O Silêncio do Buda - A fundação do Madhyamika

June 15, 2017 | Autor: Sérgio Gorjão | Categoria: Buddhism, Philosophy, Filosofía, Nāgārjuna, Budismo, Mūlamadhyamakakārikās
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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS / DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA Curso de Especialização em Filosofia e Estudos Orientais

O Silêncio do Buda A fundação do Madhyamika

Sérgio Paulo Martins Gorjão Trabalho realizado para a avaliação do curso de especialização (docentes Prof. Doutor Carlos João Correia e Prof. Doutor Paulo Borges)

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Nagarjuna (c.150-250 d.C.)

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Introdução O presente trabalho versa sobre o silêncio do Buda e as origens do sistema Madhyamika, constituindo uma introdução ao pensamento de Nagarjuna e em particular à obra Mulamadhiamaka-karikas (Estâncias Raiz do Caminho do Meio). Nagarjuna, um dos mais estudados mestres clássicos do budismo à escala mundial, estabelece através dos seus tratados uma reflexão sobre o sentido último dos ensinamentos do Buda, ciente que estava que havia desvios ao entendimento correcto e à prática correcta das doutrinas sutricas. Interpretando o silêncio do Buda (face às várias perguntas de carácter transcendental que lhe foram colocadas) como algo estruturante, Nagarjuna desenvolve uma abordagem que passa pela desmontagem dos argumentos de outras vias (tanto de raiz hindu, como jainistas e mesmo budistas), não procedendo, contudo, a uma apologia do caminho a seguir. Aparentemente caindo no niilismo, a “proposta” ou melhor: a assumida ausência de proposta, reflecte em profundidade que os seres têm em si o Dharma, podem encontrá-lo através da reflexão e experienciação, podem dissipar as visões erróneas que passam também pelas elaborações intelectuais. Faz-se, assim, a ponte, entre um aparente niilismo com algo que propulsiona o desenvolvimento espiritual e que tem por base o desenvolvimento do Bodhicitta (a bondade amorosa, o bom coração) aplicável de forma equânime a todos os seres. O tema central da obra de Nagarjuna é a compreensão da união das duas verdades (relativa e absoluta), assente na realização da vacuidade; e tem por base o segundo e terceiro ciclos de ensinamentos do Buda, ditos ensinamentos definitivos, por contraste aos “provisionais” do primeiro ciclo, em que se ensina a doutrina das Quatro Nobre Verdades. O sistema de Nagarjuna pode, de algum modo, entender-se como um passo além relativamente ao entendimento das escolas Abhidharmika. Nagarjuna funda, assim, a Via do Meio (Madhyamika), como uma versão do entendimento dos ensinamentos do Buda mais profunda e, dessa forma, mais adequada à via que conduz à Libertação plena, doutrinas estas depois amplamente propagadas por toda a Índia, China, Japão, Coreia e Tibete, país onde ainda hoje subsiste plenamente. Textos e ensinamentos base usados na presente síntese: • •



The Fundamental Wisdom of the Middle Way – Nagarjuna’s Mulamadhyamakakarika; Tradução e comentário de Jay J. Garfield; New York, Oxford University Press, 1995. Introduction to the Middle Way – Chandrakirti’s Madhyamakavatara with commentary by Jamgon Mipham; traduzido por Padmakara Translation Group; Boston/Londres, Shambala, 2004. The Middle Way – Faith Grounded in Reason; Tenzin Gyatso, o XIV Dalai Lama; Boston, Wisdom Publications, 2009.

Nota: o interesse individual no estudo da obra de Nagarjuna e alguma eventual compreensão da mesma deve-se exclusivamente aos bons ensinementos do Lama Dzogchen Ranyak Dza Patrul Rinpoché, que desde há alguns anos tem generosamente guiado os meus interesses nesta área. Algum mérito que possa existir é-lhe dedicado, dado que toda a sua actividade se destina ao benefício de todos os seres.

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Nagarjuna e o Silêncio do Buda - as origens do Madhyamika Nagarjuna, filósofo indiano que viveu por volta do século II d.C., genericamente conhecido como um dos mais influentes mestres de sempre no contexto do budismo, tanto na Índia, como nas regiões para onde o Dharma do Buda se difundiu. A sua reflexão sobre os ensinamentos do Buda inclina-se para uma formulação acerca dos ciclos de ensinamentos ditos “definitivos”, dando especial ênfase à doutrina da vacuidade. É também reconhecido pelos mestres de diversas linhagens e pelos budologistas, como o fundador do Madhyamika, o Caminho do Meio, onde se elucida o verdadeiro sentido dos sutras definitivos, mas sem recurso ao desenvolvimento de comentários ou teses (sobretudo por referência ou oposição a outras). A obra filosófica de Nagarjuna é um marco na história do Budismo, ficando o seu nome indelevelmente ligado aos ensinamentos do Mahayana e em particular ao Prajnaparamitasutra. De acordo com a tradição, Nagarjuna recuperou na terra dos nagas os ensinamentos escondidos pelo Buda, destinados a serem revelados num momento mais oportuno. De algum modo, dentro da vasta literatura do Prajnaparamita, surge o Madhyamika como expressão da sua essência. São atribuídos a Nagarjuna algumas obras agrupadas tradicionalmente em três categorias: textos de razão, hinos e discursos. Neste caso os mais relevantes são os seus 6 tratados de razão (1) e é neste grupo que se encontra o Mulamadhyamaka-karikas. O Mulamadhyamaka-karikas é o texto base do Madhyamika, e é com este texto que se expõe a falência dos sistemas Vaibhasyka e Sautrantika, que são vistos como visões “deturpadas” ou parciais da mensagem do Buda. Ele refere que só após insistência o Buda começa a ensinar e não o faz logo expondo o que conhecia como verdade ao seu nível, percebendo que isso estaria muito além das capacidades de entendimento dos seres comuns. Ele aplica assim os seus poderes fazendo convergir a audiência gradualmente na prossecução do caminho espiritual de cada ouvinte. Como os seres comuns acreditavam na sua existência autónoma como em algo que ocorria no tempo e no espaço, desta forma o Buda falou, inicialmente, a um nível provisório, apenas para que pudesse ser entendido. Assim enuncia as Quatro Nobres Verdades e fala nos 5 agregados, nos 6 sentidos, nas consciências respectivas, etc… Contudo, gradualmente, o Buda expressa a vacuidade de todos esses elementos aparentemente existentes aos olhos dos seres comuns, contribuindo e guiando-os no sentido do desenvolvimento de uma via espiritual gradual que, em termos últimos, conduzirá à Libertação. As escolas Abhidharmika criam as primeiras sínteses e compilações dos ensinamentos do Buda (o Abhidharma), valorizando os ensinamentos iniciais (provisionais), sobre os agregados e outros. Claro que eles reconheceram um aspecto base: a negação da existência intrínseca de um “eu”, mas simultaneamente caem no erro de perspectiva de aceitar a existência dos agregados… ou seja, entendem que, no domínio da verdade relativa, existem 1

Mulamadhyamaka-karikas (Estâncias Raiz do Caminho do Meio); Yuktikshastika (60 estâncias sobre os princípios da Lógica), Shunyatasaptati (70 estâncias sobre a doutrina da vacuidade), Vigrahavyavartani (versos de defesa do Madhyamika e refutação das objecções); Vaidalya-sutra (prosa delimitando o uso das categorias da lógica), e Vyavaharasiddhi (discussão sobre a verdade convencional ou relativa).

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corpos físicos comuns, e na verdade última, consideram-se os agregados, nas suas mais ínfimas partículas, com lampejos de consciência. Apesar de haver discernimento sobre a existência de Duas Verdades, o mau entendimento que disto se faz, como algo diferenciado e separável (logo dualista), é desmontado passo a passo por Nagarjuna, revelando a total vacuidade de várias categorias (produção, movimento, sentidos, agregados, elementos, etc.). Mesmo no que respeita aos aspectos de causa e efeito, Nagarjuna defende que estes conceitos só têm sentido de existência em relação de um a outro, mas mesmo assim sem qualquer espécie de existência intrínseca diferenciada. No dia a dia se percepciona que isto ou aquilo “existe”, cometemos um erro de abordagem, dado que, em termos últimos, nada subsiste a que se possa chamar “realidade”. Coisas que “existam” nunca seriam passíveis de mudança, nem teriam causas para a sua geração. A primeira estância de Nagarjuna no Mulamadhyamaka-karikas é clara: “Coisa alguma é produzida em qualquer local ou tempo, quer proceda de si mesmo, como de outros, como de ambas ou nenhuma desta origens”. Este sentido de interdependência de todos os fenómenos (inclusivamente das causas e efeitos), não permite determinar a existência de algo “individual” com uma existência real intrínseca. Os fenómenos, como manifestações de um jogo de interdependências, são irreais (no sentido de não existirem) e a sua dimensão de interdependência é a vacuidade de uma existência própria. Toda a mundividência comum é mostrada por Nagarjuna como sendo completamente incoerente. É como viver num mundo de miragens. Os fenómenos parecem reais, mas são insubstanciais como um sonho. Esta ideia exposta por Nagarjuna é, contudo, questionável pelos seres comuns - se todos temos percepção grosseira de que o mundo é assim, porquê mudar? Em primeiro lugar Nagarjuna não propõe uma mudança de visão por ser “boa” ou “má” (isso seria dualismo). Não é por uma questão moral, mas por uma questão ética: o reconhecimento das coisas tal qual são, sem as máscaras das justificações metafísicas ou outras, inexperienciáveis e sem base segura. Dado que o Buda compreendeu que não seria útil começar por falar sobre o termo e resultado da experiência de libertação que ele tinha obtido, começa então por falar sobre a dor, algo que é muito compreensível a todos os tipos de audiência (mesmo os menos preparados). Ele fala assim da roda do samsara como um ciclo de morte, renascimento, doença, velhice e novamente morte, mas propõe uma abordagem ou fuga a esse sofrimento. Contudo, mesmo que legitimamente aspiremos a não sofrer ou desejarmos ir para uma terra pura ou ter um renascimento mais elevado, mesmo assim isto não é fugir ao samsara, porque ainda é uma manifestação de desejo egocentrado. Não é, por tanto, a resposta final para a libertação plena e apenas permitirá a obtenção de um estado de beatitude temporária, como a dos Arahats. O Buda diz que não conseguimos sair do samsara apenas pela arrumação das nossas ideias (ou dos nossos sonhos). O melhor método será reconhecer que estamos a sonhar e despertar para o reconhecimento da verdadeira natureza dos fenómenos.

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Com o karikas, Nagarjuna demonstra a falibilidade das escolas Abhidharmika e dos seus argumentos assentes nas habituais categorizações que usam. Para os não-madhyamikas isto pode ser muito estranho, dado que parece que tudo é negado, nada fazendo sentido, nada sendo real, como se fosse uma expressão niilista. Se tudo é vazio, se nada surge ou desaparece, então não existe o que chamamos “Quatro Nobre Verdades”. Ao “negar-se” ou criticar-se os ensinamentos básicos do Buda (particularmente tratados no cap. 24 do karikas), parece que nada faz sentido e que se cai no niilismo: não haveria iluminação, nem seres iluminados, nem doutrina, nem três jóias, nem Dharma. Contrariando esta visão superficial da doutrina de Nagarjuna, pode afirmar-se que a vacuidade e caminho espiritual não são incompatíveis, aliás, a vacuidade é uma forma de potenciar a espiritualidade, compreendendo as duas verdades (o elemento central no Madhyamika) como algo inseparável. Não há libertação sem a realização da vacuidade; não há aproximação à Verdade Última, sem correctamente se entender a Verdade Relativa (ou a relatividade). A doutrina da vacuidade é uma espada de dois gumes e Nagarjuna é o primeiro a expor os seus perigos: compreendida correctamente conduz à Libertação, compreendida incorrectamente conduz à degeneração. O ensinamento sobre as duas verdades é profundo e muito subtil, por isso é necessário que haja uma reflexão sobre o ensinamento colhido numa fonte segura. A partir do ponto de vista do Madhyamika a verdade relativa integra todos os fenómenos da nossa vida quotidiana. Contudo ao analisarmos esta “verdade” observamos que os fenómenos são vazios de existência própria intrínseca. Esta é a verdade absoluta. Esta verdade absoluta, que está para além do ser e não-ser, é referido por Shantideva, na sua obra Bodhisattvachariavatara como “A Verdade Última radica-se não no intelecto porque o próprio intelecto ainda é baseada no que é relativo”. As duas verdades nunca estão separadas; elas emergem e coincidem nos fenómenos. De acordo com o Madhyamika a distinção não está no objecto, mas no modo como o perceptor reconhece os fenómenos. Em outros sistemas religioso-filosóficos, geralmente existe um jogo entre duas entidades separadas (criador/criatura) mas no Dharma do Buda não se estabelece esse tipo de distinção objectiva, porque a mesma não é possível certificar através da experiência e apenas poderia ficar como um processo de justificação teórica. Ao demonstrar a incorrecção da visão da escola Abhidharmika, Nagarjuna e o seu discípulo Aryadeva, consolidam um novo sistema dialéctico (a visão Madhyamika) que pretende desmontar os argumentos de outras escolas conviventes na Índia do seu tempo.

O método de Nagarjuna vai beber directamente àquilo que poderíamos designar como O Silencio do Buda: face a 14 perguntas colocadas por Vacchagotta a Sakyamuni, este permaneceu em silêncio, não apresentando respostas nem expressando qualquer opinião. Dado que as perguntas eram de natureza metafísica, o Buda entendeu que a eventual resposta ou compreensão pelos seres comuns estaria para além das suas capacidades de experienciação ou de comprovação, pelo que apenas davam lugar a elaborações mentais e a discussões estéreis. 6

Teria o universo um princípio, ou não, ou ambos, ou nenhum deles? Teria o universo um fim, ou não, ou ambos, ou nenhum deles? Teria o Buda [ou o espírito] existência para além da morte, ou não, ou ambos, ou nenhum deles? Seria o “eu” [ou o espírito] identificado com um corpo ou seria diferente dele? Isto levanta a questão: porque é que o Buda se recusou a responder a tópicos aparentemente tão importantes e até mesmo cruciais em qualquer sistema filosóficoreligioso? O silêncio do Buda tem sido interpretado como de profundo significado, constituindo a semente para o Madhyamika em termos de significado e método. Nagarjuna interpreta melhor que ninguém o sentido desse silêncio e faz com que o Madhyamika seja compreendido como a exploração sistemática da expressão do silêncio do Buda. As 14 perguntas não respondidas são o exemplo conclusivo de que as típicas questões postas por outras filosofias ou religiões se esgotam em si mesmas, já que usam argumentos sobrenaturais para criar uma base de transcendência às suas explicações sobre os fenómenos. A metafísica é, assim, usada como meio de encontrar ou definir uma realidade, algo que não tem a ver com a capacidade comum de experienciação ou prova. Apenas se deduz, mas nada se prova, promovendo um raciocínio enviesado de efeito/causa e não de causa/efeito. Dado que as conclusões de outros sistemas filosófico-religiosos não podem ser provadas empiricamente, a sua plausibilidade fica-se apenas pela qualidade de argumentos apresentados e na melhor ou pior estruturação lógica. Este tipo de actividade, que tem ocupado a mente dos filósofos por milhares de anos, representa uma tendência muito arreigada na mente humana e é, ela mesmo, uma forma de apego. É natural que o ser humano perante o universo e devido à sua falta de capacidade para explicar efectivamente esses fenómenos, não o conseguindo fazer por falta circunstancial de conhecimento preencha esse vazio com recurso a especulações e mitos; contudo isso não passa de meras inventivas da imaginação humana. O uso de argumentos lógicos pode ser importante na justificação de determinadas situações nem sempre prováveis empiricamente, mas se nos ativermos apenas a argumentações, então elas podem ser válidas para justificar situações diametralmente opostas, mesmo partindo das mesmas premissas. Daqui podem resultar conflitos de opinião sem fim, sendo que o problema não estará nos argumentos mas sim na própria construção do princípio lógico em si. O Buda não responde sim ou não, exactamente porque isso seria alimentar uma argumentação que em si mesma já é um erro, que produz apenas ilusão e não um verdadeiro conhecimento. Se o Buda tivesse dito sim ou não às perguntas de Vacchagotta, teria dado origem a uma escalada de argumentações que em nada contribuiriam para o desenvolvimento da Sabedoria e do caminho da Iluminação. Por outro lado, dado que as perguntas são de metafísica, nada pode ser respondido porque estará para além da capacidade de concepção, de verbalização e de entendimento directo à mente comum. É uma forma de fazer perceber a quem coloca as perguntas que as mesmas são estruturalmente erradas.

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As perguntas de Vacchagotta não poderiam ser, em verdade, respondidas. Quando uma questão transcende a capacidade de experienciação e logo de resposta sob argumentos comprováveis, a única resposta possível é o silêncio. É precisamente porque o Buda não se emergiu em teorias sobre os fenómenos, que se torna capaz de discernir sobre a Verdadeira Natureza e é este discernimento que confere a Libertação. Quanto mais teorias se desenvolvem, mais se cai no seu “feitiço”, o que a seu tempo só provoca frustração. O Buda disse que “defender que o mundo é eterno, ou que pelo contrário é finito, ou concordar com alguma das restantes preposições que tu aduzis-te, Oh Vaccha, é a selva da teorização (…) as amarras da teorização, suportadas pela doença, pelo cansaço, pela perturbação e pela febre. Não conduz ao desapego, à inexistência de paixão, à tranquilidade, à paz, ao conhecimento e à sabedoria do Nirvana. Este é o perigo que eu observo nestas visões e todas elas eu descarto descartar”. O Buda rejeita então a teorização vã. Só quando se deixa a teorização de parte é que se consegue tornar acessível a verdade que está para além de uma mente ordinária. Nargarjuna refere-se ainda que esse acesso à “verdade” é a Iluminação e que o Buda, depois de atingir esse estado tão subtil, acordou e permaneceu silencioso, declinando ensinar, já que a experiência por que passara provavelmente não seria entendível pelos restantes.

O propósito do silêncio do Buda é, de certa forma, a essência da função da dialéctica no Madhyamika, o qual, por sua vez, assenta na equidistância face aos quatro extremos. Em termos éticos esta equidistância tem sido formulada como a moderação entre os extremos da indulgência e do excessivo ascetismo; em termos filosóficos é a posição entre o eternalismo e o niilismo, afirmação e negação. Esta é a atitude do Madhyamika: a reserva do Buda sobre a formulação de conceitos metafísicos e a não formulação de uma posição que faça derrogar o Dharma em qualquer um dos extremos.

O Desenvolvimento do Madhyamika e as “abordagens” Svatantrika e Prasangika O objectivo confesso do Madhymika é fazer com que as preposições incorrectas das religiões ou filosofias se reconheçam na sua fragilidade e na sua falibilidade [no caso de Nagarjuna, dado o tempo em que viveu, ou principais objectores eram as filosofias hindus e diversas abordagens ao budismo]. O Madhyamika é, assim, mais uma crítica à filosofia do que um sistema filosófico em si. A sua tarefa é analisar, criticar e demonstrar a falibilidade dos sistemas. Por este motivo o Madhyamika é muitas vezes comparado à filosofia de Kant, como um sistema de crítica pura e com ausência de conteúdo próprio. É muitas vezes entendido como uma elencagem de argumentos que expõem a falha de outros sistemas e não tanto um sistema em si mesmo. O Madhyamika, entre o seu aparecimento no século II e o seu desaparecimento na Índia no século XII, passou por 3 ou 4 fases.

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A primeira com Nagarjuna e o seu discípulo Aryadeva. A segunda, no século VI, marcada pelo evento das duas linhas de abordagem Svatantrika e Prasangika, ocasionada pelas divergências de Buddhapalita e Bhavaviveka. • A terceira, no século VII, com Chandrakirti, defendendo Buddhapalita e refutando Bhavaviveka, estabelecendo o prasanga: argumentos consequenciais como método normativo no debate a quando da discussão sobre a visão, nomeadamente com clarificação sobre a existência das verdades relativa e absoluta. • Quarta, com o abade Shantarakshita e com o seu discípulo Kamalashila, que consiste na síntese dos dois grandes sistemas do Mahayana, nomeadamente o Madhyamika e Cittamatra (Yogakara), como formas de representar a verdade relativa e absoluta respectivamente. Há muito desaparecido na Índia, o Madhyamika é, contudo, uma tradição viva em diversos países na China, Japão, Coreia e sobretudo no Tibete. • •

Apesar de Nagarjuna “instituir” o Madhyamika como uma fórmula mais correcta (ou perfeitamente correcta) de progredir no sentido da realização espiritual individual e da Libertação última, mesmo assim, desta fundamentação, surgiram duas abordagens diversas, originando as escolas Svatantrika e Prasangika. Por volta do século VI graves desentendimentos ocorreram sobre o método de estabelecer a visão do Madhyamika em debate; ou seja, como explicar a verdade relativa e como apresentar a verdade absoluta. A oposição verificou-se entre Buddhapalita, que usava a exclusivamente argumentos consequenciais (prasangha) e Bhavaviveka que dizia que, em debate com não-madhyamikas, não bastava esse tipo de argumentação para explicar a natureza última dos fenómenos, mas seria possível e necessário provar o “seu” ponto de vista a partir de silogismos (svatantraanumana). Como Buddhapalita a certa altura não responde aos argumentos de Bhavaviveka, durante muito tempo isto foi entendido como uma espécie de submissão pelo facto de Bhavaviveka ser de origem real. Contudo o que supõe hoje é que o primeiro tivesse morrido entretanto sem poder responder à questão colocada pelo segundo. Bhavaviveka foi um importante académico, com um grande conhecimento enciclopédico, usado como suporte de várias correntes religiosas do seu tempo (tanto budistas como não budistas). A sua interpretação foi vista como uma forma de criar pontes entre vários sistemas, contudo isto abre espaço na divisão “técnica” entre Prasangikas e Svatantrikas. Tendo em conta que o objectivo final do Madhyamika é soteriológico, todo o seu propósito se destina a esse fim (a libertação dos seres). Nagarjuna diz que só através do entendimento e realização da Natureza Última se obtém a libertação do sofrimento. Impelido pelos seus votos de Bodhicitta, ele também torna claro que não importa apenas a libertação individual, mas também deve ser ajudada a compreender a verdadeira natureza dos fenómenos aos outros. O desentendimento entre Prasangikas e Svatantrikas reside exactamente aqui: como estabelecer a visão e como a comunicar aos outros.

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Esta divergência começa imediatamente na primeira estância do Karikas: “Coisa alguma é produzida em sítio algum ou em qualquer tempo, quer provenham de si mesmos, de outros, de ambos ou de nenhum deles”. Este tetralema (que tem paralelo com as 14 perguntas não respondidas pelo Buda) é a base para futuras teorizações por parte de Chandrakirti, acerca da vacuidade dos fenómenos, e em oposição às quatro maiores escolas ou filosofias indianas do seu tempo que de algum modo postulavam por uma das posições: a escola hindu Samkhya, budista Abhidharmika, Jaina e Charvaka, respectivamente. O Madhyamika vem desmontar os erros de visão em que estes sistemas de filosofia realista incorriam. Faz, contudo, apenas uma demonstração do erro, não aponta uma resposta, implicando o “argumentador” a rever a sua posição e assim, pessoalmente, verificar o erro e encontrar uma solução para o mesmo. Os Samkhyas acreditam que tudo provém de prakriti, uma substância primordial. Todos os efeitos são, assim, semelhantes às causas. Buddhapalita desmonta este argumento dizendo que as “coisas” não podem nascer de si mesmas, isso seria absurdo pois se algo já existe não nasce, não há necessidade de criar algo onde algo já existe. Contudo Buddhapalita é cuidadoso, embora refute a teoria, ele contudo não a substitui. Neste ponto Bhavaviveka acha que a posição de Buddhapalita não é 100% eficiente. Ele entende que contradizer os argumentos é pouco, a conclusão fica excessivamente em aberto, e que seria útil apontar soluções para não subsistirem dúvidas na mente dos “opositores”. Ele entende que se deve justificar através das proposições de Nagarjuna. Deste modo Bhavaviveka entende que seria mais eficiente desmontar os argumentos do adversário e convencê-lo a aceitar os princípios do Madhyamika. Buddhapalita tem uma posição mais conservadora, apenas mantendo a atenção na refutação e não na argumentação lógica, que entendia como uma espécie de sofisticação desnecessária. Ele segue de perto o método de Nagarjuna, apenas discutindo aspectos relativos à verdade convencional e nunca argumentando sobre a verdade absoluta. Ao contrário de Bhavaviveka que era muito popular e tinha muitos alunos, Buddhapalita teve apenas alguns, dos quais “descende” Chandrakirti que viria, um século mais tarde, continuar a sua obra. Prasanga quer dizer, então, que é um método de refutação e não um método de proposta de uma alternativa mais plausível. É um sistema aberto onde não se procura uma conclusão imediata ou estabelecer os princípios de uma investigação. Serve apenas para trazer os “oponentes” a um nível de relativização dos sistemas que defendem e permitir-lhe ver o erro, bem como um começo para uma análise que, a ser “correcta” os encaminhará inevitavelmente para um desfecho útil: a compreensão e realização da natureza última dos fenómenos e a libertação efectiva. Não há, portanto, uma “teorização” formal, apenas a “desmontagem” dos argumentos das outras teorizações. Este ponto é substancial, dado que há um paralelismo directo com os ensinamentos do Buddha. Não só ele não “alimenta” a polémica (daí não responder a perguntas de carácter transcendental), como declara que a Verdade Absoluta está para além das capacidades de compreensão comuns. A razão permite-nos compreender a fronteira de que algo existe para além desta capacidade “racional”, a partir da qual se torna “irracional” e inexpressável.

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Considerando que não é “racionalizável” ou “expressível”, o Madhyamika estabelece, então, uma fórmula (via remotionis) que passa pela remoção dos obstáculos, pela desmontagem dos erros e teorias criadas por uma mente comum, permitindo um reconhecimento indirecto da via do meio (livre de extremos). Trata-se aqui de “desenvolver” ou permitir que a sabedoria não dual (jnana) revele a verdade última sem recurso a estruturas duais como os pensamentos. Quando se realiza a vacuidade transcende-se a limitação do sujeito-objecto, penetrando os véus das construções mentais comuns que “determinam” uma visão incorrecta dos fenómenos. Quando há a percepção correcta dos fenómenos a própria natureza da mente é revelada e tudo isto permite a libertação. Tanto Prasangikas como Svatantrikas, estão interessados em comunicar esta visão. Contudo há diferenças, atendendo a que os Svatantrikas não só fazem a desmontagem dos argumentos de terceiros, como propõe alternativas, por vezes estabelecendo pontes e compromissos ao nível convencional, nem sempre sustentáveis em termos de valor. Procuram uma posição conciliatória e oferecem uma visão mais facilmente aceitável aos outros, porém criam alguns erros já que estabelecem uma abordagem às duas verdades, como algo separado, mesmo que provisionalmente. Isto pode provocar muitos erros de leitura posterior, como considerar que os fenómenos podem ser encontrados e “existir”, circunstância que em parte vai ao encontro das teorias Abhidharmikas. Para os Prasangikas este género de compromissos “perigosos” não são possíveis. Separar as duas verdades é um desvio ao entendimento feito no texto raiz de Nagarjuna. Os Prasangikas não expressam posição nem teses, confinam-se ao uso de argumentos consequenciais nos debates, expondo, assim, o absurdo da posição dos oponentes. Não há qualquer interesse ou mesmo utilidade em teorizar sobre a verdade convencional; simplesmente se aceita a experiência quotidiana. Qualquer discussão com base no tetralema só conduz a maior confusão. Criar uma teoria como forma de explicar a verdade relativa não ajuda à realização da verdade última, por isso pode ser perigoso criar argumentações aparentemente positivas, mas em termos finais desnecessárias e até possivelmente contraproducentes.

Breve Conclusão Contemplando o silêncio do Buda, Nagarjuna estabelece uma doutrina da vacuidade que tem por objectivo a “derrocada” dos argumentos de outras vias, mas também a abertura de espaço para a compreensão das verdades relativa e absoluta e para o encontro de uma via que efectivamente possa conduzir à Iluminação e à Libertação. A partir de Nagarjuna geram-se, contudo, dois entendimentos diversos, classificados posteriormente como Svatantrika e Prasangika; o primeiro que entende ser necessário mostrar a deficiência de visão dos seus opositores, acompanhada por uma proposta alternativa; o segundo que se limita à demonstração dos erros de visão de outros sistemas, mas que não propõe directamente um caminho, antes privilegia a que cada um, individualmente, obtenha espaço de realização interior de aspectos que muitas vezes são transcendentais e que não podem ser elaborados intelectualmente. Numa primeira fase a abordagem Svatantrica colheu mais adeptos, contudo gradualmente a Prasangika acabou por dominar. Também esta dinâmica pode ser analisada ou expressa de várias formas na actualidade: existem escolas (por exemplo, no contexto tibetano), que

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apresentam estas duas abordagens como “opostas”, pelo menos contrastantes, pondo em evidência uma e subalternizando outra; contudo, por exemplo na Escola Nyingma do budismo tibetano, esta leitura não é tão “contrastada”, sendo preferível o entendimento de que se tratam de duas linguagens, duas formas de comunicar, adaptadas às capacidades de diferentes tipos de ouvintes, estabelecendo-se uma noção mais gradativa do que opositora.

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