O SIGNIFICADO DA CRISE DO MERCADO DE TRABALHO

May 28, 2017 | Autor: M. Bernardim | Categoria: Trabalho, Desemprego, Mercado De Trabalho
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Revista Cientefico, ano vii, v. ii, jul/dez 2007 – Fac. Ruy Barbosa, Salvador – artigo p. 24-30.

O SIGNIFICADO DA CRISE DO MERCADO DE TRABALHO Márcio Luiz Bernardim1

Resumo Este estudo aborda a questão do mercado de trabalho e do desemprego, considerando-se a pertinência da discussão do tema em um momento em que se aprofunda a precariedade do trabalho moldado pela sociedade capitalista. Para compreender o sentido do trabalho e o seu condicionamento no modo de produção capitalista, realizou-se uma pesquisa a autores que, em situações específicas ou de forma sistemática, debruçaram-se sobre o tema principal e seus correlatos. Os resultados de uma pesquisa empírica realizada em 2006, com jovens e adultos trabalhadores que voltaram a estudar, foi útil para perceber a opinião que os mesmos têm a respeito do desemprego. Para enriquecer a análise e discussão, também foram pesquisados dados divulgados por instituições como o IPEA, OIT e OCDE, entre outros, selecionando-se informações úteis à compreensão da dinâmica da estrutura de empregos e da evolução histórica do desemprego no Brasil e no mundo. Espera-se que a atualidade, a pertinência e a urgência implicadas no tema dêem ao presente artigo um caráter de utilidade no fomento à discussão de um assunto tão importante como é o trabalho. Palavras-chave: trabalho, desemprego, mercado de trabalho.

Abstract This study deals with the labor market and the unemployment matters, taking into consideration the importance of the discussion around that theme in an specific moment when the less of work grows molded by the capitalist society. In order to understand the sense of work and its condition in the capitalist production, a research around authors in the area was done. These authors deeply studied the principal theme and its correspondents in either specific situations or in a systematic way. The results of an empirical research, done in 2006 among young and adult workers who restarted their studies, were very useful to perceive their opinions about unemployment. To enrich the analysis and the discussion, the author studied data and reports of institutions as IPEA, OIT and OCDE, among others, selecting useful information to help understanding the work structure movement and the unemployment historical evolution in Brazil and in the whole world. It is expected that the update situation, the importance and the urgency implied in the subject bring to the present article a useful characteristic in promoting the discussion of such important matter as the work one. Key-words: labor, unemployment, labor market.

Introdução O conceito de mercado de trabalho é um conceito que só se explica dentro das relações capitalistas de produção, uma vez que pressupõe a existência de uma transação entre compradores e vendedores de uma “mercadoria” chamada trabalho. Seu correspondente “mercado de recursos humanos” representa o conjunto de indivíduos dispostos a vender sua capacidade de trabalho. O trabalhador, que é o proprietário dessa “mercadoria”, representa um recurso dito “humano” para distingui-lo dos demais recursos utilizados pelas empresas, que são suas tradicionais compradoras.

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Se os recursos relacionados com a utilização da força de trabalho são chamados de “humanos”, é porque há outros recursos, obviamente “não-humanos”. Se a característica desse recurso o constituiu como uma nova categoria, é porque ele se assemelha aos demais em importäncia e característica funcional e, ao mesmo tempo, se distingue deles pela sua especificidade. Assim, tais recursos humanos são tão importantes quanto específicos. São necessários em maior ou menor grau e entendidos não como a origem ou a razão de ser de todas as demais atividades, empresariais ou não, mas como um meio para o alcance dos objetivos do empreendimento. É assim que se dão as relações de trabalho no modo de produção capitalista. Como o capitalismo é um sistema econômico fundamentado na propriedade privada dos meios de produção e no lucro, decorre daí que a disponibilidade, distribuição e preço dos bens sejam regulados pela oferta e procura dos mesmos. Dessa forma o trabalho, originalmente um valor-de-uso, perde tal caráter peculiar e se transforma em um valor-de-troca. Ele já não interessa para o seu proprietário a não ser pelo valor que o mercado lhe atribui (MARX, 1985). Ainda que a história da humanidade se confunda com a história do trabalho, foi nos últimos duzentos anos, aproximadamente, que a humanidade foi se organizando em torno do trabalho e da potencialidade do trabalho cooperativo no intuito de desenvolver novas técnicas de utilização e de emprego do trabalho para a acumulação capitalista. Nesse mister foi útil o aprofundamento da divisão do trabalho no interior das unidades produtivas, fazendo-se distinção entre trabalho manual e trabalho intelectual, até se chegar a um cenário previsto de uma hipotética “desnecessidade” de trabalho. Os estudos desenvolvidos no âmbito da produção, principalmente a partir do início do século XX, desencadearam a apropriação da capacidade de trabalho do trabalhador e proporcionaram a sistematização das técnicas produtivas por meio da transformação do conhecimento tácito em explícito. Assim, a chamada administração científica obteve significativos resultados mediante a expropriação do conhecimento tácito, do trabalhador, e sua transformação em conhecimento explícito, agora sob o controle e propriedade das empresas. O conhecimento do trabalhador transformou-se ele também em uma mercadoria valiosa que se incorporou ao know-how produtivo das empresas e, portanto, em propriedade privada, permitindo um avanço sem precedentes nas condições de produção de bens materiais e culturais da sociedade. Todavia, e paradoxalmente, nem sempre os produtores (trabalhadores) têm acesso e esses bens. Além de o acesso ser restrito e de o trabalhador, protagonista dessas melhorias, não ter acesso a esse mundo maravilhoso da produtividade e da tecnologia aplicada, o problema é que o mercado de trabalho chegou a um ponto de saturação tal que desencadeou uma crise inédita na sociedade industrial, por longo período a grande responsável pelo provimento dos empregos e, conseqüentemente, da renda que garantia a sobrevivência e acomodação social dos trabalhadores urbanos. Assim, o cenário atual dá mostras de incapacidade de se gerar trabalho e renda para todos.

Do trabalho ao desemprego Na perspectiva marxista, o trabalho humano é entendido como a atividade de produção e reprodução da vida, fruto da relação entre homem e natureza, e onde o homem se põe como ser objetivo, que age sobre a natureza. O condicionamento que o trabalho foi ganhando no desenvolvimento e organização da sociedade industrial levou a um ponto em que o problema central deixou de ser a precariedade do trabalho ou das condições de sua realização. Não que a exploração dos trabalhadores com jornadas abusivas e os salários aviltantes, para citar apenas dois exemplos, tenha sido eliminada. O fato é que hoje a preocupação principal está voltada à incapacidade própria do sistema gerar trabalho e renda para toda a sociedade, de maneira que uma parcela cada vez maior da população vê-se impedida de ter trabalho e renda dignos.

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Logo, o desemprego surge como um dos grandes desafios da sociedade no século XXI. Além do próprio trabalhador, que é a vítima do sistema, políticos, estudiosos, sindicalistas, educadores e uma gama de outros atores sociais passam a se preocupar com o tema da falta de emprego e com a precariedade de boa parte dos empregos existentes. Mesmo os índices mais favoráveis e os institutos menos independentes, todos apontam para uma situação preocupante, generalizada nos países sub-desenvolvidos, e sintomática nos países ricos. Curiosamente, por algum tempo os formadores de opinião, principalmente os intelectuais dos organismos internacionais sediados nos países ricos, como Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial, tentaram relativizar o problema do desemprego, fazendo um esforço sistemático para amenizar os altos índices de desemprego, de forma que passassem a ser aceitos como normais ou aceitáveis. Nas décadas que se seguiram ao grande crescimento econômico decorrente do esforço de reconstrução, depois da Segunda Guerra Mundial, um índice de desemprego de até 3 por centro era considerado normal e caracterizado como friccional, representando a média de pessoas que estão temporariamente sem emprego, mas que a qualquer momento podem conseguir um. Nesse grupo estão incluídos os jovens que buscam sua primeira oportunidade de trabalho remunerado. Segundo Collery (1975, p. 23), o desemprego friccional é aquele considerado normal dentro da economia, posto que embora sempre exista, sempre será temporário. Enquanto na década de 1960 o objetivo era manter as taxas em 4%, a partir da crise do petróleo, na década de 1970, passou-se a aceitar uma taxa de desemprego de 5% como natural, dadas as condições do mercado. Nas décadas de 1980/1990, essa percepção foi ainda mais dilatada e um desemprego de 6% passou a ser aceito como razoável, dadas as conseqüências que a chamada “década perdida” gerou na economia, com redução de postos de trabalhos nas empresas, privatização e enxugamento dos gastos com pessoal. E assim parece que, na impossibilidade de solucionar o problema, os economistas que defendem os fundamentos do sistema capitalista preferem mudar a sua percepção, avaliando como razoável um cenário que até pouco tempo era considerado preocupante. Esse fenômeno de flagrante aceitação e acomodação das expectativas sociais aos resultados sofríveis das políticas econômicas leva ao desenvolvimento de uma nova forma de encarar a realidade. Assim, no início do Século XXI, além da flexibilização na leitura dos índices de desemprego, outro fator vai aos poucos sendo inserido no inconsciente coletivo da população, chegando a afetar a capacidade crítica dos próprios trabalhadores: a relativização do conceito de desemprego. O discurso dos formadores de opinião empenhados na defesa das políticas públicas reforça a idéia de que, na era da globalização e da produtividade, o importante nem é mais ter um emprego, mas sim uma renda, independente de quão precária ela seja. Estratégias de terceirização de atividades, flexibilização das leis trabalhistas e investimentos em tecnologia acabam por camuflar uma situação de deliberada precarização do trabalho no afã de preservar as taxas de lucratividade. Isso explica porque boa parte dos indicadores relacionados ao emprego e à renda dos trabalhadores inspiram pouca confiança, dada a sua utilização a partir de um conceito que reduz o desemprego e aumenta a renda do trabalhador. O curioso é que os próprios trabalhadores acabam ecoando a visão de senso comum de responsabilidade pessoal pelo desemprego. Em recente pesquisa realizada com jovens e adultos trabalhadores (BERNARDIM, 2006), chamou a atenção a percepção dos mesmos quanto ao desemprego, sendo citada a “baixa qualidade da mão-de-obra” como causa principal. Ainda que se reconheça um descompasso entre o nível de exigência das empresas e da sociedade em relação à qualificação dos trabalhadores e da qualidade dos serviços por eles prestados, deve-se compreender que a escola, depositária da esperança de todos, trabalhadores e seus demandantes, não tem a função e nem o poder de oferecer solução definitiva para todos os problemas da humanidade, quanto mais as necessidades imediatas das empresas.

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Além disso, a associação direta entre baixa qualificação e baixa escolaridade apresenta uma tergiversação das funções da instituição escolar sob o capitalismo, uma vez que ela está condicionada pela sociedade, e não o contrário. Assim, a mesma pesquisa demonstra que os trabalhadores esperam que a escola potencialize suas condições de emprego, melhorando a sua empregabilidade e garantindo melhor padrão de vida e futuro. Desmitificando esse poder que se atribui à escola e ao mérito que se cobra dos trabalhadores, Hirata (1997, p. 33) diz que “o acesso ou não ao emprego aparece como dependendo da estrita vontade individual de formação, quando se sabe que fatores de ordem macro e meso econômicas contribuem decisivamente para essa situação individual”. A incapacidade própria do sistema capitalista de enfrentar suas contradições acaba atribuindo à escola a “culpa” de não suprir suficientemente bem as demandas do capital com mão-de-obra “de qualidade”, deixando assim de assumir sua responsabilidade social. Esse discurso da responsabilidade da educação pelas mazelas sociais e de responsabilidade do indivíduo no cenário de dificuldades estruturais, a partir do mérito pessoal e desempenho individual, está conforme as bases da Teoria do Capital Humano, que ganhou corpo na década de 1960, e que mereceu a seguinte crítica de Frigotto (1989, p. 41): O processo educativo, escolar ou não, é reduzido à função de produzir um conjunto de habilidades intelectuais, desenvolvimento de determinadas atitudes, transmissão de um determinado volume de conhecimentos que funcionam como geradores de capacidade de trabalho e, conseqüentemente, de produção [...] a educação passa, então, a constituir-se num dos fatores fundamentais para explicar economicamente as diferenças de capacidade de trabalho e, conseqüentemente, as diferenças de produtividade e renda (FRIGOTTO, 1989, p. 41).

Além da ilusão das possibilidades de uma saída da crise dos empregos através do esforço individual, a fala dos alunos-trabalhadores abordados na pesquisa já citada (BERNARDIM, 2006) nem sempre deixa transparecer a suposta importância da educação para a realização do seu trabalho. Em outras palavras, não há uma relação estreita entre a educação e o trabalho a ser realizado, até mesmo porque isso implicaria na organização e execução do processo educacional em função das particularidades das pessoas, ou de uma educação condicionada aos interesses específicos de cada empresa ou de cada localidade. Independentemente das relações entre a educação e o trabalho, é fato que os empregos não vêm crescendo na mesma proporção da demanda, gerando um descompasso que causa preocupação aos trabalhadores, mas não só a eles. Até mesmo Peter Drucker (1993), tido como o pai da administração contemporânea e cuja produção bibliográfica serviu para reforçar os interesses do sistema hegemônico de produção capitalista, prognosticou que logo nos primeiros anos do terceiro milênio, os níveis de emprego industrial continuariam se reduzindo até menos de 12% da massa de trabalhadores dos Estados Unidos e, ainda, que o desaparecimento do trabalho como fator chave da produção se transformaria no processo inacabado da sociedade capitalista. Se a redução significativa dos empregos é uma realidade, se a sociedade constituiu-se assentada sobre o emprego como forma principal de renda e se o sistema não é mais capaz de garantir essa renda, pelo menos qualitativa e sistematicamente a todas as pessoas, é sinal de que as críticas lançadas ao sistema nos últimos cento e sessenta anos, desde o Manifesto Comunista (1848) são pertinentes, senão no todo, pelo menos na essência, em especial quanto ao fato de o capitalismo, alicerçado na propriedade privada, na divisão de classes e no lucro, não garantir padrão de consumo razoável à parcela significativa da população mundial. O estudo da distribuição da mão-de-obra nos segmentos produtivos da história recente ajuda a entender esse fenômeno. Os dados demonstram uma significativa e persistente redução de ocupação da mão-de-obra no setor primário, com conseqüente aumento nos setores secundário e terciário. A área de comércio e serviços recebeu um impulso significativo nos últimos quarenta anos. Contudo, ao contrário do que previa Drucker, mesmo nos países desenvolvidos ainda não é uma realidade a ocupação de apenas 12% de mão-de-obra relacionada ao setor secundário, conforme demonstra o quadro a seguir, que embora com alguma defasagem, reúne os dados

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disponíveis para alguns países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico - OCDE: Estrutura ocupacional em países e anos selecionados (em %) PAÍS ALEMANHA EUA FRANÇA INGLATERRA JAPÃO SETOR/ANO AGRICULTURA 1870 49,5 50,0 49,2 22,7 72,6 1920 33,5 28,9 43,6 14,2 56,4 1960 13,8 8,0 21,4 4,1 30,2 1993 3,0 2,7 5,1 2,2 5,9 INDÚSTRIA 1870 28,7 24,4 27,8 42,3 ND 1920 38,9 32,9 29,7 42,2 19,6 1960 48,2 32,3 36,2 47,8 28,5 1993 37,0 24,1 27,7 26,2 34,3 SERVIÇOS 1870 21,8 25,6 23,0 35,0 ND 1920 27,6 38,2 26,7 43,6 24,0 1960 38,0 59,7 42,4 48,1 41,3 1993 60,0 73,2 67,2 71,6 59,8 Fonte: OCDE, Quartely Labour Force Statistics (apud MATTOSO e POCHMAN, 1995, p. 7).

Conforme se vê, foram necessárias apenas duas gerações para que a sociedade ganhasse uma nova configuração espacial. A vida em sociedade, antes calcada na atividade primária e assentada sobre valores rurais, passou a ser hegemonicamente urbana, com estilo de vida centrado no consumo de bens e mercadorias industrializadas e na dependência monetária para a satisfação das necessidades mais elementares. Os benefícios dos avanços proporcionados pela sociedade industrial são inúmeros e garantiram melhores indicadores na área da saúde, educação, transportes etc. Todavia, as grandes concentrações urbanas potencializaram uma série de problemas ligados à habitação, saneamento e criminalidade, entre outros. O fator que mais se relaciona com esses problemas, potencializando-os ou amenizando-os, é o trabalho e a renda dele decorrente. Nesse estágio de urbanização da sociedade e de aprofundamento dos mecanismos do livre mercado, o não atendimento das demandas por emprego e renda acabou se transformando na principal causa de desajustes socioeconômicos que dependem de políticas públicas. Assim, procurase desenvolver mecanismos de convivência com o desemprego estrutural que, segundo Collery (1975, p. 23), é involuntário e ocorre quando existe menos trabalho do que pessoas dispostas a trabalhar. Para alguns, como Franco (1997, p. 18), isso equivale a aceitar como inevitável um certo nível de desemprego. Para outros, como Bridges (1991, p. 68), não se trata tanto da ocorrência em si, mas sim de uma análise mais ampla, pois uma coisa é perder o emprego e outra é perceber que os empregos estão desaparecendo. Por outro lado, pensar em falta de trabalho em um país como o Brasil, onde parte da população não consome ou consome muito pouco, é fantasioso. A fome e a miséria requerem produção, e a produção cria empregos. Logo, de acordo com Davis (1997), a previsão do fim dos empregos não pode se justificar quando parte considerável da população não satisfaz sequer suas necessidades básicas. Apesar dessa realidade de desatendimento das necessidades básicas da população, o Relatório Sobre Tendências Mundiais do Emprego, da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2005 e 2007), mostra que o número de desempregados no mundo vem aumentando a cada ano: de um total de 160 milhões em 1996 e 182 milhões em 2001, chegou-se a 190 milhões de pessoas em 2007. Além disso, das 3 bilhões de pessoas empregadas no mundo, a metade tem renda de até dois dólares por dia, ou seja, perto de cem reais por mês. Outro dado assustador é que algo em torno de 500 milhões de pessoas vivem em situação de pobreza extrema, com renda inferior a cinqüenta reais por mês. Embora os jovens de 15 a 24 anos ocupem 25% da força de trabalho no

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mundo, representam a metade dos desempregados, sendo flagrantemente os mais atingidos pelo desemprego estrutural. No caso brasileiro, embora o relatório intitulado Crescimento da ocupação reduz desemprego pelo sétimo mês consecutivo, publicado pelo Sistema Pesquisa de Emprego e Desemprego (SEADE/DIEESE, 2007) procure ser otimista quanto às possibilidades de crescimento dos empregos no Brasil, apresentando uma taxa de desemprego total de 14,6% com tendência de queda, é preciso considerar que tal pesquisa é realizada apenas nas seis regiões metropolitanas das capitais de cinco estados e do distrito federal, não representando o conjunto das nuances locais e regionais. Já o estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2007), que considera os dados disponíveis, e não-amostrais, de todo o país, a partir dos dados oficiais do IBGE e do CAGED/RAIS, demonstra que, apesar do aumento significativo de vagas no ano de 2007, elas não foram suficientes para reduzir o desemprego formal. Embora houvesse a estimativa de criação de 1,592 milhão de vagas formais, eram 1,676 milhão os trabalhadores em condições de suprir tais vagas, chegando-se a uma defasagem de 84 mil postos de trabalho formal. As maiores defasagens indicando sobra de trabalhadores qualificados para ocupar as vagas, encontram-se nos setores da Construção Civil, Agropecuária e Serviços. O exemplo dos estudos citados serve para demonstrar que o desemprego pode ser percebido de formas distintas, dependendo do universo e da metodologia de pesquisa e apuração. Embora possa não haver interesse deliberado de falsear a realidade, o fato é que a dinâmica do mercado de trabalho é percebida de forma diferente, dependendo da “lente” que se utilize para enxergá-la. Assim, pode-se concluir que até um mesmo indicador pode ser utilizado por alguns como favorável, e por outros, como desfavorável.

Do desemprego à precarização Além do cenário de desemprego estrutural, que tende a se agravar, os organismos internacionais e institutos de pesquisa nacionais têm apresentado, de forma contundente, indicadores de uma irreversível precarização do trabalho, de forma mais acentuada a partir da segunda metade dos anos 1980, como reflexo dos ajustes econômicos para enfrentar a chamada “década perdida”, marcada pela recessão econômica e endividamento público. Os dados disponíveis permitem verificar a ocorrência de uma mudança significativa no perfil dos empregos no Brasil. Enquanto no início dos anos 1980 cada redução no mercado formal representava um aumento no desemprego, nos anos 1990, ao contrário, uma redução no mercado formal representou uma ampliação do mercado informal. Isso é indicativo da flexibilidade do mercado de trabalho brasileiro, pois o trabalho informal atua como uma alternativa de emprego para os trabalhadores deslocados do setor formal, minimizando, assim, o impacto sobre os índices de desemprego aberto. Apesar de ainda não haver consenso na definição do trabalho informal, dois conceitos acabam ganhando a adesão de boa parte dos estudiosos da área. Um está relacionado à precariedade do vínculo de trabalho, englobando as atividades realizadas à margem da legislação trabalhista e previdenciária. Outro está relacionado a atividades vinculadas a empreendimentos com baixa dinamicidade econômica e pouca diferenciação entre capital e trabalho, envolvendo trabalhadores por conta própria e proprietários ou empregados de empresas com baixos níveis de produtividade (CUT, 1992). Variantes mais genéricas utilizadas pelos estudiosos do tema consideram trabalho informal o conjunto de trabalhadores sem carteira de trabalho ou que, exercendo atividades como não-empregados, também não contribuem para a previdência social, o que englobaria inclusive pequenos empresários ou trabalhadores por conta própria não legalizados.

Revista Cientefico, ano vii, v. ii, jul/dez 2007 – Fac. Ruy Barbosa, Salvador – artigo p. 24-30. En 2007, cinco de cada diez personas con empleo eran trabajadores familiares no remunerados o trabajadores por cuenta propia. Una proporción de esa magnitud de personas con „empleo vulnerable‟ es sólo ligeramente inferior a la proporción observada diez años atrás. Ni siquiera la mitad de estos trabajadores goza de la seguridad que brinda la percepción de un sueldo o un salario. Si se tiene en cuenta que en las regiones pobres un trabajo remunerado por el que se percibe un sueldo o un salario no se acompaña de las otras características que conforman el trabajo decente, se comprende que sólo una minoría de trabajadores pobres tiene un trabajo bien remunerado, en el que se respetan sus derechos laborales fundamentales, pueden hacer oír su voz y gozan de alguna seguridad en caso de desempleo (OIT, 2007, p. 12-13).

Ainda segundo dados da OIT (2007, p. 23), a América Latina apresenta a maior ocupação proporcional de trabalhadores no setor de serviços, perto de 60% do total de trabalhadores ocupados. Como esse setor oferece tradicionalmente salários mais baixos e apresenta menos garantias trabalhistas e previdenciárias, explica-se porque o ingresso atrai em maior volume o trabalho feminino. Outro dado que preocupa é que vem aumentando o trabalho vulnerável, de 31,4%, em 1997, para 33,2% em 2007. Um interessante estudo realizado por Camargo (2006), demonstra que no período de 1992 a 2001, o mercado de trabalho brasileiro abriu perto de 5 milhões de oportunidades de trabalho (3 milhões no mercado formal e 2 milhões no informal), com destaque para os Setores de Comércio, Serviços e Administração Pública. Os setores que mais reduziram capacidade de gerar empregos foram a Agropecuária, a Indústria Têxtil e o Financeiro. Embora a Agropecuária seja o setor que apresenta maior participação nos empregos totais, também é o setor que mais deixou de empregar no período considerado (em parte devido à implementação tecnológica e ao avanço do agronegócio baseado na monocultura e na concentração de terra) e que conta com a maior participação de trabalhadores informais (90% do total), seguido das atividades privadas não mercantis, como os trabalhos domésticos (69% do total). A Construção Civil, mesmo sendo uma atividade que tem ampliado o número de oportunidades de trabalho, foi o setor que mais dispensou mão-de-obra do setor formal. Tal situação tem relação direta com o perfil de baixa escolaridade e baixos salários dos trabalhadores do setor. Ainda de acordo com o estudo de Camargo (2006), a pequena recuperação da capacidade do setor formal de gerar novos postos de trabalho pode estar associada à maior fiscalização dos órgãos públicos no cumprimento da legislação trabalhista e previdenciária e às novas formas de contratação (terceirização, contrato temporário, incentivos fiscais etc.) criadas pelas esferas de governo para conter o desemprego. Apesar disso, essas novas vagas são insuficientes para atender às demandas da população, aí incluídos os jovens que buscam uma primeira oportunidade de trabalho e aqueles que foram expulsos do mercado e buscam uma recolocação. A estratégia de flexibilização do trabalho como forma de melhorar os indicadores de ocupação da mão-de-obra, contudo, tem pouco efeito sobre o problema do desemprego. Quanto a isso foram esclarecedoras, já na primeira metade dos anos 1990, as palavras do Diretor Geral da OIT, durante a Conferência sobre o Emprego do G-7 (em Lille – na França), ao afirmar que “políticas estruturais para promover maior eficiência e flexibilidade podem ter contribuído para uma alocação de recursos mais eficientes, mas tiveram pouco efeito sobre o nível global de emprego” (apud MATTOSO e BALTAR, 1996, p. 4). Embora no Brasil a flexibilização pela via oficial tenha sido pouco aprofundada, o movimento de incorporação de práticas privatistas e utilização de modelos de administração de recursos humanos (terceirização, sub-contratação, empoderamento de funções com liberação do controle de horas trabalhadas etc.) incompatíveis com o perfil da mão-de-obra e com o estágio de desenvolvimento econômico, têm apresentado como conseqüência uma precarização na ocupação da mão-de-obra urbana. Para explicar esse fenômeno, Antunes (1995, p. 41) cunhou dois novos termos: desproletarização e subproletarização. A desproletarização decorre da redução da mão de obra industrial tradicional, expansão do trabalho assalariado no setor de serviços e heterogeneização do trabalho com a incorporação da mão-de-obra feminina, enquanto a subproletarização decorre da expansão do trabalho parcial (temporário, subcontratado e terceirizado). Assim, a resposta à crise

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estrutural de empregos tem sido precária e dual: desproletarização e subproletarização, com heterogeneização e fragmentação da classe trabalhadora. Tratando da questão da distribuição de renda no Brasil, já em 2000 Werneck alertava que, mesmo com a retomada do crescimento econômico, o fosso entre pobres e ricos tenderia a se ampliar: Com a recuperação do crescimento econômico, a demanda de trabalho está voltando a se aquecer. Mas, tudo indica que, mais uma vez, é a demanda por trabalhadores mais qualificados que vai se mostrar mais dinâmica. E, dada a heterogeneidade da força de trabalho, é pouco provável que se possa contar muito com a ação de mecanismos de redistribuição baseados na solidariedade. O que significa que, do lado do mercado de trabalho, podem estar sendo desencadeadas forças no sentido de aumento da concentração da distribuição de renda (WERNECK, 2000).

Dessa forma, surgem duas novas categorias de trabalhadores: os marginalizados do sistema formal que tentam, sem sucesso, se inserir, e os precarizados, que desalentados com o mercado formal de empregos, procuram outras fontes marginais de renda, incorporando-se à massa de trabalhadores informais vulneráveis, social e economicamente.

Considerações finais O trabalho representa a única riqueza de propriedade genuína do trabalhador. Quando vai ao mercado oferecer sua capacidade de trabalho, o trabalhador espera com ela conseguir em troca o suficiente para reproduzir-se como ser humano: alimentar-se, vestir-se, ter acesso aos bens culturais e, enfim, recuperar sua capacidade de trabalho para voltar a oferecê-la no futuro. Na sociedade contemporânea, em que os bens e o trabalho são mercadorias, o trabalhador precisa contar com uma situação ideal, que foge ao seu controle: que haja compradores interessados na sua capacidade de trabalho. Mais do que isso, que os haja em abundância, para que o seu trabalho seja suficientemente valorizado. Se assim não for, o trabalhador estará impossibilitado de transformar sua capacidade de trabalho em renda e com ela obter as mercadorias de que necessita para viver. Ou ainda, poderá até encontrar quem queira comprar o seu trabalho, mas que não esteja disposto a pagar o necessário para proporcionar a reposição da sua capacidade. As duas situações são desvantajosas ao trabalhador, posto que em uma delas estará sem oportunidade de trabalhar e, portanto, sem renda; na outra terá uma oportunidade de trabalho, mas com renda insuficiente para reconstituir sua força de trabalho original. A primeira situação representa o desemprego estrutural, a segunda o desemprego que se camufla nas condições precárias do emprego informal. A situação relatada é desvantajosa ao trabalhador, em especial se se tratar de trabalhador de um país subdesenvolvido, de uma região historicamente desatendida pelo governo, de uma cidade ou de um bairro pobres. Ao contrário de um empresário ou de um investidor, em tese o trabalhador não tem o objetivo de especular com a capacidade de trabalho que tem, mas tão simplesmente viver dela, garantindo o seu sustento e de sua família. Se o mercado de trabalho se expande, aumentam-se as chances de se conseguir renda com o trabalho. Se o mercado se retrai ou simplesmente esgota-se, aniquilam-se as chances de parte ou da totalidade dos trabalhadores daquele mercado de conseguirem sobreviver autonomamente, passando a depender do amparo da classe a que pertencem, do estado ou da sociedade civil. Feita essa retrospectiva, deve-se ressaltar que este artigo pretendeu apresentar uma discussão sobre o mercado de trabalho e o desemprego a partir do condicionamento histórico que tais categorias passam a exercer sobre a vida das pessoas, representando hoje a única possibilidade digna que os trabalhadores têm de garantir a sua sobrevivência. Se o mercado de trabalho, que é regido pelo sistema hegemônico de produção, não absorve a todos igualmente, é preciso considerar os reflexos desse problema sobre a sociedade em geral. Se a população cresce e não são abertas novas possibilidades de trabalho, ou, ao contrário, o mercado de trabalho mantêm-se estático ou se

Revista Cientefico, ano vii, v. ii, jul/dez 2007 – Fac. Ruy Barbosa, Salvador – artigo p. 24-30.

retrai, é sinal de que o esgotamento do modelo urge por uma nova consciência, onde o trabalho seja tomado como atividade vital, como mantenedor e reprodutor da vida a partir de uma sociedade livre de classes exploradoras e exploradas. No momento histórico em que a sociedade não consegue solucionar esse problema fundamental para a garantia de vida digna para parte considerável da população mundial, reforça-se a necessidade do aprofundamento de uma discussão práxica que proporcione novos e melhores horizontes para a classe trabalhadora.

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Márcio Luiz Bernardim é professor do Departamento de Administração da Universidade Estadual do CentroOeste – Unicentro, Pr., residente e domiciliado na Rua Generoso de Paula Bastos, 2340, Santa Cruz, Guarapuava, Paraná, CEP 85015-030, e_mail [email protected].

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