O Shabbat como um Jubileu Semanal

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O shabat como um jubileu semanal Rodrigo Follis1 Felipe Carmo2 Os conceitos relacionados à prática jubilar, segundo expostos na Bíblia, certamente têm muito a dizer àquele que procura trabalhar pela justiça, esteja ele ligado a uma confissão religiosa ou não. Como veremos neste artigo, a prática jubilar pode servir de referência especial não apenas pela ideologia de equanimidade social, financeira e existencial que ela carrega, mas porque nela se tornam claras as condições de degradação e exploração humana no cotidiano. Podemos ler sobre esse quadro de mazelas na crítica/contestação fornecida pelo conhecido filósofo da libertação Enrique Dussel (1995, p. 19): O oprimido, o torturado, o que vê ser destruída sua carne sofredora, todos eles simplesmente gritam, clamando por justiça: — Tenho fome! Não me mates! Tem compaixão de mim! — é o que exclamam esses infelizes. […] Estamos na presença do escravo que nasceu escravo e que nem sabe que é uma pessoa. Ele simplesmente grita. O grito — enquanto ruído, rugido, clamor, protopalavra ainda não articulada, interpretada de acordo com o seu sentido apenas por quem “tem ouvidos para ouvir” — indica simplesmente que alguém está sofrendo e que do íntimo de sua dor nos lança um grito, um pranto, uma súplica.   Mestre em Comunicação Social e doutorando em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Bolsista Capes. Professor no Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp). Coordenador do Grupo de Estudos em Ministério (GEM) ligado ao Unasp. 2   Bacharel em Teologia e pós-graduando latu-sensu em Teologia Bíblica pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp).

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Em vista de chagas sociais como as mencionadas acima, encontrou-se no Jubileu a possibilidade de uma abordagem que ultrapassasse o que seria apenas uma bela ideologia. Nesse sentido, não foram poucas as ocasiões em que movimentos religiosos ou seculares revisitaram os princípios do Jubileu a fim de reconquistar a esperança prática e ideológica sugerida por ele.3 Desde as últimas décadas, diversos teólogos ou patronos da justiça social têm encarado os conceitos bíblicos do Jubileu como uma alternativa de advogar suas expectativas por uma sociedade isenta de vantagem econômica limitada a poucos. Muitos teóricos, por exemplo, chegaram a sugerir uma espécie de “cancelamento das dívidas” dos países mais pobres num possível “ano de Jubileu” (LEITER, 2002).4 Além de entidades seculares, há quem assuma a convicção de que o “Ministério Jubilar” deveria representar a motivação intrínseca de qualquer comunidade religiosa cristã (ver Mt 25:31-36), seja esta visível em pequenas prateleiras de alimentos para doações ou mesmo experimentada em agências multinacionais de caridade (JOHNSON, 2010).5 Contudo, segundo as sugestões de Velasco (1999, p. 108) e Almada (1999, p. 189), existe um problema fundamental na aplicação da ideologia jubilar às sociedades modernas. Nesse sentido, surgem algumas questões, tais como: Quais dívidas devem ser perdoadas hoje em dia? Se a igreja/religião não mais controla a sociedade, como pode se comprometer com essas dívidas ou libertações? Que pecados temos contra o próximo/“o outro” e quais seriam as condições reais para receber um perdão/libertação válido? Mesmo se deixarmos de lado a questão da historicidade dos jubileus no contexto bíblico, até que ponto é possível hoje um novo Jubileu? De que maneira as novas formas de governo, 3   Desde o ano 1300, onde o papa Bonifácio VIII proclamou o primeiro Jubileu, com intensidade maior ou menor, Roma é o ponto de peregrinações e sugere bênçãos e indulgências a quem, durante esse ano, visitar o túmulo dos apóstolos Pedro e Paulo (BARROS, 1999, p. 197). 4   Em 1992, por exemplo, quando se completaram 500 anos do início da conquista e exploração do “Novo Mundo”, muitos se perguntaram se já não era o momento de proclamar um Jubileu. Houve conferências sobre ecologia; falou-se sobre a necessidade de respeito pela “Pacha Mama” e pelo meio ambiente; e foram feitas campanhas de revalorização dos povos aborígenes, propondo a devolução de terras aos seus habitantes originais. Grande parte dessas iniciativas, como veremos, estão enquadradas no conceito do Jubileu (ALMADA, 1999, p. 190). 5   Almada (1999, p. 185-189) ainda sugere a consideração de alguns mártires que, embora não estivessem fundamentados na ideologia bíblica do Jubileu, agiram em conformidade com o princípio humanitário bíblico na luta “por um mundo mais justo e solidário”, como, por exemplo: Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), Martin Luther King Jr. (1929-1968) e Enrique Angelelli (1923-1976). Nesse sentido, “o sonho e a luta por um ‘Jubileu’ não é monopólio exclusivo dos cristãos ou religiosos em geral”, mas aspecto essencial de todo ser humano que busca a justiça.

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a economia de mercado, as descobertas tecnológicas, as novas condições para o trabalho afetariam a realização de um novo Jubileu? Fatores como esses tornam ainda mais difícil a real aplicação do conceito do Jubileu à sociedade. Em outros termos, por estar cultural e socialmente distante dos nossos dias, o Jubileu, como apresentado na Bíblia, parece ser desejado, mas nunca, de fato, concretizado; a despeito dos esforços bem intencionados, todas as possíveis iniciativas “jubilares” sequer conseguiram impedir um milímetro do crescimento da brecha existente entre ricos e pobres.6 A hipótese que levantamos no presente artigo é a de que a ideologia e prática do shabat, como expressões resumidas da ideologia e prática do Jubileu, poderiam aproximar o ser humano de suas expectativas acerca dos cuidados para com a sociedade. Consideramos que a Bíblia parece sugerir a observância do shabat, a cada semana, como um sinal preparatório para as bênçãos de um Jubileu-escatológico. Nosso principal objetivo é aplicar alguns conceitos da teologia da Missão Integral à prática semanal do shabat, tendo como pano de fundo o Jubileu. Esperamos, assim, poder avaliar se a prática do shabat realmente esboça uma possibilidade para materialização das expectativas jubilares acalentadas até aqui. Para isso, perguntamos: Como o conceito de redenção encontrado no Jubileu pode tornar-se mais prático? Qual é a real contribuição da chamada Missio Dei para a guarda do shabat à luz desses conceitos? E, finalmente, qual é a contribuição desses conceitos para um processo de criação e/ou consolidação de uma teologia de libertação que considere o shabat como agente metodológico? Inicialmente, consideraremos o significado bíblico de “redenção” no contexto jubilar, para então construir uma visão mais específica acerca das práticas sabáticas à luz do ano do Jubileu — este considerado como o auge dos significados a respeito do shabat (ver REHFELD, 2003, p. 21). Espera-se com este estudo apresentar uma proposta redentora/libertadora, ainda que desprovida da pretensão de resolver todos os problemas humanos.

O shabat redentivo Muitas são as ênfases teológicas que podem ser extraídas dos conceitos bíblicos a respeito do shabat. A riqueza de significados que as Escrituras oferecem 6   Essa perspectiva pessimista também vale para as iniciativas provenientes de associações de diversas igrejas: “Desde a década de 1960 foram formadas muitas associações de igrejas do mundo ocidental para cooperar com as do Terceiro Mundo […] Infelizmente, hoje se pode constatar que depois de mais de três décadas de trabalho pelo desenvolvimento para reduzir a pobreza no Terceiro Mundo, os países pobres estão cada vez mais pobres” (ALMADA, 1999, p. 191).

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sobre o tema é passível de sistematizações as mais diversas. Isso acontece provavelmente por dois motivos simples: 1) A Bíblia, como literatura, não está preocupada em apresentar, de maneira lógica, a relação entre os principais significados atrelados ao shabat; ela carece de um modelo sistêmico por enfatizar preferencialmente a prática do conjunto das leis judaicas e não a compreensão cognitiva das mesmas (BACCHIOCCHI, 2003, p. 140; WURZBURGER, 1993, p. 139-140). 2) Podemos admitir, por outro lado, que a possibilidade de se organizar os diversos significados do shabat com ênfases diferentes ocorre como consequência natural da própria profundidade da doutrina. Se o shabat realmente constitui a epítome dos dois principais mandamentos (“amar a Deus” [Dt 6:5]; e “amar o próximo” [Lv 19:34]), ele representaria, teoricamente, uma verdadeira junção da Lei e dos Profetas no quarto mandamento (DOUKHAN, 1991, p. 160; ver SIQUEIRA, 2005, p. 444). Dessa forma, enquanto certos teólogos podem referir-se ao shabat apenas como um símbolo de reflexão espiritual relativo a algum assunto de sua preferência pessoal, outros teólogos (judeus e cristãos) estão preocupados em resgatar todos os conceitos possíveis acerca do shabat para o enriquecimento da teologia bíblica.7 Com tantas possibilidades à vista, será útil pontuarmos os pressupostos bíblicos fundamentais para qualquer estudo acerca do shabat: 1) O shabat como um memorial perpétuo da criação de Deus — sinalizando sua universalidade (Mt 2:28) e referência ao Criador (Gn 2:1-3; Êx 20:8-11; Ez 20:20); 2) O shabat como símbolo da redenção da humanidade: Deus libertou Israel da escravidão egípcia (Dt 5:14-15) e, por conseguinte, o shabat representa a iniciativa divina de libertar o ser humano da escravidão do pecado (Gl 2:4; 5:1; Rm 6:19; 8:15); 3) O shabat como um sinal de santificação, visando ao serviço e à obediência a Deus (Êx 31:13, 16-17; Ez 20:12, 20); e 4) O shabat como questão primária da proclamação mundial nos últimos dias; um elemento de separação dos que “guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus” (Ap 14:6-7; 12:7, 17; ver IASD, 2003, p. 331-353). É interessante notar que, dos pressupostos citados acima, parece existir uma ênfase especial no significado relativo à “redenção da humanidade”. Além de apresentar a redenção de Cristo prefigurada no Egito, esse   Strand (2011, p. 566-569), por exemplo, desenvolve uma interessante sistematização a respeito do significado do shabat em paralelo à doutrina de Deus, à doutrina sobre o ser humano etc. Timm (2010, p. 102-108), por outro lado, enfatizará, além de outras considerações, as bênçãos físicas ou até emocionais resultantes da prática semanal sabática. Ademais, há que se considerar também inúmeras interpretações rabínicas motivadas pela profundidade dos significantes que regem a teologia do shabat (ver GOLDENBERG, 1991; WURZBURGER, 1991; HASHEL, 1993). 7

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significado pode abranger o conceito de Deus como Criador, seguido de seu poder para santificar o ser humano através de ações redentivas (Êx 31:13; 20:2; Dt 5:14-15).8 Em outras palavras, segundo Strand (2011, p. 570), para seres humanos que vivem em um mundo de pecado, o sábado como sinal de redenção tem precedência sobre o sábado como sinal ou memorial da criação. A obra da “recriação” [atividade criadora e redentora de Deus] deve ter precedência sobre nós, uma vez que criação e Criador têm real significado para nós.9

Quando consideramos a ênfase no aspecto redentor do shabat, parece mais fácil revisitar a própria prática semanal, além de nos conferir uma compreensão teórica mais abrangente sobre o tema. O shabat semanal pode ser entendido de forma mais relevante por apresentar um ideal transformador na vida do crente; dessa maneira, o descanso não estaria baseado em ordenanças litúrgicas ou ocasiões passivas que limitassem seus praticantes; estes, porém, seriam, acima de tudo, motivados por ações redentoras (SCHWARZ, 1980, p. 26-27; BACCHIOCCHI, 1995, p. 156).10 Tal prática abordaria o ser humano e a sociedade como um todo: partindo de uma “redenção pessoal”, o guardador do shabat reafirmaria sua fidelidade a Deus, trabalharia em prol do próximo a partir de motivações redentivas e, por fim, poderia contribuir com o “concerto do mundo”11 (STRAND, 2011, p. 8   O próprio conceito de Zachor, na prática judaica, que se refere ao “lembrar-se” do quarto mandamento, faz alusão aos dois extremos de significados: “tanto como celebração da criação, como a comemoração da liberdade da escravidão egípcia” (RICH, 2011). Doukhan (1991, p. 149-169) também apresenta uma interessante consideração sobre os significados do shabat acerca do que ele representa no passado (criação) e no futuro (redenção). 9   Para Bacchiocchi (2003, p. 137), o desenvolvimento teológico sobre o shabat, partindo da criação e estendendo-se à redenção da humanidade, pode prover um valioso significado à experiência da observância sabática. A própria história da criação é, para ele, de certa forma, uma história redentiva: “redenção da desordem à ordem e do caos ao cosmos”. Embora existam opiniões de que o aspecto redentivo do shabat (como tipo de salvação) serve como prova de que este foi abolido por Cristo ao executar Ele sua atividade redentora, a característica redentiva será vista neste artigo como qualidade de clarificação e não de negação do shabat (ver BACCHIOCCHI, 1981). 10   Bernstein (2010, p. 385) alega que para pessoas que não têm a prática sabática por costume, qualquer restrição é considerada como limite para a “liberdade humana”. Porém, os que conhecem os significados redentivos do shabat veem as restrições como sensatas e necessárias. Nesse caso, entendemos como “ordenanças litúrgicas limitadoras” aquelas que são finalidades em si mesmas. 11   O “concerto do mundo” (Tikkum haOlam) representa um critério universal que torna o shabat uma data menos individualista e que requer mais disciplina, deslocando os praticantes

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566-570; BACCHIOCCHI, 2005, p. 153-161; SCHWARZ, 1980, p. 27; BERNSTEIN, 2010, p. 382-385; SHERMAN, 2005, p. 49-50). Obviamente, o mundo não seria “concertado” por esforços humanos. Assim, para os Adventistas do Sétimo Dia, esse “concerto” pode caminhar em paralelo à preparação de um povo “para a segunda vinda do nosso Senhor” (WHITE, 2007a, p. 101). A partir dessa noção particular, o conceito de redenção no shabat, tanto em teoria como na prática, possui um ideal transformador fundamental que ajudaria o crente a tornar sua observância semanal ainda mais relevante. Contudo, para entendermos o papel ativo da redenção na prática sabática, seria interessante observamos como a Bíblia enxerga conceito de “redenção” na vida dos antigos israelitas.12

A prática redentiva do Jubileu como justiça social No antigo Israel, os conceitos de redenção — abrangendo o descanso, a liberdade e a reconstrução da vida — eram aplicados em massa e plenamente

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de seus mundos particulares a fim de que exerçam auxílio aos necessitados (SCHWARZ, 1980, p. 27; ver Is 58:11-12). Esse conceito é de tal importância que mesmo aos que consideram minuciosamente as 39 proibições prescritas na Mishná sobre a guarda do shabat, o documento parece permitir “violar tais preceitos” para se “salvar uma vida” (RICH, 2011). Ademais, ainda é importante pontuar que a definição prática do shabat como redentiva, no sentido Tikkum haOlam, pode aliviar a tensão existente entre os dois extremos de opiniões encontradas na prática essencialmente “teocêntrica” e preocupações de categoria exclusivamente “humanitária” (WURZBURGER, 1991, p. 144). No sentido redentivo, o shabat preocupa-se com a vontade divina, no que diz respeito à sua autonomia criadora (teocentrismo) e é aplicado à graça universal de Deus a todos os povos (humanismo bíblico). 12   Por “redenção” entende-se, basicamente, o ato de libertação de algo ou alguém sob o domínio de algum poder alienador através de um pagamento monetário (KNUDSEN, 1976, v. 5, p. 49; UNTERMAN, 1992, v. 5, p. 650). Em seu sentido bíblico, o termo está intimamente associado com os ideais de “resgate” e “substituição”. Ele apresenta diversas vezes o caráter de “restauração” de um bem àquele que possui mais direitos sobre o objeto resgatado (KNUDSEN, 1976, v. 5, p. 49). Assim, para que o conceito de redenção seja corrente, se deve pressupor que algo ou alguém se encontra sob um indevido domínio opressor (seja este pessoal [Sl 44:26] ou até mesmo sentimental [2Sm 4:9]), que, mediante o pagamento de um preço, poderá libertar o objeto oprimido (BOWDEN; RICHARDSON, 2002, p. 487). O arquétipo bíblico que melhor representa a ideologia redentiva é oferecido nos moldes da libertação de Israel da servidão aos egípcios (Êx 6:6, 7; Dt 5:12-15; 7:8; 9:26; BOWDEN; RICHARDSON, 2002, p. 487; UNTERMAN, 1992, v. 5, p. 652). Seguindo essa lógica, entendemos neste artigo a redenção como um conceito experimentado e não apenas definido.

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experimentados pela sociedade em duas festividades específicas: o ano sabático e o ano do Jubileu (RICHARD, 1999, p. 8; GALLAZZI, 1999, p. 24-64). Nas palavras do filósofo judeu Walter Rehfeld (2003, p. 21), na cultura judaica, a ideia sabática assume amplitude excepcional, passando do ritmo semanal dos dias para um ritmo de semanas de anos. Uma compreensão adequada do shabat é impossível sem a consideração do shabat-ano, que, talvez, mais do que o shabat-dia, evidencia as correções sabáticas no domínio econômico e social.

Embora a compreensão de ambas as festividades não requeira uma análise exegética detalhada dos textos bíblicos atinentes, não seria possível esgotar aqui seus significados. Por isso, parece essencial atentar às particularidades de cada comemoração para resgatar suas lições práticas mais visíveis a respeito da redenção. De início, devemos considerar que essas comemorações anuais giravam em torno de duas motivações fundamentais: 1) desde a entrada em Canaã, toda a extensão de terra conquistada era de Deus, como o mesmo já havia dito: “toda a terra é minha”, desconsiderando, assim, qualquer perspectiva de posse definitiva (Lv 25:23); e, em segundo lugar, 2) todos os israelitas deveriam esforçar-se para desfrutar de uma situação social igualitária, evitando que houvesse escravos ou servos entre seus irmãos, já que todos os israelitas são servos de Deus resgatados da terra do Egito (Lv 25:42). Em outras palavras, através das festas anuais, Deus resgataria a terra perdida e o escravo oprimido; Ele “intervém diretamente na economia de Israel para salvar a vida” (RICHARD, 1999, p. 10). Ao receberem a posse da Palestina, os Israelitas foram instruídos por Moisés — expositor das orientações divinas por ele recebidas no Monte Sinai — a guardar um ano sabático (Lv 25:1-2). O povo, naturalmente, semearia o campo e colheria dele por seis anos, mas o sétimo ano era separado dos demais como shabat de descanso para a terra, ou seja, nele deveriam cessar os trabalhos agrários (Êx 23:10-11; Lv 25:3-5). Proibia-se o consumo do que nascia naquele ano; apenas os “frutos da terra em descanso” serviriam de mantimento tanto para o israelita como para os servos, estrangeiros e animais (Lv 25:5-7). Além das ordenanças agrárias, o ano sabático também possuía caráter de “remissão”. Todo credor que houvesse realizado algum empréstimo, no sétimo ano deveria perdoar as dívidas daquele que lhe devia algo, a fim de que

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não houvesse pobres entre o povo (Dt 15:1-3).13 Além disso, todo escravo hebreu vendido aos de seu povo deveria ser emancipado de seus senhores se assim ele o desejasse (Êx 21:1-11; Dt 15:12-18). Contudo, o escravo não era despedido de mãos vazias: liberalmente deveria ser fornecido do rebanho ou da eira dos senhores condições para sua subsistência (Dt 15:14-15). Passadas “sete semanas de anos” (ou, precisamente, 49 anos, dentre os quais seis teriam sido anos sabáticos [ver Lv 25:8]), “no mês sétimo, aos dez do mês”, tocava-se o shofar14 como anunciação do Yom Kippur (o “dia da Expiação” [ver Lv 25:9]). Assim, no ano quinquagésimo, era proclamada a “liberdade na terra a todos os seus moradores”; esse ano denominava-se o Ano do Jubileu, onde cada um retornava à sua possessão e à sua família (Lv 25:10). Do mesmo modo que acontecia em cada ano sabático, conferia-se à terra o descanso agrário (Lv 25:11-12) e os escravos hebreus eram emancipados (Lv 25:39-42).15 Contudo, leis mais radicais eram estabelecidas a respeito de possessões adquiridas antes do Ano do Jubileu: segundo as leis de remissão de terra, aquele que havia comprado uma propriedade deveria vendê-la ao seu antigo dono com acréscimos ou decréscimos de preço segundo os anos que se passaram e as semeaduras bem sucedidas (Lv 25:14-17). Se não houvesse condições financeiras para tanto, algum familiar poderia resgatar a terra para o seu parente. Se, porém, ambos estivessem impossibilitados, a possessão automaticamente viria ao antigo dono no ano do Jubileu (Lv 25:25-28). Dentre os vários aspectos relacionados aos bens de consumo, diversas outras estipulações eram descritas, mas sempre de maneira a sugerir o princípio da redenção, seja ela terrena ou monetária (Lv 25:25-55; TEMEY, 1976, p. 49). Muito embora existam opiniões de que as festividades anuais de Israel eram incomuns entre os costumes do Antigo Oriente Médio (RICHARD, 1999, p. 8-10; REHFELD, 2003, p. 23), as diferenças existentes entre esses   A preocupação com o pobre é característica essencial da legislação israelita (Êx 22:2127). Essa preocupação se manifestava através de várias vertentes de ordenanças (Dt 14:2829; 15:1-11, 12-18; 24:15). 14   A raiz hebraica para “Jubileu” origina-se da palavra yôbēl. As possibilidades semânticas provenientes da palavra incluem “carneiro” e “chifre de carneiro”. Referências ocasionais na narrativa da Bíblia Hebraica indicam que o chifre do carneiro era utilizado como trombeta (a shofar) a fim de anunciar o acontecimento de algo muito importante (LEITER, 2002, p. 182-183; ver Js 6:4; Êx 19:13). 15   Segundo Josefo (Antiquities of the Jews, III.12.3), no Jubileu os devedores eram absolvidos de suas dívidas e os escravos postos em liberdade, o que só era possível por haverem transgredido leis cujo pagamento não era de forma capital, mas através da escravidão. 13

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costumes e o de Israel parecem ser aplicadas apenas no sentido de que certas configurações legais foram “estruturadas de tal forma a conferir um senso de originalidade” em comparação àquelas já existentes na cultura oriental da época (LEITER, 2002, p. 169-170). Segundo Leiter (2002, p. 168-169), alguns monarcas motivados por interesses políticos, durante o reinado babilônico na antiga Mesopotâmia (2000-1700 a.C.), proclamavam “o dia da libertação” assim que subiam ao trono.16 A principal diferença existente entre os costumes do Antigo Oriente Médio e o de Israel, reside no fato de que os editos de liberdade decretados pelos mesopotâmios eram esporádicos e imprevisíveis; já entre os hebreus a prática ocorria de forma legalmente estipulada a cada cinquenta anos. Parece existir um extenso debate a respeito da possibilidade de uma real aplicação das leis de Jubileu à comunidade israelita ou se, por outro lado, não passavam de estipulações sociais ideológicas, já que poderiam causar desastrosos tumultos econômicos. Nesse sentido, o Jubileu representaria apenas uma “meta espiritual” estipulada por Deus a fim de que o povo encontrasse um caminho de paz social (ver RICHARD, 1999; GALLAZI, 1999; BARROS, 1999, p. 193). Uma coisa é certa: não encontramos nenhuma evidência bíblica ou extrabíblica sobre a aplicação da prática jubilar no antigo Israel (RICHARD, 1999, p. 10; LEITER, 2002, p. 170).17 Em contrapartida, a prática das instituições semelhantes em outras localidades no Antigo Oriente Médio sugere a importante inferência de que a lei do Jubileu não era simplesmente um conceito utópico que nunca foi realizado, mas uma prática comum entre os povos vizinhos e especialmente sistematizada em Israel (DAVIES, 1995, p. 347). O que podemos averiguar, portanto, é apenas que a prática, por alguma razão desconhecida, caiu em completo desuso. Entretanto, isso não deveria excluir totalmente a noção de que, em detrimento das mazelas sociais correntes na época, o ano do Jubileu poderia ter sido ansiosamente aguardado e até mesmo praticado entre os israelitas.   Exemplos mais concretos a respeito dessa prática de conferir liberdade ao povo podem ser encontrados em documentos econômicos e inscrições reais da época, como, por exemplo: a prática de Hammurabi (1792-1750 a.C.), Samsuiluna (1749-1712 a.C.) e Ammi-saduqa (16471626 a.C.) (FINKELSTEIN apud LEITER, 2002, p. 169). 17   Embora encontremos em Jeremias 34:8-22 a tentativa de proclamação de um Jubileu, notamos através do próprio texto a infelicidade de Deus diante dos seres humanos que fizeram “voltar cada um o seu servo e cada um, a sua serva, os quais, deixados à vontade”, foram sujeitados novamente para que fossem “servos e servas” (Jr 34:16). Em outras palavras, ele não funcionou. 16

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O que parece fundamental nas características dessas festas anuais é sua natureza essencialmente humanitária, destacando-se o teor redentivo envolvido nas mesmas (Êx 23:11; Lv 25:2-7; 15:1-6). O Jubileu se torna o concretizador da justiça social, na medida em que por ele se reconhece que Deus é soberano em todos os aspectos da vida cotidiana (Lv 25:23, 42), de maneira que, em seu tempo, Ele procurará pela equanimidade e reconciliação de todos. Quando Deus “intervir”, o tecido social será redimido através dos princípios da sua justiça. Em outros termos: a intervenção divina redentiva no ano de Jubileu é sinônima de reconstrução social, seguindo, porém, os critérios divinos — é Ele quem dita o como, quando, onde e o porquê das práticas jubilares, de forma que, como seres humanos, somos apenas instrumentos das ações redentoras de Deus, sejam estas monetárias, físicas ou psicológicas. Assim, vale a pena lembrarmos que, embora de abrangência social, os princípios fundamentais oriundos do Jubileu já eram encontrados, mesmo que de forma vaga, na prática do shabat semanal (Dt 5:12-15). Por si mesmo, o shabat semanal funcionava como o “libertador da opressão na sociedade hebreia”, um Jubileu em miniatura (BACCHIOCCHI, 1995, p. 146).18 Com isso, a prática da redenção, por meio das prerrogativas divinas, deveria funcionar principalmente com aspectos de justiça social e, dessa forma, também deveria ser aplicada na prática do shabat.

A prática redentiva do Jubileu como símbolo escatológico Entretanto, a justiça social aplicada como exemplo de redenção não está restrita apenas ao significado humanitário no Jubileu bíblico. O próprio shabat-dia, ainda ligado ao shabat-ano e ao ano do Jubileu, podem possuir aspectos que se relacionam com promessas futuras. Eles agem de igual modo como símbolos escatológicos que apontam imediatamente ao que pode ser experimentado numa redenção que ainda está por vir. Embora isso não seja “inteiramente claro nas Escrituras” (STRAND, 2011, p. 571), há a possibilidade de explorarmos algumas evidências que apontam para isso.19   Essa ligação entre o shabat e o Jubileu parece ter sido fonte para muitas significações cósmicas, espiritualismo e metaforização para os Judeus do segundo templo (ver JOHNSTON, 1987, p. 39). 19   Embora não seja completamente visível em considerações bíblicas, esse aspecto é notável na literatura extrabíblica, principalmente no que diz respeito às fontes rabínicas e gnósticas 18

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Analisando a funcionalidade do shabat no relato de Gênesis 2:1-3, Doukhan (1991, p. 153-166) faz a interessante observação de que, inserido na lógica que configura o enredo da criação, o shabat funciona simbolicamente com conotação escatológica, apontando para o fim dos tempos; o escaton é explicitamente indicado como analogia do “dia em que Deus termina a sua obra”.20 Além disso, a Bíblia parece evidenciar uma acepção escatológica do shabat por este ser, em algumas ocasiões, assinalado através de uma “linguagem sabática” em contextos apocalípticos. Ele aparece, por exemplo, como uma espécie de “Dia do Senhor” (Êx 20:10; Dt 5:14; Is 58:13; [Ap 1:10?]). A expressão “Dia do Senhor” é igualmente utilizada para aludir a eventos futuros em que o próprio Deus interferirá na história da humanidade em juízo (Is 13:9; Jl 2:31; 1Ts 5:2; 2Pe 3:12); o próprio termo “descanso”, comumente atrelado ao shabat, encontra espaço no contexto dos “últimos dias” (ver JOHNSTON, 1987, p. 46 [Dn 12:13; Ap 6:11; 14:11:13]). Nesse sentido, de alguma forma, talvez seja importante a consideração de significações essencialmente escatológicas a respeito do shabat. O shabat-dia, o shabat-ano e o Jubileu funcionariam na sociedade como “expectativa” que outorga uma “experiência escatológica”, embora os eventos escatológicos estejam ainda distantes, no futuro (VELOSO, 2004, p. 240-242).21 Em adição a esse conceito está a compreensão de que, nas Escrituras, a misericórdia divina e a redenção da humanidade são comunicados através de (para um estudo mais abrangente, ver JOHNSTON, 1987). 20   Esse conceito é indicado duas vezes pelo verbo “acabar” que, em primeira instância, faz referência ao objeto da criação (“os céus e a terra e todo o seu exército” [Gn 2:1]) e, posteriormente, ao sujeito da criação (“havendo Deus terminado” [Gn 2:2]). A ideia de “fim” também está implícita nas três ocorrências da palavra “todo”, indicando a completude de toda espécie de trabalho. Em outro exemplo não menos importante, a noção escatológica do shabat no sentido de término, segundo Doukhan (1991, p. 166), pode estar implícita em Êxodo 40:33-38 como uma ocasião de tempo onde experimentamos o “Deus conosco”. A Shekinah, representando a presença de Deus, é introduzida no término da construção do santuário através das mesmas expressões técnicas encontradas no relato da criação: “Moisés acabou a obra” (Êx 40:33). No Novo Testamento, esse sentido parece ainda mais amplo quando Jesus se identifica como o Senhor do sábado (Mt 12:8) e o único capaz de providenciar descanso (Mt 11:28-29). O próprio Cristo seria o “Deus conosco” escatológico. 21   Essa experiência de escatologia foi especialmente verdadeira nos tempos de Jesus, nos tempos de Paulo e nos tempos de João. Os cristãos, nos tempos de Paulo, viviam a expectativa ardente (ver Rm 8:23, 19; Hb 10:12, 13). A igreja apostólica vivia a certeza da Segunda Vinda de Cristo. Nesse sentido, não há uma simples intuição; existe a certeza escatológica. Uma certeza capaz de gerar expectativa, urgência e uma ética de santidade e justiça antes do acontecimento escatológico (Mt 24:23; Lc 12:39; 2Pe 2:15; 1Ts 5:2)

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tipos e símbolos e não apenas de maneira verbal ou escrita. Por meio dessas instituições legais, “Deus ajuda os crentes a conceituar e experimentar a certeza da salvação” (BACCHIOCCHI, 1995, p. 137). A utilização da natureza como fonte de inspiração e exemplo das verdades divinas parece ter sido um costume didático do próprio Cristo ao comunicar conceitos difíceis de serem compreendidos, mas fáceis de serem experimentados (Mt 6:25-34; ver Mt 13:1-23; Lc 15:3-7, 1128). Através das suas prescrições legais, muitos outros exemplos poderiam igualmente convidar os israelitas à experiência da redenção prometida no futuro: Na Bíblia hebraica, o relacionamento de Deus com a natureza, humanidade e principalmente com Israel é apresentado através de metáforas próximas aos fenômenos naturais ou sociais observáveis naturalmente […] A relação entre o redentor e o redimido é igualmente configurado das prescrições sociais e legais (UNTERMAN, 1992, v. 5, p. 650).

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Dessa maneira, o shabat-dia, o shabat-ano e o Jubileu poderiam proporcionar ao praticante uma experiência viva da redenção divina que se concretizará nos últimos dias, se corretamente aplicados. Essa prática, por outro lado, não estaria se referindo meramente à experiência da união entre Deus e o ser humano, mas estaria sinalizando ao que poderá ser experimentado na Nova Terra — onde todas as coisas estarão definitivamente redimidas (Ap 21). Na literatura rabínica, por exemplo, encontramos um paralelo quase natural do shabat como um exemplo da vida plena que está por vir (ver JOHNSTON, 1987, p. 44-46). Segundo o Rabi Chanina Bar Isaac (apud PINKUSS, 1962, p. 45), por exemplo, existem três imagens: “1) a imagem da morte, o sono; 2) a da profecia, o sonho; e a 3), do mundo futuro, o shabat.” Ainda em outra ocasião, conta-se uma parábola a respeito da experiência futura proveniente da guarda do shabat: Quando o Altíssimo deu a Torá a Israel, prometeu-lhe: Se cumprires os mandamentos da Torá, deixar-te-ei participar do mundo futuro. E Israel suplicou: Ó Senhor do Universo, permite que eu veja uma imagem do mundo futuro! Ao que tornou o Altíssimo: Ora, o shabat é tal imagem, Sua paz é a sexagésima parte da bem-aventurança da vida futura (PINKUSS, 1961, p. 45).22 22   Strand (2011, p. 571) nos recorda que “não causaria surpresa se os cristãos do NT tivessem um conceito similar [do shabat como imagem escatológica]”. Essa ideia se demonstraria legí-

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Bacchiocchi (1995, p. 140-145) evidencia de maneira ainda mais prática como o comportamento de “viver o futuro no shabat” parecia comum à época de Cristo. O shabat como sinal da redenção futura era simbolizado através de diversas prescrições que, quando possível, tentavam simular uma espécie de Nova Terra entre os judeus que o observavam. Em cada semana, alguns procuravam viver como se o reino messiânico já estivesse presente entre eles (ver SCHWARZ, 1980; WURZBUGER, 1991). Nessas ocasiões, praticantes mais piedosos procuravam transpirar a paz, harmonia, prosperidade, deleite, descanso e a libertação prometida no escaton judaico.23 Dessa forma, o shabat funcionava como a comemoração de um evento histórico de remissão mundial que estaria apenas no futuro; as festividades ocorriam como simulações desse evento. Abraham J. Heschel (1993, p. 7-8) já alegava acerca da singularidade desta característica nas festividades de Israel: enquanto muitos povos do Antigo Oriente Médio relacionavam cerimônias com as estações do ano a fim de comemorar o que a natureza poderia lhes prover, os israelitas relacionavam suas principais festas aos eventos históricos únicos nos quais Deus intervinha na história para salvar o povo (ver Êx 23:16; 34:22). Isso possibilitava a consciência coletiva de que os próprios eventos eram controlados por Ele.

Shabat como um Jubileu semanal à luz da Missio Dei Os conceitos de “justiça social” e “escatologia” na prática jubilar podem ser compreendidos de forma mais clara pelo que David J. Bosch (2007) tima pelo fato de que “não havia diferenças entre os escritos judaicos e o pensamento judeu cristão” (JOHNSTON, 1987, p. 45). 23   Vale elucidar dois bons exemplos a respeito da comparação entre o shabat e o mundo porvir, bem como a maneira como estes convergiam na prática: no shabat, como um dia de “paz e harmonia entre o ser humano, os animais e a natureza”, assim como exemplificado pelo profeta Isaías (11:6, 9), proibia-se o judeu de matar qualquer espécie de inseto ou verme. A fim de que pudessem experimentar a harmonia vindoura, a escola de Shamai declarava: “insetos não devem ser mortos no shabat”. Como sinal de prosperidade nacional (ver Am 9:13; Is 4:2; 7:22; 30:23-25; Jl 4:19; Jr 30:19; Ez 34:13-14), o shabat também deveria ser observado como se as mazelas da sociedade fossem inexistentes. Essa prática proibia a ajuda humanitária aos mais necessitados, visto que, na era futura, não existiriam mais pobres (BACCHIOCCHI, 1995, p. 141-142).

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escreveu em seu livro Missão Transformadora, que propõe um paradigma de missão embasado através do conceito da Missio Dei. Roberto Ervino Zwetsch (2007, p. 75), em sua tese doutoral, defende que esse é um conceito que remonta a uma longa história, podendo ser visto nas obras de importantes teólogos como Karl Hartenstein e Karl Barth: Estes teólogos tomaram como ponto de partida a crise do cristianismo no século 20, percebendo nela tanto um perigo quanto uma chance de renovação ou redefinição do papel da missão. E afirmaram que a fé cristã e a própria igreja são, por definição, essencialmente missionárias. […] Cada geração de cristãos precisa redefinir o que entende por missão. Pois missão diz respeito às relações entre Deus e o mundo, a partir de sua manifestação na história de Israel e, particularmente, na vida, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré, a “autocomunicação de Deus”.24

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Nesse sentido, devemos distinguir os termos Missão e Missões: 1) Missão é aquilo que Deus faz e o que será por Ele concluído — o que inclui a salvação da humanidade e o findar da história através do início de um novo mundo, como visto em Apocalipse 21 e Isaías 65; e 2) Missões é a ação dos filhos de Deus, os santos justificados pela redenção através de Jesus. Esta última é apenas cooperativa, entre a igreja e Deus, e parece ter pouco poder conclusivo no que tange à finalização do plano divino de redenção. Contudo, se para Bosch (2007) o conceito de Missio Dei é importante para se entender o conceito de missão, ser-nos-ia útil encontrar uma definição que esclareça tal pressuposto. Vicedom (1996, p. 107-108) argumenta que somente após a igreja ter aceitado o conhecimento do sacrifício de Jesus é que ela poderá ser chamada a continuar a proclamar “a vontade salvadora” de Deus, ou seja, sua obra redentora/libertadora (objetivo de tal sacrifício).   Zwetsch (2007, p. 95) alega que a Bíblia não estaria preocupada em ser um manual contendo um conjunto de “leis sobre o que fazer na missão”. Ao contrário, “é antes como um mapa ou bússola de orientação para avaliarmos a ambivalência entre a providência ou ações divinas e a confusão ou limitação propriamente humanas”. Essas limitações não são iguais em todas as épocas ou locais. Pregar na atualidade um Jubileu com a devolução total de terras, por exemplo, seria ir contra a lógica social e mostraria uma falta de entendimento da complexa realidade capitalista presente em todos os segmentos sociais. Nesse caso, para uma aplicação atual do Jubileu, existe a imediata necessidade do estudo de seus princípios para uma aplicação inteligente do mesmo (ver WHITE, 1997, p. 291). 24

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Dessa forma, a ordem missionária viria de Deus para a Igreja, mas a igreja só estaria habilitada a recebê-la porque primeiramente “experimentou compaixão através da ação redentora do Filho de Deus e agora representa a comunidade dos crentes e justificados”. Assim, a missão nunca está desligada da atuação de Deus no mundo, sendo sempre ordenada por Deus; por isso, a igreja não teria nada realmente a incluir na Missão, apenas precisa se “submeter ao agir de Deus”. Tal conceito pode ser comparado ao modo de intervenção redentiva realizada por Deus no ano do Jubileu. Tanto a Missão/Missões como o Jubileu devem ser entendidos como sinônimos de reconstrução social, seguindo, porém, os critérios divinos — tendo o como, quando, onde e o porquê dessas práticas libertadoras decididas por Ele. Em resumo, é urgente a retomada da noção de que somos cooperadores de Deus na sua missio (ver 1Co 3:8-9). A igreja foi chamada para fazer o bem, trazer a justiça e continuar o processo de redenção iniciado por Deus através de Cristo (Missões). Não somos soldados a serviço de um comandante inescrupuloso que declarou guerra aos “infiéis” deste mundo. Na verdade, estamos no mundo para ser luz; não pertencemos ao mundo, mas nos encontramos à espera da conclusão da Missão Divina (Jo 17:11-19). Por isso, é razoável dizer que a igreja-em-missão não pode existir sem olhar para o mundo com os olhos de Deus. Como comunidade enviada ao mundo, ela não consegue deixar de questionar os principais problemas que afligem a humanidade (pobreza, discriminação, fome, violência, guerra, corrupção, desesperança). Em meio a essas realidades, missão é evangelização, anúncio do evangelho de Jesus Cristo, do perdão dos pecados, da conversão para uma nova vida, da formação de comunidades alternativas formadas por membros do corpo de Cristo, nas quais o seu Espírito habita e dá poder. Missão é o “não” e o “sim” de Deus ao mundo. É “não” ao pecado, à injustiça e à violência que desumaniza o ser humano radicalmente. É, em especial, o “sim” de Deus, da graça e do amor que liberta e dignifica, porque em sua ação misericordiosa ele se deu e se dá neste mundo e não em outro. É o que a Bíblia expressa com a encarnação do Filho de Deus que torna presente o reinado de Deus, uma realidade nova de justiça e paz já atuantes no mundo, mas em forma de fermento, realidade que não se con-

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funde com qualquer progresso humano, ainda que dele se possa valer para o bem da humanidade (ZWETSCH, 2007, p. 76).

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A busca pela libertação humana traz consigo uma preocupação importante, que é identificar a forma pela qual, como igreja, devemos ajudar o outro, ou seja, aquele que carece do processo de justiça e da redenção divina. Entretanto, nossa busca em atender ao “grito de libertação” do outro, parte do conceito de que precisamos nos focar em ir para além de ouvir o que este está gritando, pois é preciso primeiramente reconhecer quem está gritando. Somente assim poderemos encontrar uma pessoa, um “outro como sujeito autônomo, livre e distinto (não só igual ou diferente)” (DUSSEL, 2000, p. 374). Esse outro não deve ser uma mera categorização vazia, mas sim alguém com rosto e problemas reais. Poderá ser uma criança faminta, um índio explorado, o proletário oprimido, o homem ou a mulher que ainda não ouviram falar da redenção operada “em” e “por” Cristo. Em resumo, todos aqueles em quem a glória e a imagem de Deus possam estar prejudicadas devido à injustiça trazida pelo pecado, pela falta de redenção. O exemplo de Dussel, ao falar do “outro”, deve ser seguido. Ele não cria categorias, apenas se refere a homens e mulheres que vivem perto de cada um de nós. Dessa forma, ele pode se referir “à mulher camponesa e proletária que suporta o uxoricídio. À juventude do mundo inteiro que se rebela contra o filicídio. Aos anciãos sepultados vivos nos asilos pela sociedade de consumo” ou a qualquer outro ser humano que careça da justiça e/ ou redenção divina (DUSSEL, 1976, p. 5). É nesse sentido que um aspecto particular do shabat pode e deve ser desenvolvido através da junção de dois elementos inerentes “à própria natureza bíblica do shabat”, a saber: o “diálogo” e o “encontro” (ver SIQUEIRA, 2005, p. 443-445). Em outros termos, se no relato da criação o shabat representa o primeiro dia de intensa relação/comunhão do ser humano com Deus (ver Gn 1:1-2:3; Êx 20:9-10; Is 58:1-5), e o primeiro dia completo da existência humana (Gn 2:1-3); o shabat passa, por conseguinte, a representar o relacionamento com o outro/próximo ao inaugurar uma data semanal específica de contato com a família, a natureza e com a humanidade à nossa volta (ver Êx 20:10; Is 58:6-10; DOUKHAN, 1991, p. 149-160), tal qual encontramos na história de Adão e Eva no paraíso. O shabat seria um memorial de tudo o que Deus tem feito por nós, do que ainda faz ao “outro” e também a nós através de Cristo, e do que prometeu realizar ao ser humano na continuidade da história.

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Considerações finais As considerações acima enfatizam a importância do shabat, pois nele temos uma indicação divina constante de que a humanidade necessita da redenção imediata de Deus. Dessa forma, o shabat oferece oportunidade de prática dessa redenção e também um vislumbre da promessa de libertação prometida para o povo de Deus num futuro próximo. É certo que através dele não alcançamos a libertação completa, mas temos um reflexo da libertação final que virá no dia do descanso escatológico. Devido à incapacidade humana de melhorar o mundo, é à luz da interferência divina que precisaremos viver constantemente, nos recordando que por melhores que forem nossos esforços, eles sempre estarão longe de resolver as desgraças humanas. Mesmo em meio a constantes agruras, mudanças de épocas e dificuldades sociais, o shabat, como um jubileu semanal, possibilita uma unificação do propósito divino: a redenção/libertação humana. Somos convocados a refletir no porquê e sobre o que estamos pregando e, principalmente, a tirar um tempo para pensar semanalmente em quem deve ser libertado e, principalmente, quem é o verdadeiro libertador. O sentimento de redenção, experienciado nessas festividades, além de conferir significância teológica à prática humanista, funcionaria como uma simulação daquilo que foi prometido por Deus para o futuro; o evento que, em si, seria uma lembrança de que Ele, uma vez mais, interferirá na história da humanidade a fim de redimi-la; agora, porém, através de uma redenção completa e total. A grande libertação humana, pregada pelo adventismo e pelo cristianismo em geral, necessita ir rumo à direção de uma proposta que coloque a promessa redentiva-escatológica de Deus acima daquilo que outras crenças e filosofias oferecem. Ao carregar o estandarte de nossa esperança, a mensagem de salvação não deve limitar-se a “ouvir” as pessoas; a salvação deve atuar nas diversas urgências por socorro; a salvação precisa alimentar o faminto; ela precisa educar a ignorância destrutiva; adotar a alma órfã; consolar a viúva abandonada por seus filhos; iluminar o mundo e salgar a terra (Mt 5:13). O shabat como um jubileu semanal nos conclama à necessidade de socorrer a humanidade sofredora e, ao mesmo tempo, estender a mão acalmando-a acerca de suas ansiedades, dizendo: “Teme a Deus e guarda os seus mandamentos, porque a nossa redenção está mais próxima de nós do que quando no princípio cremos” (ver Ec 12:13; Ap 14:7; Lc 21:28; Rm 13:11).

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