silencioso em direção à democracia”. Berle fez essa sugestão por escrito diretamente a Truman. Em 13 de setembro, em sua carta de resposta, Truman afirmou que achava “desastroso” interferir em assuntos internos do Brasil naquele momento. Mostrou-se também muito satisfeito com o presidente brasileiro: “Parece-me que as coisas vão indo tão bem quanto qualquer um poderia querer. Vargas certamente tem sido nosso amigo”.492 A Casa Branca não tinha então reparos a fazer a Vargas e à sua política pró-Washington. 490

Berle a Truman, cartas, Rio de Janeiro, 17 abr. e 25 jun. 1945, Berle Papers, Box 74, Correspondence, 1945-46. LEITE, Mauro Renault & NOVELLI Júnior. Marechal Eurico Gaspar Dutra: o dever da verdade. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1983, p. 688; VALE, Osvaldo Trigueiro do. O general Dutra e a redemocratização de 45. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978; CARONE, Edgar. A Terceira República (1937-1945). São Paulo: Difel, 1976, p. 130-131. 492 Berle a Truman, carta, Rio de Janeiro, 4 set. 1945; Truman a Berle, carta, Washington, 13 set. 1945, Berle Papers, Box 74, Correspondence, 1945-46. 491

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Em 29 de setembro, em Petrópolis, o “encorajamento silencioso” foi trocado por uma atitude mais estridente. Em discurso perante o Sindicato dos Jornalistas, cujo texto mostrara antes a Vargas, Berle tentou elogiar os passos dados pelo governo brasileiro rumo à democracia constitucional no país, com medidas que o governo norte-americano aplaudia, tais como a anistia política, a liberdade de imprensa, a livre organização dos partidos políticos e a promessa de eleições livres. “Nenhum amigo verdadeiro do Brasil e do povo brasileiro impedirá essa evolução”, disse Berle.493 A repercussão foi imediata. A oposição no Brasil quis entender que os Estados Unidos estavam enviando um “recado” a Vargas de que não iriam mais tolerar ditaduras no hemisfério. Segundo a embaixada brasileira em Washington, o discurso foi “recebido desfavoravelmente pela imprensa e severamente criticado por personalidades políticas de grande responsabilidade”. Leão Velloso inicialmente viu nas palavras do embaixador “o propósito sem precedentes na história do Brasil de intervenção na nossa vida política interna”. Depois, ao receber longas explicações do próprio Berle, convenceu-se de que ele havia cometido uma gafe não intencional.494 Berle admitiu haver falado depois de trocar ideias com o antiperonista Spruille Braden, que deixava Buenos Aires para assumir o lugar de Nelson Rockefeller como secretário de Estado Assistente para as Repúblicas Americanas. A embaixada norte-americana, porém, não havia recebido instruções formais nem do Departamento de Estado nem do presidente Truman.495 Com mais esse infausto ingrediente, a crise política do Estado Novo teve seu ápice em 29 de outubro de 1945, com a deposição de Vargas por um golpe liderado pelo general Góes Monteiro e outros chefes militares. O presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares, assume a presidência da República e decide conservar Leão Velloso no comando do Ministério das Relações Exteriores. O calendário eleitoral também foi mantido. Não houve tampouco alteração na delegação brasileira junto à Comissão Preparatória das Nações Unidas, em Londres.496 Um mês depois, como se aproximavam as eleições e o governo norte-americano queria garantir boas relações com o novo presidente que saísse das urnas, Truman convocou o embaixador Carlos Martins à Casa Branca e, irritado, perguntou o que havia de real no discurso que Berle havia feito em 29 de setembro. Após ouvir as reiterações do diplomata brasileiro de que o incidente não afetara o relacionamento bilateral, Truman afirmou que Berle agira sem instruções e que já o havia advertido a “calar a boca”, acrescentando: “Mas é terrível um embaixador americano sem experiência!”. Com grande probabilidade, Truman desautorizou Berle por julgar que Vargas havia sido um “bom aliado” que ainda possuía crédito de confiança. “Particularmente durante os anos críticos recentes”, escrevera Truman, os brasileiros mostraram ser “verdadeiros amigos dos Estados Unidos”. Washington não via perigo em Vargas. Não havia razão forte para descartá-lo sumariamente enquanto seu compromisso com as posições norte493

Berle a Byrnes, ofício, Rio de Janeiro, 29 set. 1945, Berle Papers, Box 74, Correspondence, 1945-46. Leão Velloso a Carlos Martins, telegramas pessoais, Rio de Janeiro, 1 e 5 out. 1945, CPDOC, GV c 45.10.01/3; Carlos Martins a Leão Velloso, telegrama, Washington, 8 out. 1945, AHI 51/5/8. 495 Para uma consideração mais detalhada do episódio, cf. WOOD, Bryce. The dismantling of the Good Neighbor Policy. Austin: University of Texas Press, 1985, p. 122-131; e HILTON, Stanley E. O ditador e o embaixador: Getúlio Vargas, Adolf Berle Jr. e a queda do Estado Novo. Rio de Janeiro: Record, 1987. 496 A crônica do golpe pode ser lida in SILVA, Hélio. 1945 - Por que depuseram Vargas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. 494

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americanas fosse mantido e, até provado o contrário, a redemocratização no país seguisse seu curso normal. Mas o mal já estava feito.497 Vargas, desde então, perdera a confiança nos Estados Unidos. Talvez aquela fosse sua maior decepção depois de todo o apoio dado pelo Brasil aos EUA na guerra, nas reuniões hemisféricas, nas negociações sobre o pós-guerra e em todos os outros assuntos de interesse norte-americano. Em 1946, contrariado com a falta de gratidão de que havia sido objeto, confidenciou a amigos que jamais pisaria em solo norte-americano enquanto vivesse. Longe do Palácio do Catete, em 1950, Vargas ainda culpava Berle e autoridades do Departamento de Estado (Spruille Braden) pelo golpe que o derrubou, insinuando que, se na ocasião Roosevelt estivesse vivo, aquilo nunca teria acontecido.498 A mudança de governo no Brasil em nada abalou a convicção da diplomacia brasileira de que a chave para aumentar a influência do país no mundo residia nos entendimentos bilaterais com Washington. Em novembro de 1945, Leão Velloso sugeriu troca mais frequente de informações e pontos de vista entre o Itamaraty e o Departamento de Estado sobre questões internacionais de natureza continental e mundial. Essa prática teria dado “excelentes resultados” durante a guerra e seria de “grande utilidade nesta fase não menos delicada da preparação da paz”. Obedecendo à tradição de sua política exterior, o Brasil tinha o desejo de acertar a sua atitude com o governo norte-americano: “Não pretendemos entrar, por essa forma indireta, no concerto das grandes potências reguladoras dos destinos do mundo, mas pensamos que uma colaboração mais íntima a esse propósito com os Estados Unidos nos é devida, como uma sorte de tratamento preferencial, sob o ponto de vista de nossa posição no continente”. O governo brasileiro queria trocar opiniões especialmente sobre a composição dos órgãos da ONU e “problemas relativos aos países vencidos da Europa, a começar pela Alemanha”.499 Quanto a Berle, no final de 1945, o embaixador pediu demissão e foi removido do Rio de Janeiro em fevereiro de 1946, depois de haver permanecido pouco mais de um ano no posto. Após sua partida, escreveu um opúsculo sobre o potencial de desenvolvimento do Brasil, que, segundo ele, não seria “meramente mais um país latino-americano”. Recomendou que os EUA prestassem mais atenção ao país: “Se outra guerra mundial eclodir, o que o Brasil pensa de nós e o que nós pensamos do Brasil pode facilmente determinar o destino de ambos os países”.500 Em 2 de dezembro se realizam as eleições presidenciais e Dutra vence o pleito, apoiado por Vargas, derrotando outro militar, o brigadeiro Eduardo Gomes, candidato da União Democrática Nacional (UDN). A posse de Dutra foi marcada para 31 de janeiro de 1946. A normalização político-institucional do país foi interpretada positivamente pelos meios diplomáticos, uma vez que recolocava o Brasil no caminho da democracia, em consonância com 497

Carlos Martins a Leão Velloso, telegrama secreto, Washington, 29 nov. 1945, AHI 51/5/8; Truman a Berle, carta, Washington, 9 nov. 1945, Berle Papers, Box 74, Correspondence, 1945-46. 498 WOOD. The dismantling of the Good Neighbor Policy. op. cit. p. 129; WEIS, Warren Michael. Cold warriors & coups d’Etat: Brazilian-American relations, 1945-1964. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1993, p. 18; “Vargas lays fall to Braden, Berle”, The New York Times, Nova York, 13 jan. 1950, NYT Archive, www.nytimes.com, acesso em 18/12/2009. 499 Leão Velloso a Carlos Martins, telegrama confidencial, Rio de Janeiro, 22 nov. 1945, AHI 52/2/5. 500 “Brazil: A World Power in the Making”, Berle Papers, Box 166, June 1946; Berle a Truman, carta, Rio de Janeiro, 3 dez. 1945; Truman a Berle, carta, Washington, 20 fev. 1946, Berle Papers, Box 74, Correspondence, 194546.

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os propósitos que animaram anos de luta dos Aliados contra regimes totalitários e militaristas. Indiretamente, também reforçava a candidatura a um lugar temporário no Conselho de Segurança e conferia legitimidade adicional à representação brasileira na I Assembleia Geral da ONU, a se reunir em breve. O começo: I Assembleia Geral Foi demorada a escolha do chefe da delegação brasileira à Assembleia Geral. FreitasValle insistia na presença de Leão Velloso, mas este adiantou, no início de outubro de 1945, que a situação política delicada no Brasil lhe tirava “a coragem de ausentar-se”. Por outro lado, Vargas estava em princípio inclinado a compor a delegação com elementos que já se encontravam na Europa.501 Após a queda de Vargas, o novo governo manteve a determinação anterior. Por isso, confirmada a ausência do ministro das Relações Exteriores, Freitas-Valle aconselhou que fosse convidada uma personalidade de projeção internacional, como Oswaldo Aranha ou Raul Fernandes, tendo em vista a “importância histórica” que a reunião seguramente iria assumir. Em 26 de dezembro, Leão Velloso informou que a delegação seria chefiada por Luiz Martins de Souza Dantas, que havia sido por muitos anos embaixador em Paris (também em Vichy, no período da França ocupada) e se encontrava de volta ao Rio de Janeiro. Durante a guerra, Souza Dantas havia auxiliado judeus e perseguidos pelo nazismo a fugir da Europa, concedendo vistos consulares para o Brasil, mesmo contra disposições do Estado Novo. Com a ocupação alemã de Vichy, passou 14 meses internado na Alemanha, juntamente com funcionários da embaixada brasileira.502 Freitas-Valle se incomodou com a indicação e, em comunicação pessoal ao amigo chanceler, reclamou com franqueza: “Jamais ambicionei a chefia da delegação, mas seria diminuir o prestígio que a rodeia substituir-me apenas por um colega, assim se criando a impressão de alguma coisa haver andado errado durante a Comissão Preparatória”. Em carta particular, dizendo-se “profundamente desolado”, Leão Velloso se desculpou pelo “desgosto” que havia causado e confessou que “meu pensamento íntimo era compô-la com Você como chefe e mais dois delegados que Você mesmo indicaria”. A partir da sugestão de que fosse escolhido “um chefe de delegação de nomeada, acompanhado por membros do futuro Congresso federal”, foram sondados alguns nomes, descartados por motivos vários (doença, razões pessoais, etc.). Restaram “verdadeiras mediocridades”, no dizer de Leão Velloso: Propus, então, o nome do Dantas, convencido de que, por uma série de razões, oferecia no momento a solução mais conveniente. Tinha certa ressonância, julguei que fosse aceitável por Você e me tranquilizava porque não iria intervir na sua ação. Não podia imaginar que fosse provocar a tempestade que provocou. Apresento-lhe as minhas sinceras desculpas. [...] Tenho sido ministro interino de um

501

Leão Velloso a Freitas-Valle, telegrama, Rio de Janeiro, 9 out. 1945, AHI 79/4/9. A história definitiva da trajetória de Souza Dantas foi contada por KOIFMAN, Fábio. Quixote nas trevas: o Embaixador Souza Dantas e os refugiados do nazismo. Rio de Janeiro: Record, 2002. 502

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governo no seu ocaso [Vargas] e ministro efetivo de outro com as horas marcadas [José Linhares]. 503 Ambos, portanto, sem a necessária autoridade. Não lhe desejo uma sorte igual à minha.

Outro fator que dificultou a escolha do nome para chefiar a delegação foi a proximidade da posse do presidente Dutra: “Na véspera da constituição do novo governo ninguém quer estar ausente, pois todos aspiram postos”. Para se redimir da contrariedade e tranquilizar o amigo, Leão Velloso antecipou que Freitas-Valle seria “a raiz e o eixo de nossa delegação”. Pela experiência que havia acumulado desde São Francisco, era “a pessoa indicada para funcionar no Conselho de Segurança”. Também seriam acreditados como delegados o embaixador Moniz de Aragão e o diplomata Vasco Leitão da Cunha, que seria no futuro ministro das Relações Exteriores no governo Castelo Branco (1964-66).504 Em 10 de janeiro de 1946, a I Assembleia Geral foi inaugurada solenemente no Central Hall, em Westminster, Londres, com um discurso do primeiro-ministro britânico, Clement Attlee. Seguiram-se diversas outras intervenções, sem ordem pré-definida.505 Souza Dantas se dirigiu ao plenário em 14 de janeiro, ocasião em que conclamou as nações a fazer da ONU uma “única casa espiritual” e assim cumprir os anseios de fraternidade humana, paz e concórdia. Tentando transmitir uma mensagem forte, compatível com o simbolismo do momento, o delegado brasileiro fez uma exortação à mudança de mentalidade no relacionamento entre os Estados: “O problema que se coloca agora diante dos povos que tenham passado pelo teste de terríveis catástrofes é o de substituir o interesse próprio, excludente dos direitos de terceiros, por uma avaliação de deveres mútuos”. Para que a sociedade humana formasse uma “unidade indivisível”, conjeturou, seria preciso que os Estados aprendessem a “subordinar sua soberania ao interesse prevalecente da humanidade como um todo”. Mais adiante, prosseguiu Souza Dantas: Nenhuma força estritamente temporal pode ter a expectativa de pôr um termo às disputas internacionais. Antes que as armas se calem para sempre, o coração do homem deve ser desarmado; deve ser drenado de todos os preconceitos quanto a raça, nacionalidade e religião; deve ser purgado dos pecados da ambição e do orgulho; devendo ser preenchido, em lugar disso, de esperança e sentimento fraterno. Deve-se erigir um sistema de moralidade internacional, extraído de todo o tipo de força espiritual, e deverá ser esta a moralidade internacional orientadora dos tratados e acordos 506 políticos do mundo de amanhã.

Atento aos perigos que a liberação da energia atômica podia trazer, Souza Dantas manifestou sua “esperança ardente” no respeito aos compromissos da Carta da ONU: “A máxima 503

Freitas-Valle a Leão Velloso, telegramas confidenciais, Londres, 4 e 26 dez. 1945, AHI 79/3/20; Leão Velloso a Freitas-Valle, carta, Rio de Janeiro, 30 dez. 1945, CPDOC, CFV ad 44.09.20; Leão Velloso a Freitas-Valle, telegrama, Rio de Janeiro, 12 dez. 1945, AHI 79/4/9. 504 A delegação completa incluía quatro assessores (Antônio Mendes Viana, coronel Jayme Almeida, Paulo Carneiro e Olyntho Pinto Machado), Hugo Gouthier como secretário-geral, além de Henrique Valle, Everaldo Dayrell de Lima, George Álvares Maciel, Fernando C. de Bittencourt Berenguer, Noêmia Baptista e Maria Thereza Gomes. Leão Velloso a Freitas-Valle, telegramas, Rio de Janeiro, 31 dez. 1945 e 4 jan. 1946, AHI 79/4/9. 505 Cf. Anexo Especial para mais informações sobre a tradição de ser o Brasil o primeiro país a discursar no debate geral da Assembleia Geral da ONU. Official records of the First Part of the First Session of the General Assembly. Plenary Meetings of the General Assembly, verbatim record, 10 January-14 February 1946, op. cit. 506 SEIXAS CORRÊA, Luiz Felipe de (org.). O Brasil nas Nações Unidas (1946-2006). Brasília: Ministério das Relações Exteriores, FUNAG, 2007, p. 33-35.

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segundo a qual o perturbador da paz está sempre errado é a que deve guiar as Nações Unidas”. Aqueles que procurassem interromper a paz, semear a discórdia ou promover “uma guerra de nervos”, advertiu, seriam doravante subjugados pela “inabalável determinação de todos os que têm sofrido as amarguras da guerra e que resolveram nunca mais admitir que semelhante catástrofe ocorra”. A humanidade precisaria estar unida no esforço comum para a “eliminação dos três grandes castigos que no momento nos dividem e oprimem: a guerra, a doença e a necessidade”. Um único pensamento, concluiu Souza Dantas, deveria inspirar os fundadores da ONU: communis humanitatis causa.507 Iniciados efetivamente os trabalhos da Assembleia, os delegados brasileiros verificaram que as instruções recebidas do Itamaraty eram muito gerais, se não insuficientes para cobrir os itens da agenda de forma minimamente consequente. Souza Dantas, “para ganhar tempo”, resolveu propor interpretações dessas mesmas instruções e, em telegrama a Leão Velloso, indagou se as seguintes normas de procedimento poderiam ser aplicadas pela delegação brasileira: “ajudar sempre as soluções mais liberais”; votar sistematicamente com a delegação dos Estados Unidos e, só em caso de seu interesse primordial, procurar não dar a impressão de que o voto do Brasil fosse tomado por duplicação norte-americana; evitar votações no âmbito do grupo latino-americano e não assumir compromissos com futuras eleições (“coisa fácil”, segundo Souza Dantas, porquanto podia ser usado o argumento de que em pouco tempo haveria mudança no governo brasileiro, com a posse do novo presidente); não se somar às manobras contra o grupo soviético; fortalecer a autoridade da Assembleia Geral, “com prejuízo do Conselho de Segurança”; sustentar que a Corte Internacional de Justiça seria a única instância completamente neutra e competente para interpretar a Carta da ONU; defender, intransigentemente, a Organização Internacional do Trabalho em sua atual forma; favorecer a manutenção do francês e do inglês como línguas de trabalho e, se possível, como únicas línguas oficiais; e “demonstrar nas intervenções a preocupação de servir no futuro às Nações Unidas por cima de interesse de momento, ou de grupos”. Com relação aos idiomas, a Assembleia Geral depois decidiria manter a regra válida em São Francisco: inglês, francês, espanhol, russo e chinês como línguas oficiais da ONU, mas apenas inglês e francês como idiomas de trabalho.508 Leão Velloso assentiu, ponderando que as primeiras instruções que haviam sido enviadas a Londres se referiam a linhas mestras de conduta, subordinadas a razões históricas e aos princípios gerais que informavam a política externa brasileira, ao seu “sentido idealista” e ao progresso econômico, social e cultural do país. Acrescentou que a delegação deveria manter nas questões políticas, de interesse maior das grandes potências, e que não envolvessem diretamente as Américas, “uma atitude de discrição e reserva”. Caso a delegação tivesse de se pronunciar no Conselho ou na Assembleia com seu voto em tais questões, confirmou que deveria “pôr-se de acordo com a delegação dos Estados Unidos”. Essa atitude, não obstante, como todas as outras assumidas na reunião, estaria condicionada à preservação dos “superiores interesses da nação”, que caberia a Souza Dantas aquilatar caso a caso: “Nem sempre as soluções mais liberais, nem a evasão a compromissos eleitorais, nem o fortalecimento da autoridade da Assembleia, serão as diretrizes mais convenientes, assim como a outorga exclusiva à Corte do privilégio de interpretação da Carta”. Prosseguiu: “Tudo depende das circunstâncias e dos casos em apreço, 507 508

Ibid. Souza Dantas a Leão Velloso, telegrama, Londres, 20 jan. 1946, AHI 79/3/20.

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com suas modalidades e cambiantes, que deverão ser pesados e meditados dentro do âmbito largo dos nossos interesses, princípios e ideais”. O estilo introspectivo de Leão Velloso, sempre a exortar “uma atitude de discrição e reserva” dos delegados brasileiros, bem poderia ser talvez reminiscência pessoal da época em que ele havia sido chefe de gabinete do chanceler Otávio Mangabeira (1926-30), cuja atuação à frente do Itamaraty se caracterizou exatamente pelo baixo perfil diplomático e pelo minimalismo político.509 Como se tratasse de uma reunião constitutiva da nova organização, a maioria dos assuntos que cabia à Assembleia resolver se referia a questões práticas, como as eleições para os órgãos e comitês da ONU, a convocação de conferências para criar agências especializadas, a aprovação pelos Estados-membros das recomendações da Comissão Preparatória e detalhes sobre a estrutura do Secretariado. A ONU herdaria as instalações e os arquivos da Liga das Nações, cuja última sessão formal se deu em 18 de abril de 1946, em Genebra, sem muita publicidade. À época, poucos lamentaram o ocorrido. Mesmo com forte oposição soviética, o ministro das Relações Exteriores da Bélgica, Paul-Henri Spaak, o preferido das potências ocidentais, tinha o favor da maioria e foi eleito para a presidência da I Assembleia Geral por 28 votos a 23. Ponto ainda mais importante foi a eleição do primeiro secretário-geral da ONU. A Carta estabeleceu que o principal funcionário administrativo da organização seria indicado pela Assembleia Geral, mediante a recomendação do Conselho de Segurança (artigo 97). Aplicava-se, portanto, a possibilidade de veto. Era mais uma das prerrogativas do Conselho, que também detinha poderes para influir da mesma forma (via “recomendação”) na admissão, suspensão ou expulsão de Estados-membros (artigos 4, 5 e 6). A primeira opção dos Estados Unidos para o cargo de secretário-geral era Lester Pearson, embaixador do Canadá em Washington, que também contava com o apoio do Brasil. Pearson, no entanto, considerado pró-Ocidente, era objetado pela URSS, que podia vetar sua indicação, ao contrário do acontecido com Spaak. Não haveria como fazer aprovar seu nome. Como alternativa, Stettinius sugeriu o ministro das Relações Exteriores da Noruega, Trygve Lie, que tinha bom trânsito entre as delegações nos dois campos do espectro político. Aceitável para Moscou, Lie foi recomendado pelo Conselho de Segurança e finalmente eleito secretário-geral por 46 a 3, na votação levada a cabo em 1º de fevereiro pela Assembleia Geral.510 Cumpre registrar que, durante a Assembleia, o Brasil logrou que um jurista brasileiro estivesse entre os primeiros juízes da Corte Internacional de Justiça, na Haia. O ministro do STF, José Philadelpho de Barros Azevedo, foi eleito juiz da Corte, em 6 de fevereiro de 1946, com o maior número de votos entre os candidatos latino-americanos. No sorteio para aferir a duração dos mandatos dos 15 juízes eleitos, a fim de que a cada três anos fosse renovado um terço da Corte, Philadelpho Azevedo foi contemplado com um período de nove anos. Além do Brasil, foram eleitos para a CIJ juízes de Bélgica, Canadá, Chile, China, Egito, El Salvador, EUA, França, Iugoslávia, México, Noruega, Polônia, Reino Unido e URSS. Philadelpho Azevedo morreu durante seu mandato na Corte, em 1951, e foi substituído por Levi Carneiro, que permaneceu na Haia até 1955.511 509

GARCIA. Entre América e Europa: a política externa brasileira na década de 1920, op. cit. Capítulo 6; Leão Velloso a Souza Dantas, telegrama, Rio de Janeiro, 23 jan. 1946, AHI 79/4/9. 510 FRUS, 1946, vol. I, p. 180; LUARD. A history of the United Nations. vol. I, op. cit. p. 73-74. 511 Souza Dantas a Neves da Fontoura, telegrama, Londres, 6 fev. 1946, CDO, Maço 40.275; Yearbook of the United Nations, 1946-47. op. cit. p. 62.

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Como já visto, o Brasil foi eleito membro não permanente do Conselho de Segurança para o biênio 1946-47. No relatório que enviou à Secretaria de Estado, Souza Dantas destacou que com a eleição ao “posto máximo da organização internacional, passa o Brasil a figurar entre as seis grandes potências do mundo, com responsabilidades e deveres que, pela primeira vez, vai enfrentar”. Fábio Koifman chamou a atenção para a ressalva feita em seguida por Souza Dantas, possivelmente ligada à sua experiência na Europa ocupada pelo nazismo e às perseguições que presenciou contra os judeus e outros grupos vítimas do ódio e do racismo: “Mas há também um sentido moral a depreender da escolha do nosso país para um dos árbitros da segurança e da liberdade coletiva. Pesaram, certamente, a nosso favor, nesse pleito, as nossas tradições de viva solidariedade humana e de constante e generosa acolhida às mais variadas correntes migratórias; o nosso exemplo de afetiva fusão de raças e o crescente papel que desempenhamos na harmonia do continente americano”.512 Freitas-Valle representou o Brasil na primeira sessão oficial do Conselho, em 17 de janeiro, na Church House, Westminster. Não houve discursos de abertura, pois o Conselho imediatamente se pôs a discutir os temas da agenda provisória, incluindo regras de procedimento. Mesmo assim, os membros não deixaram de registrar suas impressões sobre aquela ocasião “histórica”. O representante da Austrália, que presidia a sessão, realçou o fato de que, embora os trabalhos devessem ter por base a Carta, o Conselho não poderia furtar-se a exercer em sua plenitude os grandes poderes que havia recebido. Stettinius, falando em nome dos EUA, sublinhou que o Conselho deveria fazer da possibilidade uma certeza: que “a paz fosse mantida de fato”. Freitas-Valle, em breve intervenção, manifestou a expectativa de que, “de agora em diante, o causador de problemas será detido”.513 Não demorou para que o órgão fosse acionado pelos Estados-membros. Dois dias depois, o Irã submetia à ONU a primeira controvérsia suscetível de ameaçar a paz e a segurança internacionais: uma reclamação contra a permanência de tropas soviéticas na parte norte do território iraniano e sua alegada interferência em assuntos internos, o que constituiria violação de acordos anteriores e de normas do direito internacional. O problema era essencialmente político. EUA, Grã-Bretanha e URSS haviam mantido tropas no Irã durante a guerra para assegurar a passagem de suprimentos por aquele país. Encerradas as hostilidades, as potências ocidentais retiraram seus soldados. O Exército soviético, no entanto, não dava sinais de que iria fazer o mesmo.514 Outros casos foram sendo trazidos à atenção do Conselho de Segurança. Em 16 de fevereiro, Andrei Vishinsky, delegado soviético, vetou uma resolução proposta por Stettinius, representante norte-americano, autorizando negociações para a retirada imediata de tropas britânicas e francesas da Síria. Era a primeira vez que se empregava o poder do veto. Depois da batalha travada em São Francisco e das tempestades diplomáticas que havia provocado, este primeiro recurso ao veto parecia algo casual, quase inadvertido, justificado por Vishinsky em

512

AHI 78/4/2; KOIFMAN. Quixote nas trevas. op. cit. p. 416. Security Council official records. First year, first series, no 1, Londres, 17 Jan. 1946, p. 1-10. 514 As primeiras controvérsias examinadas pelo Conselho de Segurança estão relatadas in Yearbook of the United Nations, 1946-47. op. cit. p. 327 et seq. 513

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função da linguagem da resolução, tida por ele como não forte o suficiente.515 Eram maus presságios para aqueles que, como o Brasil, disseram haver confiado na boa-fé e na prudência dos membros permanentes no emprego responsável desse privilégio institucional que a Carta lhes concedera. Em geral, a delegação brasileira acompanhava os Estados Unidos nas votações, seguindo a determinação fixada no Rio de Janeiro. Com a posse de Dutra, João Neves da Fontoura assumiu o Ministério das Relações Exteriores e não deu sinais de que mudaria de atitude. Escrevendo ao novo chanceler, em 4 de fevereiro, Freitas-Valle achou por bem inteirá-lo logo cedo da posição que tradicionalmente mantinha e que tanto lhe havia custado para tentar convencer Leão Velloso de que outro curso de ação era possível: “Sempre me pareceu que não deve o representante brasileiro procurar conformar seu voto sistematicamente com o do norteamericano, coisa que lhe enfraquece a posição, pois cria a impressão de duplicação de votos”. Explicou que pedia instruções, como representante no Conselho de Segurança, que lhe autorizassem a só votar com os Estados Unidos nos casos em que esse país tivesse “interesse primordial”.516 A propósito, muitos anos depois, Vasco Leitão da Cunha daria seu testemunho como um dos participantes da Assembleia Geral de 1946: Nós sempre tendemos a prestigiar os Estados Unidos quando achávamos que eles estavam certos, e não fazíamos mistério disso. Mas quando a matéria era importante. Quando a matéria não era importante, não havia inconveniente em não acompanhar os Estados Unidos. É aquela definição que o Lauro Müller deu: ‘Com os Estados Unidos, mas não a reboque’. Foi isso que prevaleceu na I 517 Assembleia [da ONU], com certeza.

Nas primeiras reuniões do Conselho de Segurança, foi aprovada uma proposta regimental para que os presidentes do órgão se sucedessem mensalmente, por ordem alfabética, começando pela Austrália em janeiro. Assim, em 17 de fevereiro, o Brasil assumiu pela primeira vez a presidência do Conselho, representado por Freitas-Valle.518 Foi um período em que, pelo menos no plano da retórica, a Guerra Fria se anunciava claramente no horizonte. Em resposta à provocação de Stalin, de que não era possível uma “ordem internacional pacífica” entre os mundos capitalista e comunista, Churchill fez seu famoso discurso da “cortina de ferro” em Fulton, Missouri, Estado de origem de Truman. Entre um e outro pronunciamento, George Kennan, diplomata norte-americano em Moscou, expedia a Washington seu não menos conhecido “telegrama X”, precursor da doutrina de contenção global do comunismo pelos EUA. Em determinado dia da presidência brasileira, Freitas-Valle contou que estava “de prontidão, como o bombeiro não precisa de fogo para ficar de prontidão, e se algo de ameaçador surgir para a paz do mundo, então logo terei o dever de convocar e fazer trabalhar esse Conselho de Segurança que, durante um mês, tanto deu de falar”. Recordou que havia cabido ao Conselho 515

MEISLER, Stanley. United Nations: the first fifty years. Nova York: Atlantic Monthly Press, 1995, p. 29; BOSCO, David L. Five to rule them all: the UN Security Council and the making of the modern world. Oxford: Oxford University Press, 2009, p. 43. 516 Freitas-Valle a Neves da Fontoura, telegrama confidencial, Londres, 4 fev. 1946, AHI 79/3/20. 517 Durante o regime militar, Leitão da Cunha foi o primeiro ministro das Relações Exteriores do governo Castelo Branco (1964-66). CUNHA, Vasco Leitão da. Diplomacia em alto-mar: depoimento ao CPDOC. Rio de Janeiro/Brasília, Editora FGV/FUNAG, 2003, p. 139. 518 Freitas-Valle a Leão Velloso, telegrama, Londres, 20 jan. 1946, CDO, Maço 40.275.

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examinar a reclamação do Irã contra a União Soviética, a queixa desta última contra a presença de tropas britânicas na Grécia, a da Ucrânia a respeito da situação na Indonésia e, por fim, a reclamação da Síria e do Líbano contra a manutenção em seus territórios de tropas britânicas e francesas. “Todos esses casos foram resolvidos ou, pelo menos, o Conselho de Segurança ficou com a convicção de haver indicado sua solução”. Os onze membros do órgão estavam representados permanentemente em sua sede, a fim de ficarem em condições de acudir sem demora às reuniões, sempre que convocados. O Brasil, sustentou Freitas-Valle, vinha atuando “com votos claros” sobre princípios que constituíam a tradição da política exterior do país. Coube ao delegado brasileiro afirmar sem rodeios que, “salvo em caso de país ex-inimigo, o Brasil não admitia a presença de tropas, ou, sequer, de observadores estrangeiros a fim de verificar a regularidade de eleições de qualquer povo”. Entendia ele que a Síria e o Líbano reclamavam com fundamento contra a presença de tropas estrangeiras em seus territórios independentes, “uma vez que o Brasil pensa que soldados estranhos só podem pisar em um Estado em virtude de acordo internacional e com o consentimento do governo interessado”. O Brasil também proclamou que a ONU tinha o dever de despachar comissões de inquérito a qualquer sítio do mundo onde a paz parecesse ameaçada, ou em vias de ser ameaçada, e que “nenhum Estado tem o direito de misturar pontos de prestígio nacional com a ideia de bem acolher uma de tais comissões”.519 No final de março de 1946, o Conselho de Segurança se mudou para Nova York, onde se instalou provisoriamente no Hunter College, no Bronx. Com sua saída do Itamaraty, Leão Velloso foi nomeado representante brasileiro junto ao Conselho e participou das primeiras reuniões do órgão no ginásio daquela faculdade. Pouco dado a intervenções, Leão Velloso ficaria conhecido por sua “política do silêncio”. Segundo o jornal The New York Times, seu discurso mais longo teria alcançado 25 palavras [!].520 A I Assembleia Geral teve, ainda, uma segunda parte realizada em Nova York, de 23 de outubro a 15 de dezembro de 1946. Leão Velloso chefiou a delegação brasileira e, com certo exagero, descreveu aquele evento como “a mais importante reunião internacional dos últimos tempos”. Entre as principais realizações da Assembleia, numerou, inter alia, a unanimidade conseguida na adoção das resoluções sobre desarmamento, o estabelecimento do Conselho de Tutela e a substituição da UNRRA pela Organização Internacional para os Refugiados (OIR). O Brasil foi escolhido para integrar sete das oito comissões permanentes ou provisórias constituídas pela Assembleia, em áreas tais como admissão de novos membros, assuntos econômicos, fundo internacional de emergência para a infância, territórios não autônomos, questões administrativas e orçamentárias, codificação do direito internacional e sede permanente da organização.521 A essa altura, a ONU podia considerar-se definitivamente “criada” e iniciava sua trajetória de erros e acertos que, ainda hoje, suscitam ora crítica ora admiração dos que a acompanham, mas raramente indiferença.

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Freitas-Valle, documento datilografado, sem título, possivelmente preparado para alocução radiofônica dirigida ao público brasileiro, Londres, fev. 1945, CPDOC, CFV ad 44.09.20. 520 The New York Times, Nova York, 17 jan. 1947, NYT Archive, www.nytimes.com, acesso em 19/12/2009. 521 Leão Velloso a Neves da Fontoura, telegrama, Nova York, 16 dez. 1946, CDO, Maço 40.236 e AHI 79/3/20. Para as primeiras décadas da atuação brasileira na ONU, cf. BUENO, Clodoaldo. A política multilateral do Brasil. In CERVO, Amado Luiz (org.). O desafio internacional: a política exterior do Brasil de 1930 a nossos dias. Brasília: Editora UnB, 1994, p. 59-144.

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Terminada a guerra, uma paz executiva? Diferentemente de 1815 (Viena) e 1919 (Paris), não houve uma grande conferência de paz em 1945. O objetivo da Conferência de São Francisco era unicamente aprovar o texto constitutivo da nova organização internacional. Não entraram na agenda os termos da rendição do Eixo ou as medidas relativas à terminação da guerra propriamente dita. Os países com participação secundária nas Nações Unidas (isto é, na aliança militar) esperavam que, em algum momento, seriam chamados a deliberar sobre esses assuntos juntamente com as grandes potências vencedoras. Foi, assim, com um misto de contrariedade e resignação que esses países souberam de mais um encontro dos Três Grandes, desta vez em Potsdam, nos arredores de Berlim, entre 17 de julho e 2 de agosto de 1945. O temário da Conferência iria abranger o tratamento da Alemanha derrotada e sua divisão em zonas de ocupação pelos Aliados, reparações de guerra, rearranjos territoriais e transferência forçada de populações, o julgamento dos criminosos de guerra nazistas, a situação de outros países europeus e o ultimato ao Japão para que capitulasse incondicionalmente. Potsdam, aliás, seria a última cúpula dos Três Grandes. A deterioração da aliança impediria a realização de novo encontro.522 O Japão foi ameaçado de “rápida e total destruição”, mas nenhuma referência explícita foi feita à bomba atômica que os Estados Unidos haviam acabado de desenvolver e testado com sucesso em Alamogordo, no deserto no Novo México. Ao ser usado pela primeira vez sobre Hiroshima e Nagasaqui, o poder nuclear não apenas forçou a rendição japonesa, assinada em 14 de agosto. Seu impacto estrondoso mudou concepções estratégicas arraigadas e abriu novo capítulo nas relações internacionais. O problema da segurança ganhava dimensões insuspeitas até então, que colocariam em risco a própria sobrevivência da humanidade. Entretanto, sendo um documento pré-era nuclear, nada existia na Carta da ONU sobre isso. Não era este, evidentemente, um tema que podia ser ignorado. Cedo as Nações Unidas seriam chamadas a tratar do desarmamento e da não proliferação nuclear. Em 24 de janeiro de 1946, a I Assembleia Geral aprovou resolução estabelecendo a Comissão de Energia Atômica, com a finalidade de examinar problemas afetos ao controle de material físsil e trocar informações sobre o aproveitamento civil dessa forma de energia. Dessa Comissão depois fará parte, como representante brasileiro, o então capitão Álvaro Alberto, pioneiro na defesa do desenvolvimento dos usos pacíficos da energia nuclear no Brasil.523 Derrotado o Japão, a guerra no Pacífico chegava ao seu fim. A opinião pública mundial ansiava por uma ordem mundial mais estável, fundada nos ideais democráticos que haviam sido a bandeira de luta dos Aliados. Era natural que as esperanças se voltassem para a ONU. Não obstante, os diferentes trilhos da paz fragmentada que encerrou a Segunda Guerra Mundial pareciam confirmar a previsão de Oswaldo Aranha sobre uma “paz executiva”. Enquanto ainda era ministro, Aranha costumava alertar seus colaboradores mais próximos no Itamaraty, entre eles Leão Velloso, sobre os riscos e a probabilidade de uma negociação do pósguerra conduzida inteiramente pelos mais fortes, segundo seus critérios de poder e necessidades 522

MEE, Charles L. Paz em Berlim: a Conferência de Potsdam em 1945 e seu mister de encerrar a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007; cf. também FRUS, The Conference of Berlin (Potsdam Conference), 1945. Washington: Department of State, Government Printing Office, 1960, 2v. 523 Yearbook of the United Nations, 1946-47. op. cit. p. 64-66 e 454.

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estratégicas. Um dia depois da assinatura da Carta da ONU, Freitas-Valle escreveu um bilhete a Aranha: “A Carta foi firmada ontem e a Conferência terminou esta manhã. Velloso e eu sentimos durante nove semanas que tu não houvesses podido vir e sempre vinha à baila tua velha predição de que esta paz teria de ser executiva. Velloso contará as vicissitudes atravessadas, que não foram poucas. [...] Estas linhas vão à pressa para mostrar que em um minuto destes não sei esquecerte”.524 Analistas da época se perguntavam acerca do papel que caberia à ONU nesse contexto. Potsdam, de participação restrita, era incompatível com a Carta recém-firmada? Carlos Martins analisou essa relação e concluiu que não: A Carta das Nações Unidas confiou à inteira responsabilidade das grandes potências a intervenção e controle dos países vencidos. A Carta legaliza apenas uma situação de fato já existente. A liberdade de ação internacional das grandes potências fica preservada em substância. A Carta é uma definição de princípios e a criação de instrumentos para sua aplicação dentro de uma estrutura geral. A Carta não substitui os instrumentos e processos já existentes, não suspende as relações internacionais já em ação, nem suprime os interesses divergentes ou convergentes entre as potências, nem põe um ponto final a tratativas, entendimentos e negociações em processo. A Conferência de Potsdam é apenas um exemplo em evidência da flexibilidade da futura organização internacional. Existisse ou não, desde já, o 525 organismo programado, e a Conferência de Potsdam teria lugar do mesmo modo exclusivo.

O mais próximo a que se chegou de uma conferência de paz foi a Conferência de Paris, que teve lugar entre julho e outubro de 1946. A Declaração de Potsdam havia criado um Conselho de Ministros das Relações Exteriores, limitado à participação dos representantes das “cinco principais potências”, descrito por diplomatas brasileiros como “uma espécie de antecâmara do futuro Conselho de Segurança, com caráter diplomático não executivo”. A primeira missão desse Conselho de Ministros seria elaborar os tratados de paz com Itália, Romênia, Bulgária, Hungria e Finlândia, com vistas a submetê-los aos outros países aliados. Uma Conferência de 21 nações foi convocada para estudar os textos desses tratados e reportar novamente ao Conselho de Ministros.526 Só foram convidados os países que haviam efetivamente lutado na guerra contra todos ou alguns daqueles ex-inimigos. Não seriam discutidos no encontro nem o caso da Alemanha nem o do Japão. Como se sabe, a Alemanha foi dividida em quatro zonas de ocupação, colocadas sob a autoridade de um Conselho de Controle Aliado. A falta de acordo sobre a administração conjunta do território levou à retirada soviética do Conselho em 1948 e à posterior criação de dois Estados separados: República Federal da Alemanha (RFA) e República Democrática da Alemanha (RDA). No Japão, os Estados Unidos se encarregaram de administrar sozinhos a ocupação do país, sob o comando do general Douglas MacArthur. Somente em 1951, durante a Guerra da Coreia, seria assinado em São Francisco um tratado que formalmente pôs fim ao estado de guerra entre o Japão, os EUA e outras 48 nações aliadas (URSS e China excluídas). Nos dois casos, os termos da paz com os ex-inimigos mais poderosos foram ao final 524

Freitas-Valle a Aranha, carta, São Francisco, 27 jun. 1945, CPDOC, OA cp 45.06.27/1. Carlos Martins a Leão Velloso, ofício, Washington, 10 jul. 1945, AHI 49/1/3. 526 GIRAULT, René, et al. La loi des géants, 1941-1964. Paris: Masson, 1993, p. 101; Encarregado de negócios a Leão Velloso, ofício, Washington, 13 set. 1945, AHI 49/1/4. 525

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determinados pelo cisma acrimonioso da Guerra Fria e não pela unidade da Grande Aliança vencedora da Segunda Guerra Mundial.527 Da América Latina, somente o Brasil participou da Conferência de Paris, com uma delegação chefiada pelo ministro das Relações Exteriores, João Neves da Fontoura. Em seu relatório, o chanceler brasileiro esclareceu que o papel da Conferência “não era o de estabelecer, por maioria de votos, o texto de tais ou quais estipulações, mas o de formular, sobre a base da redação apresentada pelo Conselho de Ministros, as recomendações que lhe parecessem convenientes”. Concluídos os trabalhos, cabia a esse mesmo Conselho aceitar ou recusar as sugestões, “segundo o seu exclusivo parecer”. Do temário da reunião, a delegação brasileira tinha interesse material somente em relação às responsabilidades do Estado italiano, “na parte que lhe incumbe compor os nossos prejuízos”. O Brasil buscou uma “paz justa” com a Itália e apresentou emendas (com pouco êxito) ao projeto de tratado de paz com aquele país, considerado “draconiano”. Mas a impressão que ficou foi de preponderância quase absoluta das grandes potências, que dominaram as deliberações e sempre tiveram a última palavra. O relatório brasileiro consignou que “o projeto de tratado de paz com a Itália impunha àquele país cláusulas de uma extrema severidade: a mutilação do território metropolitano, a perda das colônias, a privação do aparelhamento da defesa militar de suas fronteiras, e, como sobrecarga, indenizações demasiadamente pesadas”.528 A paz simbolizada pelo multilateralismo da ONU contrastava com a paz do “mundo real”, movida pelos interesses estratégicos das potências vitoriosas e suas relações de poder. Nem os Quatro Policiais de Dumbarton Oaks pareciam destinados a permanecer unidos. A China nacionalista do Koumintang, por exemplo, foi excluída de todas as conversações sobre questões europeias. A Grã-Bretanha entrou em declínio, agravado com a progressiva dissolução do Império Britânico, a começar pela perda da Índia, independente desde 1947. Os Três Grandes rapidamente deixavam de ser uma tríade. Tomava corpo a bipolaridade entre EUA e URSS, as superpotências da nova era. A Guerra Fria se encarregou de desfazer por completo a aliança e reconfigurar o jogo de forças no topo da política mundial. No âmbito da ONU, um dos exemplos mais patentes dessa nova circunstância, além do já comentado abuso do direito de veto, foi o fracasso das negociações para pôr em prática o sistema de segurança coletiva previsto na Carta. De acordo com o artigo 43, todos os Estadosmembros se comprometeram a proporcionar ao Conselho de Segurança, a seu pedido e de conformidade com “acordos especiais”, forças armadas, assistência e facilidades, inclusive direitos de passagem, necessários à manutenção da paz e da segurança internacionais. Tais acordos determinariam o número e o tipo das forças, seu grau de preparação e sua localização, bem como a natureza das facilidades e da assistência a serem colocadas à disposição do Conselho. A União Soviética temia que houvesse um “cerco capitalista”, disfarçado sob a égide da ONU, onde os países ocidentais detinham uma maioria confortável. A discrepância mais séria se referia ao tamanho total da força, cujo comando operacional caberia à Comissão de Estado-Maior, sob a autoridade do Conselho de Segurança. 527

KEGLEY, Charles W. & RAYMOND, Gregory A. How nations make peace. Nova York: St. Martin’s Press, 1999, p. 184-193. 528 FONTOURA, João Neves da. Relatório da delegação do Brasil à Conferência de Paris. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores, Serviço de Publicações, 1946, p. 5, 14-15 e 28.

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Em junho de 1947, os Estados Unidos propuseram uma força substancial, com 20 divisões, 3.800 aviões, três navios de batalha, seis porta-aviões, 15 cruzadores, 84 destróieres e 90 submarinos. A França desejava algo menor, mas igualmente expressivo: 16 divisões, 1.275 aviões, três navios de batalha, seis porta-aviões, 9 cruzadores, 18 a 24 destróieres e 12 submarinos. O Reino Unido, apoiado pela China, se contentava com uma força de “apenas” 8 a 12 divisões, 1.200 aviões, dois navios de batalha, quatro porta-aviões, seis cruzadores, 24 destróieres e 12 submarinos. A URSS não apresentou números, mas, ciente de que o controle político desta verdadeira máquina de guerra ficaria por um longo tempo presumivelmente nas mãos dos ocidentais, preferia uma força pequena, respeitando-se a paridade e o equilíbrio entre os membros permanentes, os principais contribuintes de tropas e armamento.529 Desnecessário dizer que não houve acordo e que esses planos, tão ambiciosos quanto impressionantes sob qualquer critério, não saíram do papel. À medida que os blocos se organizavam em torno da disputa Leste-Oeste, os internacionalistas que apoiaram o projeto da ONU perdiam espaço para os partidários da Realpolitik. As exigências de segurança nacional representavam então formidável desafio à efetividade das instituições multilaterais. Como sinal dos tempos, em 1948, Hans Morgenthau publicou A política entre as nações, obra de referência do Realismo clássico, cujas teses encontravam terreno fértil na observação do cenário internacional dominado pelo bipolarismo: antagonismo irrefreável entre os Estados, interesse nacional definido em termos de poder, ambiente externo hostil e risco perene de guerra, pessimismo antropológico acerca da natureza humana e ênfase nas questões estratégico-militares da política mundial.530 Essas ideias eram por certo um sintoma da conjuntura e não verdades absolutas. A única constatação realmente irrefutável naquele momento era o fato de que, até segunda ordem, a ONU como viga mestra da segurança internacional, conforme advogaram tantos no período da Segunda Guerra Mundial, precisaria esperar ocasião mais propícia para reencontrar seu devido lugar nas estruturas de governança global. O aliado desiludido Nas escassas oportunidades de participação brasileira no trilho “real” das negociações de pós-guerra, um dos temas recorrentes era o direito às reparações que, como um dos Aliados, o Brasil acreditava fazer jus. Gerson Moura sublinhou a natureza política dos objetivos brasileiros: “receber compensações implicaria participação nas negociações com as grandes potências, o que por seu turno significaria que o Brasil realmente era um participante importante nas questões internacionais”. Apesar de suas solicitações junto ao governo norte-americano, o Brasil não esteve representado na reunião interaliada sobre reparações de guerra que teve lugar em Paris, em dezembro de 1945. O mesmo aconteceria em eventos subsequentes em 1946 e 1947, quando o governo brasileiro voltou a insistir na sua presença em foros que tratavam de indenizações devidas pela Alemanha e invariavelmente recebia um “não” como resposta. 529

Yearbook of the United Nations, 1946-47. op.cit. p. 403; LUARD, Evan. A history of the United Nations. vol. I, op. cit. p. 100-101. 530 MORGENTHAU, Hans J. A política entre as nações. Brasília: Editora UnB/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/IPRI, 2003.

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Essa dinâmica gerou duas frustrações para a política externa brasileira: a porta que dava acesso ao núcleo das decisões internacionais se revelou muito bem fechada; e dificilmente seriam cumpridas as altas expectativas que o Brasil tinha dos benefícios que pensava poder extrair após sua entrada na guerra.531 Os dois aspectos estavam interligados: o direito de participar e a demanda por recompensa. Mas apenas estar à mesa não era garantia de êxito. Na Conferência de Paris, em dado momento foi decidido que a esquadra italiana seria dividida entre algumas das nações aliadas a título de reparação de guerra. João Neves da Fontoura tentou assegurar pelo menos um navio e nem isso obteve. O secretário de Estado, James Byrnes, prometeu ao chanceler brasileiro que cederia ao Brasil um cruzador da parte que os EUA receberiam como pagamento italiano, mas acrescentou que precisaria de autorização do Congresso norte-americano para fazê-lo.532 Situação semelhante se deu com a Alemanha, o que levou o presidente Dutra a se queixar da falta de compensações concretas pela contribuição do Brasil ao esforço de guerra: A despeito desses e outros prejuízos e sacrifícios de vida, o Brasil não logrou qualquer compensação, quer na Conferência das reparações de guerra, reunida em Paris [1945], quer na Conferência da Paz [1946], enquanto até países que se mantiveram neutros foram largamente aquinhoados. Como exemplo, basta citar o fato, já referido, de que dos 260 navios alemães distribuídos entre vencedores 533 (dezoito governos aliados), o Brasil não foi contemplado com uma única pequena embarcação.

Em realidade, a desilusão começou a partir da morte de Roosevelt e do desinteresse da nova administração norte-americana em corresponder ao desejo brasileiro de uma parceria para o desenvolvimento que deslanchasse a industrialização pesada do país, com volumosos aportes de capitais externos. Inspirado no exemplo bem-sucedido da siderúrgica de Volta Redonda, desde 1942, com o envio pelos EUA da Missão Cooke ao Brasil, o governo Vargas esperava conseguir financiamentos e tecnologia moderna para grandes projetos de desenvolvimento e infraestrutura. Ao final da guerra, era comentada em Washington a necessidade brasileira de assistência em transporte marítimo e a “completa dependência” do país em relação a combustíveis fornecidos pelos EUA (derivados do petróleo e carvão).534 Apesar das promessas de cooperação e das declarações oficiais que reafirmavam a afinidade entre os dois países, os Estados Unidos, preocupados com outros problemas mais prementes, gradualmente se afastam do Brasil. Abreu destacou a reorientação da política do governo norte-americano, que se revelou bem menos generoso em relação ao Brasil depois que seus objetivos estratégicos na América do Sul haviam sido alcançados: “Os EUA não apenas recusaram-se peremptoriamente a reajustar os preços do café, como pleiteavam insistentemente os países produtores, mas também mostravam-se crescentemente hostis ao desenvolvimento de indústrias substitutivas de importações – que prejudicariam as exportações norte-americanas para

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MOURA, Gerson. Brazilian foreign relations, 1939-1950: the changing nature of Brazil-United States relations during and after the Second World War. PhD Dissertation, University College London, 1982, p. 222-226. 532 Ibid. p. 224. 533 LEITE & NOVELLI. Marechal Eurico Gaspar Dutra. op. cit. p. 664. 534 Memorandum for the President, Washington, 2 jul. 1945, Berle Papers, Box 75, Correspondence with Philip O. Chalmers, Chief, Division of Brazilian Affairs.

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o Brasil no pós-guerra – e não cumpriram suas promessas quanto ao suprimento de matériasprimas e bens intermediários e de capital escassos no Brasil”.535 A mudança já era perceptível nos primeiros meses do governo Truman. Em junho de 1945, Carlos Martins relatou a Vargas suas dificuldades para se fazer ouvir em Washington: Desde São Francisco, procurei, por intermédio dos amigos que gozam da intimidade do presidente Truman, fazer-lhe sentir que esperávamos, agora que terminara a guerra na Europa, que se efetuasse o prometido fornecimento de materiais e auxílio indispensável ao desenvolvimento da economia nacional. Manifestei-lhes mesmo certo descontentamento com o modo pelo qual o assunto vem sendo 536 tratado pelo Departamento de Estado.

Em 1951, vendo à distância seus anos de Estado Novo, e no exato momento em que o Brasil era instado pelos EUA e pela ONU a enviar tropas para a Guerra da Coreia, Vargas também se declarou decepcionado: “Lutamos na guerra passada e fomos inteiramente esquecidos e recusados na partilha dos despojos”.537 Não caberia aqui uma análise da reversão das expectativas no governo Dutra (194651), em especial nas relações bilaterais com os Estados Unidos.538 O que importa ressaltar, neste estágio, é a continuada disposição do governo brasileiro de manter-se alinhado a Washington nos foros multilaterais, sobretudo na ONU. Como este livro tem procurado mostrar, essa orientação de política externa não foi uma característica exclusiva do governo Dutra, em contraste com o governo Vargas que o precedeu. A política de “apoiar os Estados Unidos no mundo em troca do seu apoio na América do Sul”, a Doutrina Aranha, encontrou sua maior expressão na entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial (cf. Capítulo 2). Mesmo com a saída de Oswaldo Aranha em 1944, os compromissos brasileiros com a aliança bilateral foram mantidos nas negociações que prepararam a paz, com o beneplácito e o incentivo de Vargas. Durante o governo interino de José Linhares, na opinião do embaixador britânico no Rio de Janeiro, o Itamaraty era considerado “uma dependência do Departamento de Estado”.539 Em telegrama a João Neves da Fontoura, no qual negou que a América Latina estivesse votando como um bloco na Assembleia Geral, Leão Velloso reafirmou a diretriz básica do Ministério das Relações Exteriores no período em que ele havia sido chanceler: Ninguém tem aqui [em Nova York] relações mais íntimas do que eu com os delegados norteamericanos, que foram todos meus colegas no México e em São Francisco da Califórnia. Por outro lado, rogo a Vossa Excelência desculpar pela falta de modéstia, mas muito poucas pessoas no Brasil 535

ABREU, Marcelo de Paiva. A ordem do progresso: cem anos de política econômica republicana (1889-1989). Rio de Janeiro: Editora Campus, 1990, p. 102. 536 Carlos Martins a Vargas, telegrama, Washington, 14 jun. 1945, CPDOC, GV c 45.06.13, apud CORSI. Estado Novo: política externa e projeto nacional. op. cit. p. 243-244. 537 FONTES, Lourival & CARNEIRO, Glauco. A face final de Vargas: os bilhetes de Getúlio. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1966, p. 76; ALVES, Vágner Camilo. Da Itália à Coréia: decisões sobre ir ou não ir à guerra. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: IUPERJ/Editora UFMG, 2007, p. 190. 538 O assunto foi tratado com propriedade por MOURA, Gerson. Sucessos e ilusões: relações internacionais do Brasil durante e após a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1991; e, do mesmo autor, O alinhamento sem recompensa: a política externa do governo Dutra. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, Textos CPDOC, 1990, mimeo. 539 Apud MOURA. Brazilian foreign relations, 1939-1950. op. cit. p. 216, nota 14.

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inspiram aos americanos a confiança que inspiro, o que se explica pela minha invariável atitude de 540 firme apoio e lealdade para com os Estados Unidos da América quando fui ministro de Estado.

Essas “relações íntimas” de “apoio firme e lealdade” se traduziram, na prática, em padrão de voto semelhante entre os dois países na Assembleia Geral. No caso do Conselho de Segurança, os registros de votação mostram que, das 37 resoluções adotadas no biênio 1946-47, durante o primeiro mandato brasileiro como membro não permanente, houve coincidência absoluta entre os votos do Brasil e dos Estados Unidos, exceto por uma ocasião, quando o assunto em pauta era uma questão menor de procedimento para ajustar as datas de início das presidências rotativas do Conselho. A Resolução 14 (1946) decidiu estender em caráter excepcional a presidência dos Estados Unidos no Conselho de Segurança por 14 dias, de 17 até 31 de dezembro, a fim de iniciar a rotação mensal entre os presidentes de turno do órgão a partir de 1º de janeiro do ano seguinte. O Brasil votou a favor. Os EUA e a URSS se abstiveram.541 As acusações de que o Brasil representaria “voto duplo” em favor dos EUA teriam afinal algum fundamento? A política multilateral de qualquer país raramente se faz desvinculada do seu contexto histórico, político e socioeconômico, que condiciona as escolhas dos tomadores de decisão. Se houvesse continuado à frente da diplomacia brasileira em 1945 e no pós-guerra, a ação de Oswaldo Aranha teria sido diferente daquela de Leão Velloso, João Neves da Fontoura ou Raul Fernandes? Dutra deu continuidade à política externa de Vargas. Ambos perseguiram políticas semelhantes, ainda que em contextos diferentes, tanto interna quanto externamente. Os resultados também foram similares? Decisões diplomáticas e concepções estratégicas de inserção internacional devem manter-se em consonância com os antecedentes ou precisam se adaptar às mudanças que se processam no país e no cenário mundial? Aranha ainda teria a oportunidade de conhecer de perto a ONU que não viu nascer. Leão Velloso faleceu em Nova York, em janeiro de 1947, vítima de um infarto cardíaco. Aranha foi convidado a tomar seu lugar na chefia da delegação do Brasil junto à ONU, descrita pelo chanceler Raul Fernandes como “o posto de maior responsabilidade no exterior”. Uma vez no exercício de suas novas funções, Aranha presidiu o Conselho de Segurança em fevereiro, foi eleito presidente da 1ª Sessão Extraordinária da Assembleia Geral em abril, dedicada à questão palestina, e em seguida presidente da II Assembleia Geral, em setembro de 1947. Foi na condução dos trabalhos desta última que Aranha teve seu nome permanentemente associado à história da ONU, que em novembro aprovou a Resolução 181 para a partilha da Palestina, segundo a qual dois Estados, um judeu e outro palestino, deveriam coexistir em paz e segurança. Aranha ainda voltaria uma última vez à ONU, em 1957, como chefe da delegação brasileira à XII Assembleia Geral.542 Naquele mesmo ano de 1947, o arquiteto Oscar Niemeyer também teve seu encontro com a ONU. Enquanto o local de sua sede permanente não era definido, a organização funcionou 540

Leão Velloso a Neves da Fontoura, telegrama confidencial, Nova York, 27 nov. 1946, CDO, Maço 40.236 e AHI 79/3/20. 541 Os registros de votação podem ser consultados pelo UNBISNET (United Nations Bibliographic Information System), http://unbisnet.un.org, acesso em 18/8/2009. 542 ARAÚJO, João Hermes Pereira de. Oswaldo Aranha e a diplomacia. In CAMARGO, Aspásia, et al. Oswaldo Aranha: a estrela da revolução. São Paulo: Editora Mandarim, 1996, p. 325-357; HILTON, Stanley E. Oswaldo Aranha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p. 431-460.

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em diversas instalações provisórias em Nova York, como Lake Success e Flushing Meadows. Niemeyer participou, entre fevereiro e maio de 1947, da comissão internacional, coordenada pelo norte-americano Wallace K. Harrison, que discutiu e aprovou o projeto de construção do prédio definitivo da organização, concluído em 1952. O projeto escolhido foi, em linhas gerais, uma combinação dos planos de Niemeyer com algumas modificações sugeridas por Le Corbusier.543 Outro brasileiro que ligou seu nome à sede das Nações Unidas foi Cândido Portinari. Convidado pela ONU em virtude do reconhecimento internacional que havia alcançado como um dos maiores pintores nacionais, Portinari produziu dois painéis, intitulados Guerra e Paz, que foram entregues à organização, em Nova York, em cerimônia no dia 6 de setembro de 1957, com a presença do então secretário-geral, Dag Hammarskjöld. Os imensos painéis, oferecidos pelo governo brasileiro, foram executados para decorar o salão de entrada dos delegados à Assembleia Geral. Considerados a Guernica do Hemisfério Sul, os painéis exigiram mais de 180 estudos, esboços e maquetes. Hammarskjöld os descreveu na ocasião como “a mais importante obra de arte monumental doada às Nações Unidas”.544 O prédio principal da ONU se encontra hoje em reforma para modernizar suas instalações e melhorar as condições do espaço de trabalho de uso das delegações e do Secretariado. Como todas as estruturas humanas, que exigem reparos e aperfeiçoamento, o edifício da paz está em permanente construção. Em 1945, a ONU surgiu da esperança de um mundo melhor, em todos os sentidos. Seus membros fundadores, Brasil incluído, se comprometeram com a realização dessa promessa, que ainda está por ser plenamente cumprida. Embora imperfeita, como é natural, a ONU exerce papel que não encontra rival entre todas as instituições internacionais existentes. Reformá-la é condição imprescindível para que esse papel não se perca e seja cada vez mais aprimorado, a fim de que a organização esteja à altura de sua desafiadora missão, tantas vezes árdua, acidentada, mas vital para o fortalecimento do multilateralismo.

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A comissão de arquitetos era composta por Wallace Harrison (EUA), Oscar Niemeyer (Brasil), Charles E. Le Corbusier (França), Nikolai Bassov (URSS), Liang Ssu-cheng (China), Howard Robertson (Reino Unido), Ernest Cormier (Canadá), Sven Markelius (Suécia), G. A. Soilleux (Austrália), Gaston Brunfaut (Bélgica) e Julio Villamajo (Uruguai). DUDLEY, George A. A workshop for peace: designing the United Nations Headquarters. New York/Cambridge: The Architectural History Foundation/The MIT Press, 1994. 544 Como parte das obras de reforma do prédio da ONU, os dois painéis de Portinari estão sendo atualmente restaurados para recuperar sua qualidade original. War and Peace. Rio de Janeiro: Projeto Portinari, 2007. Para mais informações, acesse a página www.portinari.org.br.

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CONCLUSÃO

Não é em revide apenas que lutamos. O sacrifício dos brasileiros nos campos de batalha da Europa será compensado pela posição que ocuparemos no concerto das nações vencedoras, entre as quais teremos voz e voto e idênticas garantias de paz e prosperidade. Getúlio Vargas

A negociação da paz é indissociável do conflito que gerou a necessidade dessa mesma paz. Este livro procurou estudar o surgimento da ONU a partir do contexto em que ela foi gerada, resultado de duas guerras mundiais de extensão e impacto destrutivo jamais vistos na história da humanidade. Nas mais excepcionais circunstâncias, uma organização internacional foi criada para durar, mesmo se aquelas circunstâncias deixassem de existir. A Carta, na forma que tomou em 1945, traz a marca de seu tempo. Enquanto soldados ainda lutavam nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial, representantes das nações aliadas contra o Eixo se reuniram em outro front, às margens do Pacífico, para tentar evitar a repetição daquela tragédia. No seu discurso de encerramento na Conferência de São Francisco, o presidente Truman deu um tom dramático a essa perspectiva, à altura da catástrofe ainda presente na memória e na vida de todos os presentes: “Se nós tivéssemos esta Carta alguns anos atrás – e, sobretudo, a vontade de usá-la – milhões que agora estão mortos estariam vivos. Se nós vacilarmos no futuro em nossa vontade de usá-la, milhões que agora estão vivos certamente morrerão”. Concluiu com um chamado a que as Nações Unidas permanecessem unidas, pois “as forças da reação e da tirania por todo o mundo” iriam tentar dividir os Aliados de novo.545 O planejamento político para o pós-guerra começou cedo, sob a liderança dos Estados Unidos. As negociações foram compartimentalizadas de tal modo que a paz resultante seria necessariamente fragmentada, descartando-se uma conferência geral semelhante à de Paris, em 1919. As falhas da Liga das Nações deveriam ser corrigidas com um “choque de realismo”. Entendiam as grandes potências que, com o propósito de prevenir novas agressões, somente um poder militar avassalador seria capaz de impor a paz e proteger os mais fracos, lançando mão de “todos os meios necessários”, a senha em linguagem diplomática para o uso da força. O presidente Roosevelt vislumbrou uma “tutela dos poderosos”: os Quatro Policiais, unidos em aliança, assumiriam a tarefa de garantir o “bem coletivo supremo”, que seria, naquela conjuntura, a segurança. Esboços de conotação regionalista gradualmente cederam o passo a uma abordagem globalista para a futura ONU. Não se cogitava desde logo de um “governo mundial”, mas sim de um mecanismo de vigilância permanente, delegado aos mais armados. Embora essa nova organização intergovernamental precisasse ter “dentes”, para não percorrer a mesma trajetória de descrédito da Liga, não deveria transpor o marco do respeito à soberania dos Estados. Agindo de 545

Discurso do presidente Harry S. Truman na sessão de encerramento da Conferência de São Francisco, 26 jun. 1945, The American Presidency Project, University of California, Santa Barbara, www.presidency.ucsb.edu, acesso em 27/10/2009.

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forma coordenada, as grandes potências usariam suas forças nacionais, com a autoridade que a organização mundial lhes conferia, para dissuadir, repelir e punir desafios à ordem. Em negociações secretas e exclusivas na Conferência de Dumbarton Oaks, em 1944, o projeto foi sendo aperfeiçoado. O resultado foi a aprovação de uma minuta de Carta, que no fundo era uma versão fortalecida da Liga das Nações, na qual os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança teriam posição diferenciada em relação aos demais Estados-membros. O sistema de votação, incluindo o veto, seria refinado depois pelos Três Grandes, que chegaram à fórmula de Yalta. Nesse processo, os entendimentos foram sendo construídos em meio a concessões estratégicas e barganhas de parte a parte. A segurança coletiva dependeria da solidariedade entre as grandes potências, que precisavam inevitavelmente pôr-se de acordo. Na Conferência de São Francisco, as propostas de Dumbarton Oaks foram negociadas com os outros países aliados, cuja concordância era indispensável. Não obstante, a essência do projeto foi mantida com base no argumento principal de que as prerrogativas dos membros permanentes deveriam ser mantidas, sob pena de não haver organização alguma. Houve acordo quanto a um conjunto de princípios que deveriam nortear a ordem política interestatal, subordinada a determinada realidade de poder. A Carta assinada estabeleceu um sistema multilateral de segurança que refletia o status quo de 1945. Seu pressuposto seria a ação concertada das potências vitoriosas para preservar a ordem mundial tal como existia então. Com seu poder de veto, os P-5 teriam assegurada imunidade jurisdicional nos casos de aplicação coercitiva de sanções e poderiam controlar decisões substantivas da ONU que implicassem medidas drásticas, como o uso da força. Tentando agregar flexibilidade à Carta, as potências menores haviam defendido procedimentos ágeis que permitissem reformar a organização diante das mudanças que, inexoravelmente, viriam a ocorrer na configuração do cenário internacional. As emendas ou revisões periódicas previstas na Carta seriam uma alternativa. Foram, entretanto, igualmente condicionadas ao veto. Para que se chegasse a esse resultado, o argumento do sacrifício foi esgrimido ad nauseam para justificar certos “direitos” nas negociações de paz àqueles que haviam sofrido mais durante a guerra. Aplicava-se neste caso a distinção entre “consumidores” e “fornecedores” de segurança. Na lógica dos Quatro Policiais, seriam as potências mais armadas as “responsáveis” por prover a segurança internacional. Sem poder militar de importância, os países pequenos apenas “consumiriam” segurança e seriam em tese beneficiados pela ordem trazida pelas grandes potências. Essa leitura tinha diversas implicações: a) o poder traz responsabilidades e as potências militares seriam capazes de usar a força com sabedoria e contenção, como “bons policiais” que atuam somente “para servir e proteger”; b) junto com o serviço prestado à comunidade (zelar pela estabilidade) viria a autoridade autoatribuída pela manutenção da paz e da segurança internacionais; c) o poder militar é “bom” e necessário para a tranquilidade de todos; e d) assumia-se que, se as grandes potências aliadas seriam as responsáveis pela ordem, a origem dos conflitos deveria então estar necessariamente em outro lugar: ou em potências rivais que ameaçam o status quo ou em outros países que provocam conflitos, especialmente os mais pobres, instáveis ou, como se diz modernamente, em “Estados falidos”. O sistema de segurança coletiva concebido pela Carta faria das Nações Unidas uma aliança de paz pronta para a guerra. O Capítulo VII foi originalmente pensado como um instrumento de imposição militar (enforcement) à disposição do Conselho de Segurança para reunir rapidamente forças capazes de reagir a qualquer agressão. A “agressão” principal que os 212

delegados em São Francisco tinham em mente era uma ameaça semelhante àquela representada pelo Eixo nazifascista. Somente uma força poderosa poderia afrontá-la de novo e ter sucesso. Somente as grandes potências, dizia-se, tinham então como reunir esse poder e colocá-lo em uso. Hoje, é desnecessário recordar que a organização se vê de forma muito diferente, ainda que sua estrutura fundacional (a Carta) permaneça em grande medida inalterada. Foram muitas as transformações em mais de 65 anos, tanto nas relações internacionais quanto na prática onusiana. Basta assinalar que no campo da segurança, sua razão de ser em 1945, a ONU não opera exatamente conforme seus criadores imaginaram. O uso coletivo da força como sanção militar deveria atender ao disposto no artigo 43, que prevê a cessão pelos Estados-membros dos meios necessários (forças armadas, instalações e equipamentos) por intermédio de “acordos especiais” concluídos com a ONU. Os contingentes assim disponibilizados seriam postos em ação pelo Conselho de Segurança, com a assistência e o comando estratégico da Comissão de Estado-Maior (artigos 46 e 47). Esses artigos nunca foram implementados, como vários outros da Carta, relegados ao esquecimento.546 A Guerra Fria representou o primeiro golpe contra a concepção original da ONU. O poder de veto partia de um postulado claudicante, que era o pré-requisito do acordo absoluto entre os P-5. Quando esse acordo não existisse, o Conselho de Segurança corria o risco de se ver bloqueado em sua capacidade de agir. Nessa situação, que se repetiu inúmeras vezes e paralisou o órgão em momentos cruciais, a vontade democrática da maioria não encontrava forma de traduzir-se concretamente em uma ação consequente da ONU na defesa da paz e da segurança internacionais. Esse dilema ainda subsiste no dia a dia do Conselho. O Brasil foi um dos membros fundadores da ONU. Desde 1942, com a entrada na guerra, o governo do presidente Getúlio Vargas se definira claramente pelos Aliados. A partir daí, os objetivos externos brasileiros ficaram condicionados pela aliança e seriam por ela cada vez mais influenciados. Em 1943, o Brasil aderiu à Declaração das Nações Unidas e à Carta do Atlântico, tornando o país formalmente membro da aliança militar. A decisão de organizar a Força Expedicionária Brasileira (FEB) fez do Brasil o único país latino-americano a efetivamente despachar tropas de combate ao continente europeu. Materializava-se em toda a sua plenitude a Doutrina Aranha, pela qual se entendia que a política externa brasileira deveria ser de apoio aos Estados Unidos no mundo em troca do apoio norte-americano na América do Sul. Tendo como pano de fundo a moldura hemisférica do pan-americanismo, desde os tempos do barão do Rio Branco se nutria a ideia de cultivar uma “relação especial” com a maior potência continental. Essa antiga aspiração parecia agora haver alcançado seu estágio mais avançado, graças ao fortalecimento da aliança estratégica Brasil-EUA. Crescia concomitantemente a expectativa de que o Brasil seria de algum modo ainda mais recompensado por sua lealdade na guerra e pelos sacrifícios que vinha fazendo em prol da causa aliada. A paz próxima, acreditavam as autoridades brasileiras, poderia ser a ocasião para colher frutos adicionais do alinhamento. Mesmo distante das tratativas confidenciais em curso, o governo brasileiro procurou acompanhar os primeiros movimentos em direção às negociações de paz. Membro fundador da Liga das Nações, com assento não permanente no seu Conselho Executivo, o Brasil havia saído da organização genebrina em 1926. O estabelecimento da nova organização internacional seria a 546

SAROOSHI, Danesh. The United Nations and the development of collective security: the delegation by the UN Security Council of its Chapter VII powers. Oxford: Clarendon Press, 1999, Foreword.

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chance para um recomeço no multilateralismo de escopo universal. Vargas tinha particular interesse no tema da “reestruturação do mundo”, possivelmente contemplando algum tipo de participação nas conferências de paz. Sua eventual presença poderia ser alavancada pela relação de amizade pessoal que havia cultivado com Roosevelt. Para Vargas, o Brasil e os Estados Unidos marchariam lado a lado na paz, assim como estiveram juntos na guerra. No entanto, com o olhar voltado para a política interna, Vargas hesitava em permitir que Oswaldo Aranha, na chefia do Itamaraty desde 1938, aumentasse seu prestígio assumindo papel de destaque no processo. Por injunções políticas um tanto obscuras, foram dadas as condições que contribuíram para forçar a demissão de seu chanceler, em agosto de 1944, substituído por Pedro Leão Velloso, diplomata de carreira que, enquanto Vargas se manteve no poder, permaneceu todo o tempo apenas como ministro interino das Relações Exteriores. Desde o início, o Brasil estava ciente de que considerações de poder não eram estranhas ao desenho da projetada organização multilateral. A posição brasileira seria construída sem descurar desse aspecto. Em outubro de 1944, após tomar conhecimento das propostas de Dumbarton Oaks, o governo brasileiro convocou uma comissão de notáveis para examinar o projeto. As conclusões dessa comissão, que embasaram os comentários enviados pelo Itamaraty ao governo norte-americano, puseram em relevo o peso excessivo do critério militar na estrutura da futura ONU. A minuta de Carta não empolgou os especialistas brasileiros, que criticaram a preponderância reservada às grandes potências e a falta de maior consideração pelo direito internacional. Os amplos poderes do Conselho de Segurança contrastavam com o papel reduzido que caberia à Assembleia Geral. Na visão brasileira, o texto sugerido parecia consagrar a união das forças armadas dos grandes Estados para policiar os demais. Para os países da América Latina, a primeira ocasião para um debate mais abrangente sobre o assunto se deu em fevereiro de 1945, na Conferência Interamericana sobre os Problemas da Guerra e da Paz, sediada pelo México. Passado o apogeu da política de Boa Vizinhança na década de 1930, era cada vez mais evidente que a região havia perdido a prioridade que chegou a ter para os Estados Unidos no período entreguerras. Agora, reuniões como Dumbarton Oaks e Yalta eram restritas às principais potências aliadas. Os vizinhos ao sul do continente, outrora cortejados por Roosevelt, deviam adequar-se às exigências do esquema global que então se arquitetava. Os países latino-americanos, todavia, não se conformaram com a exclusão e procuraram participar mais ativamente do planejamento e das conversações do pós-guerra. Na questão da organização mundial, a Conferência de Chapultepec adotou a Resolução XXX, que refletia posições defendidas pelo Brasil. Os Estados Unidos se dissociaram da resolução, que reunia o consenso das Repúblicas americanas que não haviam participado das conversações de Dumbarton Oaks. Sobre a composição do Conselho de Segurança, o texto se limitava a assinalar a conveniência de dar “representação adequada” à América Latina naquele órgão. Preocupado em primeiro lugar em assegurar a amizade de Washington, o Brasil mantinha vínculos débeis com sua vizinhança imediata. Não havia densidade nas suas relações com a América do Sul, dificultadas também por percepções recorrentes de rivalidade com a Argentina. O reiterado esforço brasileiro em tentar receber “tratamento preferencial” do grande aliado do norte era visto com desconfiança e mesmo como ameaça em Buenos Aires, sobretudo quanto ao rearmamento militar. Durante a guerra, os Estados Unidos tentaram formar uma frente única continental, mas esbarraram na resistência argentina. O governo norte-americano acusava a Argentina de inclinações “pró-nazistas”, aplicava medidas de boicote político e econômico e 214

ameaçava o “mau vizinho” com sanções ainda mais severas. Nesse contexto delicado, Vargas e seus principais auxiliares viam com preocupação a hipótese de um conflito na fronteira sul, justamente no momento em que o Nordeste ainda requeria proteção e as tropas da FEB se preparavam para deixar o país rumo ao teatro de guerra no Mediterrâneo. O Brasil oscilava entre manter-se afinado com a política dos Estados Unidos (sua primeira posição) e precaver-se contra eventual deterioração nas relações bilaterais com a vizinha Argentina (cenário a evitar). Diante do recrudescimento da posição norte-americana, caracterizada por animosidade crescente em relação ao governo argentino, Vargas buscaria a conciliação. Consequentemente, na Conferência do México, o Brasil atuou para encontrar fórmula que permitisse a plena reintegração da Argentina à comunidade interamericana. Contando com os bons ofícios brasileiros, o governo Farrell aderiu às resoluções de Chapultepec, declarou guerra ao Eixo e normalizou suas relações diplomáticas com os EUA e outros países. Mais tarde, a muito custo admitida na Conferência de São Francisco, novamente com apoio brasileiro e latino-americano, a Argentina se tornou um dos membros fundadores da ONU. No que se refere aos acordos regionais e sua compatibilidade com a organização global, o Brasil defendeu que as questões de interesse exclusivamente hemisférico deveriam ser encaminhadas com recurso aos mecanismos regionais existentes, sem a intervenção do Conselho de Segurança. A preservação da autonomia do sistema interamericano, onde os Estados Unidos não possuíam poder de veto, era preferível a deixar que a ONU assumisse funções de segurança na região. Primeiro, porque os países latino-americanos queriam manter o Hemisfério Ocidental afastado das disputas extracontinentais. Segundo, porque os EUA haviam reconhecido no âmbito continental o princípio da não intervenção e seriam obrigados a continuar a honrá-lo, de acordo com as normas interamericanas. E, terceiro, porque o veto no Conselho de Segurança daria aos P5 capacidade de saírem imunes em caso de agressão a um Estado americano ou, ainda, de acobertarem ações hostis de terceiros, deixando os países da região desamparados pela ONU quando precisassem recorrer à sua proteção. A Ata de Chapultepec, aplicável somente até o fim das hostilidades, estabeleceu que qualquer atentado contra a integridade do território ou contra a soberania de um Estado americano seria considerado uma agressão a todos os demais Estados americanos. Após vigorosa atividade diplomática por parte dos países latino-americanos, a Conferência de São Francisco acatou a validade dos acordos regionais, nos termos do Capítulo VIII da Carta. Além disso, o artigo 51 reconheceu o direito de autodefesa individual e coletiva, a fim de que qualquer Estado (ou grupo de Estados) pudesse reagir imediatamente caso agredido. Conforme entendimento paralelo entre as delegações da América Latina e dos Estados Unidos, uma Conferência interamericana seria organizada no Rio de Janeiro, em outubro de 1945, para celebrar o tratado definitivo que formalizaria a Ata de Chapultepec. Em virtude de novos problemas com a Argentina, porém, a referida Conferência só veio a ser organizada em 1947, quando foi enfim assinado o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR). Enquanto isso, no Brasil, o Estado Novo perdia o fôlego sob o impacto das pressões pela redemocratização. Vargas, que sempre se colocara como “árbitro” acima dos grupos internos e das correntes de opinião, já não detinha o mesmo grau de controle sobre o processo político. A despeito da crise do regime autoritário, a política externa seguiu o curso traçado por Vargas, de apoio aos Estados Unidos e reforço dos laços bilaterais com Washington. Essa diretriz básica tinha o endosso do Itamaraty, dos militares e da área econômica do governo. Tanto Eurico Gaspar 215

Dutra quanto Eduardo Gomes, os dois principais candidatos às eleições presidenciais em 1945, também a defendiam. O Brasil estava firmemente no campo dos Aliados, o que significava acomodar-se a determinadas vicissitudes, ditadas por interesses maiores. Um exemplo foi o estabelecimento de relações diplomáticas entre o Brasil e a União Soviética, em abril de 1945, revertendo uma política existente desde 1917. Foi a contragosto que Vargas assentiu em atender à solicitação norte-americana, cuja origem partira de Moscou e chegara a ser discutida entre Roosevelt e Stalin em Yalta, no contexto dos arranjos para a criação da ONU. A Conferência de São Francisco teve início com a guerra ainda em andamento na Europa e no Pacífico. O front militar e o front diplomático se livravam simultaneamente e a influência do primeiro era sentida fortemente sobre o segundo. A grande clivagem política na Conferência foi entre os Cinco Grandes, que estavam liderando a campanha militar aliada, e “o resto”, ou seja, todos os outros países que não ocupariam assentos permanentes do Conselho de Segurança – os “45 Pequenos”. O Brasil viu essa separação como uma das causas da dificuldade em fazer avançar a Conferência, dividida entre dois grupos com interesses frequentemente divergentes. A sorte das incontáveis emendas ao projeto de Dumbarton Oaks era o assunto que dominava as deliberações entre os delegados. Na prática, as potências patrocinadoras procuravam levar textos a votação de preferência quando o resultado já estivesse assegurado (no sentido que lhes fosse favorável, bem entendido). Entre todas as cláusulas em debate, o veto sobressaía como item inegociável. As potências menores tentaram modificar essa disposição, submetendo um questionário com 23 perguntas e apresentando emendas para restringir o exercício discricionário do privilégio. As grandes potências novamente apelaram aos sacrifícios de toda ordem que vinham incorrendo para ganhar a guerra, com a promessa de que a unidade dos membros permanentes era essencial para preservar a paz vindoura. Quando a persuasão não se revelou suficiente, pressionaram com todos os meios de que dispunham. Deixaram claro que a opção seria o colapso da Conferência e o abandono do projeto da ONU. Por questão de princípio, o Brasil se opôs à concessão do veto e aderiu ao movimento geral para aboli-lo ou ao menos atenuá-lo. Confrontado com a hipótese de fracasso da Conferência, o governo brasileiro anunciou que votaria a favor da fórmula de Yalta, caso nenhuma emenda alternativa reunisse o número de votos requerido para ser aprovada. Assim o fez, declarando confiar na boa-fé das grandes potências, na esperança de que exercessem esse extraordinário poder com prudência e moderação. Cumpre lembrar que, antes de dar a partida como perdida, o Brasil propôs a convocação de uma Conferência de revisão da Carta no prazo de cinco anos. A “emenda Velloso” previa um mecanismo de revisão quinquenal, a cargo da Assembleia Geral, que teria poderes constituintes para mudar a Carta por maioria de dois terços, sem veto. A proposta, apresentada em versão ligeiramente modificada, co-patrocinada pelo Canadá, foi rejeitada por estreita margem. Em seu lugar, as potências patrocinadoras obtiveram a aprovação dos artigos 108 e 109. As emendas à Carta precisariam da ratificação por dois terços dos Estados-membros da ONU, incluindo todos os P-5. A Conferência de revisão, prevista para depois de dez anos da entrada em vigor da Carta, caso houvesse decisão nesse sentido, até hoje não foi convocada. Apesar disso, o Brasil e os demais países latino-americanos foram relativamente bemsucedidos no esforço por incluir certos princípios de justiça e direito internacional na Carta, matéria que havia sido negligenciada em Dumbarton Oaks. Estava em causa o argumento de que 216

a manutenção da ordem não poderia ser o objetivo único da organização e que somente a força militar não seria capaz de sustentar paz alguma, especialmente se desvinculada de preocupações éticas ou valores inerentes a uma sociedade mais justa e menos desigual. Em meio aos grandes debates, alguns delegados brasileiros também tiveram atuação destacada em temas específicos, como foi o caso de Bertha Lutz na defesa dos direitos da mulher e de Geraldo de Paula Souza na promoção da saúde e da higiene sanitária. Resta considerar a reivindicação brasileira por um assento permanente no Conselho de Segurança. Modelo de “bom vizinho”, o Brasil era visto em Washington como parceiro confiável e “aliado fiel”. Em agosto de 1944, durante a Conferência de Dumbarton Oaks, Roosevelt instruiu sua delegação a sugerir que o Brasil fosse considerado como o sexto membro permanente, uma possibilidade que ajudaria a “reforçar a posição do Brasil” na América do Sul, em linha com a perspectiva regionalista que o presidente favorecia para guiar a ação dos Policiais no pós-guerra. Um típico balão de ensaio, como muitos outros lançados a partir da Casa Branca durante a guerra, a iniciativa não havia sido meticulosamente preparada nem chegou a ser amadurecida previamente nos círculos decisórios norte-americanos. A proposta encontrou resistências da Grã-Bretanha e da União Soviética. A própria delegação norte-americana, após reunião interna para debater a questão, recomendou que Roosevelt desistisse da ideia. Vários argumentos foram usados como justificativa, incluindo o fato de que os Estados Unidos seriam vistos como “responsáveis” pelo desempenho do Brasil se patrocinassem a entrada do país no Conselho. Tanto britânicos quanto soviéticos, embora cada um tivesse seus próprios motivos, eram refratários a um aumento no número de assentos permanentes maior do que cinco. Alegavase que, se fosse muito expandido, o Conselho poderia ter sua eficiência comprometida. Churchill e Stalin tampouco viam com simpatia a hipótese de permitir o ingresso de um país latinoamericano que então se considerava como mais um “voto certo” para os EUA. Antes do final de 1944, a embaixada norte-americana no Rio de Janeiro já havia sido notificada pelo Departamento de Estado de que os Estados Unidos não iriam insistir na admissão do Brasil como membro permanente. O apoio de Washington seria limitado à eleição do Brasil a um lugar temporário (não permanente) no órgão. Tomada essa decisão, o assunto não foi discutido por Roosevelt na Conferência de Yalta. Ao que tudo indica, o momentum favorável ao Brasil havia passado. O presidente norte-americano, que se havia empenhado pessoalmente em favor da China, vencendo as objeções de Churchill e Stalin, era quem melhor poderia levar adiante sua intenção de criar uma sexta cadeira permanente. A morte de Roosevelt, pouco antes da Conferência de São Francisco, eliminou em definitivo essa possibilidade. As principais alegações levantadas contra o sexto assento, diga-se de passagem, foram aplicadas seletivamente. A ênfase então atribuída ao poder militar para a presença no Conselho, em caráter permanente, tinha como parâmetro a mobilização maciça de forças na guerra em curso. Mas a tese de que era preciso ter status de grande potência como “pré-requisito” não impediu que o governo chinês de Chungking, que controlava apenas uma fração de seu próprio território, fosse convidado a ser um dos Policiais em virtude de considerações estratégicas dos EUA, que tinham interesse em fortalecer o aliado asiático na luta contra o Japão. O número de membros permanentes também foi sendo progressivamente aumentado: de três para quatro, e depois de quatro para cinco, com a inclusão da França gaullista, defendida incisivamente pela Grã-Bretanha. Onde traçar o limite da expansão era mais uma questão de conveniência política do que de aritmética ou de eficiência do órgão. 217

O governo brasileiro não havia sido consultado pelos Estados Unidos antes de ser considerada a proposta de Roosevelt em Dumbarton Oaks. Os trabalhos da Conferência se realizavam sob grande sigilo e poucos tinham acesso a informação fidedigna sobre suas reuniões. Não se sabia ao certo qual seria a estrutura da organização em vista nem quais seriam seus órgãos principais. Somente após a divulgação da minuta de Carta aprovada, em outubro de 1944, os demais países puderam de fato conhecer o projeto negociado pelas quatro potências. A participação do Brasil no Conselho de Segurança foi então objeto de análise da comissão de notáveis do Itamaraty. As opiniões se dividiram. Mesmo entre aqueles que viam a reivindicação com dificuldade, externou-se a opinião de que, caso algum país da América Latina fosse escolhido, esse lugar deveria caber ao Brasil. Vargas, por seu turno, tinha a expectativa de que as “justas aspirações do país” seriam satisfeitas, como reconhecimento devido pela colaboração que o Brasil havia prestado aos Aliados. Como se tratava de tema sensível, adotou-se uma postura de discrição. O Brasil não faria campanha ostensiva. Com autorização presidencial, o governo brasileiro defendeu, como primeiro passo, um assento permanente para a América Latina. Uma vez criado o posto, seria definida sua forma de preenchimento por um país da região. Era uma candidatura indireta. Essa posição foi levada pelo Brasil à Conferência de Chapultepec e, posteriormente, a São Francisco. Confidencialmente, procurou-se alcançar o objetivo por meio de gestões bilaterais junto aos Estados Unidos. O respaldo de Washington – particularmente de Roosevelt – era esperado como parte da “aliança preferencial” que haveria entre os dois países, pelo menos na visão do Rio de Janeiro. Mas, nos primeiros contatos mantidos, no final de 1944, o Departamento de Estado desestimulou as pretensões brasileiras e acenou com a oferta de apoio ao assento não permanente. O recuo norte-americano parecia indicar que as grandes potências já teriam fechado a questão em torno de um Conselho com apenas onze membros (cinco permanentes e seis não permanentes). No início de 1945, agravou-se o quadro de crise institucional que ameaçava a estabilidade do regime estadonovista. Embora interessado no assento permanente, caso isso fosse factível, Vargas, mais preocupado com seu futuro político, não se engajou a fundo, deixando a tarefa à diplomacia brasileira. Quando o secretário de Estado Edward Stettinius passou por Petrópolis para uma entrevista com Vargas, em fevereiro, o presidente nada pediu. Leão Velloso ainda tentaria insinuar o tema em conversas ocasionais com Stettinius, que tergiversou até São Francisco. Naquela Conferência, no comitê 1 da terceira comissão, o Brasil chegou a apresentar proposta de emenda à Carta para conferir à América Latina representação permanente no Conselho de Segurança. Ao se aproximar o momento de decidir sobre o tamanho definitivo do órgão, a proposta brasileira foi retirada em 14 de maio, possivelmente por solicitação norteamericana, transmitida reservadamente a Leão Velloso. Depois disso, a questão – se já não estava fechada antes – jamais se reabriu durante a Conferência. O artigo 23 da Carta designou nominalmente os P-5, cabendo à Assembleia Geral eleger os membros temporários do Conselho. No que se refere especificamente ao pleito da cadeira permanente em 1945, o recurso brasileiro à intercessão dos EUA não trouxe o retorno esperado. Após a assinatura da Carta, a Comissão Preparatória das Nações Unidas se reuniu em Londres, a fim de tomar as medidas práticas necessárias para a realização da I Assembleia Geral. Representado por Cyro de Freitas-Valle, o Brasil tomou parte nos trabalhos como um dos membros do Comitê Executivo daquela Comissão. A orientação geral seguida, nas palavras de Leão Velloso, foi a de “acompanhar os Estados Unidos em questões de importância capital para a 218

sua política”. Paralelamente, o Brasil desenvolveu sua primeira campanha a um lugar não permanente no Conselho de Segurança. O principal argumento utilizado foi o da contribuição brasileira ao esforço de guerra aliado. Contando com o prometido apoio norte-americano, em janeiro de 1946, o Brasil foi o país mais votado para um mandato de dois anos, resultado que o governo brasileiro comemorou como uma “brilhante vitória”. A crise do Estado Novo culminou no golpe que depôs Vargas, em outubro de 1945. Um mês antes, o embaixador norte-americano no Rio de Janeiro, Adolf Berle, protagonizou episódio polêmico com seu desditoso discurso de apoio à democracia constitucional no país. O presidente Truman, que ainda considerava Vargas um “bom amigo e aliado”, posteriormente desautorizou seu embaixador. Mas Vargas, depois disso, teria sua confiança nos Estados Unidos seriamente abalada. Sua destituição, mesmo que não houvesse sido encorajada diretamente pela Casa Branca ou pelo Departamento de Estado, tampouco foi lamentada pelas autoridades norteamericanas. Para Vargas, magoado e decepcionado, não haveria sinal maior de ingratidão. A mudança de governo em nada abalou a convicção da diplomacia brasileira de que a chave para aumentar a influência do país no mundo residia nos entendimentos bilaterais com os Estados Unidos. Na I Assembleia Geral da ONU, em Londres, a delegação chefiada por Souza Dantas atuou no sentido de “ajudar sempre as soluções mais liberais”. Sua instrução básica era votar sistematicamente com os EUA, procurando, na medida em que o decoro lhe permitisse, não dar a impressão de que a atitude do Brasil fosse vista como mera duplicação do voto norteamericano. A essa altura, no entanto, o governo brasileiro parecia crescentemente desencantado com a possibilidade de verem realmente cumpridos seus anseios em relação aos ganhos expressivos que pensava poder extrair das negociações de paz. A contribuição do Brasil à guerra não teria recebido as compensações esperadas. Essa percepção negativa suscita a questão de como definir ou explicar a participação do Brasil no conjunto das deliberações sobre o pósguerra. Já se comentou na historiografia o desejo do Brasil de ser “potência associada” e sua relação com o envio da FEB para garantir presença nas conversações do pós-guerra. A FEB teria sido um dos pilares do projeto político de fortalecer as Forças Armadas e dar ao Brasil uma posição de destaque na América do Sul e no cenário internacional como “aliado especial” dos Estados Unidos.547 O outro pilar, na hipótese de sua realização, teria sido o assento permanente no Conselho de Segurança. Seriam metas paralelas ou até complementares, ligando aspirações brasileiras nas duas frentes, militar e diplomática. Mas a conexão causal entre a FEB e o assento permanente, se existe, é apenas difusa. Não havia um projeto pronto e acabado para que o Brasil ocupasse um lugar de relevo na ONU no momento em que a FEB é concebida, preparada e despachada para combater na Europa. A decisão de organizar uma Força Expedicionária poderia, subsidiariamente, ter como objetivo dar mais voz ao Brasil na negociação da paz. Mas, em 1943, poucos sabiam como essa paz seria negociada, a não ser como matéria de especulação. A proposta de Roosevelt em Dumbarton Oaks, como visto, era desconhecida do governo brasileiro. Eventual candidatura ao Conselho só poderia existir concretamente depois de outubro de 1944.548 547

MOURA, Gerson. Sucessos e ilusões: relações internacionais do Brasil durante e após a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1991, p. 38-40. 548 Por ocasião do I Seminário de Estudos sobre a FEB (Rio de Janeiro, 15 jun. 2009), o professor Frank McCann sugeriu a tese de que, se o Brasil houvesse aceitado o convite aliado para enviar à Áustria tropas de ocupação no final da guerra, suas chances de obter uma cadeira permanente no Conselho de Segurança teriam aumentado

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Nem heroica nem tanto opaca, a contribuição do Brasil em São Francisco foi coerente com a direção estratégica estabelecida por Vargas e defendida por Aranha desde sua chegada ao Itamaraty. Suas limitações residiam, em primeiro lugar, na própria visão que se tinha da posição a ser ocupada pelo Brasil na política mundial: uma potência “americana” por excelência (isto é, hemisférica), confinada a um papel mais regional do que global. Segundo a Doutrina Aranha, para reforçar seu status na América do Sul, o Brasil devia apoiar os Estados Unidos nas questões de alta política internacional. A política externa daí resultante estaria condicionada a essa grande estratégia. À parte outras motivações no seu nascedouro (como a continuidade da assistência militar ao Brasil), a FEB, nesse sentido, foi muito mais um gesto de comprometimento com a causa aliada (apoio aos EUA) do que uma tentativa consciente de projeção política na Europa (aumento da influência brasileira em cenários extrarregionais). Cumpre assinalar que, de 1944 para 1945, os Estados Unidos se distanciam politicamente do Brasil, que já não se apresentava tão essencial aos objetivos norte-americanos. Com a aproximação do término da guerra, os EUA direcionam seus interesses para muito além do Hemisfério Ocidental. O valor estratégico atribuído ao Brasil, na América do Sul ou na luta contra o Eixo, diminui significativamente. A morte de Roosevelt assinalou o fim de uma era nas relações bilaterais. A queda de Vargas, como já dito, não provocou abalos em Washington. É certo que foram muitas as políticas exteriores de Vargas: no período imediatamente posterior à Revolução de 1930, nas disputas político-ideológicas antes e depois do Estado Novo, na neutralidade, na adesão firme aos Aliados ou na fase final da guerra, sem contar obviamente o período de seu segundo governo (1951-54). Vargas era, em geral, avesso a compromissos definitivos. Preferia, sempre que possível, manter suas opções abertas e deixar aos agentes políticos o benefício da dúvida. Antes de se posicionar no conflito global entre os Aliados e o Eixo, o apoio que o Brasil prometia afiançar aos Estados Unidos era condicionado à assistência econômica e militar norte-americana, visando sobretudo à consecução dos objetivos estratégicos brasileiros de industrialização pesada e rearmamento das Forças Armadas. Em 1940, o Brasil não queria um “alinhamento sem recompensa” e jogou com o poder relativo que detinha naquela conjuntura: a Alemanha nazista vencia a guerra na Europa e, na América do Sul, a neutra Argentina representava ameaça potencial ao interesse de Washington em manter um bloco continental coeso. Ao definir-se pelos Aliados em 1942, Vargas tinha consciência de que perderia um pouco de sua margem de manobra. Mas não havia mais como equilibrar o “duplo jogo”. A única opção viável que lhe havia restado era tentar obter o máximo daquela nova situação.549 Em 1945, derrotadas as potências do Eixo, o quadro era outro, bem diferente. A assimetria no relacionamento Brasil-EUA se aprofundou, o poder de barganha brasileiro diminuiu, o alinhamento continuou, mas a “recompensa” não veio no nível esperado. O “aliado fiel” se desiludiu. O erro talvez estivesse em dar como perene uma condição conjuntural. consideravelmente. É duvidoso, porém, que tal fosse o caso. Não havia relação de troca entre uma coisa e outra e, depois da assinatura da Carta da ONU, aquela janela de oportunidade se fechara. Seria altamente improvável que toda a questão fosse reaberta quando (e se) soldados brasileiros finalmente chegassem à Áustria, que acabou dividida até 1955 em setores de ocupação dominados por EUA, URSS, Grã-Bretanha e França. Cf. “Brasil foi chamado a ocupar a Áustria”, matéria de Wilson Tosta, O Estado de São Paulo, 7 jun. 2009. 549 Não cabe aqui examinar até que ponto o envolvimento brasileiro na Segunda Guerra Mundial foi “forçado”, tema de outros estudos. O que se deseja ressaltar é o condicionamento que a partir daí afeta a política externa brasileira, ancorada no apoio aos Aliados e aos EUA em particular, situação que irá perdurar mesmo após o término da guerra.

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Projetava-se em terceiros a capacidade de determinar resultados e realizar objetivos em ambiente externo que não podia ser controlado. Era, em última análise, uma relação provedor-cliente que não podia dar sustentabilidade de longo prazo a um projeto de política externa própria, pois seu alcance era ditado pela outra parte. Paradoxalmente, o ponto culminante do paradigma americanista continha em si o germe do desencantamento futuro. Voltando ao Conselho de Segurança, o assento permanente brasileiro, se houvesse sido obtido em 1945, de modo mais provável teria sido consequência da intervenção norteamericana como patrocinador da ideia, em esforço semelhante àquele que Roosevelt dedicou à China nacionalista de Jiang Jieshi – ou, recuando ainda mais no tempo, como Wilson fizera para indicar o nome do Brasil ao Conselho da Liga das Nações em 1919. De uma forma ou de outra, a presença brasileira no Conselho da ONU, naquele momento, acabaria seguindo as escolhas dos formuladores de política no Rio de Janeiro, como refletido no padrão de voto exibido pelo Brasil no seu primeiro mandato como membro não permanente (1946-47), virtualmente idêntico ao de Washington. Esse fato, como advertira Freitas-Valle mais de uma vez, militava contra a obtenção da cadeira permanente na medida em que a possibilidade de “voto duplo” gerava desconfiança nos outros países e subtraía apoios. O Brasil não se apresentava como ator global (que ainda não era) ou país em desenvolvimento (conceito ainda inexistente) nem fundamentalmente como país de sua região, fosse ela o Hemisfério Ocidental, a América Latina ou a América do Sul. Sua condição básica na política internacional era de aliado dos Estados Unidos, com todas as implicações que dela poderiam ser extraídas. Em certo sentido, esse era um condicionamento talvez até mais concreto para Vargas do que para o governo Dutra depois de 1946, se considerarmos a inegável extensão do compromisso brasileiro com a causa dos Aliados em tempo de guerra. Tropas norteamericanas, por exemplo, ficaram por vários anos estacionadas em partes do território brasileiro durante o conflito. O controle de bases aéreas e navais de interesse estratégico foi entregue às Forças Armadas dos EUA, que também detinham o comando das operações da FEB, subordinada ao Quinto Exército do general Mark Clark, na Itália. A retirada definitiva das forças norteamericanas seria negociada com o governo brasileiro ao longo de 1945, paralelamente a entendimentos para a continuidade da cooperação militar Brasil-EUA no pós-guerra.550 As conclusões deste trabalho sugerem, portanto, a necessidade de se relativizar o contraste entre a “barganha nacionalista” de Vargas e o “alinhamento automático” no governo Dutra, como se houvesse um fosso entre as duas políticas. Ora, o enquadramento brasileiro se deu em 1942. A rationale para tanto era a mesma, durante e após a guerra. A diferença não esteve na alteração do governo em 1945, mas na mudança das condições externas em que tal política se dava, incluindo mudanças nos interesses e nas prioridades dos Estados Unidos. A tática da barganha, que teria impulsionado a siderurgia nacional e ajudado a rearmar os militares, só funcionou em situações pontuais, provocadas por fatores exógenos – ora a ameaça nazista ora o perigo argentino. O governo brasileiro não tinha controle algum sobre esses fatores. Quando o contexto internacional novamente se altera, o Brasil continua a seguir a mesma linha de “sucesso” que a memória recente lhe indicava ser a melhor (Doutrina Aranha) e que a tradição apontava ser uma via de comprovada eficácia (barão do Rio Branco).

550

FRUS, 1945, vol. IX, p. 24 et seq.

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Não seria incorreto afirmar que políticas semelhantes em contextos diferentes podem levar a resultados díspares se não há um esforço de adaptação às novas circunstâncias. O dogmatismo jamais poderá ser a base de uma boa política. Muitas vezes, é a recusa em deixar o conforto proporcionado pela inércia que impede o advento do novo, sobretudo quando se trata de reformular antigos mapas mentais. Há momentos em que a mudança não é apenas salutar, ela é necessária. O mesmo vale para a Organização das Nações Unidas. A política presidiu todo o processo de gestação da ONU. Adaptando-se com dificuldade a realidades cambiantes, convivendo com outras, criando fórmulas alternativas ou simplesmente se movendo dentro do permitido pela lei ou pela prática dos Estados, a ONU ocupou espaços que, em muitos casos, haviam sido apenas esboçados em São Francisco. O saldo desigual de sua atuação, todavia, mostra que muitos aperfeiçoamentos ainda são necessários. Sim, a ONU mudou muito desde sua criação. É natural que continuará evoluindo, como o mundo ao seu redor. Às vezes há dissonâncias entre um e outro e muitos anos se passam até que a organização entre em compasso com a realidade que a circunda. É hoje amplamente reconhecido que seu Conselho de Segurança, criado a partir de relações de força da Segunda Guerra Mundial, precisa deixar para trás o mundo de 1945 e ingressar na política global do século XXI. Este é sem dúvida o principal desafio pendente no processo de reforma da ONU. O passado não pode bloquear o futuro. Se algo a História nos ensina, é a certeza de que cedo ou tarde a mudança se faz acontecer. Cabe a nós estarmos preparados.

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ARQUIVOS PESQUISADOS

ARQUIVO HISTÓRICO DO ITAMARATY (AHI) Escritório Regional do Ministério das Relações Exteriores no Rio de Janeiro (ERERIO) Série Correspondência, 1931-1959 MISSÕES DIPLOMÁTICAS BRASILEIRAS Embaixada em Washington, 1944-1946: telegramas recebidos, 51/5/6, 51/5/7, 51/5/8; telegramas expedidos, 52/2/2, 52/2/3, 52/2/4, 52/2/5, 52/2/6; ofícios, 49/1/2, 49/1/3, 49/1/4, 49/1/6; despachos, 51/2/11, 51/2/12 Embaixada em Londres, 1944-1946: telegramas recebidos, 29/5/7, 29/5/8, 29/5/9; telegramas expedidos, 30/1/4, 30/1/5; ofícios, 28/3/5, 28/3/6, 28/3/7, 28/3/8, 28/3/11; despachos, 29/4/1 Embaixada em Buenos Aires, 1944-1946: telegramas recebidos, 14/1/15, 14/1/16, 14/1/17; telegramas expedidos, 14/3/1, 14/3/2, 14/3/3 Embaixada na Cidade do México, 1945: telegramas, 33/1/18, 33/1/12 CONGRESSOS E CONFERÊNCIAS INTERNACIONAIS Conferência Interamericana sobre os Problemas da Guerra e da Paz, México, 1945: telegramas, cópias, 76/4/16 Conferência de São Francisco, 1945: telegramas recebidos, 76/3/20; telegramas expedidos, 76/3/21 Conferência da Paz, Paris, 1946: telegramas, 76/3/18, 76/3/19 Conferência de Alimentação e Agricultura, ofícios, 1944-1946: 80/1/17 ORGANISMOS INTERNACIONAIS Retirada e reingresso na Liga das Nações, Genebra, 1926-1936: Lata 1011, maço 16.957; Lata 397, maço 6.033 Comissão preparatória das Nações Unidas, Londres, 1945-1946: ofícios, 78/4/1 Delegação do Brasil junto à ONU, Nova York, 1945-1946: telegramas expedidos, 79/4/9; telegramas recebidos, 79/3/20 MAÇOS TEMÁTICOS Dumbarton Oaks, 1944: Lata 651, maço 9803-A Terminação da guerra. Paz. 1940-1946: Lata 1718, maços 35.481 e 35.482 Conferência Interamericana sobre os Problemas da Guerra e da Paz, México, 1945: Lata 1708, maço 35.458 (recortes de jornal); Lata 1920, maços 36.439, 36.441, 36.442, 36.443, 36.444, 36.445; Lata 1921, maço 36.449 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA Ofícios, 1945: 90/2/6, 90/2/7

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SECRETARIA DE ESTADO DAS RELAÇÕES EXTERIORES Divisão Política e Diplomática (DPD), informações e relatórios, 1939-1947: 136/4/10 ARQUIVO HILDEBRANDO ACCIOLY Correspondência e documentos diversos HA 123-01-18 HA 123-02-01 HA 123-02-06 HA 123-02-35

HA 123-02-36 HA 123-02-37 HA 123-05-09/10 HA 124-01-09

HA 124-02-04/05 HA 124-02-10 HA 124-02-21

MAPOTECA Coleção iconográfica, fotografias diversas ARQUIVO NACIONAL Divisão de Documentação Escrita, Rio de Janeiro ARQUIVOS DIPLOMÁTICOS ESTRANGEIROS SOBRE O BRASIL (1906-1954) National Archives and Records Administration (NARA), Grupo 59, documentos do Departamento de Estado sobre o Brasil, assuntos políticos, anos 1945-1949 832.00/1-145 - 3-3145 832.911/1-1047 832.00/4-245 - 5-3145 832.9111/11-2949 832.00/6-145 - 8-1545 832.00/00B-1-146 - 5-2946 CPDOC/FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea, Rio de Janeiro ARQUIVO GETÚLIO VARGAS Correspondência e iconografia GV c 1943.00.00/3 GV c 1943.01.04/1 GV c 1943.04.08/2 GV c 1943.09.11 GV c 1943.11.18 GV c 1943/1944.00.00/2 GV c 1944.03.08/2 GV c 1944.03.21 GV c 1944.04.13 GV c 1944.05.27 GV c 1944.07.01/2 GV c 1944.07.14/1

GV c 1944.07.17 GV c 1944.07.18 GV c 1944.07.31 GV c 1944.08.02 GV c 1944.08.17 GV c 1944.09.18 GV c 1944.10.11 GV c 1944.11.15 GV c 1944.11.29/2 GV c 1944.12.26/1 GV c 1944.12.26/2 GV c 1945.01.03 223

GV c 1945.01.23 GV c 1945.02.23 GV c 1945.03.13 GV c 1945.03.19/2 GV c 1945.04.09 GV c 1945.04.30 GV c 1945.04.13/1 GV c 1945.05.25 GV c 1945.05.30 GV c 1945.06.09 GV c 1945.06.10 GV c 1945.06.15/2

GV c 1945.06.28 GV c 1945.07.05 GV c 1945.07.16/2 GV c 1945.09.03 GV c 1945.09.05

GV c 1945.10.00/7 GV c 1945.10.01/2 GV c 1945.10.01/3 GV c 1945.10.05/3

ARQUIVO OSWALDO ARANHA Correspondência política e iconografia OA cp 1943.01.11/2 OA cp 1943.02.09/1 OA cp 1945.03.31 OA cp 1945.06.27/1 OA cp 1945.09.12/2 OA cp 1946.08.26/1 OA cp 1947.02.00

GV c 1945.10.09/2 GV rem 2 1944.09.00 GV rem.s 1945.04.24

OA cp 1947.07.14 OA pi Aranha, O. 1947.00.00/5 OA pi Aranha, O. 1947.03.04 OA pi Aranha, O. 1947.05.24 OA pi Aranha, O. 1947.11.11 OA t ONU (microfilmes)

ARQUIVO CYRO DE FREITAS-VALLE Documentos diversos CFV ad 1944.02.00 CFV ad 1944.09.20 INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO (IHGB) Arquivo do IHGB, Coleções Particulares, Rio de Janeiro COLEÇÃO ESTEVÃO LEITÃO DE CARVALHO Comissão Mista de Defesa Brasil-Estados Unidos: Lata 506, Livros 1 a 6 Correspondência: Lata 507, Livros 1 a 5 MUSEU DA REPÚBLICA Arquivo Histórico, Palácio do Catete, Rio de Janeiro COLEÇÃO GETÚLIO VARGAS Correspondência e iconografia GV01 cr GV01 i GV04 cr GV03 dv/ft

GV026 dv/ft

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COORDENAÇÃO DE DOCUMENTAÇÃO DIPLOMÁTICA (CDO) Departamento de Comunicações e Documentação (DCD), Ministério das Relações Exteriores, Brasília ANTECEDENTES E CORRESPONDÊNCIA ESPECIAL Conferência das Nações Unidas para a Organização Internacional, São Francisco, 1945 Documentos, relatórios, minutas, cartas, telegramas, discursos, entrevistas e recortes de jornal: Maços de 42.868 a 43.010 (142 volumes) THE NATIONAL ARCHIVES Kew, Surrey, Reino Unido (antigo Public Record Office) RECORDS OF THE FOREIGN OFFICE General Correspondence (FO) World Organization discussions: Dumbarton Oaks Conference, 1944 FO 371/40713 até 371/40728 Dominions Office files, DO 35 series War Cabinet e Cabinet Office, Washington Office Records, CAB 122 The Prime Minister’s Office Papers, 1940-1945, PREM 3 FRANKLIN DELANO ROOSEVELT PRESIDENTIAL LIBRARY Hyde Park, NY, EUA FDR PAPERS AS PRESIDENT President’s Secretary’s File Box 5, United Nations Conference I Box 6, United Nations Conference II Box 24, Brazil Box 131, Dumbarton Oaks Conference, 1944 Box 168, United Nations, 1942-1945 President’s Personal File Box 71, Joint Statement issued by FDR and President Vargas, 29 Jan. 1943 Folder 4473, Getulio Vargas President’s Official File OF 11, Government of Brazil OF 4725, United Nations, 1941-1945 OF 5557, Dumbarton Oaks Conference on International Security Organization, 1944 President’s Safe File, 1933-1945 Box 5, South America 225

BERLE PAPERS Box 74, 76, 77, Adolf Berle Jr., Ambassador to Brazil, Correspondence, 1945-1946 Box 75, Correspondence with Philip O. Chalmers, Chief, Division of Brazilian Affairs Box 166, “Brazil: A World Power in the Making”, June 1946 SUMNER WELLES PAPERS Box 192, Brazil: Postwar UNITED NATIONS ARCHIVES AND RECORDS MANAGEMENT SECTION Nova York, EUA United Nations Conference on International Organization, AG-012 THE LIBRARY COLLECTION Paperless Archives (documents in CD-ROM) BACM Research, Beverly Hills, EUA Website: www.thelibrarycollection.com WORLD WAR II INTER-ALLIED CONFERENCES Minutes of World War II inter-Allied conferences and supporting documents

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ENTREVISTAS Embaixador Ronaldo Mota Sardenberg, Representante Permanente do Brasil junto à ONU em Nova York nos períodos 1990-1994 e 2003-2007 Brasília, 3 de abril de 2009 Embaixador Fernando Abbott Galvão †, serviu na Missão do Brasil junto à ONU em Nova York de 1954 a 1959 Por telefone, 26 de março de 2009 Embaixador Henrique Valle, Embaixador Alterno do Brasil junto à ONU em Nova York nos períodos 1994-1998 e 2003-2006 Brasília, 18 de março de 2009 Ministro Carlos Sérgio Sobral Duarte, Diretor-Geral do Departamento de Organismos Internacionais do Ministério das Relações Exteriores Brasília, 13 de março de 2009 Dr. Jean Gazarian, Professor Sênior do Instituto para Treinamento e Pesquisa das Nações Unidas (UNITAR) Nova York, 30 de novembro de 2009 238

RECURSOS DE PESQUISA NA INTERNET § § § § § § § § § § § § § § § § § §

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LISTA GERAL DE ANEXOS 1. Declaração das Nações Unidas 2. Carta de Oswaldo Aranha a Getúlio Vargas sobre o pós-guerra 3. Memorando brasileiro sobre o projeto de Dumbarton Oaks 4. Comunicado conjunto da visita do Secretário de Estado Edward Stettinius ao Brasil 5. Conferência de Chapultepec: observações brasileiras sobre Dumbarton Oaks 6. Ata de Chapultepec (Resolução VIII) 7. Declaração do México (Resolução XI) 8. Sobre o estabelecimento de uma organização internacional geral (Resolução XXX) 9. Conferência de São Francisco: estrutura e organização 10. Delegação do Brasil à Conferência de São Francisco 11. Carta de Leão Velloso a Stettinius sobre um assento permanente para o Brasil 12. Carta de resposta de Stettinius a Leão Velloso 13. Declaração da Delegação do Brasil sobre a questão do veto 14. Questionário sobre o exercício do veto no Conselho de Segurança 15. Declaração das potências patrocinadoras sobre a votação no Conselho de Segurança 16. Discurso do Brasil no encerramento da Conferência de São Francisco 17. Carta da ONU: artigos selecionados 18. Os 51 Estados-membros fundadores da ONU Anexo Especial. Por que o Brasil é o primeiro a discursar na Assembleia Geral da ONU?

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Anexo 1 Declaração das Nações Unidas *

Washington, 1º de janeiro de 1942 Tendo aderido a um programa comum de propósitos e princípios, incorporados na declaração conjunta do Presidente dos Estados Unidos da América e do Primeiro-Ministro do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, datada de 14 de agosto de 1941, e conhecida por Carta do Atlântico, e Convictos de que, para defender a vida, a liberdade, a independência e a liberdade de culto, assim como para preservar a justiça e os direitos humanos nos seus respectivos países e em outros, é essencial alcançar vitória absoluta sobre seus inimigos; e convictos de que se acham atualmente empenhados numa luta comum contra forças selvagens e brutais que procuram subjugar o mundo, Os Governos signatários da presente Declaram: 1. Que cada Governo se compromete a empregar todos os seus recursos, tanto militares como econômicos contra os membros do Tríplice Pacto e seus aderentes, com os quais esteja em guerra; 2. Que cada Governo se compromete a cooperar com os Governos signatários da presente, e a não firmar, em separado, armistício ou tratado de paz com o inimigo. Poderão aderir à presente Declaração outras nações que já estejam prestando ou que possam vir a prestar colaboração ou assistência material na luta para derrotar o hitlerismo. Signatários da Declaração: Estados Unidos Reino Unido União Soviética China África do Sul Austrália Bélgica Canadá Costa Rica

Cuba El Salvador Guatemala Haiti Honduras Índia Iugoslávia Luxemburgo Nicarágua

*

Noruega Nova Zelândia Países Baixos Panamá Polônia República Dominicana Tchecoslováquia

Ministério das Relações Exteriores. O Brasil e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944, vol. II, p. 224-225.

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Anexo 2 Carta de Oswaldo Aranha a Getúlio Vargas sobre o pós-guerra *

Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 1943 Getúlio, I. A política tradicional do Brasil pode resumir-se na seguinte fórmula: “apoiar os Estados Unidos no mundo em troca do seu apoio na América do Sul”. II. Esta política tem sido fielmente seguida pelo teu governo, conforme, aliás, tem reconhecido e proclamado o governo norte-americano, quer no período anterior como posterior à guerra. III. Devemos afirmar, em todas as oportunidades que nos forem oferecidas, que esta é a política que estás decidido a fazer na guerra até a vitória das armas americanas e na paz até a vitória e consolidação dos ideais americanos. IV. Uma vez que esta foi, é e deve ser a política do Brasil, cumpre-nos examinar a participação que devemos ter nela e no curso dos seus acontecimentos. V. A colaboração política, que orienta e define qualquer ação comum atual ou futura dos dois países, está a exigir de nossa parte decisão: a) sobre a “Carta do Atlântico”; b) sobre “Nações Unidas”; c) sobre “Conselhos Militares”; d) sobre “Comitês de Estudo dos Problemas da Paz”; e) sobre “ação de nossas Missões, especialmente em Vichy, Portugal, Espanha, Vaticano e Argentina”. A política do Brasil, como a própria política norte-americana, foi sempre de não intervenção na Europa. A verdade, porém é que esta guerra, como a anterior, vieram demonstrar que sem intervenção nossa na Europa estará a América sempre à mercê das guerras mundiais, porque não há mais guerras exclusivamente europeias, como no século passado. A interdependência dos povos e dos continentes evidenciou a impossibilidade de ficar a América à margem dos acontecimentos europeus, e até mesmo dos asiáticos e africanos. Os Estados Unidos serão chamados à liderança da paz no mundo, como foram à da guerra, e o Brasil, consequente com seu passado e consciente de seus interesses atuais e futuros, deve formar ao lado dos Estados Unidos. Querer afastar o Brasil da “guerra e da paz” ou mesmo deixar de estudar e trabalhar desde já pela posição que ao Brasil deve caber nesses acontecimentos seria erro de graves resultados. A política do “laissez faire” e “laissez aller” tem sido funesta na ordem interior e, mais ainda, na exterior dos povos. Além do mais, pelas costas imensas, pelas fronteiras com 10 nações, pelo tamanho e riqueza do território, pela heterogeneidade da população, o Brasil, como os *

Aranha a Vargas, carta, Rio de Janeiro, 25 jan. 1943, IHGB, Arquivo Estevão Leitão de Carvalho, Lote 507, Livro 3. Grifos tal como no original.

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Estados Unidos, é um país “cósmico e universal”, cujo futuro não poderá ser local, nem mesmo nacional, mas continental e mundial. É real que somos, ainda, um país fraco econômica e militarmente, sem autoridade bastante para decidir no seio das grandes nações. Não é menos real, porém, que com população e capital, que virão pelo crescimento natural do Brasil ou afluirão para o Brasil ao fim da guerra, mais dia ou menos dia o nosso país será inevitavelmente uma das grandes potências econômicas e políticas do mundo, como já é a segunda da América. Nada, pois, explicaria, agora, o nosso retraimento, uma vez que, unidos aos Estados Unidos e com eles solidários, já teríamos, no resguardo de nossos interesses e na preparação de uma função futura, uma missão bem definida nos fatos atuais, criados pelos problemas da guerra e da paz. Sou, pois, partidário de que, se os Estados Unidos voltarem a insistir e dentro da nossa política tradicional, devemos: a) aderir à “Carta do Atlântico”; b) aderir à “Declaração das Nações Unidas”; c) pleitear um lugar nos “Conselhos Militares”; d) participar de todos os “Comitês de Estudo das Nações Unidas”. A nossa colaboração diplomática deve continuar, como até agora, dando à política americana o melhor que pode dar. E tem dado muito, quer na América, quer na Europa, conforme o Departamento de Estado reconhece e proclama. A obra do Brasil, a tua pessoal, na América, é tudo. Sem ela o pan-americanismo não seria possível e os Estados Unidos não contariam, nesta guerra, com o apoio unânime dos povos continentais, exceção única de um governo que perde tempo e autoridade no seu próprio país. Deves, assim, combinar tudo o que for necessário aqui ou na Europa a tornar mais eficiente essa colaboração nossa e que, ainda, mais realce a parte decisiva e capital de nossa ação diplomática e ajuda política aos Estados Unidos. VI. A parte econômica deve ser estudada, sobremodo a parte que temos a dar e a que precisamos receber. À economia da guerra devemos sujeitar-nos sem reservas. Não são sacrifícios grandes e serão passageiros se soubermos ordená-los e distribuí-los no país. A economia da paz, porém, deve ser obra de recíproca compreensão dos interesses nossos e americanos na América e no mundo. Devemos ceder na guerra para ganhar na paz. A fuga de capitais ingleses, americanos e britânicos para o Brasil é fatal. É preciso estabelecer reserva quanto a essas inversões em países que não quiseram colaborar, ficando neutros. Já se nota a evasão desses capitais e desde já seria útil estabelecer restrições, pois nada explica que, neste momento, os neutros estejam nadando em capitais novos, como sucede à Argentina, originários dos Estados Unidos e da Inglaterra. O problema econômico da paz, para nós, cifra-se à adoção dos ideais liberais de comércio para as transações mundiais, da intensificação da cooperação norte-americana para o “programa Vargas” de industrialização do país, e do livre trânsito e fácil acesso de imigrantes e capitais para e no Brasil. As combinações, os entendimentos e os acordos são obra de debate e de trato comum a ser feita pelos órgãos governamentais. VII. A cooperação militar está regulada pelo “acordo secreto” e está sendo posta em execução pelas Comissões Mistas. Salvo qualquer entendimento dos Presidentes, ditado por fatos imprevistos ou necessidades imperiosas, acho que nos devemos ater ao fim e ao texto desse 243

acordo, que é bastante amplo para permitir qualquer desdobramento de ordem militar na ação solidária e aliada dos dois países. Seria, entretanto, útil que os governos, independentemente das comissões, mantivessem sempre íntimo contato e contínua troca de ideias, a fim de adotarem qualquer medida ou decisão ditada pelos acontecimentos ou pelos interesses recíprocos. Este assunto é propriamente militar e dele só me cabe cogitar, como tenho feito, para o fim de definir melhor a posição do Brasil. Não creio que nossas tropas venham a ser necessárias nos campos africanos ou europeus, mas acredito que, tal seja o curso da guerra, venha a ser do interesse do Brasil ter nela uma participação mais efetiva de ordem militar. A política na guerra se faz com a guerra e não com a paz. Deves, assim, estar atento para saber qual a ação militar a ser desenvolvida na sustentação e defesa de nossa posição na guerra e de nossa política continental e mundial. Seja como for, devemos preparar-nos como se tivéssemos que nos engajar amanhã em terra, no mar e no ar. Esta preparação por si mesma, sem que sejamos chamados à batalha, será contada como uma ou muitas vitórias na mesa da paz. VIII. Tudo quanto te disse aqui de pouco ou quase nada poderá ser útil, se não formos bem informados sobre: a) Rússia; b) Argentina; c) Portugal e suas colônias; d) América, colônias e mandatos. Confio em que, orientador de nossos pontos de vista e responsável por eles, tratarás de conhecer tudo quanto se pensa sobre esses problemas. O oriente está defendendo o ocidente, isto é, a Rússia e o Japão são os sustentáculos maiores, neste momento, de causa inglesa, americana e alemã. Não quer isso dizer que esta posição na guerra traga a obrigação na paz para a Alemanha de niponizar-se, nem para a Inglaterra e Estados Unidos de bolchevizar-se. A vitória das Nações Unidas deve ter propósitos claros e definidos que precisamos conhecer e examinar. A “Carta do Atlântico” merece a nossa adesão se for o propósito das Nações Unidas mantê-la e cumpri-la sem reservas e exceções. É preciso tornar essa Carta em pacto entre nós e os Estados Unidos. O caso argentino conheces melhor do que ninguém no Brasil e sabes aquilo que devemos dizer, indagar, temer e fazer. O caso português parece-me sério, porque Salazar cairá fatalmente, se não mudar de política, com a vitória das Nações Unidas. Portugal terá dias de anarquia e seu império correrá graves riscos, as colônias e as ilhas. Devemos reclamar que para qualquer decisão contaremos com o apoio americano em favor dos pontos de vista que viermos a adotar na defesa de um patrimônio que é hereditariamente dos brasileiros. A América deve eliminar as colônias europeias por acordo com as Nações Unidas (Inglaterra e Holanda) e pela libertação das demais colônias. O Brasil quer participar das 244

negociações e dos mandatos, especialmente da Guiana francesa, que diz com a segurança do Amazonas. IX. Precisas conhecer os objetivos os americanos na Europa e até onde irá agora a ação militar e depois a participação na ocupação e na reconstrução econômica e política europeias. X. A Inglaterra e o seu império são interrogações na guerra e na paz. A Inglaterra ficará pobre ao fim da luta. Sua sabedoria, experiência e a unidade do império demonstrada nas horas críticas desta guerra, dar-lhe-ão capacidade para se refazer com solidez e rapidez incríveis. A união anglo-americana na guerra não me parece que possa continuar na paz. A fortaleza britânica é uma bacia indispensável na balança do equilíbrio mundial. Devemos, pois, afastar-nos desses diferendos inevitáveis, mais econômicos que políticos, pois deles sempre adveio benefício para o intercâmbio e a vida dos demais povos. XI. A África é outra interrogação. A sua sorte é, hoje, considerada de grande influência na nossa segurança e essencial à defesa da América. Deves acompanhar seus problemas com cuidado particular, mesmo porque devemos reclamar um lugar nas deliberações sobre o futuro desse continente colonial. XII. O Brasil desta guerra deve procurar tirar as seguintes consequências: a) uma melhor posição na política mundial; b) uma melhor posição na política com os países vizinhos pela consolidação de sua preeminência na América do Sul; c) uma mais confiante e íntima solidariedade com os Estados Unidos; d) uma ascendência cada vez maior sobre Portugal e suas possessões; e) criação de um poder marítimo; f) criação de um poder aéreo; g) criação de um parque industrial para as indústrias pesadas; h) criação da indústria bélica; i) criação das indústrias, agrícolas, extrativas e de minérios leves complementares dos norte-americanos e necessários à reconstrução mundial; j) extensão de suas vias férreas e rodovias para fins econômicos e estratégicos; k) exploração dos combustíveis essenciais. Essas, em linhas gerais e apressadas, as ideias e sugestões que me ocorreram ao correr da máquina e para que possas adormecer mais profundamente nas alturas e despertar mais avisado quando tocares a terra, as suas realidades e as suas surpresas. Do amigo certo (a) Oswaldo

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Anexo 3 Memorando brasileiro sobre o projeto de Dumbarton Oaks *

Ministério/Circular n.º 21/8/11/44/Anexo único Rio de Janeiro, 4 de novembro de 1944 O Ministro de Estado, interino, das Relações Exteriores recebeu, no devido tempo, o memorandum com que, em data de 9 de outubro último, o Senhor Encarregado de Negócios dos Estados Unidos da América, de acordo com instruções de seu Governo, submeteu à sua consideração as “Propostas para o estabelecimento de uma Organização internacional geral”, em seu texto original inglês, acompanhado de uma tradução não oficial em português. Nesse memorandum o Senhor Encarregado de Negócios dos Estados Unidos da América comunicou ao Ministro de Estado, interino, das Relações Exteriores o desejo de seu Governo de considerar quaisquer sugestões do Governo brasileiro a respeito das referidas Propostas antes da reunião da conferência internacional que as deverá discutir. 2. O Ministro de Estado, interino, das Relações Exteriores, agradecendo ao Senhor Encarregado de Negócios dos Estados Unidos da América a remessa daquele importante documento, bem como os desejos manifestados pelo seu Governo de considerar as observações do Governo brasileiro sobre o texto, passa a expor-lhe os pontos de vista deste a respeito. 3. O Governo brasileiro, convencido da necessidade imperiosa e urgente de estabelecer-se uma nova organização internacional capaz de manter efetivamente a paz e a segurança no mundo, e levando em conta as sérias dificuldades a vencer em tão complexo empreendimento, considera satisfatório, nas difíceis circunstâncias atuais, o projeto submetido à sua consideração. Estimaria, no entanto, nele se deixasse expressamente consignada, de acordo com o elevado pensamento que o inspira, a possibilidade de aperfeiçoamento do pacto a celebrar-se entre as Nações, de maneira que todos os membros da Organização internacional a instituir-se viessem a ter, em futuro próximo, participação maior em suas decisões. 4. Reputa necessário figure entre os princípios da Organização a fundar-se o do respeito e manutenção, por todos os seus membros, contra qualquer agressão externa, da integridade territorial e da independência política de cada um deles. 5. Julga conveniente se consigne no pacto a subscrever-se que, quando uma controvérsia, nos casos dos §§ 4, 5 e 6, seção A, capítulo VII do Projeto, não chegar a resolver-se por acordo entre as partes, o Conselho de Segurança deverá submetê-la à Corte de Justiça Internacional, ou a um tribunal de arbitragem que organizará segundo os métodos previstos no Protocolo de Genebra, de 2 de outubro de 1924, conforme se trate ou não de conflito de ordem jurídica, ressalvadas, porém, as questões de que trata o § 7 – questões que o direito internacional deixa à competência exclusiva de cada Estado. Parece-lhe que a ação do Conselho de Segurança só se deve fazer sentir, nesses casos, para aquele fim, e para manter e restaurar a paz, ou para assegurar o cumprimento da sentença. *

Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores, ano de 1944. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1949, Anexo A, p. 139-141.

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6. Tem por indispensável não fique ao arbítrio da parte interessada, no curso de uma controvérsia que ponha em perigo a paz, a sua inclusão entre as questões que o Direito Internacional deixa à competência exclusiva do Estado interessado (§ 7, seção A, capítulo VIII), julgando conveniente que, em cada caso, a qualificação dessas questões seja atribuída à Corte de Justiça Internacional a pedido de uma das partes ou do Conselho de Segurança. Entende que, se for afirmativa a decisão da Corte, o Conselho de Segurança deverá tomar medidas, sendo o caso, para impedir qualquer perturbação da paz e segurança internacionais, e que, reconhecendo a Corte que a questão não tem aquele caráter, o Conselho deverá submetê-la aos processos preconizados pelo pacto a subscrever-se, para solução pacífica dos conflitos internacionais. 7. Considera que o Estado convocado como membro ad hoc do Conselho de Segurança, nos casos dos §§ 4 e 5, seção D, do capítulo VI do Projeto, por ser interessado ou parte em controvérsia submetida a esse órgão, deve ter, na votação, situação igual à que for atribuída aos membros titulares do mesmo, parecendo-lhe que estes, quando em tais condições, não devem ter direito a voto. 8. Entende que o Conselho de Segurança, de cuja composição trata a seção A do capítulo VI do Projeto, deve refletir as correntes de opinião e de interesses de todo o mundo civilizado a fim de poder dar rápido e cabal desempenho aos pesados encargos que lhe incumbem, sobrelevando entre estes o da responsabilidade primária da manutenção da paz e segurança internacionais, por delegação, segundo o Projeto (seção B, § 1, capítulo VI), de todos os membros da Organização em cujo nome age. Parece-lhe, assim, que esse órgão, atentas a presteza e eficácia da ação que dele se requer (seção B, § 1), não pode prescindir da constante cooperação da América Latina, à qual reputa indispensável se atribua lugar permanente em seu seio. 9. É de opinião que as questões de interesse exclusivo dos grupos regionais a que se referem os §§ 1, 2 e 3, seção C do capítulo VIII do Projeto, devem ser por eles resolvidas, só se justificando a intervenção do Conselho de Segurança na solução dessas questões quando elas ponham em perigo a paz em mais de um grupo regional. 10. Sugere que na redação do § 4, do capítulo II, se deixe bem claro que todos os membros da Organização se absterão em suas relações internacionais de recorrer a ameaças ou à força, a não ser de acordo com os métodos e com as decisões da mesma. 11. Estima conveniente que os relatórios do Conselho de Segurança submetidos à Assembleia, de acordo com o § 8, seção B, do capítulo V do Projeto, sejam ali não só estudados senão, também, postos em discussão. 12. Tem igualmente por vantajoso se consigne no pacto a celebrar-se o princípio da publicidade dos tratados. 13. Acha, outrossim, conveniente que a Assembleia da Organização tenha sede fixa, a mesma do Conselho de Segurança e do Secretariado, ainda que se lhe faculte reunir-se em outro lugar quando assim o decidir. 14. Julga útil que a Organização adote como suas línguas oficiais o inglês e o francês. 15. O Governo brasileiro opinará, oportunamente, sobre as demais questões relativas à Organização internacional, não consideradas no presente memorandum, e a respeito das quais o Projeto é omisso, reservando-se, ainda, para pronunciar-se em definitivo sobre tão relevante matéria quando tiver de apreciar, em seu conjunto, o plano integral de organização da paz e da segurança internacionais. 247

Anexo 4 Comunicado conjunto da visita do Secretário de Estado Edward Stettinius ao Brasil *

Rio de Janeiro, 17 de fevereiro de 1945

O Presidente Getúlio Vargas e o Secretário de Estado Edward Stettinius mantiveram uma cordial palestra sobre vários assuntos de interesse continental e internacional. É o seguinte o texto das declarações que resolveram fazer em conjunto: 1) Foram discutidas as fases das relações entre os Estados Unidos e o Brasil e os vários aspectos da situação mundial; 2) Foi particularmente examinada a colaboração de guerra do Brasil com os Estados Unidos e o meio pelo qual os dois países poderão continuá-la depois da guerra em seu interesse comum; 3) Foram revistos os resultados do sistema interamericano do qual o Brasil tem sido um tradicional defensor e os meios de reforçar o mesmo sistema para torná-lo mais efetivo do que no passado; 4) Foi discutida a significação da Conferência da Crimeia, que tão grandemente beneficiou a causa das Nações Unidas e preparou o caminho para as Conferências do México e de São Francisco, onde a solidariedade das Nações Unidas na guerra tornar-se-á a base da organização mundial para estabelecer uma paz duradoura.

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Declaração conjunta divulgada após a audiência concedida pelo Presidente Vargas ao Secretário de Estado Edward Stettinius, Rio de Janeiro, 17 fev. 1945, CPDOC, GV 45.03.19/2.

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Anexo 5 Conferência de Chapultepec: observações brasileiras sobre Dumbarton Oaks *

Cidade do México, 26 de fevereiro de 1945 A Delegação do Brasil deseja acentuar, preliminarmente, que, a seu ver, o plano de Dumbarton Oaks constitui um grande passo no sentido da futura organização de paz e demonstra a louvável preocupação de atender à necessidade de facilitar e consolidar as futuras relações internacionais. Julga, porém, que o mesmo é suscetível de ser melhorado em vários pontos, em benefício de sua maior eficiência. Entretanto, com espírito realista, reconhece que alguns dos defeitos capitais que geralmente se apontam no sistema ideado em Dumbarton Oaks não poderão ser alterados, na Conferência de S. Francisco da Califórnia. Só com o tempo, tais defeitos poderão desaparecer. Em todo caso, desejosa de contribuir um pouco para a melhoria desse plano, de tão grande importância para o mundo, a Delegação do Brasil, sem pretender, de forma alguma, substituí-lo por outro, indica aqui, como meras sugestões, algumas ideias, que poderiam talvez ser aproveitadas. Essas ideias compreendem, em forma articulada, não só as que o Governo brasileiro levou diretamente ao conhecimento do Governo dos Estados Unidos da América, em resposta a uma sua comunicação do mês de outubro último, mas ainda outras, julgadas oportunas. Capítulo II No Capítulo II do projeto, referente a Princípios, parece que se poderiam incluir entre estes, pelo menos, o de não-intervenção, já amplamente reconhecido entre os países americanos (Convenção de Montevidéu, sobre direitos e deveres dos Estados; Protocolo de Buenos Aires, relativo à não-intervenção; Declaração de Lima, de 1938) e até, de certo modo, aceito pela Assembleia da Liga das Nações (resolução adotada em 10 de outubro de 1936), mas também o de respeito escrupuloso aos tratados, que constitui uma das bases do direito internacional. Assim, a Delegação do Brasil sugere que se formule desta maneira o nº 2 do Capítulo II: “2. Todos os membros da Organização se comprometem a respeitar e cumprir escrupulosamente os acordos ou tratados de que sejam partes contratantes, inclusive as obrigações assumidas de conformidade com o presente Estatuto”. E que se redija assim o nº 4 do mesmo Capítulo: “4. Todo membro da Organização deverá abster-se, nas suas relações internacionais, de qualquer intervenção nos negócios internos ou externos de outro membro da mesma Organização, e de recorrer a ameaças ou ao uso da força, a não ser de acordo com os métodos e as decisões da própria Organização. Na proibição de intervenção deve entender-se compreendida qualquer *

Observações da Delegação do Brasil sobre o projeto de Dumbarton Oaks para uma nova organização internacional, apresentadas à Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz. Cidade do México, 26 de fevereiro de 1945. Relatório da delegação do Brasil à Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz (México - 1945). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947, p. 63-68.

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intromissão que ameace a segurança nacional de outro membro da Organização, ou comprometa diretamente a sua integridade territorial, ou determine o exercício de qualquer forma de influência preponderante estranha sobre os seus destinos”. Em virtude do que se dirá adiante, a Delegação do Brasil propõe igualmente a supressão da última alínea do Capítulo II. Capítulo III A Delegação do Brasil acredita que seria conveniente a adoção do princípio da universalidade, na nova Organização internacional. Esta deveria representar plenamente a comunidade dos Estados, de tal modo que da mesma não possa ser excluído, nem se possa excluir nenhum Estado com condições de vida própria independente. Assim como, na ordem interna, todo indivíduo está subordinado à jurisdição de algum Estado, assim também, na ordem externa, todo Estado deveria estar incluído na Organização internacional. Nestes termos, sugere a Delegação do Brasil que se substitua o Capítulo II do projeto pelo seguinte: “1. A Organização internacional compõe-se de todos os Estados soberanos já existentes ou que, no futuro, venham a existir, com condições de vida própria independente. 2. Nenhum Estado poderá ser expulso da Organização, nem retirar-se desta voluntariamente”. Capítulo V As funções e poderes da Assembleia do novo organismo serão bastante reduzidas, em face do Conselho de Segurança, de acordo com o plano de Dumbarton Oaks. Conviria evidentemente fortalecer o primeiro dos dois órgãos, onde estarão representados todos os membros da Organização. É este, contudo, um dos pontos em que só dificilmente se conseguiria modificar o que foi estabelecido naquela conferência. Assim, a Delegação do Brasil limita-se a lembrar que, se for aceita a sugestão acima, relativa à universalização da nova Organização, deverão ser suprimidos, na seção B, deste Capítulo, o nº 2 e a última alínea do nº 3, bem como a referência à expulsão, contida no nº 2 da seção C, e a sugerir a inclusão de uma regra sobre a questão da revisão de tratados. Trata-se, sem dúvida, de assunto de alta gravidade. Muita vez, um Estado contratante de um acordo ou tratado internacional se julga autorizado a denunciá-lo unilateralmente, sob a alegação de que cessaram as condições que tinham determinado a sua celebração. Essa pretensão é baseada na suposição de que todos os tratados são subordinados a uma condição tácita de rescisão ou contêm, implícita, a cláusula rebus sic stantibus. Essa doutrina é perigosa; a ausência, porém, da possibilidade de revisão de certos tratados pode levar a consequências desastrosas ou, pelo menos, injustas. O Pacto da Liga das Nações procurou resolver a questão, mas de maneira insuficiente. De fato, o seu artigo 19 previu apenas que, de tempos em tempos, a Assembleia poderia convidar os membros da Liga a proceder a novo exame dos tratados que se tornassem inaplicáveis, bem como das situações internacionais cuja manutenção pudesse comprometer a paz do mundo. Essa 250

estipulação ficou letra morta, justamente porque o simples convite da Assembleia, já por si difícil de conseguir, não poderia ter força obrigatória. A Convenção de Havana, de 1928, sobre tratados, prevê a hipótese de denúncia de um tratado permanente e manda que, se tal denúncia não obtiver o assentimento da outra ou das outras partes contratantes, o caso seja submetido à decisão arbitral. A Delegação do Brasil pensa que, para o plano mundial, se poderia estabelecer uma regra análoga, com recurso não a uma decisão arbitral, mas à Corte Permanente de Justiça Internacional e de acordo com um processo adaptado à nova Organização. Tratar-se-ia, também, apenas dos chamados tratados permanentes ou executórios, isto é, os de efeitos sucessivos, ou sejam, justamente, aqueles que dão lugar, às vezes, a sérias dificuldades. A regra que a Delegação do Brasil sugere poderia figurar como última alínea da seção B do Capítulo V, mais ou menos com a seguinte redação: “A pedido de qualquer parte contratante de um tratado executório que alegue a caducidade total ou parcial do mesmo, ou a injustiça da sua manutenção, a Assembleia, por maioria de dois terços, poderá convidar a outra ou outras partes contratantes a se porem de acordo com a primeira para a revisão ou anulação de tal tratado. Se alguma das partes contratantes não concordar com a referida revisão ou anulação, a outra ou as outras partes contratantes ficarão autorizadas a recorrer à Corte Permanente de Justiça Internacional, a fim de que esta, por sentença declaratória, possa decidir se o tratado em causa perdeu total ou parcialmente sua força obrigatória, por se haverem modificado as condições que tinham determinado a sua celebração e se haver tornado o mesmo injustamente oneroso para alguma ou algumas das partes”. Capítulo VI A composição do Conselho de Segurança é um dos pontos do plano de Dumbarton Oaks que têm dado lugar às maiores críticas. Maiores e mais justificadas. Ainda mais porque as funções de tal Conselho serão as de um órgão executivo todo poderoso. A Delegação do Brasil, de acordo com várias outras, considera que, a não ser talvez no período de transição entre o fim da guerra atual e uma futura fase de perfeito reajustamento do mundo às novas condições internacionais, a dita composição deveria obedecer a fórmulas mais democráticas e se basear realmente na igualdade jurídica dos Estados soberanos, sem perder de vista que, em certos casos ou para determinadas situações, poderiam ser concedidos direitos especiais a alguns dos membros da comunidade internacional. Compreende, no entanto, as dificuldades do momento, e não pretende, por isto, sugerir coisa alguma contra a regra de antemão estabelecida em favor da permanência, no Conselho de Segurança, das cinco grandes potências aliadas. Mas, se se vai manter o critério da permanência de alguns Estados no dito órgão executivo, pensa a Delegação do Brasil que seria justo se destinasse um dos lugares permanentes à América Latina. Se é certo que o referido critério obedeceu à necessidade de se dotar o novo organismo mundial de elementos capazes de fornecer uma ajuda eficaz militar ao esforço coletivo para a manutenção da paz e da segurança do mundo, parece que este argumento se deveria aplicar ao caso da América Latina, cujas bases militares, aéreas, terrestres e navais, na presente guerra, e cuja contribuição nos campos de batalha tem sido de importância considerável para o êxito de algumas operações bélicas de grande envergadura. 251

Em todo caso, não quer a Delegação do Brasil insistir sobre este ponto, para o qual, no devido tempo, o seu Governo solicitou a atenção do Governo dos Estados Unidos da América. Assim, relativamente ao presente Capítulo, a Delegação do Brasil limita-se: 1º) a manifestar o desejo de que, no plano definitivo de Organização mundial, na parte relativa ao processo de votação no Conselho de Segurança, se adote a regra de que o Estado violador das obrigações contidas no Estatuto básico não terá direito de voto, quando o assunto referente a tal violação tiver que ser resolvido; 2º) a indicar a necessidade de serem suprimidas, no nº 5 da seção D, caso seja aceito o princípio de universalização do novo Organismo internacional, as palavras: “assim como qualquer Estado não membro da Organização”; 3º) a sugerir um aditivo à mesma seção D, o qual tomaria o nº 6 e poderia ser redigido desta forma: “6. Nas hipóteses previstas nos dois parágrafos anteriores (nº 4 e 5), o membro da Organização admitido a participar da discussão deverá ter, no que concerne à votação, situação igual à que se atribuir aos membros do Conselho”. Capítulo VII Coerente com o que sugeriu no que se refere à universalização do sistema, a Delegação do Brasil lembra que, no caso de aceitação daquela sugestão, deverá ser suprimido o nº 5 deste Capítulo. Capítulo VIII A Delegação do Brasil pensa que, na hipótese a que se refere o nº 7 da Seção A do presente Capítulo, a qualificação das questões que, segundo o direito internacional, pertencem à competência exclusiva de um Estado deve ser atribuída à Corte Permanente de Justiça Internacional, a fim de se evitar todo arbítrio, nessa matéria. Sugere, pois, que à dita Seção A se acrescente um parágrafo, que seria o 8º, nos seguintes termos: “Se, nalguma controvérsia, um dos Estados litigantes alegar que a questão controvertida pertence exclusivamente à sua jurisdição interna, caberá à Corte Permanente de Justiça Internacional pronunciar-se a este respeito, por pedido de uma das partes ou do Conselho de Segurança. Se a decisão da Corte for afirmativa, e as partes não chegarem a acordo por negociações diplomáticas, o litígio será submetido a um processo de conciliação. Se este método falhar, o caso deverá ser decidido em juízo arbitral”. No tocante à Seção C do mesmo Capítulo, a qual se refere a entendimentos regionais, julga a Delegação do Brasil ser de toda a conveniência a aprovação do projeto que, sobre tal assunto, apresentou à presente Conferência e foi distribuído à 2ª comissão (documento nº 37, CIPR-18). Assim, poderia ser intercalado, na dita seção C, um parágrafo em que se dissesse mais ou menos o seguinte: “A solução das questões de interesse exclusivo de um grupo regional já organizado, como é o caso do grupo interamericano, deve ser deixada aos métodos usados entre os componentes de tal grupo, de tal forma que só se justificará a intervenção do Conselho de Segurança, quando as referidas questões puderem pôr em perigo a paz em algum outro grupo de nações”. Capítulo XI A Delegação do Brasil desejaria que o processo de emendas do Estatuto da nova Organização não fosse tão rígido como se acha estabelecido neste Capítulo. Exigir que toda 252

emenda, já adotada por dois terços da Assembleia, não possa entrar em vigor sem ser ratificada por todos os membros permanentes do Conselho de Segurança e pela maioria dos demais membros da Organização – é dificultar qualquer modificação futura, em pontos essenciais. A Delegação do Brasil sugere que a entrada em vigor, de qualquer emenda, dependa da ratificação por dois terços da Assembleia e dois terços do Conselho. Nestes termos, o final do artigo constitutivo deste Capítulo poderia ser assim redigido: (...) “e ratificadas, de acordo com as respectivas praxes constitucionais, por dois terços dos países representados no Conselho de Segurança e dois terços de todos os membros da Organização”. Pela Delegação do Brasil, Hildebrando Accioly

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Anexo 6 Ata de Chapultepec (Resolução VIII) *

Assistência Recíproca e Solidariedade Americana Os Governos representados na Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz, Considerando: Que os povos americanos, animados de profundo amor à justiça, continuam sinceramente dedicados aos princípios do Direito Internacional; Que são seus desejos que tais princípios, não obstante as difíceis circunstâncias atuais, prevaleçam ainda com mais força nas futuras relações internacionais; Que as Conferências Interamericanas têm proclamado mais de uma vez certos princípios fundamentais, que devem, porém, ser reafirmados no momento em que se procure reconstruir as bases jurídicas da comunidade de nações; Que a nova situação mundial torna cada vez mais imperiosa a união e a preservação da paz internacional; Que os Estados Americanos têm incorporado ao seu Direito Internacional, desde 1890, por intermédio de Convenções, Resoluções e Declarações, as seguintes normas: a) Proscrição da conquista territorial e o não reconhecimento de toda aquisição realizada pela violência (Primeira Conferência Internacional Americana, 1890); b) Condenação da intervenção de um Estado nos assuntos internos ou externos de outro (Sétima Conferência Internacional Americana, 1933, e Conferência Interamericana de Consolidação da Paz, 1936); c) Reconhecimento de que toda guerra ou ameaça de guerra afeta direta ou indiretamente todos os povos civilizados, e põe em perigo os grandes princípios de liberdade e de justiça que constituem o ideal da América e a norma da sua política internacional (Conferência Interamericana de Consolidação da Paz, 1936); d) Sistema de consultas mútuas com o fim de encontrar os meios para uma cooperação pacifista, em caso de guerra ou ameaça de guerra entre países americanos (Conferência Interamericana de Consolidação da Paz, 1936); e) Reconhecimento de que todo ato suscetível de perturbar a paz do Continente afeta todas as nações americanas e cada uma delas em particular, e justifica o início do processo de consulta (Conferência Interamericana de Consolidação da Paz, 1936); f) Adoção dos meios da conciliação e da arbitragem ampla, ou da justiça internacional para a solução de todas as diferenças ou controvérsias entre as nações da América, quaisquer que sejam a sua natureza e origem (Conferência Interamericana de Consolidação da Paz, 1936);

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Relatório da delegação do Brasil à Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz (México 1945). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947, p. 82-85.

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g) Reconhecimento de que o respeito à personalidade, soberania e independência de cada Estado Americano constitui a essência da ordem internacional amparada pela solidariedade continental, manifestada historicamente e mantida por declarações e tratados vigentes (Oitava Conferência Internacional Americana, 1938); h) Afirmação de que o respeito aos tratados e sua fiel observância constituem norma indispensável ao desenvolvimento das relações pacíficas entre os Estados, e de que só poderão ser revistos mediante acordo entre as partes (Declaração de Princípios Americanos, Oitava Conferência Internacional Americana, 1938); i) Proclamação do seu interesse comum e da determinação de tornar efetiva a sua solidariedade, coordenando as suas respectivas vontades mediante o processo de consulta, e usando os meios que em cada caso aconselhem as circunstâncias, em qualquer ocasião em que a paz, a segurança ou a integridade territorial das Repúblicas Americanas se encontrem ameaçadas por atos de qualquer natureza que possam prejudicá-las (Declaração de Lima, Oitava Conferência Internacional Americana, 1938); j) Declaração de que todo atentado de um Estado não americano contra a integridade territorial ou a inviolabilidade do território e contra a soberania ou a independência política de um Estado Americano, será considerado como um ato de agressão contra todos os Estados Americanos (Declaração XV da Segunda Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, Havana, 1940); Que o aperfeiçoamento destas normas, constantemente praticadas pelos Estados Americanos a fim de garantir a paz e a solidariedade entre as Nações do Hemisfério, é um meio eficaz de contribuir para o sistema geral de segurança mundial e facilitar a sua implantação; Que a segurança e a solidariedade do Continente são igualmente atingidas quando se realize um ato de agressão contra qualquer das nações americanas, por parte de um Estado não americano, ou quando o ato de agressão provenha de um Estado Americano contra outro ou outros Estados Americanos.

1. 2. 3.

4.

Parte I Declaram: Que todos os Estados soberanos são juridicamente iguais entre si. Que todo Estado tem direito ao respeito à sua personalidade e independência por parte dos demais membros da comunidade internacional. Que todo atentado de um Estado contra a integridade ou a inviolabilidade do território, ou contra a soberania ou independência política de um Estado Americano, será de acordo com a Parte III deste Ato, considerado como um ato de agressão contra os demais Estados signatários. De qualquer modo, considerar-se-á como um ato de agressão a invasão, por forças armadas de um Estado, do território de outro, e transposição das fronteiras estabelecidas por tratados e demarcadas em conformidade com os mesmos. Que caso sejam executados atos de agressão ou haja razões para crer que se prepara uma agressão por parte de qualquer Estado contra a integridade ou a inviolabilidade do território ou contra a soberania ou a independência política de um Estado Americano, os Estados signatários do presente Ato consultar-se-ão entre si para decidir sobre as medidas que devam ser tomadas. 255

5. Que durante a guerra e até que se celebre o tratado recomendado na Parte II deste Ato, os signatários do mesmo reconhecem que tais ameaças e atos de agressão, definidos nos parágrafos terceiro e quarto, constituem um obstáculo ao esforço bélico das Nações Unidas e exigem a adoção, dentro dos limites dos seus poderes constitucionais gerais e dos que exercem durante a fase da guerra, das medidas que se considerem necessárias, a saber: retirada dos Chefes de Missão Diplomática; ruptura das relações diplomáticas; ruptura das relações consulares; ruptura das relações postais; telegráficas, telefônicas e radiotelefônicas; interrupção das relações econômicas, comerciais e financeiras; emprego das forças militares para evitar ou repelir agressão. 6. Que os princípios e processos contidos nesta Declaração entrarão imediatamente em vigor, uma vez que qualquer ato de agressão ou ameaça de agressão durante o atual estado de guerra se opõem ao esforço bélico das Nações Unidas no sentido de alcançar a vitória; e que, futuramente, a fim de que os princípios e processos aqui estipulados se conformem às normas constitucionais de cada República, os respectivos Governos tomarão as medidas necessárias para aperfeiçoar este instrumento de modo a que continue em vigor de maneira permanente. Parte II A Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz Recomenda: Que, com o fim de fazer às ameaças ou atos de agressão que tiverem lugar contra qualquer das Repúblicas Americanas depois do estabelecimento da paz, os Governos destas Repúblicas deverão considerar, de acordo com as suas normas constitucionais, a celebração de um tratado que estipule as medidas destinadas a conjurar tais ameaças ou atos mediante o emprego, por todos ou alguns dos signatários do mencionado tratado, de uma ou mais das seguintes providências: retirada dos Chefes de Missão Diplomática; ruptura das relações diplomáticas; ruptura das relações consulares; ruptura das relações postais, telegráficas, telefônicas e radiotelefônicas; interrupção das relações econômicas, comerciais e financeiras; emprego das forças militares para evitar ou repelir agressão. Parte III A Declaração e a Recomendação anteriores estabelecem um acordo regional para tratar de assuntos concernentes à consolidação da paz e da segurança internacionais suscetíveis de ação regional neste Hemisfério. Tal acordo e os atos e processos pertinentes deverão ser compatíveis com os princípios e propósitos da organização internacional geral, quando a mesma for estabelecida. O presente acordo será conhecido sob o nome de “Ata de Chapultepec”. (Aprovada na sessão plenária do dia 6 de março de 1945)

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Anexo 7 Declaração do México (Resolução XI) *

Os Estados da América, por intermédio dos seus Delegados plenipotenciários reunidos na Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz, declaram: A Comunidade Americana mantém os seguintes princípios essenciais como as normas diretrizes das relações entre os Estados que a compõem: 1. O Direito Internacional é norma de conduta para todos os Estados. 2. Os Estados são juridicamente iguais. 3. Cada Estado é livre e soberano e nenhum poderá intervir nos assuntos internos ou externos de outro. 4. O território dos Estados Americanos é inviolável e é também imutável, exceto no caso de acordos pacíficos. 5. Os Estados Americanos não reconhecem a validez da conquista territorial. 6. É missão dos Estados Americanos conservar a paz e manter as melhores relações possíveis com todos os Estados. 7. Os conflitos entre os Estados serão unicamente solucionados por meios pacíficos. 8. Proscreve-se a guerra de agressão sob qualquer de suas formas. 9. A agressão a um Estado Americano constitui agressão a todos os Estados da América. 10. Os Estados Americanos são solidários em suas aspirações e interesses comuns 11. Os Estados Americanos reiteram a sua fervorosa adesão aos princípios democráticos, que consideram essenciais à paz da América. 12. A finalidade do Estado é a felicidade do ser humano dentro da sociedade. Os interesses da coletividade e os direitos do indivíduo devem ser harmonizados. O homem americano não concebe viver sem justiça, nem tão pouco viver sem liberdade. 13. Entre os direitos do homem figura, em primeiro lugar, o da igualdade de oportunidade para gozar de todos os bens espirituais e materiais oferecidos pela nossa civilização, mediante o exercício lícito de sua atividade, indústria e talento. 14. A educação e o bem-estar material são indispensáveis ao desenvolvimento da democracia. 15. A colaboração econômica é essencial à prosperidade comum das nações americanas. A miséria de qualquer dos seus povos, quer sob a forma de pobreza, de desnutrição ou de insalubridade, afeta cada um e por conseguinte todos em conjunto. 16. Os Estados Americanos consideram necessária a justa coordenação de todos os interesses a fim de criar uma economia de abundância, na qual se aproveitem os recursos naturais e o trabalho humano, com o objetivo de elevar as condições de vida de todos os povos do Continente. 17. A Comunidade Interamericana está ao serviço dos ideais de cooperação universal. (Aprovada na sessão plenária do dia 6 de março de 1945) *

Relatório da delegação do Brasil à Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz (México 1945). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947, p. 90-91.

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Anexo 8 Sobre o estabelecimento de uma organização internacional geral (Resolução XXX) *

A Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz, Considerando: Que as Repúblicas Americanas têm demonstrado sempre a sua adesão aos princípios de convivência internacional pacífica, baseada na justiça e no direito: Que a tradição de cooperação universal que tem inspirado sempre o sistema interamericano, no qual se encontram definitivamente incorporados tais princípios, enraizou-se e fortaleceu-se ainda mais com a interdependência das Nações no mundo moderno, que torna a paz indivisível e subordina o bem-estar de um povo ao bem-estar de todos os demais; Que as Propostas para o estabelecimento de uma Organização Internacional Geral, formuladas em Dumbarton Oaks pelos representantes dos Estados Unidos da América, do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e da República da China, foram dadas a conhecer aos povos de todos os países a 9 de outubro de 1944, para o seu acurado estudo e discussão; Que as referidas propostas são suscetíveis de algumas reformas destinadas a aperfeiçoálas e a realizar de uma maneira mais segura os propósitos que são enunciados; Que a Organização que tenha de fundar-se deve refletir as ideias e aspirações de todas as Nações pacíficas que tomem parte na sua criação; Que na presente Conferência Interamericana, as Repúblicas nela representadas que não tomaram parte nas conversações de Dumbarton Oaks formularam um certo número de sugestões que, segundo o seu parecer, contribuíram para aperfeiçoar as mencionadas Propostas; Que para as Nações Unidas não representadas nesta Conferência, seria útil sem dúvida dispor de uma síntese das opiniões sobre as Propostas de Dumbarton Oaks; Declara: 1. Que as Repúblicas Americanas representadas nesta Conferência estão decididas a cooperar entre si e com as demais Nações pacíficas no estabelecimento de uma Organização Internacional Geral, baseada no direito, na justiça e na equidade: 2. Que as referidas Repúblicas desejam fazer a sua contribuição plena, tanto individualmente como por intermédio de ação solidária dentro do sistema interamericano e mediante a aplicação do mesmo, coordenando e harmonizando esse sistema, de maneira eficaz, com a Organização Internacional Geral para o fim de realizar os objetivos desta; 3. Que as Propostas de Dumbarton Oaks constituem uma base e uma valiosa contribuição para o estabelecimento de uma Organização Internacional Geral que permita alcançar uma paz justa e o bem-estar de todos os povos, que não é senão o que aspiram as Repúblicas da América; e *

Relatório da delegação do Brasil à Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz (México 1945). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947, p. 113-115.

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Resolve: 1. Que a Secretaria Geral da Conferência transmita aos Governos que formularam as Propostas de Dumbarton Oaks, às demais Nações convidadas a tomarem parte na próxima Conferência de São Francisco, bem como à própria Conferência, esta Resolução, o relatório e os documentos anexos ao mesmo, que contêm as opiniões, comentários e sugestões que, segundo o parecer das Repúblicas Americanas que os expressaram, deveriam ser levados em consideração quando se vier a laborar o Estatuto definitivo da projetada Organização, com referência especial aos seguintes pontos, a respeito dos quais existe acordo entre as Repúblicas Americanas representadas nesta Conferência e que não participaram das conversações de Dumbarton Oaks: a) Aspiração à universalidade como um ideal a que deve tender a Organização no futuro; b) Conveniência de ampliar e precisar a enumeração dos princípios e fins da Organização; c) Conveniência de ampliar e precisar as atribuições da Assembleia Geral a fim de tornar a sua ação efetiva como o órgão plenamente representativo da comunidade internacional, harmonizando-se com a aludida ampliação as atribuições do Conselho de Segurança; d) Conveniência de estender a jurisdição e competência do Tribunal ou Corte Internacional de Justiça; e) Conveniência de criar um órgão internacional especialmente encarregado de promover a cooperação intelectual e moral entre os povos; f) Conveniência de dirimir as controvérsias e questões de caráter interamericano de acordo com os métodos e processos interamericanos, e sempre em harmonia com os da Organização Internacional Geral; g) Conveniência de conceder representação adequada à América Latina no Conselho de Segurança. 2. Que se expresse às demais Nações convidadas a tomar parte na Conferência de São Francisco, o desejo comum das Repúblicas Americanas de receberem das mesmas, antes da mencionada Conferência, os pontos de vista, comentários e sugestões que julguem conveniente lhes comunicar. Os Governos signatários da presente Resolução conservam a liberdade plena de apresentar e defender na Conferência de São Francisco, na qualidade de representantes que são de Estados soberanos, todos os pontos de vista que considerem pertinentes, muitos dos quais já se encontram nos referidos documentos anexos. (Aprovada na sessão plenária do dia 7 de março de 1945)

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Anexo 9 Conferência de São Francisco: estrutura e organização *

Sessão Plenária da Conferência Presidência da Conferência (rotativa entre as quatro potências patrocinadoras) Comitê de Direção (presidido pelos EUA, composto pelos chefes de todas as delegações) Comitê de Credenciais Comitê Executivo (presidido pelos EUA, composto por 14 países) Comitê de Coordenação 1a Comissão: Disposições gerais 1o Comitê: Preâmbulo, propósitos e princípios 2o Comitê: Participação, emendas e Secretariado 2a Comissão: Assembleia Geral 1o Comitê: Estrutura e procedimentos 2o Comitê: Funções políticas e de segurança 3o Comitê: Cooperação econômica e social 4o Comitê: Sistema de tutela 3a Comissão: Conselho de Segurança 1o Comitê: Estrutura e procedimentos 2o Comitê: Ajustes pacíficos 3o Comitê: Medidas coercitivas 4o Comitê: Acordos regionais 4a Comissão: Organização judiciária 1o Comitê: Corte Internacional de Justiça 2o Comitê: Problemas legais Secretariado da Conferência Secretário: Alger Hiss (EUA) Assessoria Parlamentar Assessoria de Imprensa

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Documents of the United Nations Conference on International Organization, San Francisco, 1945. Nova York: United Nations Information Organization, 1945, vol. I, p. 79.

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Anexo 10 Delegação do Brasil à Conferência de São Francisco *

Presidente: Embaixador Pedro Leão Velloso, Ministro das Relações Exteriores Vice-Presidente: Embaixador Carlos Martins Pereira e Souza, Embaixador em Washington Delegados: Embaixador Cyro de Freitas-Valle General de Divisão Estevão Leitão de Carvalho Major-Brigadeiro-do-Ar Armando Figueira Trompowski de Almeida Contra-Almirante Sylvio de Noronha Ministro Antonio Camillo de Oliveira Doutora Bertha Lutz Assessores: Primeiro Secretário José de Alencar Netto Cônsul Octavio de Nascimento Brito Doutor Geraldo de Paula Souza Márcio de Mello Franco Alves Coronel Aviador Henrique Fleiuss Capitão de Fragata João Pereira Machado Major Alfredo Souto Malan Vicente de Paula Galliez Secretário-Geral: Primeiro Secretário Henrique de Souza Gomes Secretariado: Primeiro Secretário Aguinaldo Boulitreau Fragoso Primeiro Secretário Carlos Buarque de Macedo Segundo Secretário Jayme de Barros Gomes Terceiro Secretário Henrique Rodrigues Valle Terceiro Secretário Mario Gibson Alves Barboza Terceiro Secretário Carlos Jacyntho de Barros Maria de Lourdes Pimentel (criptógrafa) Cora Lobo (datilógrafa) Therezinha Maria Bassuino Dutra (datilógrafa) Maria Paiva Menezes (datilógrafa) Sylvia Regis de Oliveira (datilógrafa)

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Documents of the United Nations Conference on International Organization, San Francisco, 1945. Delegates and officials. Nova York: United Nations Information Organization, 1945, vol. I, p. 15-16.

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Anexo 11 Carta de Leão Velloso a Stettinius sobre um assento permanente para o Brasil *

São Francisco, 14 de maio de 1945 Caro Sr. Stettinius, O Comitê no 1 da 3a Comissão aprovou o disposto na Seção A do Capítulo VI do Plano de Dumbarton Oaks, sobre a composição do Conselho de Segurança. O Brasil, dando mais uma prova do seu propósito de cooperar com os Estados Unidos e com as demais Nações Unidas na paz, como sempre cooperou na guerra, votou sem hesitação o texto original emendado pelas quatro potências principais. Enviei-lhe há dias cópias de um telegrama que o Presidente Getúlio Vargas me dirigiu, emitindo o seu alto parecer sobre a questão da atribuição ao Brasil de um lugar permanente no Conselho de Segurança da futura organização da paz mundial. Esse telegrama era a confirmação do que eu lhe dissera pessoalmente sobre a expectativa do povo brasileiro a esse respeito. A nossa contribuição militar para a guerra, cujo valor foi sempre reconhecido pelos Estados Unidos, inclusive recentemente General Arnold no Rio de Janeiro, justifica plenamente essa aspiração. A nossa contribuição consistiu, como é do conhecimento das autoridades militares, navais e aéreas americanas, na cessão de bases para o tráfego aéreo das forças dos Estados Unidos; e das nações aliadas, no patrulhamento do Atlântico Sul, e no envio de um corpo expedicionário à Europa, incorporado ao Exército do General Clark. Quando estivemos juntos em Trinidad, em caminho para a Conferência do México, tivemos o ensejo de ver, naquela base naval, o pavilhão brasileiro figurando no mar, à proa de embarcações de guerra brasileiras, ao lado do pavilhão americano, numa fraternidade de armas deveras emocionante. Mas, na nossa conversa pessoal aqui em São Francisco, na Opera [House], durante uma das sessões plenárias da Conferência das Nações Unidas para a Organização Internacional, eu lhe apresentei outro argumento em favor da conveniência da entrada do Brasil para o Conselho de Segurança como membro permanente. Eu lhe disse que a guerra demonstrara aos Estados Unidos e aos aliados a necessidade de nossa cooperação militar e que, com o progresso que farão as armas de agressão, a nossa situação geográfica conferia ao Brasil uma posição chave na futura organização de segurança mundial. Não é, portanto, por uma questão vã do prestígio que ao Brasil parece justo que lhe seja reservado um lugar especial nessa mesma organização. Não tenhamos dúvida sobre a profunda decepção que seria para o povo brasileiro verificar que não lhe são reconhecidos os sacrifícios que, com o povo dos Estados Unidos e do Canadá, ele foi o único a fazer na América em favor da vitória das armas aliadas. Desejo muito chamar a sua atenção para a importância desse ponto psicológico. Os prenúncios a respeito da paz vindoura não são, com razão, dos mais otimistas. É preciso evitarmos que, no futuro, sob a ameaça de *

Leão Velloso a Stettinius (secretário de Estado dos EUA), carta, São Francisco, 14 maio 1945, CDO, Maço 42.982, MRE, Brasília.

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outra guerra, os inimigos dos Estados Unidos possam explorar no meu país, para nos impedir de cooperar outra vez para o triunfo de suas armas e para a sua defesa, o argumento de que o povo americano não soube dar o seu justo valor ao grande esforço que agora fizemos e à nossa contribuição para a vitória comum. Há três anos, como Secretário Geral e como Ministro interino das Relações Exteriores, tenho trabalhado com sinceridade e entusiasmo no interesse da amizade e da íntima cooperação que deve haver entre o Brasil e os Estados Unidos. Os representantes diplomáticos americanos no Brasil são testemunhas disso. O sentimento que me anima, dirigindo-lhe esta carta, é a preocupação de conservar, sem a mais leve alteração, as excelentes relações que felizmente existem entre os nossos países. Seu cordialmente, (a) Pedro Leão Velloso

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Anexo 12 Carta de resposta de Stettinius a Leão Velloso *

The United Nations Conference on International Organization San Francisco, June 13, 1945 Dear Mr. Velloso, In your letter to me of May 14, 1945 you set forth the aspirations of your Government and of the Brazilian people that Brazil might have a permanent seat upon the Security Council of the World Organization. This suggestion has received our most sympathetic consideration and has been fully discussed and explored. At all times in our consideration we have had a profound consciousness of the full and cordial cooperation which has existed between Brazil and the United States during the long history of our friendship and particularly during the recent years of conflict. We have also been keenly aware of the great contribution which Brazil has made in the war against the Axis and of the important position which Brazil will assume in the future in supporting and cooperating with the World Organization and the Inter-American System for the maintenance of international peace and security. At the same time, the nations who are sponsors of this Conference have felt the necessity to make every possible effort to preserve the flexibility of the World Organization and to this end have concluded that it was in the best interests of the Organization in the conduct of its great responsibility for the maintenance of world peace and security that there should be no further permanent assignment of seats on the Security Council. Accordingly, it is the view of these nations that remaining seats now unassigned should be open to the elective process. I most earnestly hope that you and President Vargas and the Brazilian people will understand that this decision in no wise reflects any lack of appreciation of the importance of the contribution which Brazil has made and will continue to make in the coming years to the cause of world peace and security. Rather it represents a considered view as to the best interests of the organization which we are here striving jointly to create. I wish to add on behalf of the United States Delegation our own hope and expectation that Brazil will be elected as an initial member of the Security Council. I am sure that through the years Brazil will be entrusted with many opportunities and responsibilities through which she will contribute, as she has in the past, notably to the objectives for which we are all collaborating here. Sincerely yours, (a) E. R. Stettinius, Jr.

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Stettinius a Leão Velloso, carta, São Francisco, 13 jun. 1945, CDO, Maço 42.918, MRE, Brasília.

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Anexo 13 Declaração da Delegação do Brasil sobre a questão do veto *

Conferência de São Francisco, 21 de maio de 1945 Senhor Presidente, Peço licença em nome da Delegação do Brasil para dizer que meu país firmemente se opõe, por questão de princípios, à concessão do poder de veto aos membros permanentes do Conselho de Segurança e que não acredita na efetividade para ação rápida do sistema de veto. Não se esqueça que a regra da unanimidade, adotada para votação no Conselho da Sociedade das Nações, a qual correspondia ao veto, demonstrou na prática sua ineficiência e rapidamente se constituiu na malsinada arma que para sempre desacreditaria a Sociedade das Nações. De acordo com tal modo de pensar, a Delegação brasileira votará em favor de todas aquelas emendas que diminuem as oportunidades de ser o exercido o veto, notadamente a emenda apresentada pela Delegação da Austrália, cuja adoção é desejada por numerosas delegações. Mas, Senhor Presidente, com o intuito de demonstrar uma vez mais que a principal preocupação do Brasil é contribuir para o completo êxito desta Conferência, se acontecer que nenhuma das emendas alcance a maioria necessária para sua adoção, então, e no caso de nosso voto ser útil para formar maioria, tenho instruções para declarar-me em favor do parágrafo 3º da Seção C. Tal passo construtivo é dado para demonstrar que nós acreditamos na boa-fé com que as quatro potências patrocinadoras reclamam como necessidade indeclinável para a manutenção da paz que se lhes outorgue o direito de veto e que confiemos que dele façam um uso prudente. Correspondendo a tal gesto, bem que as nações principais poderiam atentar no sentimento geral das potências médias e dos Estados pequenos, em quase todos, senão em todos, que estão espalhados por todo o mundo, e que, de boa-fé, querem cooperar para a manutenção da paz, que lhes é igualmente necessária. Tais nações desejam, ao menos, que se facilite, depois de algum tempo de sua experiência, a revisão da Carta. Minha Delegação apresentou a proposta de revisão periódica de nossas Regras cada cinco anos. O Canadá tem, ao que recordo, uma proposta no mesmo sentido. Seria um gesto que talvez reunisse os aplausos gerais o de estabelecer desde já que se procederia dentro de alguns anos à Revisão da Carta, em uma reunião como a atual, em que se delibera por dois terços de votos e em que não existe o veto. É o que querem todos e é o ponto de vista do Brasil. Cyro de Freitas-Valle, Delegado

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Palavras pronunciadas pelo embaixador Cyro de Freitas-Valle no 1º Comitê da III Comissão, São Francisco, 21 maio 1945, in Relatório das atividades da III Comissão da Conferência e do Comitê de Coordenação, bem como da I Reunião da Comissão Preparatória das Nações Unidas, Ottawa, 9 jul. 1945, CDO, Maço 42.949.

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Anexo 14 Questionário sobre o exercício do veto no Conselho de Segurança *

Conferência de São Francisco, 21 de maio de 1945

1) Se as partes em uma controvérsia solicitam ao Conselho de Segurança que faça recomendações com vistas à sua resolução, o veto seria aplicável a uma decisão do Conselho de Segurança de exercer seu poder de investigar a controvérsia para esse fim? 2) Se o Conselho de Segurança investigou uma controvérsia de acordo com este parágrafo551, o veto seria aplicável a uma decisão do Conselho de Segurança de recomendar às partes certos termos, com vistas à resolução da controvérsia? 3) Se é levada à atenção do Conselho de Segurança a existência de uma controvérsia, ou uma situação que pode gerar uma controvérsia, o veto seria aplicável a uma decisão do Conselho de Segurança de exercer seu poder de investigar a controvérsia ou situação? 4) Se o Conselho de Segurança investigou a controvérsia, o veto seria aplicável a uma decisão do Conselho de Segurança de que a continuidade da controvérsia pode provavelmente ameaçar a manutenção da paz e da segurança internacionais? 5) Se o Conselho de Segurança decidiu que a continuidade de uma controvérsia pode provavelmente ameaçar a manutenção da paz e da segurança internacionais, o veto seria aplicável a uma decisão do Conselho de Segurança de convidar as partes a resolver sua controvérsia com os meios indicados no parágrafo 3? 552 6) Se uma controvérsia é trazida pelas partes ao Conselho de Segurança de acordo com este parágrafo,553 o veto seria aplicável a uma decisão do Conselho de Segurança de acordo com a segunda frase deste parágrafo de que considera ser a continuidade da controvérsia em particular um fato que pode provavelmente ameaçar a manutenção da paz e da segurança internacionais? *

Questionário submetido pelos membros do subcomitê III/1/B aos quatro governos patrocinadores da Conferência de São Francisco: EUA, Reino Unido, União Soviética e China. Documents of the United Nations Conference on International Organization, San Francisco, 1945. Nova York: United Nations Information Organization, 1945, vol. XI, p. 699-709. Grifos tal como no original em inglês. Tradução do Autor. Todos os capítulos, seções e parágrafos citados no texto se referem às Propostas de Dumbarton Oaks emendadas pelos quatro governos, objeto da negociação em São Francisco, e não à Carta da ONU aprovada posteriormente. 551 Capítulo VIII, Seção A, parágrafo 1, referente à prerrogativa do Conselho de Segurança de fazer recomendações às partes de uma controvérsia. 552 Capítulo VIII, Seção A, parágrafo 3, referente à obrigação das partes de uma controvérsia de buscar uma solução por meios pacíficos, incluindo negociação, mediação, conciliação, arbitragem ou solução judicial. 553 Capítulo VIII, Seção A, parágrafo 4, referente à prerrogativa do Conselho de Segurança de agir caso a continuidade de uma controvérsia venha a ameaçar a manutenção da paz e da segurança internacionais.

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7) Se o Conselho de Segurança considera ser a continuidade da controvérsia em particular um fato que pode provavelmente ameaçar a manutenção da paz e da segurança internacionais, o veto seria aplicável a uma decisão do Conselho de Segurança de acordo com a segunda frase deste parágrafo554 para agir de acordo com o parágrafo 5? 555 8) Se o Conselho de Segurança considera ser a continuidade da controvérsia em particular um fato que pode provavelmente ameaçar a manutenção da paz e da segurança internacionais, o veto seria aplicável a uma decisão do Conselho de Segurança de acordo com a segunda frase deste parágrafo556 para recomendar às partes tais termos de resolução conforme considere apropriado? 9) O veto seria aplicável a uma decisão do Conselho de Segurança, em qualquer estágio de uma controvérsia, de recomendar às partes procedimentos ou métodos de solução apropriados? 10) O veto seria aplicável a uma decisão do Conselho de Segurança de acordo com a primeira frase deste parágrafo557 de que uma controvérsia é de caráter jurídico? 11) O veto seria aplicável a uma decisão do Conselho de Segurança de acordo com a primeira frase deste parágrafo558 de levar uma controvérsia jurídica à Corte Internacional de Justiça? 12) O veto seria aplicável a uma decisão do Conselho de Segurança de tratar de uma controvérsia jurídica com algum outro meio de solução? 13) O veto seria aplicável a uma decisão do Conselho de Segurança de levar à Corte Internacional de Justiça uma questão legal relacionada com uma controvérsia não-jurídica? 14) O veto seria aplicável a uma decisão do Conselho de Segurança de que considera a nãoresolução [de uma controvérsia] como constituindo uma ameaça à manutenção da paz e da segurança? 15) O veto seria aplicável a uma decisão do Conselho de Segurança de que deveria tomar qualquer medida necessária à manutenção da paz e da segurança internacionais? 16) O veto seria aplicável a uma decisão do Conselho de Segurança de determinar a existência de qualquer ameaça à paz, etc.? 559 554

Idem. Capítulo VIII, Seção A, parágrafo 5, referente à prerrogativa do Conselho de Segurança de recomendar às partes procedimentos ou métodos de solução apropriados a uma controvérsia. 556 Capítulo VIII, Seção A, parágrafo 4, supra. 557 Capítulo VIII, Seção A, parágrafo 6, referente à prerrogativa do Conselho de Segurança de levar questões legais para o parecer da Corte Internacional de Justiça. 558 Idem. 559 Existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão, conforme o Capítulo VIII, Seção B, parágrafo 2. 555

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17) O veto seria aplicável a uma decisão do Conselho de Segurança de que pode convidar as partes, etc.? 560 18) O veto seria aplicável a uma decisão do Conselho de Segurança de que o não-cumprimento deveria ser tomado em devida nota, etc.? 561 19) Caso uma decisão tenha de ser tomada para saber se certo tema é uma matéria processual, essa questão preliminar deve ser considerada em si mesma como uma matéria processual ou o veto é aplicável a tal questão preliminar? 20) Se uma moção é apresentada ao Conselho de Segurança sobre uma matéria que não seja processual, de acordo com os termos gerais do parágrafo 3,562 a abstenção de voto de qualquer um dos membros permanentes do Conselho de Segurança teria o mesmo efeito de um voto negativo por esse membro para impedir que o Conselho de Segurança chegue a uma decisão sobre a matéria? 21) Se um dos membros permanentes do Conselho de Segurança é parte de uma controvérsia e, em conformidade com o estipulado no parágrafo 3,563 absteve-se de votar em uma moção sobre uma matéria que não seja processual, sua mera abstenção impediria o Conselho de Segurança de chegar a uma decisão sobre a matéria? 22) Caso uma decisão tenha de ser tomada de acordo com o Capítulo VIII, Seção A, ou de acordo com a segunda frase do Capítulo VIII, Seção C, parágrafo 1,564 um membro permanente do Conselho de Segurança terá ou não direito a participar na votação de uma questão se esse membro permanente é ele próprio parte da controvérsia? 23) Tendo em vista as questões levantadas por diversas delegações, a delegação grega gostaria de ser informada se, de acordo com o Capítulo X, parágrafo 1,565 das Propostas de Dumbarton Oaks emendadas pelos quatro governos, a recomendação do Conselho de Segurança à Assembleia em relação à eleição do Secretário-Geral e seus substitutos está sujeita a veto.

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Convidar as partes interessadas a aceitar as medidas provisórias que o Conselho de Segurança considere necessárias ou aconselháveis, a fim de evitar que a situação se agrave, conforme o Capítulo VIII, Seção B, parágrafos 2 e 3. 561 Não-cumprimento das medidas provisórias propostas pelo Conselho de Segurança. 562 Capítulo VI, Seção C, parágrafo 3, referente à necessidade de que as decisões do Conselho de Segurança sobre temas não-processuais sejam tomadas pelo voto afirmativo de sete membros, inclusive de todos os cinco membros permanentes. 563 Idem. 564 A questão se refere aos meios de solução pacífica de controvérsias (Capítulo VIII, Seção A) e à compatibilidade existente entre a ONU e os acordos ou entidades regionais destinados a tratar dos assuntos relativos à manutenção da paz e da segurança internacionais que forem suscetíveis de uma ação regional (Capítulo VIII, Seção C, parágrafo 1). 565 Capítulo X, parágrafo 1, referente à eleição do Secretário-Geral das Nações Unidas.

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Anexo 15 Declaração das potências patrocinadoras sobre a votação no Conselho de Segurança *

Conferência de São Francisco, 8 de junho de 1945

Questões específicas sobre o procedimento de voto no Conselho de Segurança foram submetidas por um Subcomitê da Comissão da Conferência sobre Estrutura e Procedimentos do Conselho de Segurança às delegações dos quatro governos patrocinadores da Conferência – os Estados Unidos da América, o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e a República da China. Ao tratar dessas questões, as quatro delegações desejam fazer a seguinte declaração sobre sua atitude geral em relação à toda questão da unanimidade dos membros permanentes nas decisões do Conselho de Segurança. I 1. A fórmula de voto de Yalta reconhece que o Conselho de Segurança, ao desincumbir-se de suas responsabilidades pela manutenção da paz e da segurança internacionais, terá dois amplos grupos de funções. De acordo com o Capítulo VIII,566 o Conselho terá de tomar decisões que envolvem executar medidas diretas relacionadas com a resolução de controvérsias, o ajuste de situações que podem provavelmente levar a controvérsias, a determinação de ameaças à paz, a remoção de ameaças à paz e a supressão de rupturas da paz. Terá também de tomar decisões que não envolvem executar tais medidas. A fórmula de Yalta estabelece que o segundo desses dois grupos de decisões será regido por um voto processual – isto é, o voto de qualquer dos sete membros. O primeiro grupo de decisões será regido por um voto qualificado – isto é, o voto de sete membros, incluindo os votos afirmativos dos cinco membros permanentes, sujeito à cláusula de que, nas decisões de acordo com a Seção A e uma parte da Seção C do Capítulo VIII,567 as partes de uma controvérsia deverão abster-se de votar. 2. Por exemplo, de acordo com a fórmula de Yalta, um voto processual irá reger as decisões tomadas de acordo com toda a Seção D do Capítulo VI.568 Isso significa que o Conselho, pelo voto de sete de quaisquer de seus membros, adotará ou alterará suas regras de procedimento; determinará o método de seleção de seu Presidente; organizará seus trabalhos de modo a ser capaz de funcionar continuamente; selecionará os horários e lugares de suas reuniões regulares e *

“Declaração das delegações dos quatro governos patrocinadores sobre o procedimento de voto no Conselho de Segurança”. A delegação da França se associou a esta declaração. Documents of the United Nations Conference on International Organization, San Francisco, 1945. Nova York: United Nations Information Organization, 1945, vol. XI, p. 710-714. Tradução do Autor do original em inglês. Todos os capítulos, seções e parágrafos citados no texto se referem às Propostas de Dumbarton Oaks emendadas pelos quatro governos, objeto da negociação em São Francisco. Para fins de referência, as notas seguintes indicam a equivalência com a Carta da ONU, tal como aprovada. 566 Capítulos VI, VII e VIII da Carta da ONU. 567 Capítulo VI e artigo 52 (3) respectivamente da Carta da ONU. 568 Artigos 28 a 32 da Carta da ONU.

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especiais; estabelecerá órgãos e agências conforme considere necessário para o desempenho de suas funções; convidará um membro da Organização não representado no Conselho a participar de suas discussões quando os interesses desse Membro forem especialmente afetados; e convidará qualquer Estado que for parte de uma controvérsia sendo considerada pelo Conselho a participar da discussão relativa àquela controvérsia. 3. Além disso, nenhum membro individual do Conselho pode sozinho impedir a consideração e discussão pelo Conselho de uma controvérsia ou situação trazida à sua atenção de acordo com o parágrafo 2, Seção A, Capítulo VIII.569 Tampouco podem as partes de tal controvérsia serem impedidas por esses meios de serem ouvidas pelo Conselho. Igualmente, a exigência de unanimidade dos membros permanentes não pode impedir qualquer membro do Conselho de lembrar os Membros da Organização de suas obrigações gerais assumidas de acordo com a Carta no que se refere à resolução pacífica de controvérsias internacionais. 4. Além desse ponto, decisões e ações do Conselho de Segurança podem ter grandes consequências políticas e até mesmo iniciar uma cadeia de eventos que pode, ao final, exigir do Conselho, de acordo com suas responsabilidades, que invoque medidas de imposição [da paz] de acordo com a Seção B, Capítulo VIII.570 Essa cadeia de eventos começa quando o Conselho decide realizar uma investigação, ou determina que chegou o momento de convidar os Estados a resolver suas diferenças, ou faz recomendações às partes. É para tais decisões e ações que a unanimidade dos membros permanentes se aplica, com a importante cláusula, referida acima, de abstenção de voto pelas partes de uma controvérsia. 5. Para ilustrar: ao ordenar uma investigação, o Conselho tem de considerar se a investigação – que pode envolver pedidos de relatórios, ouvir testemunhas, enviar uma comissão de inquérito, ou outros meios – poderia agravar ainda mais a situação. Após a investigação, o Conselho deve determinar se a continuidade da situação ou controvérsia pode provavelmente pôr em perigo a paz e a segurança internacionais. Se assim o determina, o Conselho estaria na obrigação de tomar medidas adicionais. Do mesmo modo, a decisão de fazer recomendações, mesmo quando todas as partes solicitam que assim seja, ou convidar as partes de uma controvérsia a cumprir com suas obrigações de acordo com a Carta, pode ser o primeiro passo de um curso de ação do qual o Conselho de Segurança poderia retirar-se somente com o risco de falhar no cumprimento de suas responsabilidades. 6. Ao apreciar o significado do voto exigido para tomar tais decisões ou ações, é útil fazer uma comparação com as exigências do Pacto da Liga com referência às decisões do Conselho da Liga. Decisões substantivas do Conselho da Liga das Nações podiam ser tomadas somente pelo voto unânime de todos os seus membros, fossem permanentes ou não, com a exceção das partes de uma controvérsia de acordo com o Artigo XV do Pacto da Liga. De acordo com o Artigo XI, pelo qual foi tratada a maioria das controvérsias trazidas à Liga e foram tomadas decisões de realizar investigações, a regra da unanimidade foi invariavelmente interpretada para incluir até mesmo os votos das partes de uma controvérsia. 7. A fórmula de voto de Yalta substitui a regra de completa unanimidade do Conselho da Liga por um sistema de maioria qualificada de voto no Conselho de Segurança. De acordo com esse sistema, membros não-permanentes do Conselho de Segurança não teriam individualmente 569 570

Artigo 35 da Carta da ONU. Capítulo VII da Carta da ONU.

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um “veto”. No que se refere aos membros permanentes, não se trata, de acordo com a fórmula de Yalta, de investi-los com um novo direito, a saber, o direito de veto, um direito que os membros permanentes do Conselho da Liga sempre tiveram. A fórmula proposta para que o Conselho de Segurança possa agir por uma maioria de sete tornaria a operação do Conselho menos sujeita à obstrução do que como era o caso de acordo com a regra de completa unanimidade da Liga das Nações. 8. Deveria também ser lembrado que, de acordo com a fórmula de Yalta, as cinco principais potências não poderiam agir por si mesmas, visto que mesmo de acordo com a exigência de unanimidade qualquer decisão do Conselho teria de incluir os votos afirmativos de ao menos dois dos membros não-permanentes. Em outras palavras, seria possível a um grupo de cinco membros não-permanentes exercer um “veto”. Não se deve assumir, no entanto, que os membros permanentes, mais do que os membros não-permanentes, usariam seu poder de “veto” para intencionalmente obstruir a operação do Conselho. 9. Em vista das responsabilidades primárias dos membros permanentes, não se pode esperar que eles, na condição atual do mundo, assumam a obrigação de agir em assunto tão sério quanto a manutenção da paz e da segurança internacionais em consequência de uma decisão com a qual não tivessem concordado. Portanto, para que um voto majoritário no Conselho de Segurança seja possível, o único método praticável é estabelecer, com respeito às decisões não-processuais, a unanimidade dos membros permanentes mais os votos afirmativos de ao menos dois dos membros não-permanentes. 10. Por todas essas razões, os quatro governos patrocinadores concordaram com a fórmula de Yalta e a apresentaram a esta Conferência como essencial para que uma Organização internacional seja criada, por meio da qual todas as nações amantes da paz possam efetivamente desincumbir-se de suas responsabilidades comuns pela manutenção da paz e da segurança internacionais. II À luz das considerações expostas na Parte I desta declaração, está claro quais deveriam ser as respostas às questões submetidas pela Subcomissão, com exceção da Questão 19. A resposta a essa questão é a seguinte: 1. Na opinião das delegações dos governos patrocinadores, a própria minuta da Carta [da ONU] contém uma indicação da aplicação dos procedimentos de voto nas várias funções do Conselho. 2. Neste caso, será improvável que no futuro surjam quaisquer matérias de grande importância sobre as quais uma decisão tenha de ser tomada a respeito da aplicação ou não do voto processual. Caso, no entanto, surja tal matéria, a decisão de saber se a questão preliminar é uma matéria processual deve ser tomada pelo voto de sete membros do Conselho de Segurança, incluindo os votos afirmativos dos membros permanentes.

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Anexo 16 Discurso do Brasil no encerramento da Conferência de São Francisco *

São Francisco, 26 de junho de 1945 Senhor Presidente, Ao fim de dois meses de difíceis e árduos trabalhos, reunidos nesta bela cidade de São Francisco, cujo povo generoso nos dispensou esplêndida hospitalidade, podemos afinal redigir e oferecer ao mundo, para que lhe governe os destinos, “A Carta das Nações Unidas”. Quando aqui chegamos, embora próxima, a vitória ainda não havia coroado de todo as armas aliadas na Europa. Trazíamos fortemente gravada no espírito a impressão dolorosa do trágico espetáculo de devastação e de morte em que se ia consumindo a nossa civilização. A grande catástrofe cujo fim, graças a Deus, estamos assistindo, foi o resultado, em primeiro lugar, da formação criminosa de uma mentalidade inspirada em falsa filosofia política, em princípios anti-cristãos, em métodos bárbaros, que fizeram ressurgir redivivas as antigas nações de presa e de conquista, preparadas para dominar as demais pela força, calcando aos pés normas sagradas do direito e da justiça. No momento por elas mesmas escolhido, desencadeou-se a guerra. Dotadas de um poderio militar nunca antes conhecido, devastaram campos e incendiaram cidades, sacrificando populações indefesas e vidas inocentes, semeando a miséria, a dor e o luto, numa hecatombe de que, pelas suas proporções, não existe exemplo em toda a história. Uma vez mais, representantes de vários povos, homens de raças diversas e credos diferentes, vindos de todas as regiões, congregavam-se aqui com o compromisso tácito e indissolúvel de que tudo fariam para evitar se transformasse uma vez mais o mundo em um imenso e desesperado campo de batalha. Aqui viéramos para atender ao apelo do inesquecível Presidente Franklin Delano Roosevelt, que tomara a iniciativa de estabelecer uma Organização internacional que, baseada na experiência do passado, garantisse aos homens a paz e a segurança que todos desejamos. Reunimo-nos inspirados pelo espírito desse grande líder, a cuja visão genial deve o povo dos Estados Unidos, e devemos todos nós, termos sobrevivido ao perigo de uma escravidão milenária e podermos hoje encarar o futuro com fé e esperança. A nossa tarefa em São Francisco, complementar da paz que se edificará oportunamente em todos os seus complexos pormenores, foi de suma importância. Há um ano, em Dumbarton Oaks, sob as vistas de outro eminente cidadão desta grande República, o Senhor Cordell Hull, foram lançadas as bases de um plano para a criação de uma carta constitucional destinada a reger as relações entre os povos. Numa demonstração do seu sincero espírito democrático, as quatro potências que haviam tomado parte na sua elaboração convidaram as demais nações, sem levar em conta o seu tamanho territorial ou movidas por qualquer outra consideração, a examinar o seu

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VELLOSO, Pedro Leão. O Brasil na Conferência de S. Francisco. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945, p. 3743.

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plano, a discuti-lo e a aperfeiçoá-lo, uma vez que o mesmo seria finalmente a lei a que todos deveriam obedecer, no interesse comum. A cidade de São Francisco pode sentir-se orgulhosa de ver o seu nome ligado para sempre a tão notável acontecimento. A tarefa aqui executada foi considerável. Num ambiente de intensa palpitação, as propostas de Dumbarton Oaks, revistas e ampliadas em seus aspectos políticos, jurídicos e sociais, tornaram-se um instrumento de ordem internacional em cuja eficiência devemos depositar a máxima confiança. Poderá conter os defeitos de toda obra humana. Mas dela não se poderá dizer que não foi feita por homens capazes, animados da mais profunda boa-fé. Só quem não acompanhou de perto o trabalho das Comissões, durante a Conferência de São Francisco, poderá ter dúvidas a esse respeito. As desigualdades são inevitáveis no mundo internacional, como no mundo social. Nada podemos contra os fatores geográficos, econômicos e históricos que concorrem para formar as nações que cobrem a superfície da terra. O corretivo dessa fatalidade só poderá ser encontrado em princípios morais e em normas do Direito e da Justiça. Perante a lei não existem nações grandes, médias e pequenas. Todas têm o mesmo direito ao respeito de sua personalidade, de sua integridade territorial e de sua completa independência. As nações aqui representadas combateram, de um modo ou de outro, conforme os meios a seu alcance, contra as forças ao serviço de cuja filosofia que representava o oposto aos conceitos que acabo de mencionar. Elas estão firmemente dispostas a cooperar, cada qual na sua esfera, para que o respeito à lei seja o princípio básico de suas relações e para que só se admita o recurso à força quando for preciso fazê-la respeitar. Nesse particular, a principal responsabilidade cabe, sem dúvida, às grandes potências. Um dos traços característicos da “Carta das Nações Unidas”, que adoramos em São Francisco, consiste nos poderes especiais conferidos a essas mesmas potências, em reconhecimento dos elementos que fazem com que a paz repouse, de preferência, sobre os seus ombros. Quarenta e cinco nações fizeram-lhes as maiores concessões, inclinando-se diante do apelo por elas dirigido repetidamente sobre a necessidade de sua ação unânime para assegurar a ordem internacional. Não lhes foi negada a confiança pedida. Todos reconhecemos, de resto, que as circunstâncias justificavam a concessão de tais prerrogativas. Temos a sincera esperança de que o futuro nos dará razão. Como cidadão de uma das nações do continente americano, não quero terminar este breve discurso sem aludir ao seu papel na Conferência de São Francisco. Quero referir-me ao papel de todas elas, sem exceção. As Américas não são um bloco. A expressão, de resto, soa mal. As Américas são muito mais do que isso: um sistema de vida, com tradições e ideais próprios, tradições de mais de sessenta anos, ideais de uma rara elevação. Nós temos todos a firme convicção de que o nosso sistema interamericano será um estímulo aos desejos de paz do resto do mundo. Desde a nossa independência nós nos batemos pela criação de uma sólida moral internacional de fundo jurídico e pacífico, e a verdade é que seu princípio tem hoje raízes tão profundas que ninguém as poderia destruir neste hemisfério. Com tais tradições e ideais a contribuição das nações americanas não podia deixar de ser, como de fato foi, das mais valiosas. Uma Conferência em que tomam parte cinquenta nações oferece, como a de São Francisco ofereceu, sérias dificuldades para conciliar, já não digo interesses, mas mentalidades tão diversas. A discussão, porém, correu inteiramente livre, no seio dos Comitês e das Comissões. No futuro, quando forem consultados os seus arquivos, ver-se-á 273

que as nações americanas defenderam, até onde foi possível, os princípios e ideais que caracterizam a sua cultura. Não lhes faltou, felizmente, no combate pelo que lhes pareceu essencial à existência do seu sistema continental, necessário à paz e à segurança mundial, segundo ficou provado durante a guerra, o apoio da grande nação irmã que nos acolheu nesta magnífica cidade e que tão dignamente se acha representada, nesta sessão de encerramento, pelo seu eminente Presidente, Senhor Harry S. Truman, e pelo seu ilustre Secretário de Estado, Senhor Edward Stettinius Junior, nosso distinto Chairman. Os Estados Unidos, expressão poderosa de um mundo novo como é este Continente, constituem uma força moral sem paralelo no presente momento histórico e a noção que têm disso o seu povo e os seus líderes não é menor do que a fé que neles depositamos. Devemos todos jurar, sobre esta Carta, como se costuma jurar sobre os livros sagrados, que, com ela, manteremos a paz no mundo e, com os seus princípios de Direito e de Justiça, regeremos as relações entre todos os povos. Pedro Leão Velloso, Chefe da Delegação

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Anexo 17 Artigos selecionados da Carta da ONU *

Capítulo V Conselho de Segurança Composição Artigo 23 – 1. O Conselho de Segurança será composto de quinze Membros das Nações Unidas. A República da China, a França, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do norte e os Estados Unidos da América serão membros permanentes do Conselho de Segurança. A Assembleia Geral elegerá dez outros Membros das Nações Unidas para Membros não permanentes do Conselho de Segurança, tendo especialmente em vista, em primeiro lugar, a contribuição dos Membros das Nações Unidas para a manutenção da paz e da segurança internacionais e para os outros propósitos da Organização e também a distribuição geográfica equitativa. 2. Os membros não permanentes do Conselho de Segurança serão eleitos por um período de dois anos. Na primeira eleição dos Membros não permanentes do Conselho de Segurança, que se celebre depois de haver-se aumentado de onze para quinze o número de membros do Conselho de Segurança, dois dos quatro membros novos serão eleitos por um período de um ano. Nenhum membro que termine seu mandato poderá ser reeleito para o período imediato. 3. Cada Membro do Conselho de Segurança terá um representante. Votação Artigo 27 – 1. Cada membro do Conselho de Segurança terá um voto. 2. As decisões do Conselho de Segurança, em questões processuais, serão tomadas pelo voto afirmativo de nove Membros. 3. As decisões do Conselho de Segurança, em todos os outros assuntos, serão tomadas pelo voto afirmativo de nove membros, inclusive os votos afirmativos de todos os membros permanentes, ficando estabelecido que, nas decisões previstas no Capítulo VI e no parágrafo 3 do Artigo 52, aquele que for parte em uma controvérsia se absterá de votar. Capítulo VII Ação Relativa a Ameaças à Paz, Ruptura da Paz e Atos de Agressão Artigo 43 – 1. Todos os Membros das Nações Unidas, a fim de contribuir para a manutenção da paz e da segurança internacionais, se comprometem a proporcionar ao Conselho de Segurança, a seu pedido e de conformidade com o acordo ou acordos especiais, forças armadas, assistência e facilidades, inclusive direitos de passagem, necessários à manutenção da paz e da segurança internacionais. *

Versão emendada atualmente em vigor. Fonte: Carta das Nações Unidas e Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Nova York: UN Department of Public Information, s/d.

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2. Tal acordo ou tais acordos determinarão o número e tipo das forças, seu grau de preparação e sua localização geral, bem como a natureza das facilidades e da assistência a serem proporcionadas. 3. O acordo ou acordos serão negociados o mais cedo possível, por iniciativa do Conselho de Segurança. Serão concluídos entre o Conselho de Segurança e Membros da Organização ou entre o Conselho de Segurança e grupos de Membros e submetidos à ratificação, pelos Estados signatários, de conformidade com seus respectivos processos constitucionais. Artigo 46 – O Conselho de Segurança, com a assistência da Comissão de Estado-Maior, fará planos para a aplicação das forças armadas. Artigo 47 – 1. Será estabelecida uma Comissão de Estado-Maior destinada a orientar e assistir o Conselho de Segurança, em todas as questões relativas às exigências militares do mesmo Conselho, para manutenção da paz e da segurança internacionais, utilização e comando das forças colocadas à sua disposição, regulamentação de armamentos e possível desarmamento. 2. A Comissão de Estado-Maior será composta dos Chefes de Estado-Maior dos Membros Permanentes do Conselho de Segurança ou de seus representantes. Todo Membro das Nações Unidas que não estiver permanentemente representado na Comissão será por esta convidado a tomar parte nos seus trabalhos, sempre que a sua participação for necessária ao eficiente cumprimento das responsabilidades da Comissão. 3. A Comissão de Estado-Maior será responsável, sob a autoridade do Conselho de Segurança, pela direção estratégica de todas as forças armadas postas à disposição do dito Conselho. As questões relativas ao comando dessas forças serão resolvidas ulteriormente. 4. A Comissão de Estado-Maior, com autorização do Conselho de Segurança e depois de consultar os organismos regionais adequados, poderá estabelecer subcomissões regionais. Artigo 51 – Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos Membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais. Capítulo VIII Acordos Regionais Artigo 52 – 1. Nada na presente Carta impede a existência de acordos ou de entidades regionais, destinadas a tratar dos assuntos relativos à manutenção da paz e da segurança internacionais que forem suscetíveis de uma ação regional, desde que tais acordos ou entidades regionais e suas atividades sejam compatíveis com os Propósitos e Princípios das Nações Unidas. 2. Os Membros das Nações Unidas, que forem parte em tais acordos ou que constituírem tais entidades, empregarão todo os esforços para chegar a uma solução pacífica das controvérsias locais por meio desses acordos e entidades regionais, antes de as submeter ao Conselho de Segurança.

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3. O Conselho de Segurança estimulará o desenvolvimento da solução pacífica de controvérsias locais mediante os referidos acordos ou entidades regionais, por iniciativa dos Estados interessados ou a instância do próprio Conselho de Segurança. 4. Este Artigo não prejudica, de modo algum, a aplicação dos Artigos 34 e 35. Artigo 53 – 1. O Conselho de Segurança utilizará, quando for o caso, tais acordos e entidades regionais para uma ação coercitiva sob a sua própria autoridade. Nenhuma ação coercitiva será, no entanto, levada a efeito de conformidade com acordos ou entidades regionais sem autorização do Conselho de Segurança, com exceção das medidas contra um Estado inimigo como está definido no parágrafo 2 deste Artigo, que forem determinadas em consequência do Artigo 107 ou em acordos regionais destinados a impedir a renovação de uma política agressiva por parte de qualquer desses Estados, até o momento em que a Organização possa, a pedido dos Governos interessados, ser incumbida de impedir toda nova agressão por parte de tal Estado. 2. O termo Estado inimigo, usado no parágrafo 1 deste Artigo, aplica-se a qualquer Estado que, durante a Segunda Guerra Mundial, foi inimigo de qualquer signatário da presente Carta. Artigo 54 – O Conselho de Segurança será sempre informado de toda ação empreendida ou projetada de conformidade com os acordos ou entidades regionais para manutenção da paz e da segurança internacionais. Capítulo XVIII Emendas Artigo 108 – As emendas à presente Carta entrarão em vigor para todos os Membros das Nações Unidas, quando forem adotadas pelos votos de dois terços dos membros da Assembleia Geral e ratificada de acordo com os seus respectivos métodos constitucionais por dois terços dos Membros das Nações Unidas, inclusive todos os membros permanentes do Conselho de Segurança. Artigo 109 – 1. Uma Conferência Geral dos Membros das Nações Unidas, destinada a rever a presente Carta, poderá reunir-se em data e lugar a serem fixados pelo voto de dois terços dos membros da Assembleia Geral e de nove membros quaisquer do Conselho de Segurança. Cada Membro das Nações Unidas terá um voto nessa Conferência. 2. Qualquer modificação à presente Carta, que for recomendada por dois terços dos votos da Conferência, terá efeito depois de ratificada, de acordo com os respectivos métodos constitucionais, por dois terços dos Membros das Nações Unidas, inclusive todos os membros permanentes do Conselho de Segurança. 3. Se essa Conferência não for celebrada antes da décima sessão anual da Assembleia Geral que se seguir à entrada em vigor da presente Carta, a proposta de sua convocação deverá figurar na agenda da referida sessão da Assembleia Geral, e a Conferência será realizada, se assim for decidido por maioria de votos dos membros da Assembleia Geral, e pelo voto de sete membros quaisquer do Conselho de Segurança.

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Anexo 18 Os 51 Estados-membros fundadores da ONU em 1945

África do Sul Arábia Saudita Argentina Austrália Bielorússia Bélgica Bolívia Brasil Canadá Chile China Colômbia Costa Rica Cuba Dinamarca Egito El Salvador Equador Estados Unidos Etiópia Filipinas França Grécia Guatemala Haiti Honduras

Índia Irã Iraque Iugoslávia Líbano Libéria Luxemburgo México Nicarágua Noruega Nova Zelândia Países Baixos Panamá Paraguai Peru Polônia Reino Unido República Dominicana Síria Tchecoslováquia Turquia Ucrânia União Soviética Uruguai Venezuela

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Anexo Especial Por que o Brasil é o primeiro a discursar na Assembleia Geral da ONU?

A cada ano, no mês de setembro, quando o chefe da delegação brasileira abre os debates da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, a imprensa destaca o fato de que, por tradição, o Brasil é o primeiro país a discursar naquele conclave mundial. Essa tradição é considerada hoje pelo Secretariado da ONU uma “prática estabelecida”. Sua origem é parte da memória viva da diplomacia brasileira e se perdeu no tempo. Várias teses surgiram para explicá-la, algumas delas incompatíveis entre si. A hipótese mais recorrente se baseia na ideia de que, com os Estados Unidos e a União Soviética em desacordo quanto a saber qual país deveria discursar na abertura, o Brasil teria sido escolhido como solução de compromisso. Outra tese frequentemente repetida pretende estabelecer uma relação entre o insucesso em obter um assento permanente no Conselho de Segurança e a deferência dada ao Brasil. O primeiro discurso seria então uma espécie de “prêmio de consolação”. Há versões que atribuem a Oswaldo Aranha um papel importante na questão por haver presidido a II Assembleia Geral. Explicações mais prosaicas sustentam que o Brasil foi o primeiro país a se inscrever como orador em 1946 e, repetindo o gesto em outros anos, assegurou assim a consolidação de uma regra não escrita desde os primórdios da organização. O que haveria de concreto nisso? Um levantamento nos registros oficiais da ONU talvez ajude a entender melhor o caso.571 A I Assembleia Geral, em 1946, teve duas sessões. Na primeira delas, em Londres, o primeiro-ministro britânico, Clement Attlee, em nome do país anfitrião, foi quem deu as boas-vindas aos participantes, em 10 de janeiro. Como aquela era uma reunião constitutiva da nova organização, não havia ainda regras definidas para a ordem dos discursos. Não houve tampouco um debate geral estruturado. Os trabalhos se concentraram sobretudo em questões práticas, como a designação do secretário-geral da ONU, eleições para assentos não permanentes no Conselho de Segurança e para o ECOSOC, organização do Secretariado, orçamento e outras medidas de implementação. Luiz Martins de Souza Dantas, chefe da delegação brasileira, interveio somente no dia 14 de janeiro, na 7a sessão plenária, após os Estados Unidos, quando o item formal da agenda era a discussão do relatório da Comissão Preparatória das Nações Unidas. Outros países haviam discursado nos dias anteriores sobre temas distintos da agenda. Na segunda sessão da I Assembleia Geral, em Nova York, por proposta de seu presidente, o belga Paul-Henri Spaak, foi aprovada regra de procedimento segundo a qual os discursos seriam pronunciados de acordo com a ordem de precedência dos inscritos na lista de oradores. Assim, em 24 de outubro de 1946, o primeiro país a discursar foi o México, representado por Castillo Najera, seguido da Bélgica. O Brasil foi o terceiro, com Pedro Leão Velloso. Em 1947, novamente o México (Torres Bodet) abriu o debate geral, em 17 de setembro, seguido de Estados Unidos, Polônia, Uruguai e outros. O Brasil não aparece entre os primeiros, apesar de ter sido Oswaldo Aranha o presidente da II Assembleia Geral. Vale lembrar que a atuação de Aranha naquele posto não se confundia com a da delegação brasileira, chefiada por João Carlos Muniz. 571

Os dados levantados aqui foram extraídos da série de Official Records of the General Assembly, Plenary Meetings, editada pelas Nações Unidas (diversos anos).

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A III Assembleia Geral também teve duas sessões em lugares diferentes. Em Paris, após as palavras de boas-vindas do presidente francês, Vincent Auriol, os debates se iniciaram em 23 de setembro de 1948, com o discurso das Filipinas (Carlos Rómulo), seguido de Estados Unidos, Polônia, Síria e outros. Na segunda sessão, em Nova York, entre abril e maio de 1949, não se deu início a novo debate geral, pois a rigor se tratava de mera continuação da Assembleia iniciada meses antes em Paris. Em 1949, na IV Assembleia Geral, agora de modo definitivo em Nova York, o Brasil foi efetivamente o primeiro a discursar, com Cyro de Freitas-Valle, em 21 de setembro, seguido de Estados Unidos, Cuba, Índia e outros. Em 1950, novamente FreitasValle abre o debate geral, fato repetido em 1951, desta vez com Mário de Pimentel Brandão. Em 1952, no entanto, a sequência é interrompida. Cuba faz o primeiro discurso, seguida de Suécia, Chile, Iraque e outros. Pelo Brasil, João Neves da Fontoura só fez seu pronunciamento muito depois. Em 1953, o debate geral é aberto pelos Estados Unidos, seguido de Chile, Austrália, Nova Zelândia e outros. Em 1954, a situação se repete e o Brasil tampouco foi o primeiro país a discursar, papel que coube ao Canadá, seguido de Chile, Estados Unidos, Peru e outros. Parece estranho que, se existisse já um entendimento tácito de que caberia ao Brasil esse papel, três anos houvessem transcorrido sem que se consolidasse um costume a ser levado em conta. Somente em 1955, na X Assembleia Geral, com o retorno de Freitas-Valle como chefe da delegação brasileira, o Brasil volta a ser o primeiro, seguido de Estados Unidos, Costa Rica, Egito, República Dominicana e outros. A partir daí, o Brasil passa finalmente a inaugurar todos os anos o debate geral, de forma ininterrupta. Em 1956, de novo Freitas-Valle. Em 1957, Oswaldo Aranha. Em 1958, Francisco Negrão de Lima. Em 1959, Augusto Frederico Schmidt. Em 1960, Horácio Lafer. E assim por diante.572 Tomando por base as informações acima e o conhecimento disponível sobre a presença do Brasil na ONU, podemos extrair algumas conclusões: 1o) não existe relação com a questão do assento permanente para o Brasil, ventilado em 1944-45 (a tese do “prêmio de consolação”); 2o) a tradição não se inicia em 1946; 3o) nada há de substantivo que a vincule a Oswaldo Aranha em 1947; 4o) o Brasil fez o primeiro discurso em 1949, mas a tradição é quebrada entre 1952 e 1954, sugerindo que naqueles anos não era ainda percebida como tal; 5o) o ano-chave, talvez, poderia ser 1955, ou seja, dez anos depois da guerra e da criação da ONU. Isso posto, é de se notar que um mesmo personagem liga os anos de 1949 e 1955: Freitas-Valle. Se recorrermos ao depoimento mais lembrado sobre a matéria, escrito pelo ex-chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro, de fato Freitas-Valle aparece como o verdadeiro fundador da tradição. Eis o trecho que nos interessa mais de perto: Vários delegados estrangeiros que se davam comigo perguntaram-me por que o Brasil era sempre quem abria o debate geral na Assembleia. Recorri a Cyro [Freitas-Valle] que nos representara na primeira parte da primeira sessão da Assembleia Geral, ainda em Londres. Contou-me uma história autenticamente cyriana. Não desejando nem os EUA nem a URSS abrir o debate, o Secretariado sondou vários países europeus que se recusaram, alegando geralmente não poderem falar proveitosamente sem antes ouvir as superpotências. Esgotadas as possibilidades europeias, o Secretariado recorreu ao Brasil e Cyro imediatamente aceitou. Disse-me que lhe parecera que, se falasse depois das superpotências, não teria nada mais a acrescentar. Fez um discurso curto, à sua 572

A relação dos representantes brasileiros que discursaram na Assembleia Geral da ONU pode ser conferida in SEIXAS CORRÊA, Luiz Felipe de (org.). O Brasil nas Nações Unidas (1946-2006). Brasília: Ministério das Relações Exteriores, FUNAG, 2007.

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maneira, assinalando as dificuldades para cumprir a Carta e a indispensabilidade de fazê-lo. Nos anos seguintes, a delegação do Brasil sempre se inscrevia para iniciar o debate. Com o tempo, formou-se o 573 costume por todos respeitado, embora não se reflita no regimento interno.

O texto não indica claramente o ano em que esse diálogo teria ocorrido. Sendo uma reminiscência baseada em testemunho oral de outra pessoa, é preciso tomar esse depoimento com as devidas ressalvas que o método histórico exige. Mas Guerreiro fornece uma pista fundamental: depois do “acordo” originário, a maneira encontrada de continuar discursando em primeiro lugar foi, simplesmente, inscrever-se em primeiro lugar. Aplicando certo grau de tenacidade para repeti-lo anualmente, esse procedimento deu resultado. A essa altura, parecem existir elementos suficientes para esboçar uma interpretação, ainda que sujeita a confirmação em pesquisas ulteriores. Se admitirmos, por hipótese, que a conversa narrada por Guerreiro se refere a 1949, no ano seguinte FreitasValle teria orientado colaborador seu da missão brasileira em Nova York para garantir logo a inscrição do Brasil como primeiro orador. Em 1951, o mesmo teria acontecido. Nos anos posteriores, todavia, outros representantes brasileiros não deram continuidade a essa prática (terão tido, é claro, seus motivos para tanto). Em 1955, como se sabe, Freitas-Valle é nomeado mais uma vez para representar o Brasil. Antes do início da Assembleia Geral, dirige um ofício ao então chanceler Raul Fernandes, queixando-se do “decrescente prestígio do Brasil na ONU”. A culpa, segundo ele, não era “de ninguém especificamente”. Seria tão somente uma constatação observada ao longo dos anos. Após eleições consagradoras para o Conselho de Segurança e o ECOSOC em épocas passadas, o Brasil agora tinha dificuldade em concorrer com países bem menores para postos eletivos em órgãos importantes da ONU. FreitasValle lamentou a acusação de que o Brasil votava “quase invariavelmente de acordo com os Estados Unidos” e que seria “pequeno e pobre” o rol de suas iniciativas em dez anos de existência da organização.574 Preocupava-lhe, essencialmente, a boa imagem do país. Diante de um quadro para ele desalentador, que precisava ser revertido, teria Freitas-Valle insistido para recolocar o Brasil na posição de primeiro orador como uma maneira, entre outras possíveis, de soerguer o abalado prestígio brasileiro? Cumprido o objetivo na X Assembleia Geral, o próprio Freitas-Valle adotaria a mesma atitude em 1956, indicando o caminho a seguir para os que lhe sucederam. As razões e a forma de proceder de Freitas-Valle ainda estão por serem desvendadas completamente. Seja como for, seu nome parece estar de alguma forma associado a essa honrosa tradição, prática consagrada que se encontra definitivamente incorporada ao protocolo multilateral das Nações Unidas, em conformidade com o parágrafo 20, item d, do Anexo da Resolução 51/241 da Assembleia Geral, de 1997.575

573

GUERREIRO, Ramiro Saraiva. Lembranças de um empregado do Itamaraty. São Paulo: Siciliano, 1992, p. 41-42. 574 Freitas-Valle a Raul Fernandes, Nova York, ofício, 6 julho 1955, CDO Correspondência Especial, Pasta 6.727, ONU Diversos 1945-56, MRE, Brasília. 575 Resolução de 22/8/1997 intitulada “Fortalecimento do sistema das Nações Unidas” (A/RES/51/241). O parágrafo 20, item d, relativo ao debate geral, estabelece que o Secretariado da ONU deverá preparar a lista de oradores com base nas “tradições existentes” e em expressões de preferência para melhor acomodar as necessidades dos Estados-membros [grifos meus].

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ICONOGRAFIA

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A saída de Oswaldo Aranha do Itamaraty em 1944 o excluiu das negociações de paz do pós-guerra. Acima: Getúlio Vargas e Aranha frente a frente. Abaixo: o embaixador Pedro Leão Velloso, que assumiu interinamente o Ministério das Relações Exteriores e chefiou a delegação do Brasil às Conferências de Chapultepec e São Francisco, ambas em 1945. Fundação Getúlio Vargas/CPDOC e AHI/Mapoteca.

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O presidente dos EUA, Franklin Delano Roosevelt, queria o Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Acima: Roosevelt em foto de 1944. Abaixo: sessão inaugural da Conferência de Dumbarton Oaks, que elaborou o primeiro esboço da Carta aprovada em São Francisco (Washington, 21 ago. 1944). FDR Presidential Library e UN Photo/DPI.

284

Getúlio Vargas tinha interesse pessoal em acompanhar as negociações que, nas suas palavras, levariam à “reestruturação do mundo”. Acima: Vargas e Roosevelt se encontram a bordo de um destróier norte-americano em Natal-RN, em 1943. Abaixo: o embaixador e jurista Hildebrando Accioly, que redigiu as instruções para a delegação brasileira à Conferência de São Francisco. Hulton Archive, www.jamd.com/image/g/2634758 (acesso em 22 nov. 2008) e AHI/Mapoteca.

285

Michael Wright (conselheiro da embaixada britânica em Washington) a Gladwyn Jebb (Foreign Office), ofício, 18 nov. 1944, NA-UK, FO 371/40723 (Capítulo 2).

286

Faces da guerra: os fundadores da ONU tentavam encontrar um modo de evitá-la novamente. Acima: artilharia norte-americana na frente italiana (1944). Abaixo: soldados remanescentes da 148a Divisão de Infantaria alemã se rendem às tropas da FEB em Collecchio/Fornovo di Taro (29 abr. 1945). www.history.army.mil/wwii (acesso em 5 set. 2008).

287

Despacho confidencial de Philip Chalmers, chefe da Divisão de Assuntos Brasileiros do Departamento de Estado, Washington, 27 jan. 1945, NARA 832.00/1-2745 (Capítulo 4).

288

O Castelo de Chapultepec, situado sobre uma colina no bosque de mesmo nome, na Cidade do México, onde se realizou a Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz, em 1945. Acima: vista do Castelo. Abaixo: Pedro Leão Velloso, já em São Francisco, faz declaração à imprensa. www.latinamericanstudies.org (acesso em 3 jul. 2008) e AHI/Mapoteca.

289

Fonte: San Francisco Bulletin, 20 abr. 1945, CDO, Maço 42.925.

290

Membros da delegação do Brasil em São Francisco, 1945. Acima: City Hall. Abaixo: da esquerda para a direita, Jayme de Barros, Márcio de Mello Franco Alves?, Octavio do Nascimento Brito, Henrique de Souza Gomes, Mario Gibson Barboza, Vicente de Paula Galliez, capitão de fragata João Pereira Machado, general Estevão Leitão de Carvalho, Bertha Lutz, Aguinaldo Boulitreau Fragoso, Carlos Martins Pereira e Souza, Pedro Leão Velloso, major Alfredo Souto Malan?, Cyro de FreitasValle, Maria de Lourdes Pimentel?, almirante Sylvio de Noronha, Henrique Rodrigues Valle, Antonio Camillo de Oliveira, Carlos Jacyntho de Barros, José de Alencar Netto e Geraldo de Paula Souza. AHI/Mapoteca.

291

Foto oficial da delegação do Brasil em São Francisco. Acima: da esquerda para a direita, brigadeiro Armando Figueira Trompowski, Geraldo de Paula Souza, general Estevão Leitão de Carvalho, Henrique de Souza Gomes, Carlos Martins Pereira e Souza, Márcio de Mello Franco Alves?, José de Alencar Netto, Pedro Leão Velloso (sentado), Octavio do Nascimento Brito, Cyro de Freitas-Valle, Vicente de Paula Galliez, Bertha Lutz, major aviador Carlos Alberto de Mattos, coronel aviador Henrique Fleiuss. Abaixo: Leão Velloso concede entrevista à rádio. UN Photo/Lundquist e McCreary.

292

Fonte: San Francisco Examiner, 2 maio 1945, CDO, Maço 42.899.

293

Fonte: San Francisco Examiner, 4 maio 1945, CDO, Maço 42.925.

294

Visões da Conferência de São Francisco. Acima: plenário da Conferência, na Opera House. Abaixo: reunião do comitê 1 da primeira comissão, sobre preâmbulo, objetivos e princípios da Carta da ONU. AHI/Mapoteca e UN Photo/Lundquist.

295

As quatro potências patrocinadoras da Conferência de São Francisco. Acima: da esquerda para a direita, Anthony Eden (Grã-Bretanha), Edward Stettinius Jr. (EUA), Vyacheslav Molotov (União Soviética) e T. V. Soong (China). Abaixo: uma das muitas reuniões que Stettinius organizou durante a Conferência em seu apartamento no Fairmont Hotel (São Francisco, 29 maio 1945). UN Photo/DPI e AHI/Mapoteca.

296

Fonte: Novedades, México, 14 maio 1945, CDO, Maço 42.907.

297

O Dia da Vitória na Europa, em 8 maio 1945, é comemorado pelos delegados à Conferência de São Francisco. Acima: membros da delegação soviética leem com satisfação as notícias no jornal do dia. Abaixo: desabrigados nas ruas da Berlim devastada pela guerra. UN Photo/Rosenberg e http://cmccleskey.wordpress.com/2008/02/05/living-history (acesso em 27 maio 2009).

298

Getúlio Vargas a Pedro Leão Velloso, telegrama reservado no 1, Rio de Janeiro, 8 maio 1945, CPDOC, GV c 45.04.30 (Capítulo 4).

299

Bertha Lutz conquistou espaço na Conferência de São Francisco defendendo os direitos das mulheres. Foi de sua iniciativa a proposta de se criar uma Comissão sobre o Status da Mulher. Acima: Lutz conversa com delegado em reunião do comitê 3 da segunda comissão, sobre cooperação econômica e social (6 jun. 1945). Abaixo: Lutz assinando a Carta da ONU (26 jun. 1945). UN Photo/Rosenberg e McLain.

300

O Brasil é um dos 51 membros fundadores da ONU. Acima: Pedro Leão Velloso assinando a Carta da ONU (São Francisco, 26 jun. 1945). Abaixo: as assinaturas dos integrantes da delegação brasileira: Leão Velloso, Cyro de Freitas-Valle, general Estevão Leitão de Carvalho, Antonio Camilo de Oliveira e Bertha Lutz. UN Photo/McLain e UNCIO, 1945, vol. I.

301

As duas Nações Unidas: durante a guerra, uma aliança militar; terminado o conflito, uma organização para a paz mundial. Pôsteres de propaganda das Nações Unidas: www.flickr.com/photos (acesso em 14 ago. 2008).

302

Guerra e Paz. Painéis do pintor brasileiro Candido Portinari, doados em 1957 às Nações Unidas, que se encontram hoje em processo de restauração. Extraído do livro War and Peace, Rio de Janeiro, Projeto Portinari, 2007.

303

Pedro Leão Velloso a Cyro de Freitas-Valle, telegrama pessoal e reservado, Rio de Janeiro, 9 out. 1945, AHI 79/4/9 (Capítulo 5).

304

Primeira sessão do Conselho de Segurança da ONU, realizada em Londres. Acima: Cyro de FreitasValle (o segundo à mesa da esquerda para a direita) representa o Brasil na reunião inaugural (10 jan. 1946, Central Hall). Abaixo: a clássica mesa em ferradura do Conselho (17 jan. 1946, Church House). UN Photo/Marcel Bolomey.

305

Personagens que marcaram a presença brasileira nos primeiros anos de existência da ONU. Acima: Cyro de Freitas-Valle, que além de participar da Conferência de São Francisco, da Comissão Preparatória das Nações Unidas e da I Assembleia Geral em 1946, seria depois nomeado para diversas missões na ONU até a década de 1960. Abaixo: Oswaldo Aranha, como presidente da II Assembleia Geral em 1947, único brasileiro até hoje a exercer essa função na ONU. AHI/Mapoteca e Fundação Getúlio Vargas/CPDOC.

306

A velha e a nova diplomacia. Fonte: DERSO & KELEN. United Nations sketchbook: a cartoon history of the United Nations. Nova York: Funk & Wagnalls Company, 1950.

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A equipe de arquitetos responsável pela sede definitiva da ONU, em Nova York. Acima: Oscar Niemeyer, que teve participação decisiva no projeto que veio a ser adotado, é o quinto da esquerda para a direita, no centro da foto (1o abr. 1947). Abaixo: imagem recente do prédio mundialmente conhecido. UN Photo.

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