O SHOW DE TRUMAN E A ESPETACULARIZAÇÃO DO COTIDIANO: CONTROLE E VISIBILIDADE NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

July 25, 2017 | Autor: Rita de Cássia | Categoria: Análise do Discurso
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O SHOW DE TRUMAN E A ESPETACULARIZAÇÃO DO COTIDIANO: CONTROLE E VISIBILIDADE NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA*

Rita de Cássia S. Santos Mestranda em Letras (UFS) Patrícia Almeida Pereira Especialista (UFS)

RESUMO: Pretende-se neste artigo refletir sobre a imperativa necessidade atual por visibilidade e as implicações que isso traz na constituição da subjetividade e de ideais de poder, para tanto, busca-se fundamentação teórica em Foucault (2009) a partir dos conceitos de panoptismo e de sociedade disciplinar e em Deleuze (1992) nas proposições sobre sociedade de controle. Toma-se como objeto de estudo o filme O show de Truman o show da vida (EUA, 1998) a fim de verificar a hipótese de que a espetacularização (Debord, 1997) do cotidiano colabora para a instituição e consequente naturalização de procedimentos de controle e de estruturas de poder. PALAVRAS-CHAVE: Controle. Poder. Visibilidade.

THE TRUMAN SHOW AND THE SPECTACULARIZATION OF EVERYDAY LIFE: CONTROL AND VISIBILITY IN CONTEMPORARY SOCIETY ABSTRACT: the goal of this paper is to observe the imperative nowadays necessity for visibility and the implications that can be brought in self construction and in power ideals. We searched for theoretical basis in Foucault (2009) by the panoptic and disciplinary society concepts and in Deleuze (1992) by the propositions about control society. We analyze the motion film The Truman show (EUA, 1998) to verify if the spectacularization (Debord, 1997) in the everyday life collaborates for the institution and the consequent naturalization of control proceedings and power structures. KEY WORDS: Control. Power. Visibility.

INTRODUÇÃO

Muito se tem discutido acerca das condições contemporâneas para o que está restrito ao privado e o que se insere na esfera do público. Limites tênues separam essas esferas. Ratificam tal asserção programas como Big Brother, Troca de família, A Fazenda, entre outros, em que a intimidade das pessoas é exposta para milhares de espectadores em canais abertos de televisão. Por outro lado, indivíduos anônimos intentam deixar essa condição lançando na internet vídeos no You Tube ou contando pormenores de seu cotidiano em blogs * Anais do III CIELLA http://www.4shared.com/document/xq-hXuN9/Anais_do_III_CIELLA_2011_Volum.html#

ou microblogs como Twitter. O anseio por visibilidade tem crescido a tal ponto que o que outrora estava limitado à intimidade, hoje parece natural partilhar socialmente. As posturas contemporâneas de liberdade de expressão irrestrita - reforçada pela Web - e de politicamente correto (amplamente veiculada pelos meios de comunicação de massa), que sugere aceitação inconteste e acrítica, aparentam corroborar ideais de poder decorrentes do excesso de visibilidade. Aparência e superficialidade parecem ser palavras-chave nos tempos atuais. Mas até que ponto vai a propalada liberdade quando ações como as expostas acima acabam constituindo mecanismos de controle? Informações postadas em mídia virtual podem facilmente ser acessadas independentemente da vontade de quem forneceu as informações; qualquer indivíduo munido de um simples aparelho de telefone celular pode em instantes gravar som e/ou imagem de eventos banais que em pouco tempo e muito facilmente ganham mundo nas páginas da Web sem que necessariamente haja consentimento das partes envolvidas para divulgação. As pretensões neste artigo são colaborar para a desnaturalização desse processo de visibilidade que vela procedimentos de controle e mascara estruturas de poder institucionalizado, bem como observar as implicações que isso traz na constituição da subjetividade e de ideais de poder. Para tanto, toma-se os conceitos foucaultianos de panoptismo (2009) e sociedade disciplinar e as proposições de Deleuze (1992) sobre sociedade de controle para, a partir do filme O show de Truman o show da vida (EUA, 1998), discorrer, retomando uma expressão de (Debord, 1997), sobre a espetacularização da sociedade contemporânea.

1. O PANÓPTICO E A ARMADILHA DA VISIBILIDADE

Conforme Foucault (2009), a sociedade é atravessada por mecanismos disciplinares. Desde o começo do século XIX, o poder disciplinar de instituições como clínicas psiquiátricas, penitenciárias, escolas, hospitais utiliza processos de individualização como marcadores de exclusão. Tais instituições adotam técnicas de poder próprias do “quadriculamento disciplinar” que ao compartimentar espaços, isolam indivíduos e os afastam do convívio social como no caso dos loucos, dos presos, ou criam estratégias de controle, caso das escolas. Destarte, é estabelecida uma divisão social binária que marca e define o aceitável e o não aceitável socialmente: loucos, presidiários, doentes, ou seja, os que consistiam em perigo à ordem social de um lado; de outro, os enquadrados a uma necessária ordenação social que, portanto, se fazem merecedores da marca da normalidade. Mas isolar apenas não basta; é necessário também adotar mecanismos coercitivos de vigilância contínua e individualizada capazes de universalizar dispositivos de controle disciplinar. Contudo, essas táticas disciplinares individualizantes, esses esquemas da disciplina de exceção não se mostram suficientes para comportar “a extensão progressiva dos dispositivos de disciplina ao longo dos séculos XVII e XVIII, sua multiplicação através de todo o corpo social, a formação do que se poderia chamar grosso modo a sociedade disciplinar” (FOUCAULT, 2009, p. 198). Propõe-se, então, uma generalização disciplinar a partir do conceito de panoptismo baseado na descrição do Panóptico de Jeremy Bentham. Trata-se de uma construção em forma anelar com uma torre ao centro, vazada por janelas amplas que dão * Anais do III CIELLA http://www.4shared.com/document/xq-hXuN9/Anais_do_III_CIELLA_2011_Volum.html#

para a face interna do anel; a construção se divide em celas com duas janelas, uma para o interior: as janelas da torre; a outra para o exterior, de forma a permitir a passagem da luz pelo espaço. Colocando-se um vigia na torre central, pode-se observar sem ser observado por quem está trancado nas celas. Foucault (2009) destaca que, ao contrário do proposto por seu idealizador, o panóptico “é na realidade uma figura de tecnologia política que se pode e se deve destacar de qualquer uso específico” (idem, p. 194), aplica-se a qualquer situação em que se pretenda exercer o controle sobre corpos de forma hierarquizada num espaço determinado. Santos (2010) faz analogia da usabilidade panóptica com a utilização da mídia virtual que, a despeito da propalada liberdade de expressão que proporciona, acirra mecanismos de controle na medida em que impele seu uso sob o risco de se estar desatualizado ao abdicar de seus recursos, de não se estar “em consonância com os ditames dos tempos atuais de que a cibercultura é parte integrante; mas também à proporção que comporta cada vez mais mecanismos passíveis de vigilância e controle” (idem, p.1666). No panoptismo tem-se “um dispositivo funcional que deve melhorar o exercício do poder tornando-o mais rápido, mais leve, mais eficaz, um desenho de coerções sutis” (FOUCAULT, 2009, p. 198). O mecanismo permite uma economia do procedimento disciplinar, visto que o indivíduo cativo – louco, presidiário, etc. – por não visualizar seu vigia, internaliza o conceito de um estado constante de vigilância: E essa constância que pressiona que subjuga conduz a um processo de naturalização do mecanismo de controle pelo qual se processa um apagamento das condições de assujeitamento, e o indivíduo não mais se apercebe de que passou ele próprio, voluntariamente, a respeitar limites, a responder positivamente aos dispositivos disciplinares, a ser partícipe nas relações de poder instauradas pelo panoptismo. (SANTOS, 2010, p. 1667)

Essa naturalização estabelecida pela dissociação do par ver-ser-visto acarreta uma desindividualização do poder, posto que o vigiado passa a ser seu próprio algoz. Funcionando junto com outras formas sutis de aprisionamento dos corpos, essas técnicas disciplinares (sobre o espaço, o tempo, a vigilância e o saber) são a garantia para o adestramento, para a subordinação. Primeiro o controle adquire a forma de uma vigilância geral, o Panopticon, exercitada na sociedade moderna, sob uma variedade de formas, que vão desde as câmeras colocadas em cada canto dos prédios até as estatísticas e os sistemas de segurança que são usados para aferir e modelar o cotidiano. Em segundo lugar, esse novo sistema de controle toma forma dos treinamentos disciplinares. Foucault enxerga essa nova disciplina em quase todas as instituições, a partir do século XIX, cujo propósito é produzir “o sujeito individual obediente aos hábitos, regras, ordens; uma autoridade que é exercida continuamente em volta e acima dele e que ele deve internalizar para funcionar automaticamente nele” (FOUCAULT, 1979, p. 227 apud GREGOLIN, 2003, p. 101) Concomitante aos mecanismos disciplinares de poder, encontram-se mecanismos de poder regulamentadores, fomentadores da ordem pública, do controle social. O pensador nos explica: [...] depois de uma primeira tomada de poder sobre o corpo que se fez consoante o modo da individualização, temos uma segunda tomada de poder * Anais do III CIELLA http://www.4shared.com/document/xq-hXuN9/Anais_do_III_CIELLA_2011_Volum.html#

que, por sua vez, não é individualizante mas que é massificante, se vocês quiserem, que se faz em direção não do homem-corpo, mas do homemespécie. Depois da anatomo-política do corpo humano, instaurada no decorrer do século XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo que já não é uma anatomo-política do corpo humano, mas que eu chamaria de uma "biopolítica" da espécie humana. (FOUCAULT, 1999, p.289)

Tem-se assim controle sobre a sociedade como um todo: sobre o indivíduo com seu autocontrole constante e sobre o coletivo a partir de regulamentações que homogeneízam ações. Para isso, faz-se necessário um elemento que funcione como elo entre as duas formas de controle de modo a atingir o um e o todo, de aplicar-se igualmente “ao corpo e à população, [e permitir][...] a um só tempo controlar a ordem disciplinar do corpo e os acontecimentos aleatórios de uma multiplicidade biológica, esse elemento que circula entre um e outro é a ‘norma’ [...].” (FOUCAULT, 1999, p.302, grifo do autor) Cabe ressaltar que Foucault não via esses procedimentos como perenes, mecanismos inflexíveis de automatização do indivíduo, mas como meios para um ajustamento social racional e econômico capaz de exercer controle sobre atividades produtivas, atividades comunicacionais e relações de poder (GREGOLIN, 2006). Para ele, a própria existência de tais mecanismos já denota um movimento de luta e resistência do sujeito. Assim sendo, o poder não é tido como absoluto, e sim como algo circular que se transforma, se ordena e reordena a fim de ajustar-se à ocasião, mas por isso mesmo deixando espaço para a emergência de um contrapoder em que a docilidade dos corpos dá lugar à contínua busca pela libertação. Contudo, a passagem do tempo nos apresenta outras configurações sociais que demandam readaptação de práticas sociais vigentes ou mesmo surgimento de novas práticas que dão margem a novos dispositivos de controle e de domínio sobre o indivíduo e sobre o coletivo. Vejamos na próxima seção um outro regime de dominação, que segundo seu autor, Gilles Deleuze, ocuparia o lugar da sociedade disciplinar. Esse regime foi denominado por ele de sociedade de controle.

2. DA SOCIEDADE DISCIPLINAR PARA A SOCIEDADE DE CONTROLE

Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos XVIII e XIX, sendo que seu auge se deu no início do século XX. Para Deleuze (1992), contudo, o fim da Segunda Guerra Mundial determinou seu declínio e a emergência da sociedade de controle. Se antes interessava o controle pelo confinamento, agora ele instaura-se abertamente. Se a disciplina concentrava-se sobre corpos em ambientes fechados como as fábricas, as prisões, as escolas, a família num quadriculamento que compartimentando facilitava, pela docilidade dos corpos, a ordenação e o controle sociais além de levar à homogeneização de atitudes com o intuito de buscar a massificação do indivíduo para melhor dominá-lo, na sociedade de controle se apregoa a volatilidade de limites espaciais, a continuidade temporal que faz com que nunca se termine nada, uma modulação contínua em que a fábrica dá lugar à empresa, onde interessa não mais a massa, mas a divisão do indivíduo pelo estímulo à competitividade, pela * Anais do III CIELLA http://www.4shared.com/document/xq-hXuN9/Anais_do_III_CIELLA_2011_Volum.html#

modulação salarial. O foco de atenção passa da produção para o produto. Vendas e marketing ditam normas de comportamento, gerenciam procedimentos de controle social. E a empresa, símbolo da sociedade de controle, com novos modos de tratamento do dinheiro e das pessoas, segue dominando outros campos: escolas onde se introduz o conceito de formação continuada – reforçando a proposição de Deleuze de que na contemporaneidade nunca se acaba nada -; hospitais com os Day hospitals e as setorizações, formas de compartimentar; prisões com a instituição de penas alternativas e tornozeleiras eletrônicas, procedimentos que ampliam os espaços de controle. Regimes de dominação típicos desse momento histórico em que estamos. Deleuze (1992) destaca, ainda, o poder da tecnologia, sobretudo da tecnologia de informação e comunicação representada pelos computadores, que pela interferência constituem um perigo passivo e pela pirataria e pela infestação por vírus denotam um perigo ativo. De acordo com o autor, o desenvolvimento tecnológico remete diretamente a uma mudança no capitalismo focado agora na venda de serviços, na compra de ações. Dito de outro modo, trata-se de um capitalismo que passa a centralizar em vez de meios de produção o próprio produto. Dessa forma, dissemina-se uma dispersão que abdica da formação disciplinar em privilégio da tomada de controle. Agora, no entanto, em detrimento da longa duração imposta pela disciplina, irrompe um instrumento de controle social de curto prazo, de alta rotatividade, embora contínuo e ilimitado. É, no dizer de Nogueira (2010, p.7), pela interpenetração espacial que sugere ausência de limites e pela continuidade temporal que os indivíduos se apresentam sob a “condição de prisioneiros em campo aberto”, já que o confinamento, não mais interessante, dá lugar ao controle sobre a mobilidade das pessoas. O filme O show de Truman retrata curiosamente a presença tanto da sociedade disciplinar foucaultiana quanto da sociedade de controle proposta por Deleuze. Pela utilização de metalinguagem, posto tratar-se de um espetáculo (filme) cuja temática é também um espetáculo (programa de televisão), pode-se perceber um desdobramento das duas sociedades em questão. É o que pretendemos mostrar na próxima seção.

3. TRUMAN NA SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

Naturalmente, não havia jeito de determinar se, num dado momento, o cidadão estava sendo vigiado ou não. Impossível saber com que frequência, ou que periodicidade, a Polícia do Pensamento vigiava a casa deste ou daquele indivíduo. Era concebível, mesmo, que observasse todo mundo ao mesmo tempo. A realidade é que podia ligar qualquer linha, no momento que desejasse. Tinha-se que viver - e vivia-se por hábito transformado em instinto na suposição de que cada som era ouvido e cada movimento examinado, salvo quando feito no escuro. (ORWELL, 2003, p.3)

A citação acima é do livro 1984 de George Orwell, nele o autor nos apresenta um mundo onde o monitoramento do indivíduo é completo e consentido, as pessoas se sabem vigiadas e, no entanto, aceitam as regras do partido que tem o controle da situação; a * Anais do III CIELLA http://www.4shared.com/document/xq-hXuN9/Anais_do_III_CIELLA_2011_Volum.html#

fiscalização é tamanha que as crianças são educadas para vigiar inclusive seus pais. Qualquer tentativa de rebeldia é punida com banimento e consequente morte. Trabalho, vestimenta, alimentação, lazer e mesmo natalidade passam pelas mãos do Grande Irmão, o líder do partido que intenta o controle das mentes dos cidadãos e para tanto cria uma nova língua e mantém um ministério para “retificar” acontecimentos passados, alterando registros em jornais e documentos de acordo com suas necessidades. Crítica ferrenha ao consumo desenfreado e à espetacularização da vida humana, o filme norte-americano O show de Truman o show da vida, de 1998, dirigido por Peter Weir e estrelado por Jim Carrey nos remete diretamente ao 1984 de Orwell que também serviu de inspiração para programas como Big Brother em que um grupo de pessoas fica confinado em uma casa por meses, visto diariamente por telespectadores ansiosos por ação como se ali se tratasse apenas de ficção. Como as personagens do romance, Truman Burbank também se encontra em estado contínuo de vigilância, mas, ao contrário daqueles, não tem ciência dos acontecimentos. Adotado em criança por uma emissora de televisão, vive num mundo especialmente criado para ele, uma cidade-cenário adaptada para ser o ambiente de um reality show transmitido 24 horas por dia desde seu nascimento. Pais, amigos, esposa, vizinhos, todos são atores orientados para fazer o show da vida de Truman dar altos índices de audiência e vender uma enormidade de produtos. Christof, mentor, produtor e diretor responsável pelo programa é o detentor do poder de gerência sobre a vida de Truman. É ele quem decide o que Burbank faz ou deixa de fazer e para isso cria seu passado e determina seu futuro como um verdadeiro demiurgo. Assim também fazem o Grande Irmão e seu partido com a população de Oceania, o país do romance de Orwell. Se a situação apresentada no livro estabelece uma analogia com a sociedade disciplinar de Foucault, no filme temos uma relação análoga não só à sociedade panóptica, mas também à sociedade de controle de Deleuze. Em 1984 as personagens vivem rodeadas por dispositivos de controle que as levam a serem seus próprios sentinelas por se saberem vigiadas e consequentemente já haverem internalizado como naturais tais procedimentos. O panóptico é representativo dessa sociedade em que a disciplina e o controle são norteadores das práticas sociais. Com o filme temos uma situação desdobrada. Na cidade criada para ser o habitat de Burbank, temos uma espécie de panóptico às avessas uma vez que todos os olhares se voltam para ele e funcionam como mantenedores da estrutura de poder desenvolvida por Christof; vizinhos, amigos, família são esses os instrumentos que permitem o gerenciamento da engrenagem. Quanto a Truman, preso sem saber nesse ambiente monitorado, tem apenas um vislumbre de certa inadequação em sua vida tão adequadamente conduzida. Sob a ótica dos telespectadores do reality show, no entanto, impera a sociedade de controle. Aprisionados num ambiente aberto, sem consciência de também fazerem parte do jogo de marketing armado para vender não apenas produtos, mas o próprio Truman estão os espectadores tal qual ele também manipulados. Seguem assistindo hipnotizados em seus trabalhos ou em seus lares a um programa infindável que expõe a intimidade de uma pessoa comum alçada à condição de celebridade. Essa exposição da intimidade de Burbank encarada com naturalidade pelas pessoas que acompanham o programa é condizente com o momento contemporâneo em que, no dizer de Sibilia, * Anais do III CIELLA http://www.4shared.com/document/xq-hXuN9/Anais_do_III_CIELLA_2011_Volum.html#

a intimidade tem se convertido numa espécie de cenário no qual devemos montar o espetáculo de nós mesmos: a vitrine da própria personalidade. E esse show do eu tem que ser visível. Porque se esses pequenos espetáculos intimistas se mantivessem dentro dos limites da velha privacidade — aquela que era oculta e secreta por definição — ninguém poderia vê-los e, portanto, correriam o triste risco de não existir. É por isso que hoje se torna tão imperiosa essa necessidade de tornar público algo que supostamente deveria permanecer protegido no silêncio do privado; porque mudaram os modos de construção do eu e os alicerces em cima dos quais se sustenta esse edifício. (SIBILIA, 2008b, p. 2)

Para os que acompanham o show da vida de Truman como para nós na contemporaneidade naturalizou-se a ideia da visibilidade concedida a fatos corriqueiros antes restritos a ambientes privados, de modo que abundam hoje em dia programas de televisão, redes sociais, vídeos lançados na Web, blogs e microblogs onde pessoas comuns ficam famosas e atingem o status de celebridade. Braga (2010) denomina microcelebridades essas pessoas que alcançam visibilidade em âmbito virtual a ponto de fazerem sucesso por algum tempo também nos meios de comunicação de massa. Para Sibilia (2008a, p.18), os processos de globalização dos mercados, aliados ao fascínio pela visibilidade e por ideais de fama característicos de uma sociedade extremamente midiatizada, denotam o deslocamento de subjetividade antes interiorizada em direção a outras formas de elaboração do “eu”. E nesse novo processo de autoconstrução o público e o privado se imiscuem a ponto de uma situação como a vivida por Truman passar a ser recorrente; agora, entretanto, com o consentimento dos envolvidos. Tome-se a título de ilustração o programa Big Brother televisionado pela emissora Globo em que milhares de pessoas se inscrevem na esperança de ganhar fama e dinheiro. Percebe-se aí que a automatização de procedimentos que aproximam público e privado leva a um embotamento do senso crítico e finda por velar estruturas de poder mantidas pelo controle através do marketing - indutor do consumo desenfreado - e através do afã por visibilidade, que faz com que a naturalização da imagem do indivíduo enquanto produto conduza ao desenvolvimento de um marketing pessoal. Dito de outro modo, o controle social dispensa a disciplina da sociedade panóptica e toma como agente o marketing que transforma até o indivíduo em bem de consumo. No filme, a emblemática personagem Hannah Gil, a atriz que faz o papel de Meryl, esposa de Burbank e garota-propaganda de uma série de produtos, para justificar sua atuação num programa que espetaculariza o viver diz em depoimento nas primeiras cenas não perceber diferenças entre vida pública e vida privada, o show é tido como “um estilo de vida”, “uma vida abençoada”. As falas de Gil denotam a mais completa carência de qualquer senso crítico, de qualquer questionamento ante a inusitada situação de manipular uma pessoa e torná-la alvo de um espetáculo diuturno. Porém, a despeito do aparente determinismo retratado nas sociedades disciplinar e de controle e exemplificados em obras como a de Orwell, brechas para a quebra dessas cadeias relacionais sempre há. Se no livro não há saída para as personagens, no filme, Truman atenta para os indícios da manipulação e desvela os procedimentos de controle tomando as rédeas de sua vida. Lembremos com Foucault (1999, p.35) que os indivíduos “não são alvo inerte ou consentidor do poder”, mas seus intermediários à medida que o poder não é fixo, mas circulante, transitório. Para ele * Anais do III CIELLA http://www.4shared.com/document/xq-hXuN9/Anais_do_III_CIELLA_2011_Volum.html#

O termo conduta com o seu equívoco é talvez um dos que podem melhor mostrar o que há de específico nas relações de poder. A conduta é tanto o ato de conduzir os outros (segundo mecanismos de coerção mais ou menos estritos) como a maneira de se comportar num campo mais ou menos aberto de possibilidades. O exercício do poder consiste em 'conduzir as condutas' e em gerir a probabilidade. [...] (FOUCALT, 1995, p. 243-4. Grifo do autor.)

Truman opta pela condução de sua vida ainda que isso represente a quebra da estabilidade proporcionada pelo já conhecido, toma o poder de gerir seus atos e desbanca uma estrutura constituída para manipulação. Em outras palavras, abre as portas da prisão panóptica de sua cidade-cenário e dá as costas à sociedade disciplinar em que involuntariamente se inseria. À sociedade real, fora da ficção cabe atentar para a presença de mecanismos de controle constituintes de estruturas de poder a fim de desnaturalizá-los e assim desconfigurar relações de poder unilateral.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A contemporaneidade nos tem levado a rever nossas concepções sobre tempo e espaço. A agilidade com que se disponibilizam novas tecnologias faz o descartável parecer regra e não exceção, faz parecer que limites antes intransponíveis podem hoje ser galgados sem maiores implicações. O tempo mais do que nunca urge e a pressa antes característica das megalópoles agora está presente até mesmo em pequenas cidades urbanas. Se a tecnologia, sobretudo a do meio digital, colabora para encurtar espaços e economizar tempo, colabora também para que se tratem como naturais procedimentos que num outro momento histórico poderiam ser analisados com o devido distanciamento de forma muito mais célere do que nos permite a proximidade dos tempos atuais. A mídia virtual colabora para um processo de globalização que hegemoniza ações em detrimento de práticas locais caras a manutenção cultural de grupos minoritários ou de menor poderio. As novidades tecnológicas afetam diretamente as práticas sociais e alteram modos de construção da subjetividade. Percebe-se um entrelaçamento entre o privado e o público. Feitos antes restritos ao âmbito privado, à intimidade, ora encontram-se expostos sem o menor constrangimento. Fotos em ambiente familiar que antes só diziam respeito aos envolvidos, corriqueiros fatos ocorridos com pessoas sem qualquer expressão social, vídeos com intimidades até mesmo sexuais hoje ganham visibilidade com auxílio de sites, blogs, redes de relacionamento. Nesse panorama de uma sociedade midiatizada, para se constituir enquanto sujeito o indivíduo não pode prescindir de estar visível. A atitude introspectiva está legada ao banimento. A contemporaneidade [...] pede aos gritos visibilidade, celebridade, habilidades comunicativas e marketing de si mesmo. Por isso, cada um deve aprender a se administrar como uma empresa, posicionando sua marca no mercado das aparências. E essas ferramentas de exposição multimídia e interativas nos ajudam a consegui-lo, além de nos capacitar para termos sucesso nessas arenas. (SIBILIA, 2008b, p. 2) * Anais do III CIELLA http://www.4shared.com/document/xq-hXuN9/Anais_do_III_CIELLA_2011_Volum.html#

A predisposição para a visibilidade finda por instaurar o culto ao espetáculo, “uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens.”(DEBORD, 1997, p.17). O culto à aparência passa a ditar condutas, transforma-se em norma. Vive-se o poderio do imagético. Porque [...]

nesse novo modo de vida que tem se tornado hegemônico neste início do século XXI, só é aquilo que se vê. Portanto, é necessário se construir como uma subjetividade visível para que o olhar alheio possa confirmar que existimos. O importante é que cada indivíduo seja capaz de produzir um personagem visível para se mostrar e se vender, e que os outros se ocupem de confirmá-lo com seu olhar. Por isso, estas novas práticas denotam a configuração de novos tipos de subjetividades, formas eminentemente contemporâneas de se auto-construir, cada vez mais distantes do “homem moderno” que brilhou no século XIX. (SIBILIA, 2008b, p.2)

Nessa nova configuração além da visibilidade importa a superficialidade, mecanismo útil para manter uma estrutura social que prescinde do desenvolvimento de um senso crítico que permitiria o desvelamento de práticas sociais mantenedoras de procedimentos de controle e manipulação. No decorrer de todo o filme perdura a concepção de resignação ante o que é dado. Christof, o mentor do reality show, quando questionado numa entrevista da razão de Truman não perceber a farsa que era sua vida, responde ao apresentador que “aceitamos a realidade do mundo com o qual nos defrontamos”. Num outro trecho, o ator Louis Cotrane, personagem que faz Marlon, melhor amigo do protagonista, afirma em depoimento que nada no “filme é falso; é apenas controlado”. Destacamos aqui o apenas para demonstrar como pequenos gestos, simples palavras podem colaborar para o estabelecimento de dispositivos de controle de forma a fazer com que o indivíduo aceite como norma uma conduta construída para a manipulação e manutenção de estruturas de poder instituído. Exemplos cinematográficos e na literatura para chamar a atenção da sociedade para procedimentos de vigilância e controle não são raros. Também não o são aqueles da vida real que fazem remissão ao lado contrário, aquele que intenta inculcar como naturais tais procedimentos. Cabe a nós enquanto seres sociais refletir sobre essas práticas contemporâneas de anseio por visibilidade para avaliar as implicações trazidas na constituição de nossa autoimagem, da imagem do outro e verificar como podem solidificar estruturas de poder que se organizam e agem a nossa mercê.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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