O silêncio da criminologia frente às violências contra pessoas trans

June 4, 2017 | Autor: Érika Pretes | Categoria: Criminology, Criminología Crítica, Queer Criminology, Criminologia Queer, Pessoas Trans
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    Universidade  Federal  da  Bahia,  4  a  7  de  setembro  de  2015    

SISTEMA PENAL, SEGURANÇA PÚBLICA E CRIMINOLOGIA QUEER: O SILÊNCIO DA CRIMINOLOGIA FRENTE ÀS VIOLÊNCIAS CONTRA PESSOAS TRANS Érika Aparecida Pretes1 Elisa Maria Campos Cordeiro2 Palavras-chave: Criminologia, Teoria Queer, Pessoas Trans. Os estudos sobre as pessoas em situação de violência, também denominadas vítimas (nomenclatura preferida pelas mais tradicionais teorias das ciências penais), ganham crescente relevância na contemporaneidade, apesar de este não ser um problema tão recente nos estudos de criminologia, ora que se pode encontrar pesquisas sobre as vítimas desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Ao longo das últimas décadas, os debates emergentes realizados pelos movimentos sociais a respeito das violações de direitos humanos em razão da raça, do sexo e da classe contribuíram para a modificação da percepção das vítimas de crimes nos Sistemas Penais. Estes movimentos evidenciaram como certas relações de poder eram fundamentais para determinar a vulnerabilidade das mulheres, dos negros e dos pobres à vitimização. Contudo, percebe-se que as ciências penais, em especial a criminologia, embora aberta aos debates de determinados setores sociais, ainda se mantêm distante das discussões realizadas pelos teóricos que lidam com as questões sexuais e de gênero. Nesse sentido, a criminologia ignora as discussões mais aprofundadas sobre como a sexualidade e a identidade de gênero são fatores que podem influenciar no grau de vulnerabilidade de algumas pessoas a se tornarem vítimas de crimes específicos.                                                                                                                         1

Doutoranda pela Faculdade de [email protected] 2 Mestranda pela Faculdade de [email protected]

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Este trabalho tem como escopo essa fratura latente entre as realidades de violências sofridas pelas pessoas trans e as teorias produzidas pela criminologia e pela vitimologia à respeito das pessoas em situação de violência, as vítimas, teorias estas que aparentemente ignoram a existência dessas situações de estigmatização e violações. Para tanto, temos como marco teórico a obra de Michel Foucault, em especial os trabalhos em que o filósofo se dedicou a questionar a naturalidade do sexo. A escolha deste autor leva em consideração a centralidade de sua obra para as recentes discussões sobre corpo, gênero e sexualidade, em diversos ramos do saber. Michel Foucault, ao rejeitar a hipótese de que o sexo é algo sobre o qual imperam as maiores restrições, buscava evidenciar aquilo que parecia ser ignorado por muitos: o fato de que nas sociedades modernas o sexo é antes de mais nada um instrumento político de controle e regulação dos corpos. A sexualidade é, então, vista sob a ótica foucaultiana como um dispositivo histórico. Além das análises foucaultianas sobre a sexualidade, faremos uso das pesquisas empreendidas por Judith Butler a respeito do gênero como um dispositivo de poder. A filósofa norte-americana alarga as discussões inicialmente feitas por Michel Foucault e se afasta da suposição comum de que existe uma equivalência necessária entre o sexo biológico, o gênero e a sexualidade. Para ambos os filósofos o que se percebe é que somos disciplinados por muitos processos pedagógicos (escolares, familiares ou estatais) a acreditar que a única configuração possível é aquela dada com o nascimento. Ou seja, espera-se, por exemplo, que aquele sujeito que é biologicamente macho, comporte-se como um “verdadeiro homem” e tenha atração sexual por mulheres. Em sociedades como as nossas, em que a sexualidade e também o gênero atuam como dispositivos de poder, todas as configurações que não alinhem sexo-gênerosexualidade são vistas como anormais ou abjetas. Destarte, esta pesquisa busca evidenciar o gênero, nos estudos de criminologia, como um dispositivo de poder de uma ordem normativa que impõe uma série de proibições, desqualificações, hierarquizações e violências em desfavor das identidades de gênero consideradas desviantes e que as tornam ininteligíveis e inabitáveis (BUTLER, 2006). Percebe-se que além da exclusão social que vivenciam todos aqueles que não se enquadram nas normas de gênero, o sistema de opressão ao qual estão sujeitos funciona, ainda, com a conivência e legitimação do próprio Estado brasileiro. Ao procurar o sistema de justiça criminal para denunciar as violências inicialmente sofridas, estas  

 

pessoas muitas vezes têm suas demandas prontamente desqualificadas e banalizadas, sendo até mesmo consideradas como criminosas em potencial pelos agentes do Estado. As pessoas trans tornam-se novamente alvo de violações, dessa vez da violência institucional, sendo constrangidas e culpabilizadas pelos crimes perpetrados contra elas. Vendo seu acesso negado, estas pessoas deixam de perceber o Estado como garantidor de direitos, vendo-o apenas como mais um violador de seus direitos. No Brasil, grosso modo, pode-se dizer que os movimentos anti-racistas e feministas revelaram a existência não apenas de um sistema de seletividade penal que torna determinadas pessoas vulneráveis aos processos de criminalização, mas também a existência de um sistema social que torna uma parcela específica da população vulnerável aos processos de vitimização em função da raça e do sexo, para além da questão econômica tão cara à criminologia crítica. Neste contexto, levando em consideração que as violações e violências cometidas contra pessoas trans, apesar de cotidianas, parecem ser simplesmente ignoradas no âmbito das ciências penais, este estudo busca analisar criticamente a patente ausência de pesquisas sobre a contingência e historicidade das normas de gênero e do controle dos corpos na análise dos crimes violentos cometidos contra as pessoas trans. O Grupo Gay da Bahia (GGB), documentou tais padrões de violência, em 2013, revelando que naquele ano houveram 336 pessoas LGBT vítimas de homicídio, no Brasil. Desses, 128 foram cometidos contra pessoas trans, número esse que pode ser ainda maior em razão das subnotificações a respeito da identidade de gênero das vítimas. O modus operandi de tais crimes evidencia alto nível de crueldade para com o corpo da vítima, antes e depois da morte, por meio de inúmeros disparos de armas de fogo ou cortes e perfurações e, ainda, mutilações, esquartejamentos e empalamentos. Inevitavelmente, seja nos noticiários, nos inquéritos ou nos processos sobre os homicídios cometidos contra pessoas trans, percebe-se a culpabilização das vítimas, que são apontadas como pessoas envolvidas com tráfico de drogas ou prostituição. Suas mortes, tidas como acerto de contas, raras vezes são investigadas e as execuções destes corpos, que aparentemente não tem valor algum para parcela da sociedade, são banalizadas pelo poder público. Nesse contexto, podemos notar duas constantes quando se trata de crimes cometidos contra essa parcela da população; primeiro os modos de vida destas pessoas são apontados como causas de sua vulnerabilidade à vitimização e, em segundo lugar,  

 

essa ligação à condutas vistas como marginais leva a culpabilização destas vítimas, tidas sempre como potenciais criminosos. Entretanto, a argumentação a respeito da vulnerabilidade em razão de práticas de condutas marginalizadas nos parece mais do que frágil, risível. Seja contra as pessoas consideradas prostitutas ou traficantes, seja contra aquelas que ocupam posições sociais tidas como privilegiadas, os crimes contra pessoas trans são sempre extremamente marcados pelo ódio. Acreditamos que essa argumentação é artifício que endossa a inscrição da não-humanidade nos corpos trans e que busca justificar a vulnerabilidade e a mortalidade dos corpos que não se adequam as normas de gênero. Para Raul Eugenio Zaffaroni, o feminismo acabou por impor correções à Criminologia Crítica ao destacar que se a mulher tinha menos vulnerabilidade à seletividade dos processos de criminalização, o mesmo não acontecia com a vitimização. O penalista argentino destaca que o feminismo trouxe dois conceitos – patriarcado e gênero – que hoje já se tornaram de uso corrente e não fosse o feminismo seria impossível analisar as vitimizações que acometem especificamente as mulheres. Mesmo que os estudos do britânico Gordon Taylor tenham destacado que em toda sociedade ocorra uma relação inversa entre o patriarcalismo e o respeito à homossexualidade, como bem lembra Eugênio Raul Zaffaroni, não houve ainda uma crítica criminológica LGBT tão desenvolvida quanto a criminologia feminista. O penalista brasileiro Salo de Carvalho aponta a emergência de uma nova vertente que talvez dê conta dessa ausência apontada por Eugenio Raul Zafforoni, a criminologia queer. De acordo com Salo de Carvalho, compreender os processos de construção de hegemonia das masculinidades e suas formas de produção de violência, seja simbólica, institucional ou interpessoal, se apresenta como um desafio urgente a ser enfrentado pelas ciências penais contemporâneas. Para Antu Sorein, os crimes cometidos contra LGBT têm sido analisados tendo como foco muito mais o autor do fato e ignorando todo o debate sobre a heteronormativadade e as normas sexuais e de gênero. Ignora-se o fato de que códigos morais, crimes e vítimas são sempre conceitos contingentes, construídos históricamente, em determinados contextos históricos e sociais. Convêm notar que mesmo na exposição de Antu Sorein a questão das especificidades das pessoas trans acaba sendo subsumida na da homossexualidade,

 

 

consubstanciando a tese equivocada de que a identidade homossexual engloba toda as identidades não-hegemônicas. Nesse sentido, acreditamos ser necessário e imperioso uma criminologia queer que seja capaz de quebrar o silêncio da Criminologia Crítica frente às violências contra as pessoas trans. Uma criminologia que consiga reconhecer como certas normas de gênero implicam vulnerabilidade e mortalidade específica aos corpos trans e que possibilite, assim, impor às ciências penais problematizações quanto ao enfrentamento de tais violências. BIBLIOGRAFIA BÁSICA CARVALHO, Salo. Três hipóteses e uma provocação sobre homofobia e ciências criminais: quer(ing) criminology. Boletim do IBCCRIM, São Paulo, n. 238 p. 2-3, Set. 2012. BENTO, Berenice. A Reinvenção do Corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. BUTLER, Judith. Deshacer el Género. Barcelona: Paidós, 2006. BUTLER, Judith. Undoing gender. New York: Routledge, 2004.

CARVALHO, Salo. Três hipóteses e uma provocação sobre homofobia e ciências criminais: Criminology queer. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: Volume I: A vontade de saber. 17ª ed Rio de Janeiro: Graal, 2007a. 176p.

FOUCAULT, Michel. apud LOURO, Guacira. O corpo educado. SALIN, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Belo Horizonte. Autentica Editora, 2013. SORAINEN, Antu. Queering Criminology. Annual Conference of the European Society of Criminology. USA: University of Helsink, 2003. ZAFFARONI, Raul Eugenio; BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro – I. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. ZAFFARONI, Raul Eugenio. A questão criminal. Rio de Janeiro: Editora Revan. 2013.

 

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