O sistema de ensino e aprendizagem da banda Lactomia: um estudo de caso

May 30, 2017 | Autor: Flavia Candusso | Categoria: Music Education
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Universidade Federal da Bahia Escola de Música Programa de Pós-Graduação em Música Mestrado em Educação Musical

O sistema de ensino e aprendizagem musical da banda Lactomia: um estudo de caso

Dissertação submetida ao curso de Mestrado em Música da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Música, ênfase em Educação Musical

Flavia Candusso

Salvador, Bahia, Fevereiro, 2002

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Resumo

Esta pesquisa procurou estudar o sistema de ensino e aprendizagem musical da banda Lactomia, conjunto percussivo originário do bairro do Candeal de Salvador composto por crianças e adolescentes que tocam instrumentos musicais construídos com materiais reciclados. O objetivo dessa investigação é compreender o sistema de ensino e aprendizagem musical, visando focalizar quais objetivos, valores e normas o fundamentam; se há planejamento; qual a metodologia utilizada; e, como é realizada a avaliação. O propósito é verificar se os elementos que formam o currículo, entendido segundo uma concepção tradicional (objetivos, planejamento, metodologia e avaliação), podem ser também encontrados no sistema de ensino e aprendizagem da banda Lactomia. Esta investigação utiliza como metodologia o estudo de caso dentro de uma abordagem qualitativa. A descrição e análise dos dados evidenciaram que o sistema de ensino e aprendizagem musical da banda Lactomia é fundamentado por objetivos, valores e normas; costuma planejar suas ações e atividades; utiliza uma metodologia baseada na imitação e observação e concebe a avaliação como instrumento para verificar se os resultados de determinadas ações e atividades refletem os objetivos e valores, bem como se o planejamento e a metodologia escolhida foram adequadas. O sistema de ensino e aprendizagem musical da banda Lactomia resulta constar de um currículo metafórico.

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Abstract

This dissertation aims to study the musical teaching and learning system of the Lactomia Band, a percussive group of the Candeal area of Salvador, whose members, mainly children and teenagers, play on self-built musical instruments made of recycled materials. Aim of this research is to understand if in this teaching and learning system there are objectives, values, rules; activity planning; methodology and assessment, so to verify if curriculum components are present in the musical teaching and learning system of the Lactomia Band as well. This investigation uses a case study method in a qualitative perspective. The description and analysis of the collected data show that in the musical teaching and learning system of the Lactomia Band exist objectives, values and rules; actions and activities are usually planned; the methodology most used is observation and imitation; and, assessment aims verify if the outcomes reflect objectives, values and if the planning and methodology chosen were appropriate as well. It results that the musical teaching and learning system of the Lactomia Band is based on a metaphorical curriculum.

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Agradecimentos ... chegando o momento dos agradecimentos, me dei conta de quantas colaborações materiais e morais é constituída uma dissertação de mestrado! Ao curso de Mestrado da Ufba, por ter me dado esta possibilidade de crescimento. À professora Alda, pela confiança, pela força e todos os valiosos ensinamentos que soube me proporcionar. À Maísa, sempre atenciosa, carinhosa e bem humorada. Ao Programa PROCES, pela concessão da bolsa e por ter me oferecido mais uma experiência na capacitação para o ensino superior. A Raimundo, meu querido maridão, por ter me encorajado a freqüentar o curso de Mestrado, por ter agüentado todos os efeitos colaterais dessa aventura e por ter me transmitido muito astral e força Aos meus pais, que como sempre me apoiaram em mais uma “aventura”. À minha irmã Giulia e seu marido Gianluca, pelo apoio e a força nos momentos difíceis. Aos colegas de trabalho dela pelas explicações dadas via internet sobre como escanear e trabalhar as fotografias À Cássia, minha estrela-guia, que sempre teve a palavra mágica para que eu encontrasse o meu caminho, mas sobretudo pela sua amizade. À Luciane, pela paciência, pelas conversas esclarecedoras e sugestões brilhantes que me proporcionou. A Pablo, pelo auxílio na gravação do CD e a força que me deu desde o primeiro dia em que pisei na Escola de Música da Ufba. Aos colegas de curso, Regina, Eduardo e Maurílio, com os quais aprendi muito. A Jair da banda Lactomia, pela sua valiosa colaboração e pela sua amizade. A todos os integrantes da banda Lactomia pela disponibilidade em contar um pouco de suas histórias, idéias e sonhos. A Carlinhos Brown por ter me dedicado um pouco do seu tempo para realizar a entrevista.

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Lista de exemplos gravados no CD Apresentação dos instrumentos construídos com materiais reciclados: 1-

Timbanco (ensaio do dia 26.11.00)

2-

Timbales de lata (ensaio do dia 26.11.00)

3-

Quadricano (ensaio do dia 26.11.00)

4-

Quadricano 2 (ensaio do dia 26.11.00)

5-

Trisurdo (ensaio do dia 26.11.00)

6-

Estante de meios (ensaio do dia 26.11.00)

7-

Cano de semáforo (ensaio do dia 26.11.00)

Apresentação dos arranjos: 8-

Tá lí, ó! (ensaio do dia 25.11.00)

9-

Carrinho de Madeira (ensaio do dia 18.11.00)

10- Ouro em Lata (ensaio do dia 18.11.00) 11-

Todo mundo quer saber (ensaio do dia 18.11.00)

12-

Carrinho de Madeira (ensaio do dia 26.11.00)

13-

Todo mundo quer saber (ensaio do dia 18.11.00)

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Lista das Figuras

(Fotografias realizadas pela autora)

1- Jair Rezende, o líder da banda Lactomia ....................................................................... 63 2- Foto de grupo da Banda Lactomia ................................................................................. 66 3- Ensaio do grupo das crianças em um dia de domingo ................................................... 70 4- O galpão da Lactomia durante a visita da cantora Gil da Banda Beijo ......................... 71 5- A sala de ensaio com os instrumentos musicais ............................................................ 72 6- Jair regendo a banda ...................................................................................................... 73 7- Jair ensaiando com o grupo das crianças ....................................................................... 75 8 e 9- Show realizado na praça da alimentação do shopping Aeroclube Plaza Show ....... 77 10- Timbanco .................................................................................................................... 78 11- Isopor de Cerveja ......................................................................................................... 78 12- Timbales de Lata .......................................................................................................... 81 13- Quadricano ................................................................................................................... 81 14- Trisurdo ........................................................................................................................ 81 15- Estante de meios ........................................................................................................... 82 16- Efeitos: Chocalho, cano de semáforo e trave com bacia .............................................. 82 17- Set de latas .................................................................................................................... 83 18- Cano de semáforo e chocalho ...................................................................................... 83 19 e 20- Novos instrumentos musicais ............................................................................... 85 21- Durante um intervalo no qual os integrante cantam uma música ................................ 96 22- Marcelo Bulachinha treina alguns exercícios com Paulinho ....................................... 96 23- Ensaio realizado na rua em um dia de domingo ........................................................ 108

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Índice

Resumo .................................................................................................................................. i Abstract ................................................................................................................................ ii Agradecimentos .................................................................................................................. iii Lista de gravações apresentadas no compact disc .............................................................. iv Lista de figuras...................................................................................................................... v Índice ................................................................................................................................... vi Introdução ........................................................................................................................... 1 Capítulo 1 - Referencial Teórico ....................................................................................... 8 Algumas premissas .................................................................................................. 8 O sistema de ensino e aprendizagem musical em contexto de tradição oral .......... 10 Do sistema de ensino e aprendizagem ao currículo ................................................ 18 Capítulo 2 - Metodologia ................................................................................................ 25 A abordagem qualitativa da pesquisa ... ... do ponto de vista da minha experiência ............... 25 ... e do ponto de vista teórico ................................... 27 O estudo de caso ... ... do ponto de vista da minha experiência .............. 30 ... e do ponto de vista teórico ................................... 30 A entrada em "campo" e a coleta de dados ... ... do ponto de vista da minha experiência .............. 32 ... e do ponto de vista teórico ................................... 33 A observação participante ... ... do ponto de vista da minha experiência .............. 35 ... e do ponto de vista teórico ................................... 37 As entrevistas ... ... do ponto de vista da minha experiência .............. 38 ... e do ponto de vista teórico ................................... 40 A análise dos dados ... ... do ponto de vista da minha experiência .............. 42 ... e do ponto de vista teórico ................................... 42 Capítulo 3 - A banda Lactomia ....................................................................................... 44 O bairro do Candeal Pequeno de Salvador ............................................................. 44 Origem e trajetória da banda Lactomia ................................................................. 48 Mestre Carlinhos Brown ......................................................................................... 56 A banda Lactomia hoje .......................................................................................... 62 Jair, o líder da banda Lactomia ........................................................................ 63 O grupo dos adolescentes ................................................................................ 66 O grupo das crianças ....................................................................................... 69

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A sede da banda Lactomia ............................................................................... 71 As atividades da banda Lactomia ........................................................................... 72 Os ensaios do grupo dos adolescentes ............................................................. 73 Os ensaios do grupo das crianças .................................................................... 75 As reuniões ...................................................................................................... 76 Os shows .......................................................................................................... 77 A construção e uso dos instrumentos reciclados .................................................... 78 Fotografias dos novos instrumentos ....................................................................... 85 Os arranjos para os instrumentos reciclados ........................................................... 86 Compositores e repertório ...................................................................................... 88 Capítulo 4 - O sistema de ensino e aprendizagem da banda Lactomia - descrição e análise ........................................................................................................... 91 Princípios, valores, normas e objetivos................................................................... 94 Planejamento .......................................................................................................... 99 Processos de ensino e aprendizagem .................................................................... 101 Um exemplo: o ensaio das crianças ............................................................... 114 A avaliação ........................................................................................................... 123 Capítulo 5 - Conclusão e recomendações ..................................................................... 126 Anexo 1 Anexo 2 Anexo 3 Anexo 4 Anexo 5

Fichas dos integrantes da banda ....................................................................... 134 Letras das músicas ............................................................................................ 141 Lista dos exemplos musicais ............................................................................ 146 Lista das figuras ............................................................................................... 147 Cartazes, recortes de jornais, fotografias do arquivo da banda Lactomia ........ 148

Lista de Referência ......................................................................................................... 154

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“Eu tô aqui Pra quê? Será que é pra aprender? Ou será que é pra aceitar, me acomodar e obedecer?” ... Quase tudo que aprendi, amanhã eu já esqueci Decorei, copiei, memorizei, mas não entendi Decoreba: esse é o método de ensino Eles me tratam como ameba e assim num raciocino Não aprendo as causas e conseqüências só decoro os fatos Desse jeito até história fica chato Mas os velho me disseram que o “porque” é o segredo Então quando eu num entendo nada, eu levanto o dedo Porque eu quero usar a mente pra ficar inteligente Eu sei que ainda num sou gente grande, mas eu já sou gente E sei que o estudo é uma coisa boa O problema é que sem motivação a gente enjoa” ... Encarem as crianças com mais seriedade Pois na escola é onde formamos nossa personalidade Vocês tratam a educação como um negócio onde a ganância a exploração e a indiferença são os sócios Quem devia lucrar só é prejudicado Assim cês vão criar uma geração de revoltados Tá tudo errado e eu já tô de saco cheio Agora me dá minha bola e deixa eu ir embora pro recreio ...”

Gabriel o Pensador – “Estudo Errado”

Introdução

Embora o Brasil seja um país musicalmente exuberante, observa-se que na escola regular a música não alcança a devida relevância em termos de conhecimento. Considerando que o Artigo 26 § 2 da nova Lei de Diretrizes de Bases (LDB) 9394/96 afirma que "o ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos", algumas pesquisas evidenciam uma realidade bem diferente. Hentschke, Oliveira e Souza (1999) observam que a música está efetivamente presente na escola, mas é inserida "como suporte às demais disciplinas do currículo, como apoio para problemas emocionais ou motivacionais, e até mesmo como passatempo" (Hentschke, Oliveira e Souza 1999, 23). Bellocchio (2000), também, questiona a função da música nas séries iniciais do ensino fundamental. A autora se pergunta: "música é festa? É terapia? É para acalmar as crianças? É conhecimento escolar? Que conhecimento é esse? Serve para auxiliar e tornar mais agradável o desenvolvimento de outras áreas?" (Bellocchio 2000, 72-73), e se o professor de classe ou um educador musical deveria se ocupar do ensino de música na escola regular. Interessante observar que ao mesmo tempo em que a inserção da música como disciplina efetiva de conhecimento no currículo escolar tem uma posição precária, fora da escola ela é saudavelmente vivida, eficientemente praticada e aprendida, tornando-se muitas vezes até opção de vida profissional para muitos que começaram por brincadeira. Na pesquisa sobre "Educação e Mercado de Trabalho", Oliveira e Costa Filho (1999)

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contam mais de 200 bandas atuando na cidade de Salvador, segundo informações publicadas no Guia do Carnaval. A partir de algumas entrevistas, os autores constatam que os músicos contatados não relacionam a boa formação musical com o estudo numa escola de música ou instituição musical. Segundo estes jovens músicos, para ser preparado a atuar no campo musical não é preciso freqüentar uma escola de música, mas ao mesmo tempo, consideram importante manter-se em contato com outros profissionais, professores e colegas. Este dado indica claramente que a escola não está acompanhando e atendendo às reais exigências relativas à profissão de músico e conseqüentemente do mercado de trabalho. Mas o que acontece finalmente fora da escola que tanto fascina os jovens e que não consegue penetrar nos ambientes escolares? De que forma se aprende música numa banda ou dentro de uma manifestação popular, ou seja, sem o auxílio do tradicional professor de música? Quais são estas outras formas de aprender e ensinar música? Como funcionam? Em que se baseiam? Com quais resultados? Na literatura etnomusicológica os processos de transmissão de conhecimento musical em contexto oral são muitas vezes estudados como parte do sistema cultural e musical de uma comunidade, pois como afirma Nettl (1983), "um sistema musical, seu estilo, suas características principais, sua estrutura, são estreitamente associadas com as formas específicas com as quais são ensinadas, como um todo e suas partes individuais"1 (Nettl 1983, 324).

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"a musical system, its style, its main characteristics, its structure, are all very closely associated with the particular way in which it is taught, as a whole and its individual component".

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Na literatura de educação musical pode-se observar que ensino e aprendizagem musical em contexto de tradição oral só recentemente está chamando a atenção dos profissionais da área, embora não pode ser ignorado o interesse para o folclore. Conscientes da discrepância que existe entre o que acontece dentro e fora da escola, pesquisadores estão agora também voltados a estudar os processos de ensino e aprendizagem musical utilizados no contexto oral para compreender como se dá uma educação musical tipicamente brasileira, que possa vir a constituir um modelo próprio. Isso significaria a possibilidade de não tomar emprestados sistemas de ensino e aprendizagem que podem funcionar no seu próprio contexto de origem, mas quando aplicados em outros não se adaptam às especificidades de uma outra realidade. Na perspectiva internacional, o Painel2 redigido durante o encontro da ISME [International Society for Music Education] em 1994 e, sucessivamente, a Declaração Housewright (Madsen, 2000) oficializam uma política da educação musical em relação às músicas das culturas do mundo. A Declaração Housewright, por exemplo, recomenda a inserção no currículo de qualquer tipo de música à condição que seja respeitada a sua integridade e seus valores, estimula a coordenação de atividades musicais além do cenário escolar, a capacitação de professores que atuam em vários tipos de contextos e a ligação entre instituições escolares e mercado de trabalho. Béhague (1997), reforçando um ponto de vista etnomusicológico, observa que na sala de aula deveriam ser admitidas as expressões musicais nas quais os alunos se sentem representados. Frisa que o aluno ao seu ingressar numa escola traz consigo uma "experiência/vivência dinâmica de sua cultura ou

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"Painel on Musics of the World's Cultures" aprovado em 1994. O Painel foi publicado no livro Music of the World's Cultures: a Source Book for Music Educators, editado por Lundquist e Szego em 1998.

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subcultura" (Béhague 1997, 28), na qual se identifica e que não deveria ser ignorada ou omitida para sobrepor a ela os valores das classes dominantes. Uma outra constatação importante, acrescentada por Swanwick (1988 e 1999), é que a escola não poderá ser mais considerada o único local de aprendizagem, pois a formação do músico deverá acontecer em vários tipos de cenários. Conde e Neves (1985), pioneiros no Brasil neste tipo de estudo para a área de educação musical, constatam o alto nível qualitativo e a riqueza das manifestações culturais populares, ressaltando, sobretudo, o papel educativo desenvolvido através dos processos de transmissão do conhecimento musical. Os autores criticam o desinteresse da instituição escolar em não valorizar e não utilizar o patrimônio cultural para uma reformulação pedagógica que reverta a situação de defasagem na qual a escola está submersa. Na Bahia, uma pesquisa que procurou compreender o sistema de ensino e aprendizagem de uma manifestação popular foi conduzida por Marialva Rios em 1997. No estudo sobre o Terno de Reis "Rosa Menina" de Salvador a autora constatou que o potencial pedagógico destas manifestações deveria ingressar nas instituições de ensino e integrar o conhecimento aprendido em sala de aula. Atualmente, o grupo de pesquisa integrada e multidisciplinar, composto pelas pesquisadoras Dras. Liane Hentschke, Jusamara Souza e Alda Oliveira, apoiado pelo CNPq (2000-2002) está conduzindo um estudo que explora as “Articulações de Processos Pedagógicos Musicais em Ambientes Escolares e Não Escolares: Estudos Multi-casos em Porto Alegre, RS e Salvador, BA”. Esta pesquisa, em fase de andamento, está estudando bandas existentes nas duas cidades brasileiras, visando investigar os processos de aprendizagem musical de sujeitos que vivem simultaneamente os dois ambientes de ensino e aprendizagem de música, tomando como pressuposto que "aquilo que chamamos de

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prática educativa depende de outros âmbitos e de outros agentes que atuam fora das salas de aula, mas que são muito ativos em relação ao que ocorre dentro delas. Nessa dinâmica e diversidade de práticas pode-se antever que os territórios não são facilmente demarcados." (página-resumo do documento projeto). Em geral, portanto, percebe-se a urgência em investigar e aprofundar o conhecimento sobre os sistemas de ensino e aprendizagem utilizados em ambientes escolares e não-escolares para que, através de uma equilibrada integração, se consigam condições de aprendizagem brasileiras eficazes, significativas e também mais atentas às exigências dos alunos. Considerando estas premissas, ainda antes de escolher com que grupo iria desenvolver a pesquisa, uma macro-questão estava já posta: compreender como se aprende e se ensina música no contexto de tradição oral. Após um primeiro contato com a banda Lactomia confirmei o meu interesse e defini, então, o objetivo geral da pesquisa. Pretendia, portanto, conhecer quais eram as características e como se dava o ensino e aprendizagem musical entre os integrantes da Lactomia. Logo percebi que os aspectos eram múltiplos e que não podia me limitar a investigar elementos isolados. Por esta razão, adotei um termo que pudesse compreendê-los e articulá-los, cuidando para que, também, não se estabelecessem relações hierárquicas. O termo que pareceu-me mais apropriado foi "sistema", na acepção de Gilberto Velho (1999), na qual ele ressalta que na análise dos dados o pesquisador deve demonstrar como categorias, valores, atividades se articulam e fazem sentido, uma em relação às outras. Para começar a investigar as características do sistema de ensino e aprendizagem da banda Lactomia foi necessário, antes de tudo, contextualizar a banda dentro de seu ambiente de vida e junto com as pessoas que direta ou indiretamente foram relevantes para

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o seu desenvolvimento. A progressiva aproximação com os integrantes da banda e suas atividades despertou em mim a sensação que esse sistema era altamente organizado e regulamentado. Refletindo melhor pude, então, determinar a hipótese central com o propósito de verificar se os elementos que compõem o currículo podiam ser também encontrados no sistema de ensino e aprendizagem da banda Lactomia. Defini, desta forma, os objetivos específicos e comecei a investigar quais princípios, valores e normas guiam e fundamentam este sistema de ensino e aprendizagem; se existe planejamento; quais são os processos utilizados, e de que forma é realizada a avaliação. Através da descrição e análise destes aspectos procuro mostrar que existe uma analogia entre o sistema de ensino e aprendizagem e o currículo. Para a realização da pesquisa, o estudo de caso numa perspectiva qualitativa mostrou-se a metodologia mais apropriada, pois focalizou a banda Lactomia, seus integrantes e suas atividades. Mesmo considerando a riqueza cultural existente no bairro do Candeal e a influência exercida pelo grupo Arrastão da Timbalada ou pela Pracatum Escola Profissionalizante de Música - sobre os integrantes da banda, procurei manter meu foco na banda Lactomia. Após esta primeira introdução, no capítulo 1 trato da revisão de literatura. Inicialmente defino o que entendo com o termo "sistema" e reviso a temática do ensino e aprendizagem em contexto de tradição oral bem como do currículo, introduzindo algumas perspectivas teóricas. No capítulo 2, dedicado à metodologia, descrevo os passos e as escolhas realizadas, dialogando entre a experiência prática e o referencial teórico que me auxiliou no desenvolvimento da pesquisa.

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No capítulo 3, entro no cenário da pesquisa, apresentando o ambiente de vida da banda Lactomia, sua história, seus componentes e suas atividades, que compreendem ensaios, reuniões, shows, e descrevo, também, os instrumentos reciclados bem como o repertório. No capítulo 4, concentro minha atenção na descrição e análise das características específicas do sistema de ensino e aprendizagem, apontando para uma possível analogia entre o sistema de ensino e aprendizagem e o currículo. No último capítulo, reflito sobre o que significou para minha formação de educadora musical a realização desta pesquisa com a banda Lactomia, bem como sobre a formação e o papel do educador musical, sintonizado com o seu tempo. Concluo fazendo algumas recomendações para estudos futuros.

Capítulo 1

Referencial Teórico

Com os olhos presos no fazer dos adultos, eles fazem também e aprendem. O saber flui sem o ensino e, às vezes, parece que quanto menos é evidente tanto mais efetivo. (C. R. Brandão 1983, 88)

O presente estudo procura investigar se no sistema de ensino e aprendizagem musical em contexto de tradição oral, neste caso representado pela banda Lactomia, é possível encontrar objetivos, valores e normas, se há planejamento, qual a metodologia utilizada e se há avaliação. Pretende, portanto, verificar se esses aspectos constituem um saber organizado, um currículo. A hipótese da pesquisa parte do pressuposto de que os elementos que compõem o currículo, entendido segundo uma concepção tradicional (objetivos, planejamento, metodologia, avaliação), podem ser também encontrados no sistema de ensino e aprendizagem da banda Lactomia. Para fazer uma leitura abrangente destas temáticas torna-se necessário a interação da área de educação musical com outras como a etnomusicologia, educação, antropologia, sociologia e a psicologia. Após definir alguns termos como "sistema" e "oral", este capítulo concentrará, portanto, sua atenção, primeiro sobre ensino e aprendizagem em contexto de tradição oral, e depois sobre currículo.

Algumas premissas O que se entende por sistema? O conceito de “sistema”, segundo Gilberto Velho (1999), é uma construção do observador e não um fenômeno natural. Ele afirma que

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O universo social observado pode não estabelecer as mesmas distinções em domínios que o cientista social faz ao demarcar o território de suas especializações. Mas é correto falar em sistema, na medida em que o pesquisador demonstre através da análise de seus dados que existem categorias, valores, temas, atividades, que se articulam, que fazem sentido uns em relação aos outros....A fronteira sempre implicará algum grau de arbitrariedade mas, no caso, será construída a partir da avaliação de uma experiência social e dos significados a ela atribuídos por um grupo ou segmento particular. No entanto será uma construção do pesquisador. (Velho 1999, 52-53) Se nas pesquisas etnomusicológicas a transmissão do conhecimento no contexto de tradição oral foi sempre um aspecto descrito e analisado de forma mais ou menos ampla, nas pesquisas de educação musical, no entanto, o interesse em compreender como se aprende música em todas aquelas dimensões que não fazem parte do ambiente escolar, é mais recente. De uma certa forma, pode-se constatar que na literatura etnomusicológica o aspecto da "música na e como cultura" (Nettl 1983, 131) e, sobretudo, da sua transmissão está auxiliando na fundamentação das pesquisas na área de educação musical. Antes de revisar a literatura que trata do tema em questão, isto é, ensino e aprendizagem musical em contexto de tradição oral, considero relevante esclarecer o que se entende por “tradição oral” e “oralidade”. Uma cultura é definida como “oral” quando não faz uso da escrita. Contudo, deve-se considerar que o uso deste termo foi o que resultou de um percurso histórico. Até a década de 70, fazia-se uma marcada distinção entre os povos “civilizados” e os povos “primitivos” ou “selvagens”, e mesmo na literatura antropológica era fácil encontrar obras que utilizassem esses termos para descrever as sociedades tribais e aqueles povos que não pertenciam ao “mundo ocidental”. Ong (1998) comenta que Lévi-Strauss passou a propor que esses termos fossem substituídos por “sem escrita”, embora o autor ressalte que “sem escrita” ainda possui uma conotação pejorativa e que “o tratamento atual sugeriria o uso do termo ‘oral’, menos ofensivo e mais positivo” (Ong 1998, 195).

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A oralidade, nos estudos conduzidos pelo autor, foi definida como “primária” quando uma cultura desconhece inteiramente a escrita, e “secundária” quando uma cultura, embora tecnologizada, faz uso de formas de comunicação orais como telefone, rádio, televisão, cuja existência depende da escrita. Se hoje em dia fica difícil imaginar uma cultura oral primária, já que também as comunidades mais isoladas sofreram algum tipo de contato com a escrita, Ong constata que “muitas culturas e subculturas, até mesmo num meio de alta tecnologia, preservaram muito da estrutura mental da oralidade primária” (ibid., 19).

Ensino e aprendizagem musical em contexto de tradição oral

Nos contextos de tradição oral, a transmissão do conhecimento assegura a continuidade das tradições de uma geração para outra. Em geral, uma cultura para garantir sua continuidade precisa transmitir suas crenças, seus valores, seus hábitos, suas práticas, seus costumes de uma geração para outra. “A transmissão das crenças sagradas de uma comunidade, crenças que tornam uma comunidade numa cultura, quase nunca é deixada ao acaso”3, observa Donmoyer (1990, 155-156). Se, como Donmoyer acabou de afirmar, a transmissão da cultura nunca é deixada ao acaso, mas, por outro lado, no contexto de tradição oral não existem escolas, nem ensino formal, como afinal é transmitido o saber? Num artigo sobre estratégias de educação musical na África, Nzewi (1999) explica que cada comunidade possui um corpo de saberes e práticas musicais que são transmitidos entre gerações "como um processo, e possui um sistema operativo de educação musical,

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"Transmission of a community's sacred beliefs, the beliefs that turn a community into culture, however, is almost never left to chance".

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independente das suas manifestações pedagógicas"4 (Nzewi 1999, 73). Sempre em relação à ação imperceptível da educação, também o antropólogo C.R. Brandão (1983), fazendo uma etnografia sobre Folias e Folgas relata que, embora não estivessem presentes espaços e situações formais de ensino, ele encontrou nestes contextos "inesquecíveis momentos de persistente trabalho pedagógico, mesmo quando aparentemente invisível" (Brandão 1983, 16). Da mesma opinião, Ong (1998) observa que nas culturas orais primárias os componentes de uma comunidade aprendem, "possuem e praticam uma grande sabedoria, porém não estudam" (Ong 1998, 17). Em relação ao aprender sem freqüentar uma escola, o etnomusicólogo Alan Merriam (1964) no livro The Anthropology of Music, observa que "deveria-se notar que, embora em algumas sociedades não-letradas faltem instituições educativas formais, isso não significa de algum modo que elas não possuam um sistema educacional"5 e continua especificando que "obviamente se a cultura permanece, visto que a cultura é um comportamento aprendido, tem que haver aprendizagem"6 (Merriam 1964, 146). Nketia (1974) revela que a formação do músico "especialista"7 não acontece em modo formal e sistemático, embora ele suponha que numa comunidade algum tipo de instituição, que vise o treino técnico e à experiência artística, deveria ser de suma importância. Simha Arom (1996), etnomusicólogo francês, acrescenta que nas comunidades da África Central também o ensino institucional é incomum e que, de uma certa forma, decorre dos ritos de iniciação (Arom 1996, 141). A transmissão do conhecimento realiza-se através da ação da educação e tem como finalidade a formação do indivíduo bem como a formação do músico

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"[which is passed on from one generation to another] as a process, has an operative system of music education, irrespective of its pedagogical manifestations". 3 "It should perhaps be noted that while some nonliterate societies lack formal educational institutions, this in no sense means they have no educational system." 6 "Obviously culture persists, and since culture is learned behavior, learning must take place." 7 "Musical specialists" (p. 58)

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segundo os valores de uma determinada cultura. "Cada cultura configura o processo de aprendizagem de acordo com seus próprios ideais e valores"8 confirma Merriam (1964, 145). A experiência musical pode constituir o meio através do qual esses ideais e valores da cultura são transmitidos pelos adultos para as crianças e os jovens de uma comunidade (Nettl 1983, 323). Nzewi (1999) reforça que, embora a educação musical africana utilize procedimentos informais pelo fato de ocorrer na coletividade, isso "não significa a falta de uma filosofia e de um procedimento sistemático na transmissão do conhecimento de uma cultura musical"9 (Nzewi 1999, 73). Segundo ele, por exemplo, o incentivo ao aprendizado da música através da participação constitui o primeiro princípio da música tradicional africana. A formação do músico especialista para que se torne uma referência dentro da sua cultura, constitui o segundo. A música, lembra Simha Arom (1996), cumpre funções sociais e está "tão envolvida no ciclo da existência individual, familiar e coletiva que constitui parte inseparável e indispensável da vida social e religiosa da comunidade" (Arom 1996, 141). Se na comunidade se aprendem e se ensinam os valores gerais e musicais de uma cultura, outro aspecto a se considerar é como se realiza o processo de ensino e aprendizagem. Etnomusicólogos (Merriam 1964, Nketia 1974, Blacking 1976 e 1995, Arom 1996, Borges 1998) e educadores musicais (Conde e Neves 1984-85, Rios 1995 e 1997, Prass 1998, Gomes 1998-99, Stein 1998-99, Arroyo 2000, Müller 2000, Dantas 2001, Oliveira 2001a e 2001b) concordam em afirmar que ensino e aprendizagem musical em contexto oral realizam-se durante a experiência social e coletiva, na qual não há

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"(...) each culture shapes the learning process to accord with its own ideals and values". "(But informality) does not imply lack of philosophy and systematic procedure in transmitting the knowledge of a music culture". 9

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separação entre o mundo das crianças e dos adultos, e que a imitação representa o modelo mais recorrente de transmissão de conhecimento. No livro The Music of Africa, Nketia (1974), descrevendo a formação do músico, relata que a exposição a eventos musicais e a participação são mais enfatizados que o ensino formal. A organização da música tradicional na vida social permite que o indivíduo adquira seu conhecimento musical em lentas etapas e amplie a experiência da música da sua cultura através dos grupos sociais nos quais ele é gradualmente incluído e através das atividades nas quais ele participa10. (Nketia 1974, 59-60) Como constata Oliveira (2001a) "os métodos através dos quais os brasileiros aprendem música são principalmente orientados por fatores sociais e contextuais"11 e indica como exemplos a empatia e osmose, as brincadeiras, as interações de grupo, a experiência musical como diversão, projetos sociais, atividades religiosas e aulas particulares (Oliveira 2001a, 191). Conde e Neves (1984-85) descrevem que "no exame do comportamento 'pedagógico' das pessoas e grupos na transmissão de dados - conceitos ou técnicas - referentes a manifestações da cultura popular, chama atenção a integração natural entre adultos e crianças" (Conde e Neves 1984-85, 43). Raramente, observam eles, há separação entre os dois espaços mas, sobretudo, se as crianças brincarem ao redor de uma manifestação, elas são incentivadas, pois "é desta maneira que se inicia a introjeção da cultura da comunidade" (ibid., 43). O exemplo de familiares ou vizinhos também serve como estímulo que propicia a experiência musical. Celson Gomes (1998-99) nos relatos das histórias de vida dos músicos de rua de Porto Alegre, ressalta a importância do "meio de convivência" entre

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"Exposure to musical situations and participation are emphasized more than formal teaching. The organization of traditional music in social life enables the individual to acquire his musical knowledge in slow stages and to widen his experience of the music of his culture through the social groups into which is gradually absorved and through the activities in which he takes part". 11 "the methods by which Brazilians learn music are mostly directed by social and contextual factors".

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parentes ou vizinhos músicos e dos momentos significativos vividos na infância que motivaram um desenvolvimento musical mais aprofundado. No caso do "Terno Rosa Menina" de Salvador descrito por Marialva Rios (1997), é no "banco de reserva" que a criança ou o jovem se aproxima da manifestação e começa a aprender suas regras, esperando o momento de ser chamado a participar ativamente. No trabalho sobre os saberes musicais em uma bateria de escola de samba de Porto Alegre, Luciana Prass (1998) observa que há "uma aprendizagem que ocorre quase indiretamente entre os familiares e a partir deles" (Prass 1998, 140). Mas ela acrescenta também que a aprendizagem na escola de samba, calcada na oralidade, externamente, é um processo coletivo de vivência musical inseparável da dimensão social e ritual do carnaval e dos carnavalescos enquanto possuidores de um capital social, étnico e cultural, e que, internamente, enfatiza processos individuais de captação e acomodação de saberes musicais, nos quais o aprendente está envolvido em construir, porque é um saber que faz sentido para o grupo. (Prass 1998, 146-147) É, então, no contexto social, seja este ligado ao carnaval, à uma manifestação popular, à uma manifestação religiosa ou às atividades desenvolvidas em família que a aprendizagem começa seu processo através da observação e da brincadeira. A criança ou o jovem, circulando durante as atividades dos adultos, observa e imita o que eles fazem, as atitudes, os comportamentos, as reações em determinadas situações. "Por onde os tambores são tocados, encontra-se, sem dúvida, um grupo de garotos assistindo de perto, ouvindo, olhando, aprendendo"12 relata Herskovits, citado por Merriam (Herskovits apud Merriam 1964, 148), quando em 1944 publicou o seu estudo sobre os cultos afro-brasileiros baianos. Nas Folias e Folgas, Brandão (1983) reporta que mestres e contra-mestres inúmeras vezes repetiram que os meninos aprendem "vendo os outros fazerem e fazendo igual" (Brandão 1983, 86). 12

"Wherever drums are played, a group of boys is invariably found standing close by, listening, watching, learning".

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Apesar de não serem ainda admitidas oficialmente a participar nos grupos dos adultos, as crianças, desejosas em aprender, procuram objetos, latas e materiais de várias naturezas e se reúnem em pequenos grupos para tentar reconstruir e reproduzir o que ouviram tocar pelos adultos. Herskovits (apud Merriam 1964, 148), descreve que "os meninos são encorajados pela tradição a aprender os ritmos de percussão e freqüentemente são vistos batendo em caixas ou cabaças"13. Na pesquisa sobre os processos de transmissão do conhecimento musical no terreiro de candomblé Ilê Opó Afonjá de Salvador, Borges (1998) constata a mesma atitude das crianças em imitar o que os adultos fazem. Conde e Neves (1984-85) chamam atenção, descrevendo a Folia de Lata, "para a extraordinária liberdade com que o mundo do som pode ser abordado" (1984-85, 45), evidenciando o trabalho exploratório de manipulação das latas ou de outros materiais conduzido pelas crianças na busca de sonoridades análogas àquelas produzidas pelos instrumentos dos adultos. No estudo sobre a banda Timbalada, Lima (1995) ressalta que "quem toca timbau, sempre tocou lata na rua anteriormente" (Lima 1995, 172). O processo de imitação, segundo Merriam (1964) e outros autores, desempenha um papel fundamental na aprendizagem musical. Conde e Neves (1984-85) relatam que no contexto investigado a criança responde fisicamente ao estímulo sonoro, ela imita e recria movimentos e gestos, ela começa a perceber seu significado. E a imitação é passo importante para atingir o mundo do adulto. De fato, à imitação do som, da palavra, e do gesto, segue-se imitação da estrutura grupal e do comportamento dos indivíduos no grupo. É absolutamente normal o aparecimento de blocos mirins, onde a vivência dos adultos é instigadora. (Conde e Neves 1984-85, 43)

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"Boys are encouraged by tradition to learn the drum-rhythms, and are often to be seen thumping boxes or calabashes."

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Rios (1997) descreve que o processo de imersão faz com que as crianças sentadas no "banco de reserva" aprendam o que está sendo ensaiado pelo participantes adultos. Segundo ela, o "banco de reserva" proporciona condições confortáveis e favoráveis de aprendizagem, pois uma criança pode optar secretamente pelo personagem que lhe agrada, direcionando seus esforços e atenções para o treinamento da voz, dança ou representação do mesmo, em um momento propício à sua compreensão e tendo a possibilidade de escolher entre as colegas, aquela que vai lhe passar os primeiros ensinamentos do personagem escolhido. Assim, no momento em que ela é chamada a participar, ou seja, no momento de sua exposição ao grupo, ela já domina a parte técnica do evento, preservando e elevando a sua auto-estima. (Rios 1997, 134) Prass (1998) estabelece uma diferenciação entre a fase da repetição e da imitação. A primeira faz com que frases e padrões rítmicos sejam memorizados e desenvolvidos tecnicamente. A segunda, imediatamente sucessiva à primeira, é uma reorganização do que foi visto, sentido e ouvido e portanto não é exatamente idêntica ao modelo. Ela aponta que no caso da aprendizagem musical, a imitação engloba uma escuta imitativa que acompanha a observação dos gestos de maneira simultânea, trabalhando interiormente com imagens aurais que são recursos que serão acionados sem a presença do imitado, à medida que o imitador construiu internamente essas referências. (Prass 1998, 158) Em relação à memorização, Santos (1994) explica que "na memória registram-se as relações percebidas intuitivamente, os princípios musicais estruturais característicos das respectivas tradições culturais, aprendidos na prática. Fora da prática não existe consciência de uma teoria musical" (Santos 1994, 16). A partir do momento em que o grupo dos adultos precisa de novos integrantes, as crianças mais adiantadas da bateria mirim, do "banco de reserva" ou da folia de lata, por exemplo, serão testadas e admitidas a entrar nele. É o começo de uma nova etapa. Conde e Neves (1984-85) frisam que

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passada a primeira etapa de vivenciação, na observação e na imitação, na criação a partir do modelo visto e na observação dos ensinamentos recebidos dos mais velhos, admitido no círculo dos adultos, começa uma nova fase de aprendizado, que poderá levar o novo participante do grupo a galgar postos hierarquicamente importantes. (Conde e Neves 1984-85, 44) Se até aquele momento aprender e brincar não tinham uma rígida separação, a partir da admissão no mundo dos adultos, o novo integrante começa a assumir uma atitude mais responsável em relação ao aprender e ao seu comportamento no grupo. Nzewi (1999) descreve que "na primeira iniciação pública, o jovem na tradição passa a ser reconhecido como um membro responsável de uma comunidade"14 (Nzewi 1999, 76). A partir de então o novo membro terá que experimentar e aprender aos poucos todos os saberes previstos por aquele contexto. Na banda Timbalada, relata Lima (1995), o ex-tocador de lata costuma aprender com muita facilidade. Precisa, porém, dos colegas mais experientes para aprimorar o repertório de toques e se dedicar muito ao estudo fora dos ensaios. "Ele atravessa uma trajetória de aprendizados e acessos a postos dentro da equipe, onde o exercício do saber vai sendo cada vez mais ‘completo’ e ‘profundo’”, explica Brandão (1983, 85). Com o passar do tempo, as ambições e as expectativas dos recém-admitidos tornam-se mais esclarecidas e evidentes. Se todos têm oportunidade de participar nas atividades, só alguns aprenderão o ofício nos mínimos detalhes. O autor constata que eles desde cedo se ocupam em aprender mais do que os outros. São separados ou separam-se dos outros para serem aprendizes de mestres. Serão motivados ou pressionados a aprenderem o repertório e o improviso, as regras do culto, os segredos do mistério e os fundamentos do rito (Brandão 1983, 89)

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"At first public initiation, the young person in tradition is recognized as a responsible member of a community".

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E assim cada vez mais eles tornam-se próximos do mestre, que passa a dividir com eles responsabilidades de arte e comando. "O futuro mestre começa então a aprender, praticando já como um mestre" (ibid., 90). Embora não se possa afirmar que a aprendizagem siga uma seqüência única e definida para todos, observa-se, porém, que na literatura são apontadas algumas etapas na vida de um aprendiz: a fase das brincadeiras nas quais se imitam as atividades dos adultos, a fase da admissão no grupo dos adultos, e daí eventualmente o caminho para tornar-se um novo mestre.

Do sistema de ensino e aprendizagem ao currículo (metafórico) “Currículo” é um termo polissêmico, que implica em vários significados, várias perspectivas, várias teorias. Elliott (1995) afirma que existem várias definições de currículo, a depender de quais aspectos do ensino-aprendizagem os teóricos decidem enfatizar: Para alguns, currículo significa um curso de estudo. Mas, para a maioria dos teóricos, currículo é um fenômeno muito mais elaborado (multidimensional), pois “o quê” da educação não pode realisticamente ser definido sem “o porquê” e “o quem”. Inevitavelmente, também “o quando” e “como” são partes fundamentais das decisões dos professores a respeito do porquê, de quem e do quê15. (Elliott 1995, 242) Goodlad e Su (1992), considerando as implicações das diferentes perspectivas, resumem as definições de currículo em quatro grandes grupos, segundo os quais (1) o currículo é o design ou plano da educação institucionalizada; (2) o currículo consiste nas oportunidades reais de aprendizagem proporcionadas num determinado momento e lugar; (3) o currículo é um 15

“To some, curriculum still means a course of study. But to most theorists, curriculum is a much more elaborate (or multidimensional) phenomenon, because the what of education cannot be realistically decided part from the why and the who and because matter of when and how inevitably circle around to teachers’ decisions about the why, who and what.”

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instrumento para provocar mudanças comportamentais nos aprendizes como resultado de suas atividades numa instituição educacional; (4) o currículo representa todas as experiências que o aprendiz realiza sob orientação da escola16. (Goodlad e Su 1992, 328) Forquin (2000) a este respeito afirma que Por currículo se entende, geralmente, tudo que é suposto de ser ensinado ou aprendido, segundo uma ordem determinada de programação e sob a responsabilidade de uma instituição de educação formal, nos limites de um ciclo de estudos. Por extensão, o termo me parece fazer referência ao conjunto dos conteúdos cognitivos e simbólicos (saberes, competências, representações, tendências, valores) transmitidos (de modo explícito ou implícito) nas práticas pedagógicas e nas situações de escolarização, isto é, tudo aquilo a que poderíamos chamar de dimensão cognitiva e cultural da educação escolar. (Forquin 2000, acesso internet) Estas colocações referem-se sempre ao ambiente escolar, institucional onde se dá o ensino. Por outro lado, na relação entre currículo, comunidade e cultura, Donmoyer (1990) ressalta que "a transmissão das crenças fundamentais da cultura requer professores sancionados pela comunidade para ensinar um currículo sancionado pela comunidade" 17 (Donmoyer 1990, 156). Este tipo de currículo, explica ele, é formado por mitos e histórias da cultura, assim como por ritos e rituais, que transmitem ao jovem, às vezes diretamente, mas freqüentemente indiretamente, as crenças fundamentais da comunidade sobre como o mundo é e como o mundo - aqueles que nele vivem - deveria ser. Assim, se quisermos compreender o currículo de uma comunidade tribal, teremos que compreender a cultura daquela comunidade18. (Donmoyer 1990, 156)

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"(1) The curriculum is a design or plan of institutionalized education; (2) the curriculum consists of the actual learning opportunities provided at a given time and place; (3) the curriculum is an instrument for bringing about behavioral changes in learners as a result of their activities in an educational institution; (4) the curriculum is all the educational experiences that a learner has under the guidance of the school". 17 "The transmission of fundamental culture beliefs requires community-sanctioned teachers teaching a community-sanctioned curriculum". 18 "(That curriculum) takes the form of cultural myths and stories, and rites and rituals, which transmit to the young, sometimes directly, but often indirectly, the community's fundamental beliefs about the way the world is and the way the world - and those whose live in it - ought to be. Thus, if we want to understand curriculum in a tribal community, we must understand that community's culture".

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Grundy, citada por Sacristán (1998a), não considera o currículo como um conceito mas como algo diretamente ligado à experiência humana e mais especificamente como um modo de organizar as práticas educativas. Segundo ela é sobretudo uma construção cultural (Grundy apud Sacristán 1998, 14). Contudo, qualquer que seja a acepção escolhida, faz-se necessário considerar a relação entre educação e cultura, sobre a qual Forquin (1993), lembra que é necessário reconhecer, com efeito, que esta ordem humana da cultura não existe em lugar nenhum como um tecido uniforme e imutável, mas que ela se especifica, ao contrário, numa diversidade de aparências e de formas segundo os avatares da história e as divisões da geografia, que ela varia de uma sociedade a outra e de um grupo a outro no interior de uma mesma sociedade, que ela não se impõe jamais de forma certa, incontestável e idêntica para todos os indivíduos, que ela está submetida aos acasos das ‘relações de forças simbólicas’ e a eternos conflitos de interpretação, que ela é imperfeita, lacunar, ambígua nas suas mensagens, inconstante nas suas prescrições normativas, irregular nas suas formas, vulnerável nos seus modos de transmissão e perpetuação. (Forquin 1993, 14-15). O que se transmite através da educação é somente algo de uma cultura e não uma cultura ou culturas. A nossa cultura, acentua Donmoyer (1990), é uma cultura composta, "uma coleção de subculturas" (Donmoyer 1990, 157), onde além dos grupos étnicos existem grupos metafóricos, como por exemplo a cultura dos profissionais, a cultura urbana, a cultura dos jovens. Já na década de 70, Cremin, citado por Jackson (1992), refletindo sobre a função educativa do lar e das instituições externas às escolas, destaca que Cada família possui um currículo, que ensina deliberadamente e sistematicamente ao longo do tempo. Cada igreja e sinagoga tem um currículo....E cada empregador tem um currículo....É possível continuar apontando que as bibliotecas têm um currículo, os museus têm um currículo, os grupos de escotismo têm um currículo, os centro de cura diária têm um currículo, e mais importante, talvez, as emissoras de rádio e televisão têm um currículo – e com estes currículos não me refiro somente aos programas rotulados como educacionais mas também à radiodifusão de notícias e aos documentários (que presumivelmente

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informam), aos comerciais (que ensinam às pessoas a querer) e às novelas (que reforçam mitos e valores dominantes)19. (Cremin apud Jackson 1992, 8) Silva (1999) insiste também em afirmar que "as instâncias culturais mais amplas também têm um currículo" (Silva 1999, 139), entendendo por instâncias culturais filmes, programas de televisão, exibições de museu, publicidades, música popular, entre outros. Desta forma, ele ressalta que a cena social e cultural contemporânea não é mais marcada por fronteiras que separam rigidamente o conhecimento escolar daquele do cotidiano ou da cultura de massa. Ele explica que "sem ter o objetivo explícito de ensinar, entretanto, é óbvio que elas [as instâncias culturais] ensinam alguma coisa, que transmitem uma variedade de formas de conhecimento que embora não sejam reconhecidas como tais são vitais na formação da identidade" (ibid., 140). É bom evidenciar que o currículo do qual está se falando, justamente por não se realizar e desenvolver dentro de uma instituição escolar, deve ser entendido em senso metafórico. Jackson (1992) a este respeito comenta que a amplitude com a qual Cremin concebe o currículo, embora seja correta, é singular. Segundo ele poucos educadores hoje em dia, sejam eles educadores profissionais ou membros de um público mais amplo, falam de currículo nesses termos extensos. Certamente, é discutível que muitos os tenham feito também na época de Bobbitt. Um currículo que não tem nada a ver com as escolas e com a escolarização era e continua sendo um termo a ser entendido mais metaforicamente que ao pé da letra20 (Jackson 1992, 8).

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"Every family has a curriculum, which it teaches quite deliberately and systematically over time. Every church and synagogue has a curriculum....And every employer has a curriculum....One can go on to point out that libraries have curricula, museums have curricula, Boy Scout troops have curricula, and day-care centers have curricula, and most important, perhaps, radio and television stations have curricula–and by these curricula I refer not only to programs labeled educational but also to news broadcasts and documentaries (which presumably inform), to commercials (which people to want), and soap operas (which reinforce common myths and values). (22)". 20 "Few peoples these days, whether professional educators or members of the large public at large, speak of the curriculum in such sweeping terms. Indeed, it is doubtful that many did in Bobbitt's day either. A curriculum that has nothing to do with schools and schooling was and remains more a metaphor than a term to be taken literally."

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Silva (1999), em vez de reduzir o currículo a uma definição, prefere considerar os conceitos enfocados nas principais correntes teóricas, pois Os conceitos de uma teoria dirigem nossa atenção para certas coisas que sem eles não ‘veríamos’. Os conceitos de uma teoria organizam e estruturam nossa forma de ver a ‘realidade’. Assim, uma forma útil de distinguirmos as diferentes teorias do currículo é através do exame dos diferentes conceitos que elas empregam. (Silva 1999, 17) Se um destes conceitos refere-se ao tipo de conhecimento que deve ser ensinado, não menos importante é a preocupação relativa ao tipo de ser humano que se pretende formar. Segundo ele "a cada um desses 'modelos' de ser humano corresponderá um tipo de conhecimento, um tipo de currículo" (ibid., 15). Ele observa que, refletindo atentamente, currículo tem diretamente a ver com identidade, e lembra que nas discussões cotidianas, quando pensamos em currículo pensamos apenas em conhecimento, esquecendo-nos de que o conhecimento que constitui o currículo está inextricavelmente, centralmente, vitalmente, envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornaremos: na nossa identidade, na nossa subjetividade. (ibid., 15) O poder é o elemento que, na opinião do autor, diferencia as teorias tradicionais das teorias críticas e pós-críticas e esquematiza, no seguinte modo, os conceitos principais que caracterizam cada uma delas: Teorias tradicionais ensino aprendizagem avaliação metodologia didática organização planejamento eficiência objetivos

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Teorias críticas ideologia reprodução cultural e social poder classe social capitalismo relações sociais de produção conscientização emancipação e libertação currículo oculto resistência Teorias pós-críticas identidade, alteridade, diferença subjetividade significação e discurso saber-poder representação cultura gênero, raça, etnia, sexualidade multiculturalismo (ibid., 17) Sintetizando os conceitos desta forma, torna-se evidente que as teorias tradicionais estão mais preocupadas com a questão da organização, e que as teorias críticas e póscríticas concentram sua atenção sobre a articulação entre saber, identidade e poder. As teorias tradicionais resultam, portanto, ter uma pretensão com a neutralidade, com a cientificidade. Segundo Silva As teorias críticas e pós-críticas, em contraste, argumentam que nenhuma teoria é neutra, científica ou desinteressada, mas que está, inevitavelmente, implicada em relações de poder. As teorias tradicionais, ao aceitar mais facilmente o status quo, os conhecimentos e os saberes dominantes, acabam por se concentrar em questões técnicas. Em geral, elas tomam a resposta à questão ‘o quê?’ como dada, como óbvia e por isso buscam responder a outra questão: ‘como?’.... As teorias tradicionais se preocupam com questões de organização. (ibid., 16)

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Os conceitos apontados nas teorias tradicionais, portanto, representam a base através da qual será realizada a análise do sistema de ensino e aprendizagem da Lactomia. Considerando que um dos meus objetivos é dar legitimidade à organização interna de um tipo de sistema de ensino e aprendizagem que sofre ainda com uma certa discriminação, os conceitos característicos das teorias tradicionais constituirão o fundamento para este caminho investigativo. Embora, segundo Silva, uma das peculiaridades das teorias tradicionais seja a neutralidade implícita nesse enfoque, meu interesse nesse perspectiva pretende levar em conta o profundo envolvimento da banda com seu contexto sóciocultural e não omitir uma leitura crítica das relações de poder que regem seu cotidiano e sua história. Para realizar a descrição e análise do sistema de ensino e aprendizagem da banda Lactomia serão enfocados, a partir dos conceitos das teorias tradicionais, quatro aspectos principais: 1) objetivos, valores e normas, pois a partir da literatura consultada não é possível falar em objetivos sem destacar quais valores e normas regem um determinado contexto sócio-cultural; 2) metodologia e didática; 3) planejamento e 4) avaliação, sendo que os outros conceitos (ensino, aprendizagem, organização e eficiência) permeiam este estudo de caso desde seu começo.

Capítulo 2

Metodologia

It is necessary to specify the method by which I arrived at my conclusions because people looking at the same phenomenon in different ways see different things. (John Chernoff 1979, 8)

O propósito deste capítulo é descrever como foi desenvolvida a pesquisa tanto do ponto de vista prático quanto do ponto de vista teórico. Cada seção é dividida em duas partes: na primeira, relato cada fase da minha experiência do ponto de vista prático e na segunda, argumento sobre minhas escolhas, apresentando os autores que fundamentaram as decisões tomadas. Como justamente escreve John Chernoff (1979), descrever o método através do qual se chega às conclusões faz com que as pessoas que se relacionam com o mesmo fenômeno não vejam coisas totalmente diferentes. A divisão entre o ponto de vista teórico e a experiência prática não deve ser entendida como dois momentos separados, mas como partes complementares do mesmo discurso. Compreender o continuum existente entre literatura e experiência prática foi de fundamental importância, pois foi justamente a partir deste diálogo que pude adquirir uma maior sensibilidade crítico-analítica.

A abordagem qualitativa da pesquisa ... ... do ponto de vista da minha experiência

Se, desde o começo do curso de mestrado eu estava firmemente decidida em dedicar minha atenção aos saberes não-escolares da educação musical, o primeiro passo para poder

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começar a pensar realmente na pesquisa foi estabelecer quais seriam as características do grupo com o qual iria entrar em contato. Tal requisito não era à toa, pois a minha nãofamiliaridade e o profundo interesse com uma cultura percussiva tão efervescente em Salvador, fizeram com que surgisse em mim o desejo de conhecer e compreender a dinâmica da educação musical na cultura oral. Apesar da grande profusão de bandas formadas exclusivamente por instrumentos de percussão existentes na cidade de Salvador, tive que considerar que nem todas eram indicadas para este tipo de estudo. Assistindo, por exemplo, ao desfile de inauguração do PercPan - Panorama Percussivo Mundial - no ano de 2000, me deparei com algumas idéias. Nessa ocasião, fiquei impressionada com a qualidade da execução musical da banda mirim do bloco Ilê Aiyê e interessada, por outro lado, em conhecer o Projeto Axé, também presente. Na tentativa de entrar em contato com o Projeto Axé, tive uma conversa com a professora Alda Oliveira, que me sugeriu, caso o Projeto Axé não desse certo, conhecer a banda Lactomia, descrevendo-a como “umas das bandas mais interessantes de Salvador”. De posse de um pequeno mapa desenhado num papel e com uma vaga descrição do regente da banda, Jair, caracterizado por ela como “um loirinho queimadinho de sol” que iria encontrar provavelmente próximo à sede do grupo, me desloquei até o bairro do Candeal Pequeno. Chegando lá, não foi difícil identificar a casa-sede da banda Lactomia com todos seus instrumentos pendurados na fachada e seu regente, Jair, o rapaz "loirinho queimadinho de sol". Apresentei-me a ele e expliquei meu interesse em realizar uma pesquisa sobre a banda. Ele me convidou a entrar para mostrar a sede, os instrumentos e umas fotos e recortes de jornais afixados nas paredes. A partir daquele primeiro contato foi marcado dia e hora para que eu pudesse assistir a um ensaio. Anotei o telefone de contato, dei o meu e me despedi.

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Embora a expectativa fosse grande, pude entender que o início não é sempre tão imediato como se imagina. Mesmo tendo marcado dia e hora, o dia seguinte, bem como a semana sucessiva, descobri, só chegando no local, que o ensaio tinha sido cancelado na última hora, por causa de outros trabalhos urgentes. Por esse motivo reportei-me aquele capítulo "Come back and see me next Tuesday"21 (1983, 245) do livro de Nettl, onde ele relata e reflete sobre as dificuldades típicas encontradas nos primeiros momentos de um trabalho de campo. ... e do ponto de vista teórico

Escreve Goldberg (2000) que o que determina como trabalhar é o problema que se quer trabalhar: só se escolhe o caminho quando se sabe aonde se quer chegar (Goldberg 2000, 14). A adoção da abordagem qualitativa para desenvolver a pesquisa foi algo que tornouse claro no momento em que decidi o tema do estudo, ou seja, investigar como se ensina e aprende música num contexto de tradição oral, e fortaleceu-se quando conheci o contexto físico (o bairro) e humano (os integrantes da banda Lactomia e a comunidade do Candeal). A pesquisa qualitativa, também denominada "naturalista" ou "naturalística", que se propõe estudar o fenômeno em seu acontecer natural, surge como reação crítica à concepção positivista das ciências (André 1995). "A abordagem qualitativa parte do fundamento que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, uma

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O sujeito a ser pesquisado, às vezes, cria mecanismos de “defesa” para compreender quem é a pessoa (o pesquisador) que está se aproximando à própria comunidade e com quais finalidades. Nestas situações, o autor destaca que os pesquisadores devem ter muita paciência e não desanimar frente às dificuldades.

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interdependência viva entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito", diz Chizzotti (2000, 79). Segundo Bresler e Stake (1992), na área de educação, para estudar a unicidade do ensino e aprendizagem, os pesquisadores valorizam os estudos qualitativos, pois seu design permite e exige uma atenção especial para o contexto físico, temporal, histórico, social, político, econômico e estético. Bogdan e Biklen (1982) apontam cinco aspectos que caracterizam os estudos qualitativos: (1) "a pesquisa qualitativa tem o cenário natural como fonte direta de dados e o pesquisador representa o instrumento chave"22 (Bogdan e Biklen 1982, 27). O comportamento humano é influenciado pelo contexto onde vive, portanto, faz-se necessário o seu estudo no cenário natural. (2) "A pesquisa qualitativa é descritiva" 23 (ibid., 28), já que a coleta de dados se dá através de palavras e imagens, em vez que através de números. Tantos os dados, que compreendem entrevistas, diário de campo, fotos, vídeos, documentos oficiais, quanto o contexto investigado devem ser estudados partindo do pressuposto que nada é trivial e que, ao contrário, tudo pode ser potencialmente de auxílio para uma compreensão mais profunda. (3) "Os pesquisadores são principalmente preocupados com o processo que com os resultados ou os produtos"24 (ibid., 28). A ênfase qualitativa sobre os processos é especialmente benéfica para a pesquisa em educação pelo fato de iluminar atitudes, negociações, interações e procedimentos. (4) "Os pesquisadores procuram analisar seus dados indutivamente"25 (ibid., 29). O objetivo não é confirmar ou refutar as hipóteses iniciais através dos dados, mas montar as poucos um quadro que tome forma com a coleta e análise dos dados. E por último (5) "É atribuída grande importância

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"Qualitative research has the natural settings as the direct source of data and the researcher is the key instrument". 23 "Qualitative research is descriptive". 24 "Qualitative researchers are concerned with process rather than simply with outcomes or products". 25 "Qualitative researchers tend to analyze their data inductively".

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ao 'significado'"26 (ibid., 29), ou seja, compreender como as pessoas dão sentido às próprias ações e à própria experiência. A pesquisa qualitativa, desta forma, é conduzida por um pesquisador que, junto com os sujeitos pesquisados, coleta seus dados, durante o trabalho de campo, utilizando principalmente dois instrumentos: a observação participante e a entrevista, em ambos dos quais o papel do pesquisador é central (Phelps et al. 1993, 148). Ele, então, deve assumir uma postura aberta em relação às manifestações, às ações e aos comportamentos que observa, para alcançar uma visão global. Deve "experienciar o espaço e o tempo vivido pelos investigados e partilhar de suas experiências, para reconstruir adequadamente o sentido que os atores sociais lhes dão a ela" (Chizzotti 2000, 82). A perspectiva antropológica da etnomusicologia (ver Merriam 1964, Blacking 1976, Nettl 1983), que dá ênfase à música sem divorciá-la, porém, do seu contexto geral, providenciou um importante modelo de pesquisa para a educação musical. Afirmam Bresler e Stake (1992) que Esta segunda abordagem [antropológica] é tipicamente um estudo naturalístico orientado para o campo. O pesquisador fica no contexto durante um considerável período de tempo, imerso na cultura. As questões, uma combinação de êmicos e éticos, vão sendo focalizadas progressivamente27. (Bresler e Stake 1992, 80) A partir das reflexões estimuladas por esses teóricos, escolhi a abordagem qualitativa como mais indicada para realizar a pesquisa com a banda Lactomia.

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"'Meaning' is of essential concern to the qualitative approach". "This second approach is typically a field-oriented naturalistic study. The researcher stays at the site for a considerable amount of time, getting immersed in the culture. The issues, a combination of emic and etic, are progressively focused". 27

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O estudo de caso ... ... do ponto de vista da minha experiência

Após o primeiro contato com Jair e alguns desencontros, consegui finalmente assistir a um ensaio da banda. Até aquele momento ainda não tinha noção do tipo de música, dos instrumentos musicais utilizados, nem pessoas que formavam a banda Lactomia. Admito que após este ensaio fiquei preocupada, talvez até espantada, pois o que eu percebi foi fundamentalmente o lado artístico, mas não o lado pedagógico do grupo. Contudo, refletindo mais sobre estas primeiras impressões, resolvi aceitar o desafio, confiando que os aspectos pedagógicos que eu queria levantar, iriam se tornar mais claros e evidentes através da vivência com a banda, visto que, afinal, imaginava acompanhar suas atividades durante aproximadamente um ano. Numa reunião com Jair e outros dois integrantes, Adriano e Dermeval, eu perguntei se eles concordavam que a pesquisa fosse sobre como se aprende e se ensina música na banda e se estavam dispostos a colaborar. Recebi resposta afirmativa. A pesquisa, então, podia ser iniciada.

... e do ponto de vista teórico

Definido o objetivo de estudo, ou seja, como se articula o sistema de ensino e aprendizagem musical de um grupo num contexto específico, o estudo de caso representou a estratégia de pesquisa mais adequada. Historicamente o estudo de caso era muito utilizado em pesquisas na área médica, pelo fato de conseguir adquirir conhecimento sobre um fenômeno a partir da uma exploração intensa de um único caso (Goldberg 2000). Mais recentemente, a educação passou a se valer dos estudos de caso para explorar os processos

31

e as dinâmicas da prática educativa (S. Merriam 1988). Segundo Sharan Merriam, o estudo de caso qualitativo pode ser definido como uma descrição intensiva e holística, e uma análise de uma entidade, fenômeno ou unidade social singular. Os estudos de caso são particularistas, descritivos e heurísticos, e fundamentalmente se baseiam no raciocínio indutivo no tratamento das fontes múltiplas de dados28. (Merriam 1988, 16) Segundo a autora explica, são "particularistas" por focalizar uma situação específica, um evento, um programa, um fenômeno; são descritivos, pois o resultado final consta de uma descrição densa do fenômeno em questão; são heurísticos, por oferecer ao leitor um entendimento completo sobre como o fenômeno foi estudado; e indutivos, enquanto generalizações, conceitos e hipóteses emergem do exame dos dados. Bogdan e Biklen (1982) comparam o estudo de caso a um funil, cujo lado mais amplo representa o início da pesquisa. Para os autores, o pesquisador, após localizar onde e com quem realizar a pesquisa, começa a procurar indícios sobre como proceder, a coletar dados, revisando-os e aprofundando-os constantemente para determinar, desta forma, que direção dar ao estudo. Ele decide como distribuir o tempo, quem entrevistar e o que explorar em profundidade. Algumas idéias podem ser eliminadas e substituídas por novas, já que, com o tempo, ganha-se um maior conhecimento sobre o caso em estudo. De um começo amplo e exploratório, portanto, o pesquisador passa cada vez mais a definir a coleta e análise dos dados. Vários autores parecem concordar que no estudo de caso não há regras fixas que determinam técnicas de coleta de dados específicas. Justamente por ser o caso em estudo

28

"an intensive, holistic description and analysis of a single entity, phenomenon or social unit. Case studies are particularistic, descriptive, and heuristic and rely heavily on inductive reasoning in handling multiple data sources".

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um caso único, o desenvolvimento da pesquisa depende do tema, do pesquisador, dos pesquisados. Motivado por este ponto de vista, o pesquisador, diz Goldberg (2000) deve estar preparado para lidar com uma grande variedade de problemas teóricos e com descobertas inesperadas, e, também, para reorientar seu estudo. É muito freqüente que surjam novos problemas que não foram previstos no início da pesquisa e que se tornam mais relevantes do que as questões iniciais. (Goldberg 2000, 35)

A entrada em "campo" e a coleta de dados ... ... do ponto de vista da minha experiência

Pela falta de familiaridade com o tipo de música, o ambiente e as pessoas, minha aproximação com o trabalho de campo foi lenta e gradual. Comecei a freqüentar os ensaios da banda no dia 07 de outubro de 2000, tendo em mente somente a questão geral da pesquisa e deixando para um segundo momento a definição de questões mais específicas. Os primeiros dois meses (de outubro até dezembro de 2000) foram necessários para me ambientar no cenário e, sobretudo, para que os integrantes da banda se acostumassem com a minha presença. Mantendo um comportamento discreto em relação ao grupo, comecei a coletar dados em forma de diário de campo e a gravar os ensaios com um minidisc (MD). Minha inserção, apesar das expectativas, não foi fácil, nem imediata. Cometeria uma injustiça se dissesse ter sofrido resistência por parte do grupo, mas, por outro lado, não posso afirmar que minha presença fosse esperada. Simplesmente foi aceita. Uma possível explicação dessa situação reside talvez nas muitas diferenças existentes entre eles e eu, e que provavelmente nos separavam mais que aproximavam. Diferenças de idade, de sexo, de cor, de nacionalidade, de nível de escolaridade e, quem sabe, mais quantas outras. Acrescento ainda o aspecto da timidez dos integrantes que provavelmente foi amplificado

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por causa dessas diferenças mencionadas e da minha por me encontrar num ambiente novo e ainda não familiar. Um fator adicional que provavelmente influiu neste tipo de comportamento do grupo deve ter sido ligado às experiências negativas pelas quais passou o músico Carlinhos Brown, e que de alguma forma se tornaram advertências ou precauções para os outros músicos do Candeal. Estas experiências negativas parecem terem sido causadas por visitantes sem escrúpulos, muitos dos quais estrangeiros, que gravaram sem permissão e reproduziram sucessivamente trabalhos em grande escala sem sequer retribuir ou pelo menos dar crédito aos verdadeiros autores. Tais comportamentos podem ter gerado um sentimento de aguda desconfiança em relação àqueles que aparecem "armados" de máquinas fotográficas, gravadores e filmadoras. Esta desconfiança tornou-se evidente aos meus olhos após ter assistido ao primeiro ensaio, quando perguntei a Jair se em outras ocasiões ele permitiria que eu gravasse em MD (minidisc). Ele fez uma expressão de desaprovação e me respondeu que sobre este aspecto não era ele quem decidia. Após explicar-lhe melhor algumas regras éticas da pesquisa e apresentar uma carta de autorização para garantir a honestidade dos meus propósitos, ele concordou em permitir o registro da vida da banda. ... e do ponto de vista teórico

A inserção no "campo" é descrita por Nettl (1983) como um momento de estresse, de grande tensão que requer coragem, paciência e perspicácia. Também Rosiska Darcy de Oliveira e Miguel Darcy de Oliveira (1990) constatam que a inserção é o processo pelo qual o pesquisador procura atenuar a distância que o separa do grupo social com quem pretende trabalhar. Esta aproximação, que sempre exige paciência e honestidade, é a condição inicial necessária para que o percurso da pesquisa possa, de fato, ser

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realizado de dentro do grupo, com a participação de seus membros enquanto protagonistas e não simples objetos. (Oliveira 1990, 27) Segundo os dois autores, é muito importante que o pesquisador se esforce para ser aceito, mas reforçam que "ele precisa ser aceito como realmente é, ou seja, como alguém que vem de fora, que se dispõe a realizar, com o grupo, um estudo que pode ser útil, mas que num determinado momento, irá embora" (ibid., 27). Ter boas relações com o grupo é fundamental enquanto cada membro é um colaborador em potencial e poderá abrir caminhos tanto quanto auxiliar na interpretação de significados. Uma vez inserido no "campo", o pesquisador começa a coleta de dados, constituídos pelas falas e atividades dos integrantes do grupo em estudo. Os dados podem consistir em "descrições detalhadas de situações, eventos, pessoas, interações e comportamentos observados; citações diretas de pessoas sobre as próprias experiências, atitudes, crenças e pensamentos; extratos ou inteiros trechos de documentos, correspondência, e histórias"29 (Merriam apud Patton 1988, 67-68). São coletados, por meio do diário de campo, gravações em áudio e vídeo, fotografias e em alguns casos documentos oficiais (Phelps 1993). Como dados, segundo Bogdan e Biklen (1982), entende-se o material desordenado que o pesquisador coleta no contexto que está estudando e que servirá como base para uma sucessiva análise. Eles indicam que são ao mesmo momento "a evidência e o indício. Coletados cuidadosamente servem como provas incontestáveis que servirão para distinguir um relato escrito de especulações infundadas"30 (Bogdan e Biklen 1982, 73).

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"[Qualitative data consist of] "detailed description of situation, events, people, interactions, and observed behaviors; direct quotations from people about their experiences, attitudes, beliefs, and thought; and excerpts or entire passages from documents, correspondence, records, and case histories" (Patton 1980, 22)". 30 "[Data are both] the evidence and the clues. Gathered carefully, they serve as the stubborn facts that save the writing you will do from unfounded speculation".

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Em relação ao trabalho de campo realizado para a área de música, Blacking (1973) resume da seguinte forma as tarefas que o pesquisador deve cumprir: Ele deve gravar não só a música, como esta é produzida, os glossários de termos musicais e os detalhes sobre a construção dos instrumentos, mas também o contexto preciso das situações nas quais a música é executada, as reações dos músicos e dos ouvintes, as estruturas das atividades sociais e culturais, e a correspondência entre a relação tonal e a relação expressa em outras áreas da vida social31. (Blacking 1973, 209) Foi com este espírito que me propus desenvolver o trabalho de campo, considerando também que a diferença de um estudo etnomusicológico alguns aspectos teriam recebidos maior atenção e outros menos.

A observação participante ... ... do ponto de vista da minha experiência

Durante os primeiros meses, os momentos dedicados à observação davam aparentemente a impressão de serem momentos estáticos, nos quais nada ocorria. Nos ensaios eu ficava normalmente na proximidade da entrada da sala, encostada na parede assistindo. A impressão que tive muitas vezes era que a minha presença era quase imperceptível: para os integrantes eu tanto podia estar quanto não estar aí. Talvez fosse um exagero de minha parte, mas a diferença era verdadeiramente mínima. Embora não fosse mínima para mim. Aos poucos fui entendendo a dinâmica do grupo com seus mecanismos e normas que determinavam comportamentos, ações, atitudes. Tornou-se evidente quem era a autoridade e como aplicava o seu poder no interior do grupo. Desde o começo, não tive a 31

"He must record not only the sounds of the music and the ways in which they are produced, and the glossaries of musical terms and details of instrument making, but also the precise contexts of the situations in which music is performed and the responses if performers and listeners, the structures of social and cultural activities, and correspondences between tonal relationship and relationship that are expressed in other fields of social life".

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menor dúvida que Jair explicitasse este papel, mas me perguntava, por outro lado, se eram seus colegas que lhe atribuíam poder ou se era ele que o tinha conquistado. Questões como estas podiam ser respondidas somente através da observação dos comportamentos e das relações entre os integrantes. Enquanto tentava decifrar as redes de relações e as hierarquias, comecei também a me entrosar mais com o grupo, procurando ocasiões de conversas com os integrantes e tomando como pretexto assuntos relativos aos acontecimentos do bairro, principalmente os ensaios da Timbalada e do Arrastão da Timbalada. Pude, assim, conhecer um pouco da história de cada um e, sobretudo, a fazer com que eles se esforçassem a lembrar das próprias experiências passadas. O que neste período me ajudou muito a construir um quadro do contexto, assim como a supor como eles se aproximaram à música e aprenderam a tocar, foi assistir aos ensaios do grupo Arrastão da Timbalada, composto por uns 200 percussionistas, também regido por Jair Rezende. A heterogeneidade deste grupo, no qual participavam tanto percussionistas profissionais quanto iniciantes, obrigava Jair a procurar constantemente soluções para conseguir coordenar aquele grande número de pessoas e suas experiências musicais. As seleções, por exemplo, realizadas regularmente para definir quem ia ou não tocar numa determinada apresentação, davam a Jair um quadro completo da situação. Controlando um por um para que uma frase rítmica fosse executada corretamente, ele ia selecionando o grupo para o show. Ao mesmo tempo, observando o comportamento das crianças ao redor durante os ensaios, compreendi muito sobre a aprendizagem musical no contexto local. Refletindo sobre esses momentos, comecei a esboçar quais seriam as questões a serem investigadas.

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... e do ponto de vista teórico

A observação participante é considerada a principal técnica (junto com a entrevista) de coleta de dados da pesquisa qualitativa e é diretamente ligada ao trabalho de campo. Chernoff (1979) acredita que a observação participante é uma abordagem eficaz que o pesquisador dispõe "para se aproximar às realidades experienciadas na vida social e para verificar a importância de vários fatores dentro da situação da pesquisa em si"32 (1979, 8). Segundo o autor, o fato de não ter que abstrair os dados apressadamente faz com que o pesquisador obtenha uma visão mais ampla de como os elementos de um determinado contexto se combinem. A observação é considerada por Kidder, citado por S. Merriam (1988), como uma ferramenta da pesquisa quando "(1) auxilia uma questão de pesquisa formulada, (2) é planejada deliberadamente, (3) é registrada sistematicamente, e (4) é sujeita a supervisões e controles de validade e confiabilidade"33 (Kidder apud Merriam 1988, 88). A observação participante, embora seja criticada, sobretudo, pelo alto grau de subjetividade com o qual são coletados os dados, oferece perspectivas únicas, que não poderiam ser levantadas de outra forma. A observação faz com que o observador, enquanto pessoa externa ao grupo, perceba os aspectos rotineiros da vida, obtendo desta forma uma melhor compreensão do contexto; permite o registro de ações, comportamentos e atitudes no momento em que estes se fazem visíveis; esclarece aspectos de difícil verbalização. Para isso, segundo Phelps (1993) o pesquisador deve conseguir um certo nível de empatia em relação ao uso idiossincrático da linguagem utilizada pelo grupo.

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"[participant-observation is particularly effective as a means of] getting close to the experienced realities of social life and thus authenticating the importance of various factors within the research situation itself". 33 "(1) serves a formulated research purpose, (2) is planned deliberately, (3) is recorded systematically, and (4) is subjected to checks and controls on validity and reliability (Kidder 1981b, 264)".

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Bresler e Stake (1992) apontam que a observação pode ser participante e nãoparticipante a depender do grau de envolvimento com o grupo pesquisado. Para os autores, durante uma abordagem não-participante o pesquisador observa as atividades ordinárias e o ambiente, as pessoas, o exercício da autoridade e responsabilidade, a expressão de intenções, a produtividade e especialmente o milieu....O pesquisador não-participante é invisível e não-intrusivo quanto possível34 (Bresler e Stake 1992, 84) Enquanto na abordagem participante o pesquisador engaja-se nas atividades ordinárias do grupo ou programa estudado tentando não redirecionar aquelas atividades. A participação pode ser marginal....ou mais extensiva como no caso do professorpesquisador na própria classe35 (ibid., 84) No meu caso, optei por uma postura participante, pelo fato de estar visivelmente presente e interagindo abertamente com o grupo. Em geral, os autores que tratam de questões metodológicas ressaltam a importância de anotar e descrever por escrito tudo o que aconteceu logo depois do encontro. Assim, comecei a compilação do diário de campo. As entrevistas ... ... do ponto de vista da minha experiência

Tão logo consegui um mínimo de empatia com os integrantes da banda, propus fazer algumas entrevistas. Expliquei para eles que era de extrema importância para pesquisa ter depoimentos gravados, pois assim as opiniões e lembranças manteriam sua características originais. Não muitos se dispuseram, pois o gravador provocava uma reação inibidora, mas foi um começo. Normalmente eu procurava entrevistar pequenos grupos

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"the researcher observes ordinary activities and habitat, the people, the exercise of authority and responsibility, the expression of intent, the productivity, and especially the milieu....The nonparticipant observer is as invisible and nonintrusive as possible ...". 35 "the researcher engages in the ordinary activities of the group or program being studied but tries not to redirect those activities. Participation may be marginal.... or more extensive, such as the teacher as researcher in her own classroom ...."

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para ver se eles, interagindo um com outro, conseguiam se sentir mais à vontade e a se soltar mais. Em alguns casos funcionou, sobretudo nos últimos meses de trabalho de campo, em outros, a timidez era tão grande que alguns me respondiam fazendo sinais de sim ou não com a cabeça. Nestes casos tive que invalidar a entrevista. Em geral, parecia evidente que para muitos integrantes minhas perguntas sobre como era a banda antigamente, como eles aprenderam a tocar, o que eles fazem agora, soavam como muito esquisitas. Provavelmente eles não entendiam o que eu achava de tão interessante nos detalhes da vida cotidiana, segundo eles irrelevantes. Normalmente usava como roteiro algumas perguntas norteadoras com as quais procurava explorar aspectos relativos ao ensino e aprendizagem musical. Com a interação do grupo, acontecia às vezes que outros argumentos de conversas surgissem de repente. Embora não diretamente inerentes ao que eu precisava aprofundar, foi para mim interessante conhecer opiniões, mentalidades, valores, concepções sobre a vida e a música que nestes momentos emergiam espontaneamente. Alguns integrantes mais dispostos proporcionaram informações que, de um lado, abriram novos caminhos de compreensão e, do outro, confirmaram impressões levantadas durante os ensaios. Jair foi o interlocutor, a fonte de informação principal, a pessoa que, pelo fato de ser líder do grupo, também tinha a autoridade e a competência para falar sobre a banda. Todos os integrantes que consegui entrevistar36 acrescentaram, quem em maior ou menor grau, partes desse mosaico que estava desenhando. Para quem concordava dar o seu depoimento, geralmente eu perguntava sobre como aprendeu a tocar; como entrou na banda, quando e por meio de quem; como eram feitos os ensaios da Lactomia e do

36

Não foram todos, pois os mais tímidos mostravam claramente não estar disponíveis. Após algumas tentativas, me resignei, respeitando a vontade deles.

40

Arrastão da Timbalada antigamente; quais eram as pessoas do bairro que mais o influenciaram humanamente e musicalmente; o que ele espera para o futuro dele e da banda; como estava sendo a experiência na escola Pracatum, entre outras. Uma vez concluída a gravação da entrevista, chegava a hora de transcrever integralmente o que tinha sido falado segundo a modalidade de expressão utilizada. Adotei um tipo de escrita que refletisse o caráter tipicamente oral das expressões coloquiais. Somente após ter todas as entrevistas e transcrições prontas, cataloguei o conteúdo segundo tópicos-questões e outros argumentos relativos ao contexto geral, bem como dados sobre os integrantes individualmente.

... e do ponto de vista teórico

A entrevista, da mesma forma que a observação, baseia-se sobre o ouvir, o olhar e requer uma postura ativa por parte do pesquisador em relação ao grupo pesquisado. Há principalmente dois métodos de entrevista, uma que utiliza o modelo do questionário e outra mais aberta e abrangente, mas não há unanimidade sobre as definições. Para Rosiska e Miguel Darcy de Oliveira (1990) existe a entrevista que segue o modelo do questionário pergunta-resposta, que "bloqueia o surgimento de dados novos e inesperados" (Oliveira 1990, 29), bem como a entrevista livre, ou seja, um diálogo aberto, "onde se estimula a livre expressão da pessoa com quem se conversa, amplia o campo do discurso que passa a incluir não só fatos e opiniões bem delimitadas, mas também devaneios, projetos, impressões, reticências, etc." (ibid., 29). Contudo, afirmam eles, a entrevista livre "deve ter um fio condutor, uma estrutura de base ligada ao núcleo temático a ser pesquisado" e deve

41

considerar também aqueles fragmentos de discurso, o "não dito" e o "mal dito" (ibid., 30), tão importantes quanto as respostas claras. As técnicas de entrevistas, para Phelps (1993), são subdivididas em estruturadas, quando funcionam tipo um survey, no qual "as mesmas perguntas preparadas são postas para todos os consultados"37 (Phelps 1993, 164), e não-estruturadas38, quando têm uma "lista de áreas de interesse sem uma ordem cronológica específica ou questões formuladas"39 (ibid., 164). Bresler e Stake (1992) escrevem que as entrevistas servem em primeiro lugar "para obter

observações

que

o

pesquisador

não

conseguiria

alcançar

diretamente,

secundariamente para capturar as múltiplas realidades ou percepções sobre cada determinada situação, e finalmente, como assistente na interpretação dos acontecimentos"40 (Bresler e Stake 1992, 85). Eles diferenciam a entrevista estruturada daquela semiestruturada, a qual "permite latitude para comprovar e seguir o senso do que é importante para o entrevistado"41 (ibid., 85). Junto com as entrevistas, outro aspecto fundamental é saber quem se entrevista, ou seja, quem são os informantes. Para Phelps (1993), "os informantes chave são membros do grupo que têm conhecimento, status ou habilidade especial de comunicar. Uma razão para entrevistar um informante-chave é que ele ou ela tem acesso às informações de outra forma negada ao pesquisador"42. 37

"the same prepared questions to all consultants". "Unstructured". 39 "a list of areas of concern without a specified chronological order or formulated questions". 40 "to obtain observations that the researcher is unable to make directly, secondly to capture multiple realities or perceptions of any given situation, and, finally, to assist in interpretation what is happening". 41 "allow latitude for probing and following the interviewee's sense of what is important". 42 "Key informants are members of the group who have special knowledge, status, or ability to communicate. One reason for interviewing a key informant is that he or she may have access to information otherwise denied to the researcher". 38

42

A análise dos dados ...

... do ponto de vista da minha experiência

Uma vez concluído o trabalho de campo e terminada a transcrição das entrevistas e das gravações em vídeo, chegou o momento de analisar os dados coletados. Antes de começar uma classificação do material, foi importante reler tudo o que tinha sido escrito para obter uma visão geral dos dados. Após estabelecer as categorias que refletiam as questões da pesquisa, começou o trabalho de classificação do material. A ordenação foi feita considerando tanto os aspectos que respondiam às questões principais da pesquisa quanto os aspectos secundários, ou seja, aquelas informações não diretamente ligadas ao tema, mas que podiam auxiliar na compreensão das mentalidades, das personalidades e do contexto. Uma vez terminada a catalogação, foi a vez de analisar como os entrevistados tinham se colocado em relação aos temas tratados, refletindo, por um lado, sobre o que certas afirmações ou comportamentos podiam significar nos termos próprios da cultura, e por outro, para a área de educação musical. Ao mesmo tempo, selecionei os trechos mais expressivos e significativos que pudessem ser citados no relatório final. ... e do ponto de vista teórico

A fase da pesquisa que diz respeito à análise dos dados pressupõe um processo de organização, reflexão, seleção e síntese do material disponível sobre o qual o pesquisador irá compor o seu relatório. Para Bogdan e Biklen (1982), a análise dos dados é o processo de busca e organização sistemática das transcrições das entrevistas, notas do campo, e outro material que o pesquisador acumula para aumentar o próprio entendimento sobre eles e

43

para que apresente o que descobriu para outras pessoas43. (Bogdan e Biklen 1982, 145) Se inicialmente o pesquisador, revisando os dados, encontra o material em forma desordenada e desconexa, aos poucos, confrontando e analisando, ele vai determinando categorias de classificação que façam sentido com os objetivos definidos. Passa, assim, para um outro nível de compreensão. Para Merriam (1988) "a análise dos dados corresponde ao processo para dar um sentido aos próprios dados"44 (Merriam 1988, 127). Também nessa vertente, Phelps (1993) afirma que "análise é sinônimo de interpretação dos dados"45 (Phelps 1993, 174). Assim, as perspectivas, que inicialmente são confusas, vão tomando forma, afunilando-se em torno das questões da pesquisa, guiando o pesquisador na redação do relatório final.

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"Data analysis is the process of systematically searching and arranging the interview transcripts, field notes, and other materials that you accumulate to increase your own understanding of them and to enable you to present what you have discovered to others". 44 "Data analysis is the process of making sense out of one's data". 45 "Data analysis is synonymous with interpretation of data".

Capítulo 3

A Banda Lactomia

Neste capítulo, será apresentada a banda Lactomia com seu ambiente de vida e formação musical. As informações sobre o bairro de origem dos integrantes e sobre um personagem importante para a banda (Carlinhos Brown) constituem o ponto de partida. Prosseguindo essa excursão, serão percorridas as etapas principais do histórico da banda junto com seus integrantes até chegar ao que é a Lactomia hoje com suas atividades (ensaios, shows, reuniões), bem como instrumentos musicais e repertório.

O bairro do Candeal Pequeno de Salvador

Como uma entre as tantas áreas encravadas da cidade de Salvador, o Candeal Pequeno encontra-se entre o bairro de Brotas e a Cidade Jardim, próximo à Avenida Juracy Magalhães Júnior, através dos quais se tem acesso ao local. Chegando ao Candeal46pela Avenida Juracy Magalhães Júnior, a paisagem é dominada por altos prédios recémconstruídos, habitados por moradores de alto poder aquisitivo. Mas é só continuar na mesma direção para que uma outra realidade social se choque com esta atmosfera de bem estar e opulência. Um conjunto de casas modestas, cavalos magros pastando no que sobrou de um bambuzal, até pouco circundado por uma lagoa, e crianças descalças brincando na

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Utilizarei de agora em diante o nome Candeal para me referir ao bairro do Candeal Pequeno.

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rua, formam a "paisagem" que dá continuidade à realidade dos prédios luxuosos vigiados dia e noite, carros importados com suas cores reluzentes e pessoas bem vestidas. Entrando na rua 18 de Agosto que conduz ao Candeal propriamente dito, encontra-se à esquerda o terreiro de candomblé de dona Angelina, e à direita a casa religiosa católica de Madre Helena. Depois de algumas casas e barzinhos aparece a sede da Lactomia, uma casa com a fachada toda colorida e com muitas latas e outros objetos pendurados. Prosseguindo pela rua principal se encontrará o moderno e imponente prédio da Pracatum - Escola Profissionalizante de Música e pouco depois o Candyall Guetho Square, casa de show, local de apresentação da banda Timbalada. O Candeal Pequeno47 surgiu nos perímetros de expansão da cidade antiga em torno dos anos 30 e 40 como núcleo de famílias de origem afro-baianas, embora seus moradores mais antigos contem que o bairro surgiu há mais de 200 anos. Apesar de ter uma localização urbana central, o Candeal Pequeno, mantém as características típicas dos bairros de periferia, segundo observa Gordilho-Souza (2000): o Candeal tendo se constituído por ocupações em áreas de encostas e fundo de vale, através de parcelamentos não planejados, cresceu como área de periferia, com um sistema viário precário, casas de material rústico e/ou inacabadas, ausência de esgoto e outros tratamentos e serviços urbanos. Portanto, segregado da cidade formal, mesmo que inserido nos seus limites. (Gordilho-Souza 2000, 362). Atualmente o bairro reúne uma população de cerca 5.500 habitantes, na sua maioria negra, de média e baixa renda, e formada principalmente por descendentes diretos das famílias pioneiras, provavelmente escravos de uma senzala pertencente a uma fazenda na

47

Sobre o bairro do Candeal Pequeno de Brotas ver também matérias do Jornal A Tarde nas edições dos dias 25.09.2000, 03.12.2000 e 09.12.2001.

46

gleba de Brotas48. Este contingente populacional, segundo o entendimento de Lima (1997) conferiu ao Candeal Pequeno uma forte densidade cultural e elegeu a música como seu maior patrimônio. Figura que se destacou em termos musicais e que deu notoriedade ao bairro, agora conhecido em nível nacional e internacional, foi o músico e compositor Carlinhos Brown49. Com sua criatividade exuberante ele fundou a banda Vai Quem Vem e sucessivamente a banda Timbalada, as quais durante um breve espaço de tempo atuaram de forma independente e simultânea. Com a dissolução da Vai Quem Vem consolidou-se a Timbalada que continua tendo grande sucesso no universo do show business desde 1993. Em 1997, como resultado de uma trajetória em ascensão, foi inaugurado o Candyall Guetho Square, espaço cultural privado construído para os "ensaios-shows" semanais50 da Timbalada, bandas e artistas convidados, para onde é atraído um público, prevalentemente fã da música axé, composto principalmente por jovens de poder aquisitivo visivelmente superior à média de Salvador e em número muitas vezes acima das 2.000 pessoas. Outro empreendimento significativo foi a fundação no ano de 1996 da Associação Pracatum (APAS) que tem duas linhas de atuação: a Pracatum - Escola Profissionalizante de Música51 e o projeto Tá Rebocado. Concebida com uma metodologia alternativa de ensino, a escola visa à formação cidadã e profissionalização musical dos jovens da comunidade, com idade entre os 14 e 21 anos, regularmente matriculados ou egressos do ensino médio. Os cursos oferecidos são gratuitos e tem duração de quatro anos: os

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"Candeal Pequeno trocou sombra das senzalas pelo burburinho cosmopolita", Jornal A Tarde, dia 03.12.2000. 49 Sobre a relação entre Carlinhos Brown e o bairro do Candeal ver também matérias do Jornal A Tarde nas edições dos dias 25.09.1999, 07.12.1999, 15.04.2000, 27.07.2000, 18.08.2000, 25.09.2000, 17.11.2000 e 03.12.2000. 50 Os "ensaios-shows" da Timbalada têm freqüência semanal durante a temporada de outubro até o carnaval. 51 Sobre a Pracatum - Escola Profissionalizante de Música ver matérias do Jornal A Tarde nas edições dos dias: 25.09.2000, 15.04.2000, 18.08.2000, 17.11.2000, 03.12.2000 e 22.11.2001.

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primeiros dois anos para desenvolver o módulo básico e os dois sucessivos para realizar o módulo técnico. O currículo "Tá Tocando" foi elaborado pela professora Alda Oliveira (2000a), baseando-se num modelo modular e contextualizado de currículo, que valoriza a cultura local, seus produtos artísticos-culturais e também os saberes de seus moradores. Dentro de uma perspectiva de avaliação global, a autora escreve que os resultados da aprendizagem são descritos como rituais educacionais para cada louva. As louvas podem ser descritas como tarefas específicas ou obrigações relacionadas profundamente com o contexto local, que servem como produtos para a avaliação dos alunos.52 (Oliveira 2000a, 31) A contextualização do currículo foi realizada a partir de uma entrevista com Carlinhos Brown, na qual ele expõe sua concepção de escola, afirmando, por exemplo, que "a escola dos meus sonhos é o local onde as pessoas vão satisfazer suas curiosidades e, ao mesmo tempo, criar outras" (frase presente no currículo e reproduzida nas paredes da escola). Se a influência de Carlinhos Brown, o projeto Tá Rebocado e a abertura do Candyall Guetho Square foram importantes para que obras de infra-estrutura tivessem início, não menos importante foi a crescente conscientização das associações de moradores, que começaram a discutir alternativas habitacionais e a pressionar a prefeitura para que fossem realizadas obras de melhorias no bairro. Certamente, a conjugação desses fatores fizeram com que acontecessem mudanças relevantes e que o nível de qualidade de vida, até aquele período precário, fosse elevado. Outro aspecto apontado por Gordilho-Souza (2000) é o fato que estes empreendimentos tenham promovido o Candeal de bairro dormitório "à categoria de 'lugar na cidade', mantendo-se a população original, e tendo como referência as atividades

52

"Learning outcomes are described as educational rituals for each louva. These louvas may be described as specific tasks or obligations with a deep relationship to the local context, which serve as products for evaluation of students".

48

musicais que já ocorrem na área, reconhecidas pela população da cidade" (Gordilho-Souza 2000, 363). Numa matéria do Jornal A Tarde, Cláudio Bandeira, na edição do dia 3 de dezembro de 2000, escreve: As melhorias tiveram início quando um morador até então desconhecido - Carlinhos Brown - começou a ficar nacionalmente famoso. O furacão Brown, se não foi diretamente responsável, contribuiu para a mudança da paisagem que incluía ruas enlameadas e barracões toscos. A revolução foi no ritmo da Timbalada. Se há dez anos integrantes da classe média abastada não imaginavam caminhar pelas ruas da antiga senzala ou quilombo urbano, como prefere Brown, hoje é um programa dominical de mauricinhos e patricinhas: “Você vai pro gheto?”, é uma pergunta comum entre os membros dessas tribos.

Origem e trajetória da banda Lactomia

Bem, tudo começou ... na verdade, eu com mais alguns meninos do Candeal, Sinho, Paulinho, Élber e outros e outros aí, começamos a tocar latas mesmo, fazendo batucada nas latinhas aí no fundo da casa de Paulinho mesmo. Se não era no fundo da casa de Paulinho, era no fundo da minha casa ou na frente da casa. Aí, batucando, batucando, brincando, tentando acompanhar o som da Timbalada. (Jair,

depoimento do dia 27.01.01) Segundo Jair Rezende (23 anos), líder e regente da banda, a Lactomia se formou aos poucos. Há uns 10 anos, pelas ruas do Candeal e suas adjacências, que, naquela época não eram ainda cercadas de prédios, ocorriam os ensaios da banda Vai Quem Vem e daquela que veio mais tarde a configurar a Timbalada, ambas regidas por Carlinhos Brown. As crianças da área, e entre elas os futuros integrantes da Lactomia, movidas pela curiosidade de ver e aprender a tocar os instrumentos de percussão, assistiam atentas aos ensaios para depois se reunirem e recriarem o que tinham visto e ouvido percutindo sobre as latas. Dermeval, 23 anos, chamado pelos seus colegas de Piu, conta que “a Timbalada, que ensaiava aqui na rua, incentivou muito a gente a entrar no meio da música” (Dermeval,

depoimento do dia 27.01.01).

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Foi assim que este pequeno grupo de 5-6 garotos entre os 9 e 12 anos de idade começou a se reunir regularmente com a intenção de imitar o som da banda Vai Quem Vem, da Timbalada e de outros grupos conhecidos através do rádio como Olodum, Ara Ketu ou artistas como Daniela Mercury. Criaram, então, a banda Arrastão, chamada assim pelo fato de não ter um nome específico. Foi este núcleo que, ampliado com outros 5 ou 6 meninos, posteriormente deu origem à banda Lactomia. E daí que a gente começou a criar um grupo, antigamente a gente chamava de banda Arrastão. A gente não tinha nome, a gente chamava de banda Arrastão ... começava a tocar, cantando música de Daniela Mercury, do Olodum. E aí foi surgindo. (Jair, depoimento do dia

12.05.01) Embora sem instrumentos, mas equipados com muita vontade de aprender a tocar, os integrantes da banda Arrastão adotaram as latas para fazer música, que passaram a ser procuradas intensivamente em todos os cantos do bairro. Jair conta que antigamente, a gente ... na verdade roubava lata. Por exemplo, tinha um vizinho com lata de lixo na porta ... a gente pegava o saco de lixo, deixava no canto, pegava a lata, corria, lavava, já pintava no dia pra tocar. Então não tinha lata assim disponível ... roubava lata, comprava, pedia a não sei quem, começava a procurar, buscar. (Jair, depoimento

do dia 15.06.01) Segundo Paulo César de Oliveira Santana, conhecido como Paulinho, 20 anos, nós juntamos e começamos a criar som também, tentando copiar o som da Timbalada. A gente achava maravilhoso o som, pegava a lata, ficava tocando, tentando copiar o som deles, fazendo batuque, que a gente não sabia tocar ... tentando, tentando pra ver se algum dia a gente conseguia a chegar ao nosso objetivo. (Paulinho, depoimento

do dia 5.08.01) Conforme a opinião de Jair e de seus colegas, era feito muito "barulho", "zoada", "batucada". De acordo com os depoimentos é possível concluir que para eles aquilo que eles faziam ainda não era propriamente tocar.

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Passado algum tempo, uma parte desses garotos começaram a procurar Carlinhos Brown para pedir que ele doasse alguns instrumentos de percussão. Como ele sempre deu atenção e orientação às crianças interessadas em aprender, cedeu alguns instrumentos, sugerindo ao mesmo tempo que alguém se responsabilizasse pelo grupo. Jair foi o escolhido para assumir este papel. Ricardo Pedro de Oliveira Santana, conhecido como Riquinho, 14 anos, lembra que “Brown viu, gostou da gente e chamou Jair. Falou com Jair, que Jair tinha aquela coisa de ser um regente. Pegou, conversou com ele e deu os instrumentos convencionais a ele e falou com ele pra ele reger a banda” (Riquinho, depoimento de

21.09.01). Brown também sugeriu o nome "Lactomia" para o conjunto: "Lacto" de leite e "mia" de miado de gato. A partir daí, com instrumentos de percussão convencionais53 (timbaus, bacurinhas54 e surdos) e a adoção de um nome novo, a antiga banda Arrastão ganha uma nova configuração e uma outra visibilidade. Amplia o seu contingente e começa a ensaiar regularmente aos sábados na rua em frente à casa de Jair, e aos domingos em frente a um bar próximo. Para ingressar na banda não era necessário saber tocar um instrumento55, pois era justamente com a banda que o interessado teria a possibilidade de aprender. Normalmente quem quisesse se tornar integrante entrava em contato com alguém do grupo, e depois de ter falado com Jair, se apresentava para participar do ensaio no horário estabelecido. Havia, porém, alguns pré-requisitos a serem cumpridos: não fazer uso de drogas e estar freqüentando a escola com bons resultados. Neste sentido, Jair afirma que “não adianta você

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Termo utilizado pela banda para denominar os instrumentos de percussão fabricados em série,e diferenciando-os dos instrumentos "reciclados", construídos e utilizados pela banda Lactomia. 54 Segundo explica Jair, a "bacurinha" é um instrumento criado por Carlinhos Brown. É parecido com um repique mas com aro 8. 55 Pela falta de recursos econômicos são raras as pessoas que conseguem adquirir um instrumento de percussão. A lata constitui uma alternativa ao instrumento convencional e representa um pré-requisito.

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aprender uma coisa aqui e o básico, que é educação, que é a escola, estar faltando” (Jair,

depoimento do dia 05.08.01). Se inicialmente tudo era realizado em tom de brincadeira, aos poucos os integrantes da Lactomia começaram a perceber e a se dar conta da relevância de suas atividades. Embora eles tivessem adquirido os instrumentos de percussão convencionais, nunca abandonaram as latas. Interessante observar que a partir das observações de Carlinhos Brown, realizadas quando se fazia presente durante os ensaios, a problemática do reaproveitamento das latas ganha uma compreensão mais ampliada: aos poucos a prática de catar e reaproveitar passa a ser relacionada, cada vez mais, com a preservação do meio ambiente no qual eles vivem. Ao mesmo tempo em que são internalizadas essas noções e práticas ecológicas, o grupo sente a necessidade de aprofundar melhor a pesquisa sobre as potencialidades dos materiais encontrados. Na verdade, este discurso, assim, começa a tornar-se algo desafiador. Jair lembra daquele tempo e relata que antigamente a gente tocava lata, mas não percebeu o quanto é importante ... o que a gente estava fazendo não percebia. A gente estava reaproveitando a lata e outros materiais, que normalmente o pessoal utiliza e joga fora, e fazendo música em cima. Agora, a gente começou a aprofundar isso aí (...) e começou a observar isso. Carlinhos começou a orientar melhor que isso aí era uma forma de vocês estar preservando a natureza e ao mesmo tempo, reaproveitando o lixo ... e daí a gente veio com umas idéias de, por exemplo, um material que a gente não consegue fazer som ... porque a gente fazia tipo um teste, começou a estudar, pesquisar sons pra poder ver se se adapta, quais materiais se adaptam melhor à banda. O que não estava legal, procura fazer o quê? Decoração, cenário, faz figurino e daí vai. (Jair,

depoimento do dia 27.01.01) Isaías dos Santos Ferreira, cujo apelido é Isaba, agora com 14 anos e tocando na Lactomia desde os 7, lembra que Jair trabalhava com instrumentos convencionais: timbau, bacurinha. Aí, ele teve uma idéia de trabalhar com reciclado. Ai, começou a trabalhar com reciclado ... lata, tonel, bacia ... um ‘cado de coisa. Aí, começou a pintar, fazer som e aí a gente olhando a gente aprendia. A gente

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aprendia olhando ... um ‘cado de coisa: som, figurino de reciclado todos cheio de tampinha de garrafa, figurino de ... aquela lata de cerveja, você corta, vá cortando fazendo um L ... de Lactomia. Aí cortava e fazia. A gente foi aprendendo e teve um dia que ele fez um instrumento aí de ... ele fez um instrumento reciclado de surdo, de bacurinha. Esse negócio não existia não. Ele que fez. Aí, pegou, fez e a gente começou a ensaiar, começou a ensinar as base. Começou a ensinar a gente. (Isaías, depoimento do dia 21.09.01)

Além dos instrumentos musicais, os aspectos visuais como figurinos, cenário e decorações começaram a receber cuidados especiais por fazerem parte de um mesmo discurso artístico. O repertório da Lactomia passou a utilizar músicas originais, compostas por moradores do bairro e integrantes da banda. Em torno desse repertório, Jair e seus colegas construíram os arranjos para os instrumentos "reciclados"56. As letras se concentraram sobre a história da banda, problemas sociais, meio ambiente e educação. Nota-se que paralelamente à formação da Lactomia, eles, na época adolescentes, passaram de espectadores a integrantes do grupo Arrastão da Timbalada57, com o aval de Carlinhos, que abriu esta possibilidade. Segundo Elbermário R. Barbosa, chamado de Élber, 19 anos, “é que a gente sabia mais ... quer dizer, ninguém sabe mais que ninguém, mas a gente sabia já o grosso, sabia já melhor do que eles [pessoas de outros bairros], porque a gente tinha a convivência aqui já ... vendo aquele toque todo o dia.” (Élber, depoimento do dia

12.05.01). Sobre a questão do saber, Dermeval afirma que eles tinham já “um pouco noção da coisa”. O Arrastão representou uma escola dura: as bases não eram fáceis e constantemente

tinham seleções e sabatinas. Adriano Silva de Jesus, chamado de "O Morto", 22 anos, lembra que quando eram chamados um por um

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Instrumentos "reciclados" são aqueles criados por eles com material descartado. O grupo "Arrastão da Timbalada", sempre organizado por Carlinhos Brown, foi criado juntando um número grande de percussionistas (até uns 200) do Candeal e outros bairros para sair nas ruas à conclusão do carnaval na quarta-feira de cinza atrás do trio elétrico do bloco Timbalada. 57

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a mão tremia ... ficava a mão gelada. Era muita pressão (...). Ficava com medo de errar ... mas depois comecei a me soltar, a timidez foi passando. Quando tem carnaval, quando tem Arrastão, aí, tem seleção. E antigamente ... teve um ano mesmo que eu não fui, nem eu nem ele [Dermeval] foi escolhido pra ... participar. Por timidez e também por estar novo, ainda no começo. Mas se a gente treinar mais, próximo ano ... quem sabe, a gente podia estar ... Eu acho que isso ajudou muito ... a motivação. (Adriano, depoimento do dia 27.04.01)

Ao que tudo indica o que eles aprenderam foi devido aos ensinamentos e às observações de Carlinhos, a quem eles são gratos. Sinho, apelido utilizado por Everson Xavier Barbosa, 20 anos, por exemplo, tem uma grande admiração por Brown como músico e como pessoa, e confessa que “ele é o pai, ele ... a maneira dele de passar as coisas pra gente, até de conversar ... até na brincadeira mesmo que, às vezes, a gente tá conversando e rola uma gozação assim ... é legal pra caramba” (Sinho, depoimento do dia 27.04.01).

Ainda sobre a participação de Carlinhos Brown na formação musical tanto do grupo como de cada integrante, Jair observa que o exemplo aqui sempre foi Carlinhos, né. Carlinhos Brown foi o criador e quem incentivou a todos aqui no Candeal na música. Foi um dos pioneiros, um dos fundadores à música ... principalmente aqui no Candeal. De lá pra cá foi despertando muitos grupos ... foi incentivando muitas crianças, que hoje estão ai tocando muito bem.

(Jair, depoimento do dia 27.01.01) Apesar de estar muito ocupado com suas atividades, Dermeval lembra que Carlinhos sempre comparecia nos ensaios pra ver como é que estava, como é que estava indo, se estava indo bem ou não e pra corrigir algumas coisas também ...algumas bases que às vezes estavam errada ... ele corrigia. Dizia: «é assim, é assim» ... incentivando... (Dermeval, depoimento do

dia 27.04.01) Sinho observa também que quem teve a oportunidade de tocar com Carlinhos, visto que ele é sempre aberto a incluir novos percussionistas nos grupos que forma, é como se tivesse superado uma prova, “quem passar por Carlinhos, fez um teste, um teste na percussão ... muitos músicos falam isso” (Sinho, depoimento do dia 12.05.01). Portanto, ter tocado nos

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grupos de Carlinhos Brown não só representa uma experiência musical importante, mas também algo relevante a ser destacado em futuros contatos de trabalho. Outro empreendimento muito importante de Carlinhos Brown foi ter dado vida à Pracatum - Escola Profissionalizante de Música com objetivo de ampliar o conhecimento musical dos jovens do bairro. Baseada nos princípios educativos da tradição local e com o objetivo explícito de atuar com uma metodologia alternativa e compatível com seu contexto de atuação, a escola foi inaugurada em 1996. É fácil imaginar a expectativa e, até mesmo, a impaciência dos integrantes da banda por conta da abertura dos cursos. De qualquer forma, foi Jair quem intermediou o encontro dos integrantes interessados com idade superior a 14 anos e a diretora da escola, para que participassem dos testes seletivos. Quando a escola foi aberta e posta a funcionar regularmente em 1999, o impacto entre as expectativas que refletiam o mundo da oralidade com suas performances de rua e a realidade da sala de aula não foi inicialmente sem conflitos. Paulinho, relatando sobre o primeiro dia, diz que me deu uma boa impressão chegar lá. Fui muito empolgado, pensando que ia ser a maior diversão ... tocar logo, como a gente gosta de fazer. Chegar logo mandando ver! ... totalmente outra coisa! ... ensinando a teoria. Cadê a aula aqui? Eu pensei que ia ser aquela diversão. Nada. Os primeiros dia foi ... achava que era chato. Mas depois eu vi quanto era importante. Tá sendo até hoje. (Paulinho, depoimento do dia

05.08.01) Para Adriano os primeiros contatos foram animadamente surpreendentes, visto que ele também imaginava que as aulas iriam acontecer no mesmo estilo da Lactomia ou do Arrastão da Timbalada. Eu imaginava, assim, que a gente ia aprender assim a tocar ... como eu aprendi a tocar na Lactomia. Nunca pensei, assim, que ia ter aula de canto, que pra cantar tinha que ter todas essas aulas, assim, de respiração, essas coisas ... nunca pensei nisso não. Pensava que era aprender a tocar um instrumento e pronto. Mas eu vi que era exatamente diferente. Quando começou, pô, achei legal. Muito

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bacana. Esse negócio de cantar nunca imaginei que ... pra cantar tinha tudo esse ... pra mim cantar era: gritou, cantou, acabou! (Adriano,

depoimento do dia 27.04.01) Segundo Jair, as dificuldades iniciais surgiram porque “a gente nunca estava acostumado, nunca tinha visto esse nomes, a gente queria aprender música ... na rua mesmo de ouvido, assim e depois é que passa pra parte mais pedagógica” (Jair, depoimento do dia 05.08.01). Os

desencontros dos primeiros dias foram rapidamente superados, tanto que eles agora estão firmemente convencidos sobre a importância desse curso para o futuro e também gratos a Carlinhos por ter propiciado esta possibilidade. No plano artístico-profissional, a Lactomia começou a conseguir visibilidade não só em Salvador, onde em 1998 foi convidada a se apresentar no palco do PercPan, Panorama Percussivo Mundial, evento organizado por Gilberto Gil e Naná Vasconcelos, e também em São Paulo, onde participou de um evento de dança, “Palco, Academia e Periferia: o Penhor dessa Desigualdade”, organizado por Ivaldo Bertazzo e Naná Vasconcelos no Teatro SESC Pompéia ao lado de outras bandas representantes de projetos sociais. Naquela ocasião, os integrantes da banda tiveram a oportunidade de conhecer na Favela de Monte Azul o projeto do grupo "Bate Lata" que, como eles, utiliza instrumentos reciclados. Jair observou que as dificuldades enfrentadas no dia-a-dia dos moradores daquela localidade são bem parecidas com aquelas do Candeal. Em termos musicais, porém, constatou uma grande diferença, sobretudo em relação ao modo de como são utilizadas as latas. Musicalmente ... é uma cultura totalmente diferente. Embora as idéias são as mesmas, mas você pode ver que não é. (...) Não é por tocar música mais simples, mas pegavam as latas ... não tinha uma elaboração, assim, detalhada ... pegava pra tocar, pra acompanhar a música dele, não na importância que é a lata, não falava da importância que é, do som que pode conseguir, pesquisar mais o material, o que esse material significa pra mídia, ou pra população que vá assisti-lo.

(Jair, depoimento do dia 12.05.01)

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Já no fim do ano seguinte, em dezembro de 1999, a banda estava viajando para Florença na Itália com Carlinhos Brown para participar de um meeting “Infanzia Contro le Barriere”, organizado pelo Unicef e dedicado aos direitos da criança. Em outubro de 2000, Jair, Adriano e Dermeval foram convidados a participar como monitores da professora Alda Oliveira no 7o Simpósio Paranaense de Educação Musical58 de Londrina com tema 'Educação Musical: Transitando entre o Formal e o Informal'. Durante o fim de 2000 e parte de 2001, os três integrantes mais novos (Riquinho, Isaías e Lucas) participaram das atividades e shows da banda Beijo acompanhando a música Bate Lata. Em outubro de 2001 quatro integrantes da banda se fez presente com Naná Vasconcelos no espetáculo, "Kinder von Heute - Musiker von Morgen", organizado durante a programação do "Fest in Wuppertal Tanztheater Pina Bausch", pela coreógrafa Pina Bausch em Wuppertal, Alemanha. No que diz respeito ao aspecto da vida profissional vinculado ao mundo discográfico, a banda foi convidada para gravar uma faixa do penúltimo CD "Pense na Minha Cor" da banda Timbalada. Participou, também, de algumas gravações do CD "Paradeiro" de Arnaldo Antunes e do CD de Ricky Martin.

Mestre Carlinhos Brown

Embora acompanhando discretamente os passos da Lactomia, não resta dúvida que Carlinhos Brown influenciou a personalidade artística da banda. Tudo que envolveu a formação humana, intelectual e musical dos integrantes da banda Lactomia teve direta relação com ele, com seu modo de pensar e de fazer. Acredito, pois, que seja relevante

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Ver as transcrições das Oficinas nos Anais do 7o Simpósio Paranaense de Educação Musical.

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mostrar de que forma e entender até que ponto ele influenciou a banda e como a partir daí ela conseguiu desenvolver um discurso próprio. Na entrevista realizada no dia 9 de maio de 2001, Antônio Carlos de Freitas, ou seja, Carlinhos Brown, iniciou o seu depoimento explicando que, no seu ponto de vista, as latas representam a forma através da qual se dá a iniciação musical do brasileiro de baixo poder aquisitivo. Ele lembra que na própria experiência começou “a tocar lata ainda na infância, ainda quando aguadeiro carregava água em latas e sempre a volta do caminho, quando a lata vinha vazia, a gente vinha batucando. E isso é uma tradição de aguadeiro, na verdade”.

Mesmo se destacando como músico e percussionista em todas as formações musicais das quais fez parte, continuou a desenvolver um discurso musical pessoal, tendo como ponto de partida por assim dizer esta tradição, ou seja, a linguagem de aguadeiro. Ao abordar a existência do movimento "da lata" na cena musical brasileira recente, ligado ao grupo dos Paralamas Do Sucesso e à Fernanda Abreu, ele aponta, porém, que na prática, o "tocador de lata" é ele. Não tinha surgido nem um grupo no Brasil com esse instinto e comecei a desenvolver coisas aqui no Candeal. Essa linguagem do aguadeiro, que era a tradição, batucar na lata, mas eu pensava em avançar. E onde é que estava essa essência? Estava nas crianças, que por outro lado precisavam ser alfabetizadas e informadas ... e que às vezes o seu tempo ocioso era ocupado com batuque, com a lata.

Descobriu que a essência desta busca, deste caminho, encontrava-se nas crianças, como aquelas que assistiam aos ensaios da banda Vai Quem Vem e da Timbalada, que aprendiam os toques e os traduziam para as latas. Para investir nelas ele rompeu com um aspecto da tradição: o segredo. Ele explica que a primeira coisa que eu tentei fazer ... porque, todo o meu ancestral, assim, ou seja as pessoas que são ligadas à cultura percussiva, elas

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morrem com o segredo. Elas não passam, entendeu? Então, a minha foi diferente ... eu abri mão do segredo, eu queria que todos soubessem como fazer aquilo, como desenvolver e isso influenciou o estado, não apenas o bairro, entendeu?

Esse abrir mão do segredo fez com que centenas de percussionistas do Candeal e outros bairros aprendessem mais, conhecessem mais, compreendessem mais e, sobretudo, se colocassem dignamente numa sociedade, onde as opções de vida profissional para jovens do segmento menos favorecido, portanto sem uma boa escolaridade tornavam o futuro incerto e desestimulante. Dando impulso à música, Carlinhos Brown, ou "Brau" como muitos no bairro costumam chamá-lo, abriu novos horizontes, novas perspectivas de vida. A música se tornou, assim, uma forma de expressão criativa e identitária, uma profissão e um meio de afirmação e ascensão social. O discurso que Carlinhos faz sobre a educação é muito abrangente, tanto que ele considera que os músicos formados nos grupos criados por ele foram o resultado “dessa escola, sendo o Candeal”. O bairro com todas as experiências que proporciona torna-se educativo tanto em termos musicais quanto para a vida, “para não perder o rumo”. Como mencionado anteriormente nas falas dos integrantes, foi graças ao incentivo de Carlinhos que eles se aproximaram à música, ao ponto de torná-la uma opção de vida. Acerca deste aspecto Carlinhos esclarece que por muitos anos, há 20 anos atrás a gente começou a perceber tudo isso, e fizemos a música, fizemos menções à reciclagem, ao uso da camisinha, a tudo que tinha desenvolvimento social, nós fomos juntos ... fomos, agimos em busca disso. E a Lactomia começou, de um certo modo, a se sofisticar, porque o que eu pude aprender com músicos de artes cênicas, que as baquetas são extensões. E ela, às vezes, é mais importante que o instrumento, porque ela consegue dar novas vozes aos instrumentos, entendeu? Então, procurei inserir na memória desses percussionistas todos a descoberta do timbre, da busca, entendeu? Então, um óculos tem som, uma camisa tem som, o cabelo tem som, a palha de banana tem som ... tudo tem som. E é uma responsabilidade do homem, assim, saber percutir esse som, ou repercutir esse som. Eu acredito que inclusive toda a consciência do

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mundo moderno vai dar-se a isso, você vai necessitar estudar rítmica pra se harmonizar com o universo. Então é isso que eu quero dizer ... é isso que eu quero levar pras crianças.

Através dessas menções à reciclagem ele pretende influenciar e informar não só as crianças do bairro, mas a juventude em geral. A Lactomia, nesse sentido, foi entre todos os seguidores de Carlinhos aquela que adotou e aprofundou este modo de entender o mundo. Para Carlinhos, a lata não vai ser meramente mais ... ela não vai ser só utilizada pra se aprender e jogar fora não, ela vai ter um cuidado, entendeu? Ela vai ter um cuidado e não é lixo que tá poluindo, entendeu? É ... o melhor do lixo, entendeu? Porque, por mais que seja, lixo, mas é o melhor do lixo. Nem tudo que está no lixo realmente é utilizável, entendeu ... pra esse fator, mas pode-se utilizar pra outras coisas, né. Então, é assim que se deu a Lactomia com esse interesse de reciclar ...

E agora, durante esses anos de amadurecimento, a banda Lactomia alcançou “a linguagem real da reciclagem ... a reciclagem com maturidade o tempo inteiro”. Segundo ele, a Lactomia

se nutriu da música orgânica do mundo, ou seja, de qualquer som, de qualquer ruído produzido pelo homem ou pela natureza que retratada pode dar uma sinfonia, porque o que nós queremos esclarecer é que música é um pertence de todo ser humano e têm pessoas que nascem com o dom de organizar o que nós chamamos de composição, organizar uma composição, de estruturar uma melodia. Têm pessoas que nascem com esse dom. E a cima de tudo, já na figura de Jair, ela já tem uma outra postura que é social, que é uma coisa que eu sempre quis provar.

Falando de Jair, ele explica que eu quis levar esse conhecimento ao Jair, que e um conhecimento religioso até. É um conhecimento que vem de dentro, justamente, ele não é o turista, não é o garimpeiro ... ele é um brasileiro como eu nascido num bairro pobre, com características de classe média. Então, quando eu vi no Jair, eu vi o talento no homem, eu vi a desenvoltura, vi todas essas coisas todas. Então, de um certo modo ele prova hoje, entendeu, pra percussão e pra a cultura brasileira, justamente, ele prova a competência. Se o cidadão, ele tem competência ele pode assumir qualquer coisa, e competência se adquire também com estudo,

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com esforço, independendo do talento ... porque a competência só aumenta o talento, a qualidade do talento, entendeu?

Embora eu esperasse detalhes mais concretos, que possibilitassem o entendimento de como ele atuava durante os ensaios, ele proporcionou uma visão da música muito além de um saber prático. Para completar esta parte considero interessante incluir um trecho de uma entrevista na qual Sinho e Élber reconstruem uma cena na qual Carlinhos organizou uma atividade com as crianças do bairro. Sinho e Élber contam que [Sinho] Uma vez, a gente estava tocando, lembro que a gente estava tocando e ele [Carlinhos] mandou reunir todos os meninos que a gente encontrasse aqui no Candeal ... uma reunião. E lá, foi lá no Guetho, quando ia começar o Guetho ainda, o Guetho nem tinha começado ainda. Foi mais de 100 meninos. E aí, ele botou um 'cada de cadeira, cadeira de bar, assim. E mandou cada um levar a sua baqueta. [Élber] ... e uma música escrita, não foi? Um negocinho de uma palavrinha de uma música ... pode inventar uma música! [Sinho] E ele fez um negócio assim, uma vez fez uma coisa assim ... não me lembro bem não, um negócio assim ...«você faz assim, você faz essa frase aqui, ô: tacotaraco taracotaco, tacotaraco taracotaco», aí ... «siga nessa base». Faça Élber! [Élber] tacotaraco taracotaco tacotaraco taracotaco [e batendo com pé no chão para marcar o andamento].

[Sinho fazendo a outra parte] formigatacotaco formigatacotaco formigatacotaco formigatacotaco ...

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[Os dois juntos]

uma coisa assim, eu acho que a maneira dele, assim, de passar as coisas ... eu nunca esqueci disso ... eu acho que tem coisas que marcam, assim, não se esquecem ... (Sinho e Élber, depoimento do dia

12.05.01)

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A banda Lactomia hoje

Atualmente a Lactomia consta de um grupo de adolescentes59 e de um grupo de crianças. O grupo de adolescentes é formado principalmente pelos fundadores e outros integrantes que se juntaram sucessivamente. A faixa etária é entre os 13 e os 23 anos e musicalmente estão já adiantados. O grupo das crianças, por outro lado, conta com integrantes de idade entre os 5 e os 13 anos, que estão se aproximando à música. Jair considera a Lactomia um grupo único, cuja diferença consta somente no fato que as crianças estão sendo preparadas para se juntarem aos outros. Nos dois grupos deve-se ressaltar que há somente jovens e crianças de sexo masculino. Durante um breve período duas moças (Andréia e Maricélia) acompanharam os ensaios da banda como vocalistas. A banda Lactomia hoje60 é mais que uma banda em sentido restrito: seus objetivos vão além das rotineiras atividades de um grupo em busca de afirmação profissional e do sucesso. Seu comprometimento explícito e concreto com a educação faz com que ela, paralelamente às próprias atividades, atue como se fosse um projeto de ação social. Importante destacar que, se na maioria dos casos esses projetos são planejados e implantados em comunidades por pessoas externas, no caso da Lactomia este tipo de ação partiu de dentro e é voltada para a própria comunidade. Também não podem ser esquecidos os ex-integrantes, amigos, vizinhos e pais que acompanham, auxiliam e apoiam o trabalho da banda nos seus vários momentos. Pareceme apropriado começar descrevendo os dois grupos e seus componentes para depois tratar de suas atividades.

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Adotei "grupo de adolescentes" e "grupo de crianças" para identificar de qual dos dois grupos estou tratando. É bom esclarecer que a banda não faz esta diferença, pois considera o grupo como um todo. 60 "Hoje" deve ser entendido referente ao período a partir do qual comecei a desenvolver a pesquisa, ou seja a partir de outubro de 2000.

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Jair, o líder da banda Lactomia Certamente por conta de sua competência e seu carisma, Jair Rezende, 23 anos, desde criança foi designado por Carlinhos Brown para ser líder da banda. Décimo de dezesseis filhos de uma família originária de São Felipe (interior da Bahia), ficou órfão dos pais com 6 ou 7 anos de idade e foi desde então criado pela irmã mais velha. O pai, segundo conta ele, foi um dos moradores mais antigos do bairro. Tinha plantações e gado, tanto que era ele quem fornecia leite para os moradores do Candeal. Embora na família dele ninguém se envolveu profissionalmente com música, ele, seguindo o exemplo de Carlinhos Brown, desde cedo escolheu a música como opção de vida. Jair lembra que (Figura 1: Jair Rezende, líder da banda Lactomia) quando comecei a tocar no Arrastão, que o ensaio era aqui no Candeal ... bem lá na frente ... na Cidade Jardim, onde nem tinham esses prédios todo, estavam em construção ainda ... estavam limpando a área, e eu fui pra tocar bacurinha. Bacurinha é tipo um repique, um instrumento que ele [Carlinhos Brown] criou, menor, com uma boca menor ... a boca oito, e ... eu tinha uma dificuldade, porque a bacurinha, tanto a bacurinha como qualquer instrumento, você tem que ter um domínio com as duas mãos, né. E eu trabalhava muito com a mão esquerda e tinham umas bases que você tem que acentuar melhor com a direita. Aí ele ficava no meu pé ... aí ... ele fez: «não, não quero você em bacurinha, acho que você é legal pra timbau». É que timbau, que eu não tocava nada, não saia nada do timbau .... bugudubgudu [imita o som]. Não saia nada [ri] ...aí eu insisti, porque aí teve uma época que ele estava preparando um Arrastão, né, pra tocar na Quarta Feira de Cinza, então como o grupo era muito grande, ele separava por ala, né, pegava timbau e mandava tudo por um canto, bacurinha pra outro, surdo pra outro. E aí ficava cada pessoa comandando essa ala pra depois ... mais ou menos uma hora depois, juntar tudo e fazer o ensaio, né. Aí fui pra ala de timbau, e ele me

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ensinou a técnica de como você tirar o som do timbau: tirar o slap, o som mais agudo, tirar o médio, tirar o grave e como é que você faz a auxiliar tudo isso com groove. E daí foi, daí foi, daí foi ... (Jair,

depoimento do dia 09.03.01) Com o passar do tempo, Jair, também, aprendeu a reger observando seu mestre, para depois continuar desenvolvendo, aprofundando e aprimorando o significado e a clareza dos gestos. Lembrando da época quando menino, ele conta que a forma de regência mesmo, partiu mais vendo ele [Carlinhos Brown] regendo, né. E daí eu, quando comecei a tocar lata, eu tomei isso pra mim também ... eu comecei ... até que ele disse: «vá alí na frente liderando também!» Eu, quando comecei, eu fazia isso com os menino, brincava de reger, levantava a mão e começou daí. De lá pra cá, vem a prática, você vai praticando, praticando e aí vem ... se aperfeiçoando, e aprendendo, aprendendo ... como estou aprendendo ainda até hoje. Na verdade, a prática que vem me fazendo, tem essa diferença, né ... em ter mais habilidade, ter o significado do movimento mais definido, mais determinado. E Carlinhos ... ele é um baita regente, agora só que ele ... tem muito trabalho pra ficar só nisso. (Jair, depoimento do dia

09.03.01) Desde o início, além de músico e regente, ele assumiu a coordenação geral da banda, organizando ensaios, reuniões e outras atividades que incluíssem seus colegas na construção e manutenção dos instrumentos, bem como a ideação e realização dos figurinos. Jair é já há uns 3-4 anos regente do Arrastão da Timbalada e aluno-monitor da Pracatum Escola Profissionalizante de Música. A banda, tanto dos adolescentes quanto das crianças, tem grande consideração e respeito por ele. As crianças em modo particular sentem uma admiração tão grande que, durante umas conversas informais, quando perguntei quem era o ídolo deles, a resposta unânime era sempre Jair. Swanwick (1999) durante uma visita ao Candeal como consultor da Escola Pracatum a convite da prof.ª Alda Oliveira, naquele período diretora da escola, teve a oportunidade de assistir a um ensaio da banda e assim comenta num trecho do livro “Teaching music musically”:

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O jovem vive numa favela de Salvador, Brasil, no bairro do Candeal. Um ambicioso projeto local, 'Pracatum', visa facilitar o fazer música e a educação geral dos jovens e isso proporcionou que ele organizasse um grande grupo de adolescentes para fazer música juntos com instrumentos autóctones - tambores, sinos e chocalhos. Ele nasceu líder e espontaneamente é um talentoso professor. Estes rapazes parecem capazes de seguí-lo na sua imaginação musical, não importa a que custo. Ele desenvolveu um sistema fluído e altamente articulado de sinais das mãos com os quais podem ser indicados ritmos diferentes e mudanças de combinações de instrumentos. Organizados em linhas os rapazes olham para ele e respondem com uma gama de idéias musicais controladas cuidadosamente mas altamente expressivas. Ele mistura estes gestos em formas dentro das quais idéias são substituídas mas que podem reaparecer e onde silêncios freqüentemente servem para preparar uma erupção de incrível energia rítmica. Às vezes, durante uma música ele anda entre os adolescentes e gentilmente mostra como e o quê tocar. Muito raramente ele chama a atenção dos integrantes por não estarem olhando para ele ou ouvindo atentamente. Na maior parte a sua direção musical é tão graficamente explícita que - como os melhores diretores de orquestras sinfônicas - tudo parece acontecer num estalo de dedos. Poucas palavras são ditas e ninguém ousa falar enquanto se faz música. O primeiro princípio é fortemente evidente. O jovem tem um cuidado enorme para a música como discurso, como conversação significativa. Tem também o cuidado sobre o discurso dos membros da banda. Muitos dos padrões rítmicos que eles tocam são típicos do mundo vernacular da favela, da música de rua. Mas estas idéias são transformadas em formas musicais que abrem avenidas para uma nova experiência de significado para nós todos. Isso é evidente na intensa concentração e o forte senso de valor que penetra toda a atividade. O seu sonho para o futuro, ele me contou depois, é de fazer um trabalho musical perfeito e extenso61. (1999, 66-67)

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"The young man lives in a favela in Salvador, Brazil, in the Candeal area. An ambitious local scheme, 'Pracatum', aims to facilitate the music-making and the general education of young people and this has made it possible for him to organise a large group of teenage boys to play music together on indigenous instruments - drums, bells and rattles. He is a born leader and a naturally gifted teacher. These boys seem able to follow him in his musical imagination, no matter how demanding this becomes. He has developed a fluid and highly articulated system of hand-signals through which different rhythms and changes in combinations of instruments can be indicated. As they stand in the lines the boys watch him and respond with a range of tightly controlled but highly expressive musical ideas. He mixes these gestures into forms in which ideas are replaced but may reappear and where sudden silences often serve to frame outbursts of incredible rhythmic energy. Sometimes during the music he walks between the teenagers gently showing how and what to play. Very rarely he rebukes them for not really watching, for not really listening. For the most part his musical direction is so graphically explicit that - like the best symphonic conductors - it all seems to happen by 'sleight of hand'. Very few words are spoken and no one attempts to talk while music is being made. The first principle is strongly evident. The young man has tremendous care for music as discourse, as meaningful conversation. There is also some care for the discourse of members of the band. Many of the patterns that they play are drawn from the vernacular world of the favela, of street music. But these ideas are taken up into musical forms which open up avenues of significant new experience for all of us. This is evident in the intense concentration and strong sense of value which pervades the entire activity. His dream for the future, he tells me afterwards, is to make a perfect and extended musical work".

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O grupo dos adolescentes

(Figura 2: Foto de grupo da Banda Lactomia)

Este grupo é composto por 14 a 20 rapazes, divididos entre o núcleo dos percussionistas e o naipe da harmonia (dois teclados, guitarra e baixo). De um modo geral, seus integrantes pertencem a famílias de baixa renda, muitas das quais conduzidas e mantidas pela figura da mãe com seu trabalho de empregada doméstica. Com idades entre 13 e 23 anos, a maioria dos integrantes freqüenta ainda as séries intermediárias do ensino básico no Colégio Luís Viana, assim como é aluno da Escola Pracatum. Poucos, no entanto, completaram o ensino médio. Entre os integrantes, alguns estão na banda desde sua fundação, outros ingressaram no decorrer dos anos. Paulinho, um dos fundadores, conta que pela empolgação que a banda Timbalada suscitava nele e nos seus amigos, eles passaram a se reunir com a intenção de imitá-la. Foi assim que surgiu a Lactomia. Com ênfase, acrescenta que “a

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Lactomia pra mim, também, é tudo na minha vida hoje: sem a Lactomia não seria nada. Aprendi muita coisa aqui dentro. Ela tá sendo uma escola. Eu tento passar o que eu tô aprendendo pra nova geração que vem” (Paulinho, depoimento do dia 05.08.01).

Dermeval, apesar de não fazer parte do grupo dos fundadores, entrou cedo na Lactomia por ser amigo de Jair desde a infância e colega de classe no colégio. Ele diz que como tinha vontade de tocar em banda, devido à Timbalada que ensaiava aqui na rua e que incentivou muito a gente também a entrar no meio da música. Eu tinha vontade de tocar, também. Aí eu conhecia Jair já, e ele me convidou pra tocar na Lactomia. Aí ... não sabia nada, não sabia nem tirar um som do timbau, ou como afinar o instrumento. E aí, Jair, foi uma questão de muito tempo, ele veio ensinar a gente todos os sábados e domingos ... não tínhamos ensaio aí na OAS 62.

(Dermeval, depoimento do dia 27.04.01) Adriano demorou um pouco mais para entrar a fazer parte da banda por causa da timidez, sobre a qual ele comenta que sempre ouvia a Timbalada, mas tinha vergonha de ir pros ensaios, de querer aprender assim ... não queria tocar por vergonha de errar mesmo. E foi justamente Dermeval que me chamou e me falou que tinha uma banda, que ele estava numa banda, e me chamou pra ver o ensaio, pra ver se eu queria tocar. Achei que era a minha oportunidade e foi ... graças a Deus. E eu vim, toquei, comecei a tocar, aprendendo as coisas que Jair passava, fui sempre observando, prestando atenção e fui pegando, pegando, pegando ... E hoje tô aqui. (Adriano,

depoimento do dia 27.04.01) Anderson Gonçalves Oliveira, 17 anos, entrou na banda há alguns anos, embora não saiba informar exatamente há quanto tempo. Da mesma forma que outros colegas, ele, assistindo aos ensaios, estabeleceu um contato com Jair, que o convidou a entrar na banda. Paulinho, segundo ele, foi quem o encorajou para tentar. Ele lembra que aí todos os dias ia ver e tinha uma escada, e eu ficava atrás. Tem um dia que Jair estava com uma lata e mandou eu tocar. Eu falei assim:.«não sei tocar não!», e ele: «sabe ... venha a tocar». E eu falei:

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A quadra da OAS (Construtura) encontrava-se na entrada do Candeal. Recentemente essa área teve grande desenvolvimento imobiliário, dando vida ao bairro da Cidade Jardim.

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«sei tocar não!» e eu fiquei ... ia, não ia. Fui pra casa. Noutro dia eu passei, fiquei atrás de Paulinho aí, ô, desde 8 hora da manhã. Falei pra Paulinho: «Paulinho, se eu vou lá em Jair e pedir pra eu tocar na Lactomia ele vai deixar, vai?». Ele: «vá lá, rapaz, vá lá!». E aí fiquei, Jair passou e eu não perguntei. Jair passou de novo e chamei Jair alí na casa dele ... ele estava sentado, na casa aí onde ele morava ... aí tinha ele sentado na porta, eu peguei e falei: «E aí, posso tocar na banda?». E ele: «Venha, rapaz, tem ensaio hoje aqui na frente às 3 horas». Eu peguei e vim. Aí ele, tinha um menino chamado Fã ... «pega alí na mão de Fã!». Peguei e toquei um 24. Não sabia tocar nada, depois de um dia pra cá a Lactomia me ajudou muito nesse negócio de tocar. Nem sabia pegar na baqueta. Me ajudou. Pra quem não sabia nada do que eu sei hoje, tá muito bom pra mim ... (Anderson,

depoimento do dia 05.08.01) Marcelo Braga de Souza, 14 anos, chamado pelos colegas de Bolachinha, é um dos poucos integrantes da banda não originário do bairro do Candeal. Ele nasceu no bairro de Santo Antônio, próximo ao Pelourinho, local de atuação de outro grupo musical (Olodum), e há uns quatro anos se mudou com a família para o Candeal. Desde pequeno, ele conta que, assim que acabava a lata de leite, ele a usava para tocar. Uma vez morando no Candeal ele se deparou com uma outra realidade musical. A este respeito ele conta que Aí, há 4 anos me mudei pra aqui, pro Candeal. Aí, já tinha a Timbalada já, tinha os menino aqui tocando e eu ficava em casa ouvindo a zoada, ouvindo, ouvindo, mas não saia não, ficava em casa e tudo o que ele fazia lá eu tentava fazer. Até um dia que eu desci e fiquei olhando, olhando a Timbalada. Aí falei com Jair. Jair mandou eu vir aqui. Aí tinha uma banda lá na casa de Paulinho. Uma banda de lata de menino, a gente ia pra lá, ficava tocando lá. Depois fui tocar aqui na Lactomia, junto com os caras. (Marcelo, depoimento do dia 05.08.01)

Paulo Francisco de Jesus Santos, também conhecido como Pá, 18 anos, também é um dos integrantes recém-ingressado no grupo proveniente de um outro bairro. Ele morava no Bonfim e só recentemente sua família se transferiu para o Candeal. Apesar de gostar de música e de assistir aos ensaios na rua, “nunca fiz questão de querer tocar” disse. Ele afirma que evidentemente “a música não tinha batido no meu ouvido”. A paixão dele era o futebol ao qual dedicava muito do seu tempo livre. Infelizmente após um acidente, no qual

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foi atropelado por um carro, prejudicando o joelho, ele foi obrigado a abandonar a prática esportiva. Ele relata como se aproximou da música e da banda Lactomia: Aí, ficava ouvindo os outros tocar aqui direto. Aí eu falei com Anderson uma vez e falei: «Anderson ... será que se eu falar com Jair, Jair deixa eu entrar na Lactomia?» Ele fala: «rapaz, vá a falar com ele. Ele deve deixar». Aí eu falei: «Eu vou falar». Aí, eu sempre ficava, teve um dia que eu ia ou não ia, ficava com vergonha assim, que eu não conhecia ele bem assim ... não tinha essa intimidade tudo assim. Aí, cheguei um dia e falei com ele: «Jair», encontrei com ele na bica, «Jair, tem alguma vaga lá na Lactomia?» «Vá lá, vá lá no ensaio que a gente vai conversar. Quer tocar o quê?» Aí eu perguntei «Rapaz, quero aprender a tocar timbau», «você sabe alguma coisa?» ... «eu sei alguma coisa, assim, de ouvido, assim que eu vejo os outros, vocês tocando ali». E ele: «vá lá». E aí fui pegando praticamente uns 4 meses, assim, na música, assim. Aí entrei, consegui uma vaga na Pracatum e tô indo aí ... (Paulo, depoimento do dia 05.08.01)

O grupo das crianças

Este grupo, composto por uns 15 meninos com idades entre 5 e 13 anos, foi retomado recentemente63 por Jair, o qual concebe a música não somente como uma diversão e sim como algo útil que poderá vir a ser uma opção profissional para o futuro. “Eu vejo” - afirma Jair - “que é uma forma de estar ocupando eles e estar desenvolvendo um trabalho com eles em vez de ficar aí na rua, brincando, meio ruim ... estar buscando tipo uma profissão pra eles. Eles gostam de música, então por que não incentivá-los?” (Jair, depoimento

do dia 15.06.01). Os pré-requisitos, necessários para integrar a banda tal como antes, estão ainda em vigor: eles têm acesso aos ensaios na condição que tenham resultados satisfatórios na escola e se comportem bem em casa. Por causa das várias atividades paralelas de Jair, os

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Assisti a um ensaio com as crianças em novembro de 2000. Devido a outras atividades, esses encontros foram suspendidos e retomados em maio de 2001.

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ensaios não são muito regulares, mas na medida do possível, acontecem alguns encontros mensais. Os pais apoiam a oportunidade dada aos seus filhos. Jair ressalta que desde que “abri espaço agora pras crianças, que estão, assim, sem ocupação. E tá uma contaminação, os pais estão vindo atrás de mim, estão me pedindo pra que eu coloque os filhos. É muita gente, a demanda é muito grande” (Jair, depoimento do dia 27.01.01). E a responsabilidade também,

pois Jair constata que trabalhar com crianças requer muita paciência, "cabeça fria" e sobretudo um tratamento diferenciado para cada menino, tanto que segundo ele a gente fica assim sem saber como tratar todos, porque são muitas crianças com comportamento diferenciado: uns brincalhão, uns perturbadinho demais e às vezes é por tudo que eu faço, às vezes eu não tenho tempo pra estar cuidando de todos e nem a total paciência, porque pra trabalhar com criança tem que ter cabeça fria, a cabeça limpa senão se um dia vier exaltado demais e começa a estourar com um ou com outro e ai cria aquele problema todo ... mas vamos aos poucos assim na medida do possível ... (Jair, depoimento do dia

27.01.01)

(Figura 3: ensaio do grupo das crianças num dia de domingo)

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A sede da banda Lactomia A sede64 da banda é numa casa, ou galpão como eles costumam chamá-la, com a fachada muito colorida, cujas cores foram mudadas várias vezes durante este ano, e é decorada com latas e outros objetos pendurados.

(Figura 4: a sede da banda Lactomia durante a visita da cantora Gil da banda Beijo)

No seu interior, o galpão é dividido em dois ambientes: na sala de entrada são guardados os instrumentos convencionais nos cases, os materiais para serem trabalhados e os figurinos dentro de um armário, e na outra sala são colocados os instrumentos reciclados já prontos para os ensaios. Esta última é pintada na cor azul-marinho e em suas paredes são desenhados vários símbolos da notação musical como a chave de violino, colcheias, sustenidos e bemóis, etc. Nela há molduras penduradas com recorte de jornais que tratam da banda, do Arrastão da Timbalada e da Escola Pracatum, ou mosaicos de fotos tiradas

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A sede da banda Lactomia encontra-se na rua 18 de agosto n. 201, bairro do Candeal, em Salvador.

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durante ensaios, shows e viagens feitas pelo grupo. Não há janelas e circulação do ar funciona somente através de vários ventiladores.

(Figura 5: a sala de ensaio com os instrumentos musicais)

As atividades

A vida da banda é dividida entre os ensaios de 2 a 5 vezes por semana, as reuniões e os shows, mas também em outros momentos de encontros nos quais os integrantes se ocupam da limpeza do galpão, da construção e manutenção dos instrumentos e a realização de figurinos. Os ensaios semanais dependem do tempo disponível dos integrantes: durante o ano escolar estes acontecem principalmente durante o fim de semana por causa das aulas em turnos diferentes, mas durante as férias de verão eles são intensificados. No verão de 2000, por exemplo, pouco tempo depois de eu ter começado a freqüentar o Candeal e a pesquisar a banda Lactomia, chegaram até 5 vezes por semana (segunda, quarta, sextafeira, sábado e domingo) das 14 às 16 horas, ou seja, no horário mais quente do dia. Os horários normalmente são marcados ou confirmados durante as reuniões da sexta-feira à noite.

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Os ensaios do grupo dos adolescentes

Na maioria das vezes os ensaios realizam-se somente com o núcleo dos percussionistas, pelo qual Jair e Adriano assumem também o papel de cantores além que de percussionistas. Adriano é quem, na ausência de Jair, assume a regência. O começo do ensaio geralmente segue um ritual disciplinar, segundo o qual quem chegar atrasado, ou seja, após o fechamento da porta de ingresso, dificilmente terá modo de participar. Normalmente durante o ensaio eles seguem um programa, estabelecido com antecedência, das músicas que precisam ser aperfeiçoadas e repassadas. A execução musical começa quando todos estão prontos e Jair dá o sinal.

(Figura 6: Jair regendo a banda)

Os arranjos tocados são normalmente compostos por uma introdução, um corpo principal chamado de base, que se alterna com as convenções, que podem ter função de breques ou de variações, e o final. A introdução e o final são também convenções, que têm uma função diferente das outras e servem para interromper o fluxo das rítmicas da base. Somente através dos gestos de regência é que o grupo vai sabendo quando é o momento de

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passar de uma parte para outra, e também como e quem irá tocar o quê. Portanto, são os gestos que comunicam aos músicos quando passar da introdução para a base, ou da base para uma das convenções, das convenções de novo para a base ou para o final. Muitas partes são estabelecidas, fixas, mas outras são reformuladas a cada vez. Por exemplo, Jair pode chamar65 a base; logo depois sinalizar uma variação, onde não só é indicado quem pára e quem continua, mas é comunicado através dos gestos a rítmica desejada; é só questão de dar o sinal e todos entrarem na hora certa tocando o ritmo previamente indicado. Desta forma, espera-se que em relação ao repertório todos os integrantes conheçam as bases e as convenções identificadas por números, bem como os significados dos gestos utilizados por Jair. Para comunicar idéias musicais a banda em geral recorre à percussão de boca, ou seja, fonemas e onomatopéias através dos quais são representadas as frases rítmicas completas de acentos e dinâmicas. Normalmente, durante os ensaios, Jair e seus colegas aperfeiçoam a execução do repertório, aproveitando, inclusive, novas idéias que vão surgindo ao longo do tempo. Durante este ano, pude observar várias vezes as modificações aplicadas em algumas partes. O trabalho de aperfeiçoamento de uma música é desenvolvido de forma cuidadosa e pode demorar até um ensaio completo, principalmente quando se trata de um novo arranjo que precisa ser aprendido e memorizado. Passando parte por parte, ala por ala, os integrantes corrigem e melhoram a sincronia entre os instrumentos. Com menor freqüência os ensaios são previstos para criar novas bases. Isso foi observado quando Jair, depois de ter projetado e construído novos instrumentos, quis experimentá-los compondo novos arranjos, que explorassem seus recursos sonoros.

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"Chamar" é o termo que eles utilizam para indicar quando Jair sinaliza uma seção da música.

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Contudo, estas não sendo concluídas ainda não integraram o repertório oficial. Em relação aos instrumentos, só algumas vezes assisti aos ensaios com instrumentos convencionais, na maioria do tempo eles utilizaram os instrumentos reciclados.

Os ensaios do grupo das crianças

Os ensaios do grupo das crianças não são realizados com os mesmos instrumentos da banda principal: as crianças utilizam as latas do mesmo modo como Jair e seus colegas faziam no início da formação da Lactomia.

(Figura 7: Jair ensaiando com o grupo das crianças)

O que mudou, na opinião de Jair, é que esses meninos encontram tudo pronto. Não precisam procurar, nem "roubar" as latas nos baldes de lixo dos vizinhos, visto que agora há um depósito próximo, que facilita a obtenção destes materiais e que Jair e seus colegas preparam os instrumentos. Quando Jair marca o ensaio, eles se reúnem em frente ao galpão, cuidadosamente arrumados e com bastante antecedência em relação ao horário estabelecido. E mais: com as baquetas na mão, todos estão visivelmente impacientes para

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começar a tocar. Segundo Jair eles estão musicalmente adiantados por causa da vivência musical que eles têm morando no Candeal, mas mesmo assim precisam da orientação de alguém mais experiente. O ensaio tem uma função mais didática, visto que este grupo foi constituído exclusivamente para formar músicos que se juntarão ao grupo dos jovens. Assisti a poucos encontros, mas pelo que pude perceber Jair procura manter os meninos sempre em atividade. Ele, através da percussão de boca ou tocando com um instrumentos, indica, ala por ala, e, instrumento por instrumento, qual a rítmica que cada um deve tocar e rapidamente uma música é pronta para ser ensaiada. Não se preocupa se eles repetirem durante um tempo considerável a mesma batida, pois é nestes momentos que ele pode dar atenção aqueles que demonstram dificuldades. Ao mesmo tempo, a continua repetição faz com que os meninos tenham espaço para improvisar bem como aprender a coordenar os passos da dança que realizam junto ao tocar. O comportamento de Jair com os meninos é de um professor muito paciente. Raramente precisa chamar a atenção deles e quando ele o faz, assume um tom de voz severo, mas ao mesmo tempo carinhoso.

As reuniões

Outro momento de encontro é constituído pelas reuniões das sextas-feiras à noite, depois do colégio, às 22 horas, que servem para conversar e discutir o andamento do trabalho no que diz respeito principalmente ao comportamento dos integrantes mas também à música, à possíveis projetos futuros e à organização de shows. Na verdade as reuniões que a gente faz é mais pra conversar sobre o processo do grupo, como é que tá o comportamento de um pra outro, as atividades que têm pra fazer, o que tem pra fazer, os projetos que a gente pensa em continuar. Os ritmos a gente discute pouquíssimo nas reuniões, a gente fala um pouco da estética, do comportamento em termo da postura de tocar, na pontualidade que é muito importante e essas coisas. (Jair, depoimento do dia 27.01.01)

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Os shows

Os shows acontecem na maioria dos casos por intermediação do escritório de produção de Carlinhos Brown, da Escola Pracatum e mais recentemente por contatos diretos das empresas com Jair, o qual passou a desempenhar também o papel de produtor. Por causa da influência de Carlinhos, eles atribuem muita importância à estética visual da banda. Sempre observando Carlinhos, Jair e seus colegas aprenderam a dar atenção a todos os detalhes que fazem parte de uma performance.

(Figuras 8 e 9: shows realizados na Praça da Alimentação do shopping Aeroclube Plaza, abril 2001)

Jair ressalta que “tudo o que eu tô fazendo aqui hoje, eu aprendi com ele. Na verdade, essas preocupações em afinação e de formação, em estruturação em nível de visual ... tudo partiu dele, porque tem que ter, pra você ter um grupo, assim, legal” (Jair, depoimento do dia 27.01.01). Os instrumentos devem ser apresentados pintados e com o nome da banda. Os figurinos precisam manifestar qual a filosofia do grupo e a mensagem que a banda pretende transmitir e para isso é preciso que sejam realizados com material reciclado: às vezes com tecido tipo algodão cru, às vezes com saco de cebola ou de batata e enfeitada com desenhos feitos com lacres de latas de cerveja, copos plásticos, tampinhas de refrigerantes e outros materiais.

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A construção e uso dos instrumentos reciclados

A banda Lactomia surgiu num ambiente que sempre incentivou a criatividade, portanto, não é estranho que a banda tenha assimilado e aplicado esta atitude em todas suas atividades. Se, de uma certa forma, tudo circula em torno de ideais educativos, também tudo circula reelaborado criativamente. Na banda Lactomia, a construção dos instrumentos representa um aspecto determinante, que é desenvolvido principalmente por Jair. A "mentalidade" de utilizar latas, toneis, baldes, canos, tampas de cervejas para criar instrumentos musicais veio se consolidando ao longo da vida da banda nesses 9-10 anos de atividade. Após ter externado minha surpresa em ver quanto cuidado, quanta reflexão e experimentação estão por trás da concepção dos instrumentos, Jair comentou que a gente já convive já com isso, porque já virou costume: tudo que a gente ver, tudo que a gente pegar é instrumento, é música. Então, a vida nossa é estar experimentando já isso. Então não fica tão distante, não fica também tão assim do outro mundo, porque a gente tá convivendo já com isso, já trabalha com isso. (Jair, depoimento do

dia 27.01.01) Os materiais descartados e encontrados são testados e divididos entre aqueles que produzem sons que se adaptam às músicas e que serão elaborados e transformados em instrumentos, e outros, que não mostram timbres satisfatórios e serão utilizados para produzir figurinos e enfeites. Sobre a pesquisa de material Jair comenta que agora hoje em dia a gente tá pesquisando qualquer coisa relacionada a cada tipo de objeto. A gente tenta buscar, ver qual é o tipo de som que a gente pode tirar nele e pra ver se esse som se adapta ao nosso trabalho, ao nosso perfil no momento. E ... e o que é legal, por exemplo, um material que é legal, o som chega a se adequar a nossa versão, a gente coloca na banda. E a que não prestam, a gente faz o seguinte: a gente pega, usa pra outra coisa ... pra figurino, pra cenário, pra estar enfeitando ... dando uma nova roupagem mesmo. (Jair,

depoimento do dia 09.03.01)

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Mas nem sempre o que se encontra dá o resultado imaginado. Acontecem imprevistos, como Jair expressa neste relato: a gente pensa que aquele material vai dar o som que você pensa e quando você coloca em prática é totalmente fora, não dá ... você pode usar em uma ocasião de efeito, de introdução, mas pra ficar fixa tem que ter um som que se adapte a todos os ritmos e todos os instrumentos. (Jair, depoimento do dia 27.01.01)

Portanto, no caso das latas, ele observou que algumas vezes é preciso afiná-las, pois têm latas que chegam muito folgada e o som é muito distorcido. A gente procura afinar ela. Como é que se afina essas latas? A gente pega uma cabeça de um prego com um martelo e começa a bater nos cantos que estão mais folgados, que estão mais soltos e começa a apertar essa chapa até chegar a um som mais seco, mais limpo. Porque têm alguns sons de latas que é muito distrambôlico, muito assim ... tipo de frange ... assim solto xschhhh [imita o som] e se você apertar dele vai ter um som mais seco. (Jair, depoimento do dia 27.01.01)

Assim nasceram vários instrumentos, que foram divididos em alas para poder diferenciar os timbres e os tipos de ritmos. Uma ala é formada por dois timbancos, um tambor térmico, um isopor de cerveja e um caixote, que são tocados com a técnica

semelhante àquela do timbau. Outra ala é formada por dois timbales de lata e um quadricano , e utiliza uma técnica semelhante àquela do repique. A ala da marcação consta

de dois estantes de surdos, também chamados trisurdos, e um estante de meio para os quais foi adaptada uma técnica semelhante àquela dos tímpanos. Para os efeitos foi construída uma trave com bacia, um set de latas, o cano de semaforo, e o chocalho de tampas de cerveja.

Parece-me interessante mostrar as concepções segundo as quais estes instrumentos foram construídos, transcrevendo alguns trechos de uma entrevista realizada no dia 27.01.01, na qual Jair explica como procederam.

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Para o Timbanco (faixa n. 1 do CD),

a gente fez tipo um caixote, fechou os quatro cantos em cima e em baixo e os quatro canto do lado, nos quatro lados pra poder ter um som mais ... porque ele aberto, ele é um som mais solto, mais seco. Quando você fecha ele um pouco mais ressalta um pouco mais o grave dele e começa a sentir um médio-grave meio assim mais apresentável. [É feito com] madeira qualquer, porque na verdade era um banco ... pequeno, normal, um banco de sento pequeno mesmo, só que não dá pra ficar baixado ou sentado no chão pra tocar. A gente pegou e cresceu ele em altura, que pegasse, por exemplo, no nosso umbigo, na nossa barriga aqui mais ou menos ... da mesma altura de um timbau pra poder tocar em pé normal com a postura. (Figura 10: Timbanco)

O Tambor Térmico e o Isopor de Cerveja:

O tambor térmico é uma estante que tem um isopor redondo, um isopor de carro de sorvete e um vasilhame de água mineral, aqueles de 10 litros. A gente fez um estante colocou os dois juntos pra substituir o timbau. Tem o timbanco, tem o isopor de cerveja que ... que vende cerveja, tem um caixote e também tem esse tambor térmico, que a gente substituiu o timbau: bota os três na ala assim, pra poder diferenciar o som, os timbres.

(Figura 11: Isopor de Cerveja)

E o Caixote, a gente pegou ele pra poder fazer um assento de um outro caixote de isopor, só que ele também é um instrumento, tem um som legal de se fazer. Na verdade até os quatro cantos dele, quatro lado têm um som diferente ... pode ouvir [ele mostra], ouviu? Ô, pra esse lado [e toca] ... Cada canto é que tem um som diferente ... um som que você vai ver.

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Na outra ala, que tem a mesma função do naipe de repiques, há os Timbales de Lata (faixa n. 2 do CD), “que é assim: duas latas de manteiga presa. E aí a gente fez uma estantezinha de um estante de prato e colocou duas latas dando um suporte pra elas”.

(Figura 12: Timbales de Lata)

E o Quadricano (faixa n. 3 e 4 do CD), que tem quatro pedaço de tubo, em quatro tamanho, em quatro afinações. Na verdade é um aro 8, uma pele de tamborim. 8 não ... 6, 8 é a bacurinha e a gente tenta afinar de várias tonalidades pra poder fazer um som diferente, que é um som que se adapte à banda ... que se você apertar demais, subir demais fica uma afinação muito aguda e distorce ... quebra o som das latas. (Figura 13: Quadricano)

Na ala da marcação, os Trisurdos (faixa n. 5 do CD) são formados por a mesma bitola, o mesmo aro, só que pra chegar a afinação correta tinha que crescer mais uma ou então reduzir mais o outro. Então a gente reduziu um aro 12, ô, aro 13 e o outro aro 12. E a gente fez assim como se fosse um aro 14 e um aro 13 pra ter um som de 24 e um som de 22 ... aro 22 dos surdos convencionais ... e o balde no centro como se fosse um meio, uma dobra. (Figura 14: Trisurdo)

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E para completar, na ala da marcação tem o Estante de Meios (faixa n. 6 do CD), realizado com um tonel, um balde e uma lata coberta com um pano.

(Figura 15: Estante de Meios) Para os efeitos66, tem a trave com bacia67, “que a gente fez uma trave e colocou uma bacia de roupa mesmo, aquela pra lavar roupa de zinco, pra fazer um som de efeitozinho tipo gongo assim, entendeu?”. No caso do chocalho de tampas de cervejas, a qualidade das

tampas foi o que fez a diferença. Confrontando as tampinhas de duas marcas de cerveja eles constataram que uma era aquela certa: quando faço um chocalho de tampas de cervejas, tampas de garrafas de cerveja ... vou até fazer uma propaganda aqui ... eu prefiro da Schincariol que da Brahma, porque o som da Schincariol é melhor. Pode fazer! Pegue um conjunto de um monte de tampas, pegue um cabo de vassoura e fure as tampas. Pegue um prego, prenda as tampas nesse cabo de vassoura e faça tipo um chocalho com as duas tampas ... veja qual o som melhor. Faça uma experiência você mesmo e vamos ver ... Claro, gosto não se discute, você pode achar o som da tampa de Brahma melhor que da Schincariol, mas eu acho pra que eu queria, eu acho que a Schin chegou onde eu quis ... como som, aquele som bem bonito, bem gostoso ... xiquixiquixiqui ...

(Jair, depoimento do dia 15.06.01) (Figura 16: Chocalho de tampas de cerveja, Cano de Semáforo e, em segundo plano, a Trave com Bacia )

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Efeitos são aqueles instrumentos que não formam diretamente a base rítmica, mas que são utilizados justamente para enfeitar.

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O Set de Latas, “que você faz tipo uma meia lua, um C com vários modelos de lata, de tamanho e tipo de lata ... e tem o timbales de lata e ai vários tipo de som”.

(Figura 17: Set de Latas)

E o para concluir, o Cano de Semáforo (faixa n. 7 do CD).

(Figura 18: Cano de Semáforo e Chocalho )

Para tocar os instrumentos reciclados foi necessário desenvolver uma técnica que, embora parecida àquela dos instrumentos convencionais, considerasse os novo materiais e se adaptasse às latas, que são muito mais sensíveis. A esse respeito Jair afirma que quando um se acostuma no convencional e parte pro reciclado, pro instrumento criativo, a gente sente diferenças de altura, aí vem até de dar um desgosto, né! A gente acostumado a pegar um repique, um timbau ou um surdo, a sentar na mão, a tocar, a sentir aquele som bonito ... pápá ...e quando você parte com um outro tipo de instrumentos ... você tem que ... ter uma educação melhor, aprende a tocar sem tanta força, com mais dinâmica, a tirar um som mais explicado, com mais atenção. (Jair, depoimento do dia 27.01.01)

Além de sensíveis, as latas se desgastam rapidamente. Este problema gerou uma experimentação paralela à construção dos instrumentos que se concentrou em pesquisar o

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A trave com bacia aparece no segundo plano da foto desta página.

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tipo de baquetas que valorizam o som e ao mesmo tempo não estragam as latas a cada ensaio. Por exemplo, a lata é um instrumentos muito delicado, tocar demais com uma forma agressiva, com bastante força ... ela perde o som dela, ela perde originalidade. Você tocando com força três ensaio ou então três apresentações ... ela já não é mais o som que você começou. (Jair,

depoimento do dia 09.03.01) Foram, portanto, utilizadas alças de balde plástico repartidas no meio para os timbales de lata, que, sendo mais leves e moles, não amassam e preservam melhor as latas. Segundo

explica Jair a gente tá procurando usar aquelas alça de balde. A gente arranca ele do balde, parte no meio, porque alí é leve, é mole e o som alí ... você pode tocar bastante e não amassa tão rápido como com uma baqueta normal de timbales, de bateria ... que se você pega alí tocar uma base .. já foi a lata. (Jair, depoimento do dia 09.03.01)

No caso dos trisurdos e dos estantes de meios foram utilizados pauzinhos de madeira, por serem mais finos, arrancados das grades de berço de bebê, com uma esponja na cabeça, para obter “um som mais abrangente, mais explicado.” Ele continua explicando que até esse cuidado a gente tem, por exemplo, uma baqueta de surdo, aquela que tem uma esponja ... a gente procurou de fazer daquela forma, uma forma mais pequena, uma forma menor ... A gente faz com cabo mais fino e uma cabeça menor, porque o nosso material não é um surdo normal, é um surdo menor e pra tirar o som dele ... até que possa ser que a esponja maior tire um som melhor, um grave mais corporado, mas eu acho que pra soar melhor ... é ainda uma experiência, estamos experimentando pra ver o que se adapta mesmo. ... Assim... a gente tá, inicialmente, com aquela baqueta pequena mesmo de esponja... (Jair, depoimento do dia 09.03.01)

E assim, continuando com os experimentos, no meio desse ano apareceram muitos instrumentos novos, os quais não foram ainda "batizados", e nem sempre são utilizados, justamente por estarem ainda em fase de adaptação. Desses irei mostrar apenas as fotos.

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Fotos dos novos instrumentos musicais

(Figura 19: Novos instrumentos)

(Figura 20: Novos instrumentos)

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Os arranjos para os instrumentos de percussão

Os arranjos para os instrumentos de percussão geralmente constam de uma introdução, de um corpo principal chamado base, de várias convenções68 e de um final, como é ilustrado na faixa n. 8 do CD. A introdução e as convenções podem ser mais ou menos compridas e se alternam com a base (Faixa n. 9 do CD). "Ouro em Lata", por exemplo, inicia com uma introdução que dura uns 50 segundos, na qual o naipe dos instrumentos mais graves se alterna com aqueles mais agudos (faixa n. 10 do CD). Cada música tem um mínimo de 2 até 5 convenções (como no caso da música "Merengue"). Jair, contando como eles aprenderam a tocar, afirma que “antigamente era tudo na base de ouvir e construir: se criava cada frase para cada instrumento e se formava uma base. E daí, desenvolvendo a introdução, a convenção ...” (Jair, depoimento do dia 27.01.01). Na

distribuição das partes entre os instrumentos observei que muitas vezes os ritmos resultam fracionados em dois ou três instrumentos da mesma ala para formar um ritmo mais complexo e mais sofisticado (faixas n. 11 do CD). Isso, também, com o objetivo de não correr o perigo de deixar "cair" o andamento e obter uma boa qualidade na execução. Durante um ensaio, Jair, observando que um naipe não estava tocando uniformemente, comentou que “por isso que eu prefiro fazer [um modelo] individual: ele faz um modelo, ele [indicando outra pessoa] faz outro ... para o andamento não cair” (Jair, transcrição da

gravação áudio do ensaio do 18.11.00).

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Uma convenção pode servir como break, introdução ou final. É algo que interrompe o decorrer de uma base. Segundo Jair é ”uma virada”.

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Os ritmos utilizados, além da forte influência da Timbalada e se inspiram no merengue, no maracatu, no frevo, no funk, no reggae, e são também combinados e misturados um com outro. A respeito disso Jair admite que o som da Lactomia tem essa visão de Timbalada, de outras bandas, de outros bloco, porque a gente vivencia isso muito aqui ... os meninos, é raro os meninos sair do Candeal pra conhecer outra cultura, pra visitar outros projeto, pra ver outra forma de ... de música. Ele é muito preso aqui, normalmente os meninos escuta a FM, não tem muito tempo pra estar ouvindo novos sons, pesquisando novos sons. Mas o que a gente faz, é de uma forma ... espontânea mesmo ... aparece, tenta ... bem que algumas coisa são parecida mesmo, mas é de origem, não tem pra onde fugir.

(Jair, depoimento do dia 09.03.01) E desta forma não apenas surge uma idéia, esta começa a ser trabalhada, desenvolvida e experimentada até encontrar as combinações adequadas para todos os instrumentos. Foi assim que nasceu "Merengue", que ganhou destaque no penúltimo CD da Timbalada entitulado "Pense na Minha Cor". Jair conta que aí, tava sem sono e aí ficava pensando ... pô, amanhã a gente tem ensaio da Lactomia, sábado de tarde a uma hora dessa, e eu vou levar uma novidade pra lá ... eu vou criar um novo ritmo pra ir pra lá. Aí ficava pensando ... daí saiu ... tom, tom tom tom [canta] ... somente isso. Ainda continuava vazio, vou guardar isso ... vou criar outra coisa ... e aí criei tom, tom tom tom tom, dogodogôdogôgô [canta] e aí vai saindo .... depois vem pra dar a idéia de merengue ... a gente veio assim ... tcha tcha umtcha umtcha [canta]. Aí que veio a novidade que é a parte que você completa da percussão, como se fosse o corpo ... né, que é o timbau, que a gente fez uhkaktumtumtum [canta] que dá um ... que completa tudo o trabalho junto com efeito, que vem um chucalho ... xikixikixi [canta] e daí ... veio várias convenções. Inclusive nesse ritmo tem cinco convenções nela. Tem a um, dois, três, quatro e cinco ... tem a forma de regência, porque a gente começa a numerar. (Jair, depoimento do dia 09.03.01)

Para ampliar o repertório também os outros integrantes são estimulados a inventar bases e arranjos. Normalmente quem tem uma idéia, a expõe aos colegas durante um ensaio e juntos passam a elaborar frases rítmicas diferentes que se adaptem a todos os instrumentos. Mas, nem sempre as sugestões de outros colegas são aceitas; quem dá o aval é Jair, que comenta:

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às vezes eu crio uma linha de ritmo que, na verdade, além do raciocínio, é a intenção do ritmo. Você pode escutar o mesmo ritmo que eu, mas não ter a mesma intenção que estou tendo com relação ao ritmo. Você pode entender o ritmo de outra forma. Aí, ele vem com a idéia de colocar uma frase, e que eu vejo que não é legal, por mais que seja bonitinha ... mas não é isso ainda. (Jair, depoimento do dia 27.01.01)

Dermeval lembra que Jair, preocupado em não repetir sempre as mesmas músicas, começou a incentivar os colegas para que tentassem criar novas bases. Ele aceitou o desafio e depois de algum tempo se apresentou no ensaio com uma base onde se articulavam frases rítmicas dos surdos e da bacurinha. Jair aprovou a sugestão e começaram a ensaiar. Pelo que eu pude ver durante um ensaio no qual estavam compondo uma base, Paulinho e Adriano começaram "puxando" um ritmo para fazer com que os outros colegas se soltassem. Os outros, aos poucos, entraram com outras frases que podiam complementar ou contrastar a base sugerida. Assim, controlando a forma com a qual se combinavam os instrumentos, eles decidem o que deixar, o que eliminar e o que modificar, até ficarem satisfeitos.

Compositores e repertório

O repertório musical consta de aproximadamente 20-25 canções (entendidas como letra-melodia e/ou arranjo para percussão) compostas em parte por integrantes da banda, mas em maioria por pessoas da comunidade. Jair, contando a origem das primeiras músicas, lembra que “quando a Lactomia surgiu já tinham algumas canções falando dela assim ... não dela principalmente, do nome Lactomia, mas da idéia dela” (Jair, depoimento do dia

09.03.01). A troca de idéias entre os músicos, que participavam das diferentes formações musicais criadas por Carlinhos Brown, e os integrantes da Lactomia era constante. Isso fez

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com que alguns deles escrevessem músicas, que constituem o atual repertório da banda, no qual o nome, a história e os ideais da Lactomia são cantados e divulgados. Isso, conforme Jair explica “porque a gente ... não limita ao compositor. (...) não importa quem seja o compositor, a gente vá mais pela intenção, pelo que a música vem trazer ” (Jair, depoimento do

dia 09.03.01). Assim, nesses contínuos intercâmbios, as propostas dos compositores foram adequadas às idéias e aos ritmos da banda. Já a partir dos títulos das canções ("Carrinho de Madeira", "Criança", "Ouro em Lata", "Tá lí, ô!", "Regalia", "Vendaval", "Menino de Rua", "Português" e "Matemática") pode-se intuir os valores, o enfoque, o ambiente de vida e suas problemáticas. Nas letras das músicas69 faz-se evidente uma grande preocupação com os problemas sociais vivenciados no bairro e na cidade. Por exemplo, "Criança", composta recentemente por Adriano Silva e Elaine Xavier em ocasião de um concurso promovido pelo Unicef para os 10 anos do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), convida as pessoas a uma reflexão sobre as crianças e seus direitos: "Pare pra pensar / Pare pra olhar / Criança deve estar na escola. Criança tem direito a brincar / Tem direito a sonhar / Tem direito a viver..."

Também em "Menino de Rua", composta por Mário Conceição, músico e morador do Candeal, é presente a problemática das crianças desamparadas, e no final, uma voz falada sobreposta à base rítmica lembra a todos que é responsabilidade de cada um se comprometer para construir um mundo melhor: "É coisa nossa freqüentar a escola, / É coisa nossa dizer não à violência, É coisa nossa amar o próximo, / É coisa nossa proteger a natureza, Dizer não às drogas ..."

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As letras das músicas encontram-se no Anexo 2

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Fome e miséria, presentes na vida de tantas pessoas obrigadas a morar na rua, são denunciados em "Vendaval", canção composta por Dennis (apelido "Bujão"), um excomponente da banda, quando tinha 8-9 anos. Após uma briga com o pai, ele saiu de casa e foi morar na praça da Piedade, junto a outros meninos em situação de rua. Ele traduziu esta experiência dramática nesta música. "Vendaval. / Corri, anda, mas não espere esperar a vida chegar. Um corre-corre nas ruas / Fome, miséria mata muita gente ..."

E, insistentemente recorre a interrogação "Que país é esse?" É evidente que a banda não usa somente a crítica social no seu repertório, mas pretende, através das suas músicas, transmitir mensagens positivas e educativas, como aparece em "Português - o Objetivo", de Bira Maclari compositor e morador do Candeal, onde o amor é o tema de fundo, "...Só no português dentro da sua vida, / Eu te classifico, eu quero te amar...",

desenvolvido, porém, com questões gramaticais, como por exemplo a "conjugação do verbo", a "preposição", o "substantivo", o "sinônimo" e o "antônimo". A mesma intenção percebe-se em "Matemática", sempre do mesmo compositor, onde novamente o tema "amor" é desenvolvido através das quatro operações: "Matemática, não deixe dividir, / me ajude a somar o amor, não pode subtrair..."

Para cada canção, Jair, com auxílio de outros integrantes, criou um arranjo para percussão, que pudesse ser tocado com ou sem os instrumentos harmônicos.

Capítulo 4

O sistema de ensino e aprendizagem musical da banda Lactomia - descrição e análise

Neste capítulo, o propósito é descrever e analisar como as várias características do ensino e aprendizagem musical se articulam para formar o sistema utilizado pela banda Lactomia. Conforme o conceito de sistema expresso por Velho (1999), é a partir da análise dos dados que o pesquisador deve demonstrar como categorias, valores, atividades se articulam e fazem sentido entre si. A partir dos conceitos que caracterizam as teorias tradicionais de currículo apontadas por Silva (1999) será efetuada a descrição e análise dos dados, divididos em quatro partes. Na primeira, portanto, a atenção será entorno dos objetivos e suas relações com valores e normas que fundamentam o sistema de ensino e aprendizagem musical da banda Lactomia; na segunda, o enfoque será no planejamento do sistema de ensino e aprendizagem musical; na terceira, o foco será a metodologia e didática utilizada; e na última, estarei tratando da avaliação.

Objetivos (valores e normas)

Através dos dados apresentados até este momento, pode-se perceber que os aspectos valorizados no discurso dos integrantes da banda dizem respeito a uma dimensão "ambiental", ecológica83 (reaproveitamento do lixo e preservação da natureza), bem como

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Os adjetivos "ambiental" e "ecológico" são utilizados a partir das concepções dos integrantes da banda.

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a uma dimensão social (luta contra a injustiça, miséria, fome, violência, drogas, analfabetismo, desemprego). Dimensões que juntas confluem para formar o conceito de cidadania. Estas preocupações, surgidas a partir de experiências e problemas reais encontrados no dia-a-dia, determinaram os valores e os objetivos, a partir dos quais começou a ser promovido um tipo de educação para a cidadania entendida como meio para melhorar uma realidade crítica. Na opinião de Jair, o mundo é a escola e quando eles procuram ensinar, isto é, passar o próprio conhecimento, ao mesmo tempo aprendem também. Incluindo no repertório letras de músicas que tratam de gramática, de matemática, da condição da criança e de problemas sociais, eles pretendem mostrar que aprender, conhecer, ter senso crítico é importante, sobretudo, para aquele segmento da população que teve uma escolarização precária. Segundo ele, “a linguagem de trabalho da Lactomia é uma linguagem educativa, uma linguagem de cidadania” (Jair, depoimento do dia 12.05.01), e ressalta quanto é importante estar reaproveitando o lixo pra poder fazer música e passando os conceitos pra população do que deve ser. Por exemplo: dar atenção ao meio ambiente, estar preservando o meio ambiente, a fazer com que os adolescentes freqüentem mais a escola, e diminua mais o índice de violência, de droga. (Jair, depoimento do

dia 09.03.01) Em relação aos valores, Saviani (2000) afirma que estes indicam as expectativas, as aspirações que caracterizam o homem em seu esforço de transcender-se a si mesmo e à situação histórica; como tal, marcam aquilo que deve ser em contraposição àquilo que é. A valoração é o próprio esforço do homem em transformar o que é naquilo que deve ser. (Saviani 2000, 38). O autor, entretanto, constata que os valores estão diretamente ligados aos objetivos e a este respeito escreve que Com efeito, um objetivo é exatamente aquilo que deve ser alcançado. A partir da valoração é possível definir objetivos para a educação. Considerando-se que a educação visa a promoção do homem, são as

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necessidades humanas que irão determinar os objetivos educacionais. E essas necessidades devem ser consideradas em concreto, pois a ação educativa será sempre desenvolvida num contexto existencial concreto. Os objetivos indicam o alvo da ação. (ibid., 39). Segundo Jair importante é estar ampliando o conhecimento nosso daqui do Candeal, nessa nova forma de fazer música: de estar reaproveitando o lixo, preservando o meio ambiente, passando conceitos sobre cidadania e também fazendo uma coisa que eu gosto que é música, multiplicando isso ... que eu gosto da idéia da Lactomia sempre estar multiplicando, fazendo com que, ocupar de uma certa forma as crianças, porque se deixar à toa, sem ocupação é óbvio que o caminho que ele vai achar mais próximo é o que tá aí em nosso país que é ... a violência, as drogas ... esses maus. (Jair,

depoimento do dia 04.08.01) Para divulgar os valores e conceitos, e, como conseqüência, alcançar os próprios objetivos, a música torna-se o meio ideal. Jair explica que “música é um sentimento. Você expressa alguma coisa, a música vem de dentro, assim, é uma terapia. Música é uma coisa completa, é uma arte completa ... trabalha com todo o ser humano ... como um todo” (Jair, depoimento do

dia 04.08.01). Através de estudos realizados no campo da psicologia social da música, North (2000) constata que O impacto emocional da música é um importante aspecto da cultura de muitos povos nativos e foi considerado amplamente pelos grandes filósofos. Novos fatos e descobertas científicas recentes, porém, estão começando a mostrar que a música pode ter um impacto dramático não somente sobre o que pensamos e sentimos, mas também sobre o que realmente fazemos. A música é freqüentemente tratada como entretenimento, mas pode revelar-se muito mais poderosa do que isso84. (North 2000, 69)

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"The emotional impact of music is an important aspect of the culture of many native peoples, and was considered at length by the great philosophers. However, recent news stories and scientific discoveries are beginning to show that music can have a dramatic impact not only n what we think and feel, but also on what we actually do. Music is often treated as entertainment, but it may be much more powerful than that".

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Intuitivamente, portanto, os músicos da Lactomia percebem que a música tem um poder muito grande sobre as pessoas e também que este, se fosse bem utilizado, poderia contribuir para o melhoramento substancial da situação social no país. Segundo eles, a mídia85, principalmente o rádio e a televisão, fazem jogo contrário através da maioria de seus programas, agindo como anestésico sobre a população. O que preocupa Jair, fundamentalmente, é uso da música que está sendo feito pelos meios de comunicação. A distinção entre uso e função da música é uma questão amplamente discutida pelo etnomusicólogo Alan Merriam (1964), que os diferencia da seguinte maneira: "o 'uso', então, refere-se à situação na qual a música é empregada pela ação humana; a 'função' diz respeito às razões do seu emprego e, sobretudo, à finalidade mais ampla para qual serve" 86 (Merriam 1964, 210). Na entrevista do dia 4 de agosto de 2001, Jair expressa uma crítica acirrada ao papel desenvolvido pela mídia no país e suas repercussões na população: A mídia bota a música e parece que tem só ela como música no país! Bota, força o ouvinte a ouvir, porque se você mudar de emissora, tá numa outra emissora cantando ... eu acho isso um absurdo, rapaz! A mídia fica monopolizando as músicas baiana, porque você, mesmo que você não queira ouvir, você deve desligar o rádio, só assim você não escuta. [...] A musicalidade brasileira hoje seriamente tá numa decadência terrível! [...] ... a letras são tão abertamente assim ... sfler, sabe o que é sfler? Sfler é uma coisa bem podre mesmo. Porque não tem mais criatividade pra botar as letras pra fora, porque a mídia, os grandes empresários, a TV que ficam monopolizando assim os grupos, velho, submetendo que eles toquem a tal coisa, influenciando a população, crianças, adolescentes, que realmente são o alvo. Porque, na verdade paga muito esses eventos que têm aí. É o alvo principal que eles afetam ... com essa música horrível, a letra que não tem nada a ver com um contexto do nosso país que tá passando uma dificuldade tremenda, que tem que botar música que fale realmente, pelo menos, reative essas pessoas, uma auto-estima de você tentar correr atrás do que você quer, porque música traz isso também. Quando você fala

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Os termos "meios de comunicação" e "mídia" são utilizados a partir da perspectiva do contexto de vida dos integrantes da banda. 86 "Use" then, refers to the situation in which music is employed in human action; "function" concerns the reasons for its employment and particularly the broader purpose which it serves".

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uma letra bonita, letra educativa, você pode colocar onde você quiser ... em lambada, em reggae, em frevo, em rock, em jazz ... onde você queira, mas leve essa letra com você, leve a harmonia, o sentimento com você. Traga uma música que tenha uma melodia, um arranjo bom, não uma letra que faça você ser um ... gay, um viado, um maconheiro, uma prostituta ... porque a música, hoje em dia, faz com que as pessoas se sintam assim, dancem assim, agem assim e isso me deixa furioso! O que me chateia na música é somente isso mesmo. (Jair,

depoimento do dia 04.08.01) Diante desse quadro o papel que Jair e seus colegas assumem, é justamente contrário a esta tendência. O objetivo explícito é informar, educar, despertar espírito crítico e reativar nas pessoas a responsabilidade e o compromisso com direitos e deveres, o desejo de melhorar as próprias condições de vida. Se até agora considerei os valores e os objetivos relativos à educação de forma mais generalizada, parece-me também relevante refletir sobre o valor e os objetivos relativos à música a partir da observação de sua prática. Várias vezes me perguntei se efetivamente todos os integrantes acreditavam nos valores promulgados por Jair ou estavam seguindo-os somente por consideração a ele. Considerando a faixa etária deles é possível, segundo Hoffer (1992) que o senso de conformidade fosse alto. O autor frisa que "a observação casual confirma a idéia que as pessoas aprendem e são influenciadas pelo que o grupo faz e pensa"87 (Hoffer 1992, 719). Nunca, porém, duvidei que todos os integrantes estivessem profundamente envolvidos no fazer musical, tendo como objetivo pessoal se tornarem bons percussionistas e como objetivo de grupo se afirmar profissionalmente. A dedicação, o entusiasmo e a concentração demonstrada nos ensaios me confirmaram esta impressão. Normalmente, antes do início do ensaio ou durante uma breve pausa os integrantes aproveitavam aquele momento para mostrar e ensinar um ao outro exercícios feitos com as

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"Casual observation confirms the idea that people learn from and are influenced by what the group does and thinks".

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baquetas de bateria, confrontar habilidades ou para tocar e cantar alguma música de sucesso ouvida no rádio.

(Figura 21: Durante uma pausa alguns integrantes cantam uma música, se acompanhando sobre uma caixa de papelão)

(Figura 22: Marcelo Bulachinha treina alguns exercícios de bateria sob orientação de Paulinho)

O que chamou minha atenção assistindo aos ensaios foi o respeito incontestado das normas disciplinares rígidas. Marcado dia e hora, os integrantes são esperados pontualmente na área externa do galpão/sede. Às vezes são admitidos pequenos atrasos, mas quando Jair abre a porta de acesso ao galpão há como uma regra que dificilmente é desrespeitada, sequer questionada: todos entram sem perder tempo, pois logo depois a porta será fechada

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com um cadeado, que impossibilitará o acesso de eventuais retardatários. A exceção ocorre somente com aquelas pessoas que são geralmente pontuais e com as quais Jair mostra-se mais compreensivo. Com aqueles menos respeitosos das regras, por outro lado, ele torna-se irredutível. Quem, apesar do atraso, é admitido a entrar, terá que esperar pelo menos que o grupo termine de ensaiar uma música e ser chamado para se integrar à turma. Segundo ele a disciplina é fundamental e a esse respeito afirma que é agora que tô assim mais ... com algumas pessoas, mais rigoroso, porque, por exemplo, Adriano não chega atrasado, nem Deco, Dermeval, nem Élber e quando você vê que chega atrasado é porque aconteceu alguma coisa, mas se você ficar calado, acontece na próxima, outra, outra até perder o limite. Então tem uma hora que eu pego pesado e fecho a cara, nervoso, mas é pra ter paciência. Mas têm pessoas que não gostam de ouvir não, que acham que eu quero mandar, impor demais ... não vê de outra forma que vê. (Jair, depoimento do

dia 27.01.01) Mas Jair esclarece que apesar do momentâneo aborrecimento, após o ensaio ele e os colegas procuram conversar para que a atmosfera volte de novo serena. O comportamento do retardatário também revelou-se bastante típico. Normalmente quando este entra, dá a "boa tarde" para os colegas, coloca uma das sandálias no chão, senta-se em cima dela e, durante algum tempo espera de olhos quase fechados, com uma expressão de evidente cansaço, como quem quisesse dar uma relaxada. É só Jair chamá-lo para se integrar com o resto da banda para que essa atitude muda radicalmente, retornando alegre e cheio de energia para tocar e dançar. Outro aspecto que despertou minha atenção foi a seriedade e a concentração com a qual são conduzidos os ensaios. Uma vez que os integrantes tomam posição nos próprios instrumentos só começam a tocar quando Jair, uma vez escolhida a música, dá o sinal de início. Também durante o trabalho de aperfeiçoamento, nos quais eles são chamados a repetir várias vezes alguns trechos por ala ou individualmente, evitam se distrair tocando fora da hora ou conversando um com outro. Fica evidente que para eles alcançar as metas

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prefixadas e obter resultados satisfatórios só é possível através de um trabalho organizado e disciplinado. Para compreender melhor os mecanismos disciplinares vigentes na banda me apoiei em Michel Foucalt (2000), que foi quem abriu novas perspectivas sobre este argumento. O autor analisou o processo disciplinar a partir da história de quartéis, colégios, prisões, hospitais e fábricas, e observou que este começa com a distribuição dos indivíduos no espaço através de diversas técnicas. Entre as quatro técnicas apontadas, as primeiras duas auxiliaram-me na compreensão de como é concebida a disciplina na banda Lactomia. Foucault observa que 1) A disciplina às vezes exige a cerca, a especificação de um local heterogêneo a todos os outros e fechado em si mesmo.... 2) ....Estes [os aparelhos disciplinares] trabalham o espaço de maneira muito mais flexível e mais fina. E em primeiro lugar segundo o princípio da localização imediata ou do quadriculamento. Cada indivíduo no seu lugar; e, em cada lugar, um indivíduo....O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quando corpos ou elementos há a repartir.... Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades e os méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço analítico. (Foucault 2000, 121-123) A "cerca" como local fechado em si mesmo, mencionada pelo autor, remeteu-me ao galpão/sede da banda, e o "quadriculamento" à posição dos integrantes no espaço disciplinar da sala de ensaio. Mas como lembra o autor, "na essência de todos os sistemas disciplinares, funciona um pequeno mecanismo penal" (ibid., 149), que resulta evidente na banda Lactomia em relação aos atrasos, comportamentos desatenciosos ou falta aos ensaios. Foucault especifica que Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do

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corpo (atitudes "incorretas", gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). (ibid., 149) O recurso à "micropenalidade" torna-se evidente quando Jair, por exemplo, para obter um melhor desempenho durante os ensaios, ameaça excluir aqueles integrantes que não estão alcançando um nível satisfatório ou não estão tendo um comportamento considerado desejável. A punição, portanto, expressa-se através da exclusão temporária dos ensaios, shows ou viagens. O resultado deste sistema disciplinar tem aspectos positivos, pois permite um trabalho organizado e concentrado, mas também aspectos negativos, pois desestimula a discussão e a troca de opiniões.

Planejamento "Planejar" – segundo Menegolla e Sant'Anna (1998) – "é uma exigência do ser humano; é um ato de pensar sobre o possível e viável fazer. E como o homem pensa o seu 'o quê fazer'", o planejamento se justifica por si mesmo" (Menegolla e Sant’Anna 1998, 17). A partir desta primeira consideração pretendo entrar no mérito de como os integrantes da banda Lactomia organizam e planejam suas atividades. Se o principal objetivo da banda é conseguir afirmação profissional, os integrantes estão conscientes que para ganhar visibilidade pública é fundamental fazer shows e performances de boa qualidade. Da mesma maneira, para fazer boas apresentações, eles devem ensaiar regularmente e organizar o ensaio para que a execução do repertório melhore. Os ensaios, assim, representam os momentos nos quais o planejamento e a organização do sistema de ensino e aprendizagem se tornam mais evidentes. Afinal, coordenar um grande número de pessoas, formar um repertório, construir os instrumentos são todas ações que precisam de organização e de planejamento. Jair, enquanto líder da

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banda, atua principalmente como planejador. Sacristán (1998) reportando a concepção de “planejador” expressa por Schön, relata que O planejador é alguém que dialoga com a situação em que atua, que reflete sobre uma prática, que experimenta com uma idéia guiado por princípios, que configura um problema, distingue seus elementos, elabora estratégias de ação ou configura modelos sobre os fenômenos, tendo uma representação implícita de como estes se desenvolvem. As atividades de planejar apóiam-se em conhecimentos diversos sobre o que são e como se comportam determinadas realidades, exigem conhecimentos sobre as situações nas quais operam, mas o produto no qual devem desembocar o plano ou modelo - é uma criação singular, pois a situação à qual devem responder costuma ser singular; logicamente poderá aproveitar a experiência adquirida em outras ocasiões e por outras pessoas. (Sacristán 1998, 198) Desta forma, a partir da sua experiência, Jair coordena e planeja como as várias atividades da banda devem ser organizadas e realizadas. Os ensaios são programados mensalmente e antes de cada encontro são estabelecidas quais músicas deverão ser aperfeiçoadas. Durante os ensaios com as crianças, por exemplo, a seqüência seguida por Jair, prevê que cada ala primeiro aprenda a própria frase rítmica para depois juntar todos os instrumentos e prosseguir, fazendo com que eles aprendam todas convenções até a música constar de uma estrutura completa de introdução, base, convenções e final. Verificando com o passar do tempo a eficácia das ações empreendidas, Jair acumulou uma notável experiência em saber administrar o tempo e a atenção dos colegas e das crianças. Segundo Sacristán (1998), "a experiência prévia é um acervo aproveitável para prever planos adequados em momentos concretos, ainda que sempre tenhamos que encarar a singularidade de cada situação que nos demanda respostas particulares" (Sacristán 1998, 199). E mais adiante continua escrevendo que O ensino tem uma intencionalidade, persegue certos ideais e costuma ser praticado apoiando-se em conhecimentos sobre como funciona a realidade na qual intervém. Se é uma ação intencional, dirigida para algum fim, deve ter uma lógica, ainda que não existam planos absolutamente seguros nem se possa pensar num único caminho possível para desenvolvê-la. (ibid., 199)

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No trabalho com as crianças, tanto o ensino quanto a aprendizagem são conseqüência de uma intenção, que pode atingir diferentes níveis a depender do ponto de vista de cada um. Para Jair, a intenção é passar o próprio conhecimento e abrir os horizontes para as novas gerações, mas também conseguir que a Lactomia consiga se afirmar profissionalmente. Do ponto de vista das crianças, a intenção provavelmente é de aprender a tocar os instrumentos de percussão e seguir o mesmo caminho das pessoas que elas consideram como exemplo. Se, em geral, a banda conseguiu um alto grau de sofisticação musical, é porque soube estabelecer objetivos e planejar como atingi-los.

Metodologia e didática

A música no bairro do Candeal é tão constantemente presente na vida das pessoas que identificar com precisão a partir de qual momento se dá o início do seu aprendizado não é uma tarefa simples. Jair e seus colegas estão convencidos que as crianças do Candeal têm facilidade de aprender a tocar os instrumentos de percussão por causa dos contínuos estímulos musicais aos quais são expostas no dia-a-dia. De uma certa forma, pelo que eu pude constatar durante este período de vivência com a banda e pela fala dos integrantes, a curiosidade tem um papel determinante: aproxima e envolve a criança com a música e aciona o desejo de aprender. Sacristán (1999), refletindo sobre as razões que movem as ações educativas, afirma que Os motivos e os desejos têm forças para nós; ainda que não nos forcem, são convincentes. Para que o motivo alcance poder desencadeante da ação e que esta se desenvolva, é preciso que provoque o querer fazê-la, deve experimentar o desejo de realizá-la, deve ter vontade de realizá-la, desejá-la, fazer dela uma necessidade. (Sacristán 1999, 35)

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O desejo, a vontade e a necessidade de aprender fazem com que as crianças permaneçam ao redor dos músicos que ensaiam nas ruas, olhando e ouvindo, isto é, observando nos mínimos detalhes como os músicos se comportam, o que fazem quando tocam, como dançam e o conseqüente resultado musical. Rivière (1996) aponta que a aprendizagem por observação, que faz parte da teoria cognitiva social formulada por Bandura, estuda a influência da "modelagem" sobre a conduta humana. Rivière afirma que Em todas as culturas, as crianças adquirem e modificam padrões complexos de comportamentos, conhecimentos e atitudes, por meio da observação dos adultos. Bandura diz que 'afortunadamente, a maior parte da conduta humana é aprendida por observação, mediante modelagem' (1987, 68). 'Afortunadamente', porque se as condutas são adquiridas somente por procedimentos de ensaio direto e erro, os processos de desenvolvimento ver-se-iam atrasados e estariam muito expostos às possíveis conseqüências adversas dos próprios erros. A aprendizagem observacional acelera e possibilita o desenvolvimento de mecanismos cognitivos complexos e pautas de ação social. (Rivière 1996, 59) Desta forma, explica o autor, que Bandura através de um conjunto de pesquisas demonstrou que o que as crianças principalmente imitam são (a) condutas relativamente simples, (b) próximas à sua compreensão cognitiva, (c) que recebem recompensas em outros, (d) apresentadas por modelos atrativos, (e) em momentos em que elas prestam uma atenção ativa aos referidos modelos. (ibid., 60) No caso do bairro do Candeal, no qual a música representa um dos meios que permite a auto-afirmação profissional, os músicos tornam-se, sem dúvida, modelos a serem imitados pelas crianças. Embora "as condutas" musicais nem sempre sejam tão simples de serem imitadas, estão, porém, ao alcance da compreensão das crianças. Também, é bom especificar que elas neste tipo de contexto aprendem segundo seus próprios ritmos. Exemplo ilustrativo, neste sentido, é de Dermeval quando relata que ele ficava próximo, "colado" aos músicos da Timbalada durante os ensaios e que “isso ajudou muito.

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Eu observando os músicos tocando ... Carlinhos alí na frente regendo a banda. Acho que isso ajudou muito a eu começar a aprender o instrumento” (Dermeval, depoimento do dia

27.04.01); ou quando ele lembra daquela época em que observava Carlinhos tocando e “ficava naquele sentimento de querer aprender mesmo” tanto que para isso comprou até um timbau. Tais situações evidenciam a importância da admiração que modelos atrativos suscitam sobre quem pretende aprender. A motivação é uma componente essencial da aprendizagem observacional e envolve normalmente algum tipo de incentivo. "Quando vemos que outra pessoa obtém uma recompensa ao realizar uma determinada conduta, tendemos a imitar essa conduta" escreve Revière (1996, 61). Mas na teoria de Bandura é especificado que as recompensas não necessariamente devem ser externas, podem também ser internas e auto-geradas, como acontece no caso do relato apresentado a seguir de dois integrantes (Dermeval e Adriano) da banda. Eles contam que, normalmente, após terminar o ensaio com a Lactomia, iam para casa “estudar, tirando um a dúvida do outro” (Dermeval, depoimento do dia 27.04.01). “E quando não tinha timbau, a gente tocava na parede, no chão, na mesa ... em qualquer lugar ”

(Adriano, depoimento do dia 27.04.01). Na aprendizagem por observação, a memória desempenha um papel importante, sobretudo, quando "implica a recodificação simbólica das atividades dos modelos" (Revière 1996, 61). Em vários estudos que o autor cita foi demonstrado que os observadores que transformam a atividade observada em códigos verbais ou imagens aprendem e retêm a informação muito melhor do que os que simplesmente se limitam a observar. Este efeito da recodificação depende, por sua vez, de que as representações mentais das ações observadas sejam realmente significativas para os observadores. (ibid., 61)

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A transformação das atividades observadas em imagens remeteu-me às crianças que assistem aos ensaios na rua. Elas ficam observando tão intensamente os músicos a ponto de começar a imitá-los, desenhando gestos no ar com grande convicção ou batendo sobre qualquer objeto ou, em sua falta, sobre a própria barriga. Do ponto de vista auditivo, também, a escuta prolongada da música percussiva produzida no Candeal faz com que esses ritmos venham se sedimentando tornando-se familiares. Adriano admite que embora “fosse complicado pra gente, ao mesmo tempo era fácil ... a gente olhava, ficava sempre olhando no ensaio da Timbalada, porque de tanto você ver, de tanto você ouvir ... você se solta mais, vai lá e já sabe” (Adriano, depoimento do dia

27.04.01). Como ele evidencia, a observação prolongada tem como resultado a sensação de familiaridade, que se traduz num sentimento de segurança. A sensação de saber, de conhecer já algo incentiva, facilita o processo de aprendizagem e cria confiança nas próprias capacidades. Quando chega a hora do teste de seleção para serem admitidos no grupo, a ansiedade e o medo do fracasso estarão amenizados. Após muito ver, ouvir, imitar, "batucar" a criança terá só que se ajustar ao instrumento, adaptando os movimentos na base dos resultados sonoros obtidos. Na aprendizagem por observação, a prática efetiva das atividades modeladas remete a processos de tipo executivo. Revière exemplifica este aspecto analisando o comportamento de uma criança que tenta reproduzir no caderno o que a professora escreveu no quadro. Ele acrescenta que a criança Não tem apenas que prestar atenção ao escrito e, se possível, entendê-lo (i.e., recodificá-lo significativamente em sua memória), senão também ser capaz de realizar as condutas motoras que se encontram envolvidas na atividade gráfica. (Rivière 1996, 61) Em relação à imitação, no estudo conduzido por Schön (2000) sobre a formação do profissional reflexivo, ele ressalta que esta se apresenta como um processo de construção

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seletiva e que a reconstrução pela imitação de uma ação observada é um tipo de processo para a solução de problemas. Esta, segundo ele, pode tomar a forma de sucessivas diferenciações de um gesto global, ou de aprender a juntar ações componentes. O imitador tem acesso à observação do processo (...) e do produto (...) e pode regular sua construção seletiva pela referência a um destes ou aos dois. (Schön 2000, 91) O autor explica que, caso se preste atenção ao produto da ação, se terá algo para copiar sem a obrigação de reproduzir o processo. Embora o ato de copiar possa resultar, por um lado, limitado, pode, por outro, levar a perceber o original de uma nova forma. Do mesmo modo, se a observação se concentra no processo da ação, haverá uma reflexão-na-ação, na qual poderão ser descobertos novos significados nas operações que se tentam reproduzir. É possível coordenar as duas estratégias de imitação: reproduzir o processo, bem como copiar o seu produto (ibid., 92). Como foi exposto por Dermeval e Adriano, o aprendizado tem sempre uma dimensão coletiva. Começa dentro da banda e prossegue em pequenos grupos de estudo. Em geral, os integrantes da banda dedicam seu tempo livre para melhorar a técnica dos instrumentos de percussão, fazendo, por exemplo, exercícios de bateria. Enquanto um executa, o colega supervisiona a precisão da execução ou sugere outros tipo de exercícios. O estudo, então, é realizado tanto individualmente que coletivamente. Paulinho, Sinho, Élber compraram alguns instrumentos (timbau, timbales, congas), que ficam num quarto livre da casa de Paulinho e de Sinho, no intuito de estudar, trocar experiências. O aspecto do estudo é freqüentemente sublinhado durante as conversas entre os integrantes da banda como algo que no futuro irá fazer a diferença entre um músico amador e um músico profissional. Neste sentido, Anderson admite que Sinho sempre chama a atenção dele e insiste para que ele se dedique mais ao estudo.

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Todo dia ele fala comigo: «vai estudar! », que meu futuro tá aí na frente e que eu vou conseguir um dia. Todo dia ele me chama até pra ir na casa dele estudar, que ele tem um quarto lá, bota os instrumento pra estudar. Ele tem um timbau, Élber tem timbales aí, conga ... e tem outra gente que fala pros meninos não seguir em frente: «vá a trabalhar, vá! ... pra comprar seus negócio!» Mas eu sei que o meu objetivo tá aqui e vou seguir até ... quando Deus quiser! (Anderson,

depoimento do dia 04.08.01) Se na bateria da escola de samba descrita por Prass (1998) ficou evidente através da fala dos ritmistas que o aprendizado de um instrumento acontece somente dentro da coletividade, e se nas Folias de Reis descritas por Brandão (1983) foi constatada a mesma atitude, no bairro do Candeal, ao contrário, a aplicação e o estudo tanto individual quanto coletivo de um instrumento e da música são muito valorizados. Devido à presença do stúdio de gravação Ilha dos Sapos e do Candyall Guetho Square, deve-se considerar que no bairro transitam muitos músicos e percussionistas de fama consolidada. A contínua comparação, que se estabelece entre os próprios integrantes da Lactomia e os músicos profissionais, faz com que os primeiros definam um padrão de qualidade baseado nas habilidades dos segundos, transfomando-os assim em modelos. A escolha do instrumento é um outro aspecto a ser evidenciado. Pelo que observei, as crianças, assistindo aos ensaios, ficam seguindo de perto o naipe do instrumento pelo qual simpatizam, com o qual se identificam. Se de uma certa forma alguns instrumentos, como os timbaus, têm mais possibilidade de se destacar durante o momento do solo, da improvisação, na opinião geral, todos os instrumentos são importantes e indispensáveis para a construção de um todo coletivo que é a música. Nem para uma finalidade didática existe uma hierarquia de instrumentos mais fáceis com os quais começar. Jair confirma que normalmente o aprendizado começa com o instrumento de própria escolha, se após um teste alguém mais experiente verifica a efetiva aptidão. A empatia e a aptidão, assim, ajudam, facilitam a aprendizagem. Em caso contrário, a pessoa é aconselhada de começar

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com um outro instrumento para em seguida voltar aquele escolhido. Dermeval conta que ele tinha vontade de aprender a tocar timbau. Aí Jair pegou, me deu um instrumento, aí ele viu ... eu acho que pelo conhecimento que ele já tinha, ele viu que eu estava mais apto a tocar timbau. Eu, também, tinha vontade de aprender o instrumento e isso acho que facilitou mais ainda.

E continua explicando que às vezes uma pessoa vá aprender um instrumento e tem mais dificuldade naquele, como por exemplo, Jair disse que Carlinhos deu a bacurinha a ele e viu que tinha um pouco de dificuldade pra aprender bacurinha. Aí deu timbau a ele. Ele pegou o timbau, viu que ele já tinha um pouco de ... viu que ele se adaptou melhor aquele instrumento. Então facilitou mais o aprendizado ... facilita mais o aprendizado. E com o passar do tempo e da experiência, você ... com a experiência que você vai adquirindo, você vai se adaptar a tocar outros instrumentos, entendeu? Mas pra começar, tem que ver qual instrumentos mais ou menos você pode começar. (Dermeval, depoimento do dia 27.04.01)

Segundo Jair, sobretudo no início, foi importante que eles se concentrassem num instrumento específico, descobrissem todas as possibilidades tímbricas, aperfeiçoassem a técnica, pois, no caso contrário, a mudança contínua teria dado como resultado uma aprendizagem superficial. Sobretudo depois que instrumentos mais complexos foram introduzidos na banda, foi indispensável que cada um desenvolvesse habilidades técnicas para poder executar as novas bases. Um exemplo disso é a passagem da marcação feita por três surdos (dois surdos de fundo e um surdo de meio, tocados por três pessoas) à marcação realizada com um trisurdo e estante de meios, ou seja, uma pessoa sozinha assumindo os papeis das três partes. Portanto, o músico durante a sua formação vai aprendendo todos os instrumentos presentes na banda, apesar de se especializar num instrumento específico, e é por esta razão que quando a banda ensaia e se apresenta, cada integrante toca sempre o mesmo instrumento.

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A esse respeito Jair reitera a importância dos músicos estarem prontos para todas as situações visto que o mercado de trabalho é muito competitivo e exigente. Na verdade, não têm [instrumentos] simples não. Na verdade, vá mais da pessoa que quer aprender, a sua aptidão a tal instrumento. Se ele acha com capacidade, ter capacidade de desenvolver mais rápido nesse instrumento, ele inicia nesse. Agora, antigamente, eu não gostava muito disso não, de querer distribuir pessoas tocando em vários instrumentos, não ... porque, se uma pessoa ficasse naquele instrumento, que ficasse o tempo todo. Mas hoje vejo a importância de ... porque hoje ... o mercado tá muito disputado. Você tem que estar pronto pra tocar em tudo que é situação. Então, por isso que hoje abri ... hoje não, tem já um tempo que estou deixando eles se liberar, trocar instrumento, criar instrumento, criar outros ritmos, mexer com a criatividade deles. (Jair, depoimento do dia 12.05.01)

(Figura 23: ensaio na rua realizado em um dia de domingo)

Durante os ensaios tanto do grupo dos adolescentes quanto do grupo das crianças, observei que Jair recorre principalmente ao uso da comunicação não-verbal. Tait (1992), baseando-se na teoria da aprendizagem social de Bandura, constata que o ensino de música vale-se da comunicação não-verbal da seguinte maneira: Primeiro, a modelagem musical na qual a performance do professor proporciona uma imagem total do que é desejado tanto vocalmente

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quanto instrumentalmente; segundo, a modelagem aural na qual o professor utiliza vocalizações fonéticas inclusive de versos e silabas visando significados particulares ou pontos de ênfase dentro de uma música; e terceiro, a modelagem física que incluem expressões faciais, gestos físicos, e a regência mais formal. Deveria-se notar que a modelagem física e auditiva freqüentemente se acompanham e reforçam uma a outra88. (Tait 1992, 528) Para explicar o quê e como os colegas ou as crianças devem tocar Jair utiliza três maneiras. Ele pode fazer uma demonstração com um instrumento, comunicar através da percussão de boca (onomatopéias) as frases rítmicas e a suas intenções ou através dos sinais

de regência. A primeira, então, remete à "modelagem musical", na qual ele através da performance transmite a idéia geral que uma música deve expressar. Com aquelas pessoas que mostram algum tipo de dificuldades de compreensão ou técnica, ele repete várias vezes optando por uma execução quanto mais clara possível e em diferentes andamentos. O uso da palavra parece ser, na maioria dos casos, desnecessário: importante é olhar e, sobretudo, ouvir. A percussão de boca, ou seja, as onomatopéias que imitam os ritmos dos instrumentos, remetem à "modelagem auditiva", a qual, na concepção de Jair possui dois significados: o primeiro associa a boca a um instrumento através do qual se produz som, música. Eu digo "percussão de boca". Por que percussão de boca? Porque a boca, o som da boca é um instrumento, faz parte de um conjunto de instrumentos ... por que não? O corpo também faz parte. A gente pode fazer som com corpo. O corpo também faz parte da percussão, então ... a gente é muito preso a tocar num instrumento, não sabendo que o nosso corpo, também, faz parte de um instrumento que pode ser explorado: a voz, os gritos, assim, o corpo batido ... a gente pode fazer som com o corpo batido, pode fazer várias coisas ... até uma

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"first, musical modeling in which teacher performance provides a total image of what is desired either vocally or instrumentally; second, aural modeling in which a teacher employs phonetic vocalization including humming and syllables in order to convey particular meanings or points of emphasis within the music; and third, physical modeling including facial expressions, physical gestures, and more formal conducting. It should be noted that physical and aural modeling frequently accompany and reinforce one another".

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pequena performance, uma pequena base só com corpo ... envolvendo o rastejar do pé, palmas, entendeu? E aí vai criando várias coisas.

O segundo implica mais numa função pedagógica de auxílio para uma compreensão, memorização e audição mais acurada. Quando eu boto pra ele fazer uma convenção, uma virada ... na verdade, a gente procura fazer com que ele faça com a boca pra ele entender, porque às vezes ele faz no instrumento ... não sai perfeito, sai embolado ... então fazendo com a boca, ele escuta melhor. (Jair,

depoimento do dia 15.06.01) A percussão de boca é um recurso muito utilizado durante os ensaios para comunicar como é um ritmo (faixa n. 12 do CD), mas também explicar qual sua intenção, sua acentuação (faixa n. 13 do CD) e dinâmica. O uso análogo foi encontrado por Farrell (1997) durante o estudo sobre como as crianças aprendem a tabla no Norte da Índia e descreve que o uso de bols, ou seja, da "percussão vocal" funciona sobre muitos níveis diferentes: como auxílio à memória para acentos específicos e padrões de acentos; como notação, tanto aural quanto escrita; como meio para gerar variações através de vários processos permutacionais, e como um aspecto da performance. Claramente, o uso de bols para o ensino e para tocar a tabla integra muitas complexas funções cognitivas, juntando o movimento corporal, a linguagem e o pensamento rítmico89 (Farrell 1997, 14). Na banda Lactomia, o uso da percussão de boca além de auxiliar a aprendizagem e a memorização dos ritmos, funciona também como uma partitura oral. "A notação oral — o uso de sons e sílabas rítmicas, palavras que indicam o tipo de acentos e também o conteúdo verbal das canções (que pode proporcionar auxílio mnemônico para a produção

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"Vocal percussion" functions on many different levels: as a memory aid for particular strokes and strokepatterns; as a notation, both aural and written; as a means of generating variations through various permutational processes, and as an aspect of performance. Clearly, the use of bols in tabla playing and teaching integrates many complex cognitive functions, bringing together body movement, speech, and rhythmic thinking".

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da música)"90 é considerada por Nettl (1998, 27) uma das formas de transmissão através da qual os repertórios são ensinados e aprendidos. A terceira modalidade de comunicação entre Jair e seus colegas ou as crianças se dá através dos sinais de regência, que segundo o conceito de Tait corresponde à "modelagem física". Como descrito anteriormente, embora os arranjos executados pela banda Lactomia sejam compostos de partes fixas (introdução, base, convenções e final), é muito freqüente que Jair, durante a repetição da "base" introduza algum tipo de variação comunicada aos colegas extemporaneamente através da regência. A interação entre Jair, que comunica intenções musicais, e os colegas, que pronta e expressivamente as traduzem em música, é algo muito interessante. No trabalho que Jair está realizando especialmente com o grupo das crianças parece-me claro que ele conseguiu combinar procedimentos de ensino e aprendizagem do contexto oral, através dos quais ele aprendeu, com outros típicos da tradição de escola de música formal resultantes da experiência realizada na Escola Pracatum. As aulas na Escola Pracatum proporcionaram-lhe uma experiência maior do simples aluno que deve aprender aqueles outros aspectos da música não considerados pela tradição oral. Fizeram com que ele também refletisse sobre o papel do professor, analisasse seu comportamento e suas atitudes na sala de aula. Jair sobre esta nova dimensão ressalta que quando você procura estudar em qualquer área, você tá se aprimorando no caso. Você tá buscando mais conhecimento do que você já tem, então ... claro que tem muita coisa da Pracatum que eu tô colocando, tô usando como método de ensino ... como o professor se comporta em sala de aula, você acaba sugando um pouquinho disso, como é que conduz com a classe, como é que ele explica um assunto de uma forma clara, que tudo mundo entenda, a postura dele perante a classe numa situação de reclamações com os alunos, de tolerância ... essas coisas assim. É muito importante, porque quando se trabalha

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"Oral notations—the use of tone and rhythmic syllables, of words indicating type of drum strokes, and indeed the verbal content of songs (which may provide mnemonic aids to producing the music)"

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com criança, é muito mais complicado ainda, porque criança pra se tomar a atenção deles, você tem que estar com uma aula bem programada, pra você não dispersar ele. Porque criança qualquer coisa uma tá brincando com outra e não tem aquela responsabilidade de querer aprender ... só quando gosta mesmo, quer fazer ... mas essa forma de como conduzir as aulas e de tomar parte mais profissional eu acho que tem muito a ver com o que eu aprendo ...aqui com a Lactomia, os meninos ensinam muito a você ser mais assim ... mais, como é que falo, como é que posso dizer ... mais à vontade, mais liberto, mais aberto a opiniões. (Jair, depoimento do dia 04.08.01)

Uma vez, por exemplo, lhe perguntei por que ele tinha desenhado nas paredes do galpão alguns símbolos da notação musical. A resposta ressaltou que o objetivo era capturar a curiosidade, estimular a pergunta e assim dimensionar uma outra visão da música. Quando você pega qualquer objeto e expõe, as crianças começa a ver, a observar, a gravar e checar. E se não conhece começa a perguntar. Então quando eu faço um desenho na parede aqui da frente do nosso espaço é próprio pras crianças, pras pessoas ter entendimento, a ver, a perguntar: «o que é isso?», «pra que serve isso?», ou «por quê disso?» ... e começar a se instruir um pouco. Esse detalhes de música, a gente coloca aqui na frente do nosso estabelecimento e ... tentar ver a música com o que a gente faz também, porque a gente procura estar reaproveitando o lixo, criando ritmo, fazendo performance musical em cima desse material. Então por que não trazer a parte escrita, a parte teórica também pra música pra o povo ver de uma outra forma? ... porque tá acostumado muito a ver grupo musical na rua tocando, sem nenhum acompanhamento no caso. Então quando a gente mistura isso, o povo vê com outra visão também, as pessoas que já entendem de música vêem o grupo com outra visão ... sabe que um pouquinho de entendimento sobre a parte teórica a gente tem no caso. E a idéia é estar também mobilizando as crianças, acordando eles pra poder estar aprendendo com isso. (Jair, depoimento do dia 12.05.01)

Também os ensaios realizados com as crianças não acontecem mais da mesma maneira de quando a banda estava no início da sua formação. A finalidade principal dos ensaios é aquela de passar conhecimento, de ensinar a tocar valorizando, mas não visando exclusivamente o aspecto da performance como produto. A experiência educativa segundo Jair é algo que vai muito além do “pegar o menino e botar pra tocar”. Iniciar uma atividade

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educativa é algo que implica muita responsabilidade e, portanto, requer muito cuidado. Ele explica que Tem tudo um processo antes ... de adaptação, de postura, de posição, de como fazer o som sair sem estar tocando com bastante força, o som sair naturalmente, assim ... essas dicas de ouvir o colega, entender a intenção do ritmo pra depois botar na prática. (Jair,

depoimento do dia 04.08.01) Outro aspecto fundamental que ressalta Jair é o cuidado, em termos de limpeza e manutenção, que a criança e o músico em geral devem dedicar aos instrumentos, pois não adianta saber tocar bem se não se considera o instrumento musical como algo mais que um lugar onde "bater". A seguir, um trecho de uma entrevista realizada no dia 15 de junho de 2001, na qual Jair explica de que forma atua com os meninos. As crianças é assim ... começa escutar demais, vá e faz! De ver fazendo ele, o ouvido capta, ele começa a desenvolver a técnica de tocar na prática mesmo. Às vezes até não na pegada certa, mas o trabalho que estou desenvolvendo com eles vão adquirindo esta técnica, este ouvido melhor, vai procurando diferenciar o som de um surdo pra um repique, de um repique pra um timbau, porque a criança escuta tudo e num instrumento só ele faz a frase de vez ... não sabe que deve dividir em sub-base para criar um ritmo. Não sabe que um surdo é uma parte, repique é outra, timbau é outra pra se formar uma base. Então ele faz tudo num instrumento só e em tudo que ele escuta, resume num instrumento só e faz tudo de vez embolado. Então, aí vem uma pessoa que já tem um pouco dessa experiência e forma um pequeno grupo, começa a desenvolver esse lado, criando outras coisas, possibilitando eles envolver o canto, a contagem, o tempo, a dança, o movimento que faz tudo parte do compasso, do andamento, do estilo mesmo. Envolvendo isso tudo, tentando despertar nele também a idéia de estar criando. É aberta essa parte, é aberta.

Para concluir apresento um trecho do diário de campo, no qual descrevo um ensaio de Jair com o grupo das crianças, para compreender com maiores detalhes o que acontece, de que forma ele procede e o que durante duas horas eles conseguem realizar.

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Um exemplo: o ensaio do grupo das crianças Domingo, 20 de maio 2001 às 16.30 horas ... do diário de campo ... Chegando ao Candeal percebo uma atmosfera diferente na área ... talvez é pelo fato de hoje ser domingo, mas logo depois descubro que aquela atmosfera de agitação é por causa do ensaio que Jair marcou com as crianças. Um monte de meninos, arrumados como nos dias de festa e com baquetas na mão. Eles brincam correndo o Candeal de ponta a ponta, esperando a chamada de Jair, que, no entanto, está sentado no barzinho conversando com Sinho e Danilo. Às 16.30 horas um grupo já está reunido em frente ao galpão. Jair chega, abre a porta e manda todos entrarem. Observo que a sala, na qual normalmente estão posicionados os instrumentos da banda, hoje está quase vazia e de qualquer forma está preparada para um outro tipo de trabalho. Jair começa perguntando aos meninos sobre as baquetas, para poder distribuí-los nos instrumentos adequados: repiques de lata (feitos com latas grandes de manteiga), surdos de "fundo", chamados "fundos" (feitos com toneis), surdo de "meio" (feitos com baldes), duas caixas de isopor para vender cerveja sem tampa e o "guarda-lixo". Jair conta quantas crianças estão presentes, quanto instrumentos estão disponíveis e começa, então, a posicionar os meninos. Começa o ensaio. Jair pede para os dois garotos que tocam o surdo de fundo começarem a marcar o andamento (MM= 100)

Quando os dois começam a marcar o andamento, os olhinhos da turma toda começam a brilhar de emoção. Jair, no entanto, indica com as mãos o andamento e controla que eles mantenham um ritmo regulares nas batidas. Assim, começa a mostrar o que os repiques de lata devem tocar, demonstrando primeiro:

Os fundos começam a perder o andamento, assim Jair também diminui a velocidade. Ele aumenta e eles o seguem. Ele pára e, recomeçando, manda os

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repiques de lata tocarem. Em seguida, chama os fundos para entrarem com a marcação, pretendendo que os movimentos da mão direita e esquerda correspondam também às batidas do surdo de fundo tanto do lado direito quanto do lado esquerdo. Mas, um deles não está entendendo o que Jair está querendo. Jair, então, reage chamando a atenção ... olhe pra cá! Olhe pra cá!! O garoto do lado esquerdo pára. Só o do lado direito continua tocando sincronizado com o movimento de Jair. Finalmente, com Jair mais próximo, ele compreende. Recomeçam e Jair pede que toquem baixinho. Os surdos de meio são chamados a entrarem com o ritmo

Jair mostra a um outro menino como é a rítmica do "guarda-lixo" que ele deve tocar

Ele, um dos maiorzinhos, acerta o ritmo, mas erra a seqüência das mãos. Então Jair mostra a ele de novo como deve fazer. Ele entende mais ou menos. Na mesma seqüência, Jair vai ver o que o outro rapaz que toca a caixa de isopor está tocando e faz as correções. Todos estão tocando o seguinte:

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Dá o sinal para que todos parem, fechando as mãos erguidas, mas ao mesmo tempo sinaliza que os repiques de lata continuem tocando sozinhos. Neste ponto Jair pede a Lucas, 5 anos, e a outros meninos para improvisar um trecho um depois do outro nos repiques de lata. Os meninos, assim, começam a tocar a todo volume. Apesar de não se encaixarem direitinho no andamento, sabem que aquele é o momento de aparecer, de chamar atenção. Portanto, os movimentos ficam mais acentuados, mais amplos e a mímica facial tensa como se estivessem fazendo muito esforço físico. Alguns dos maiores e mais experientes, como Isaías (que faz parte também da banda Lactomia), conseguem improvisar seguindo o andamento e se comportam com maior naturalidade. Os surdos de fundo entram de novo com a marcação, mas logo depois Jair faz o sinal de fim e comunica que o ensaio vai continuar na rua. (16.55 horas) Todos saem. Jair organiza novamente a disposição dos meninos e começa a explicar um dos sinais de regência usado para indicar quando todo mundo deve parar à exceção de um naipe. Experimenta imediatamente se eles entenderam: manda os surdos de fundo e os repiques de lata recomeçar para logo depois dar o sinal. Só os repiques de lata continuam ... os meninos compreenderam certo. Os repiques estão tocando, quando Jair faz o sinal ao rapaz do isopor para que comece a improvisar. Ele tenta, mas deixa Jair entender que não é capaz. Jair faz uma breve improvisação do outro lado da caixa com as baquetas. Logo depois passa a improvisação ao rapaz que está tocando o "guarda-lixo". Ele parece mais seguro. É dado o sinal, alternando o movimento dos braços, para que os surdos de fundo e de meio entrem com a marcação. Jair, também, improvisa com o grupo num outro instrumento, o "set de latas". Atento ao que ocorre, um pequeno grupo de crianças assiste ao ensaio. Alguns meninos experimentam os ritmos batendo na barriga, outros rufando com as baquetas no asfalto. Jair dá o sinal de fim e o grupo pára junto. Anuncia que agora vão aprender a convenção ... A convenção é assim: pá pá





E simultaneamente bate o ritmo entre as baquetas. Ele repete ... Só isso. Só façam

isso. Conta um, dois, três, quatro ... os meninos entram com um pouco de pressa. Jair diz que não e repete com o pápápápá no andamento. Como alguém completou o ritmo da convenção, ele agora mostra o ritmo completo desenhando com uma

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mão o um, dois, três e quatro e cantando para que seja claro o que se encaixe onde. Dá o sinal para recomeçar, mas o resultado ainda não o satisfaz. Eles continuam repetindo mais algumas vezes até sair mais claro. Param de novo e desta vez ele explica como devem fazer para retomar o ritmo da base até agora ensaiada. Ele diz: Então vamos fazer a convenção e seguir na base, ok?







pá tutum



tum



tum ...

Chama a atenção para que eles olhem para ele e conta de novo. Erram e param. Começam novamente e desta vez dá certo, ainda que timidamente. Da convenção vão para a base e continuam. A maioria toca o estabelecido, mas alguns fazem pequenas variações, pequenos improvisos. Jair deixa eles tocarem mais um pouquinho, mas depois se coloca de novo na frente da banda e dá o sinal para que todos parem e deixem os repiques de lata continuarem. Dá certo, os únicos a continuar são eles. Jair indica ao rapaz do isopor para improvisar e improvisa com ele. Jair retorna à frente da banda e chama a convenção já conhecida por eles e tudo sai direitinho. Continuam alguns minutos, mas depois Jair lembra da dança e de marcar o andamento com os pés, fazendo um passo à direita e um à esquerda. Entre os meninos alguns começam do lado certo, mas outros fazem o passo na direção contrária. Recomeçam. Os que tocam o ritmo do timbau estão improvisando, aos poucos Jair chama a convenção para depois seguir na base. Continuam na base, mas Jair começa a fazer um sinal para que toquem mais baixo. Nem todos entendem,

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apesar dele estar se curvando mais e mais e fazer o sinal com as mãos. Para dar um final, ele começa a fazer um vibrado com a mão na vertical: alguns entendem e fazem um rufo, que os outros vão seguindo por imitação. Mas, como eles estão tocando alto e a mão está em baixo, Jair faz observação de que mão em baixo significa tocar baixo, mão em alto significa tocar alto. Fazem como uma brincadeira: ele levanta e baixa a mão para testar se eles entenderam. Os meninos ficam muito entusiasmados e quando é o momento de tocar alto, se esforçam com o corpo todo e com um sorriso grande nos lábios. Todos param e agora Jair mostra tocando sobre um repique de lata o que é alto e o que é baixo, acentuando, também, as diferenças entre um e outro com o corpo todo. E continua dizendo ... Isso é

trabalhar com dinâmica. Chama a atenção dos meninos com um ... Alôôôô! Quem sabe o que é dinâmica? Fica procurando alguém que responda e depois continua ... Dinâmica ... é você permanecer num volume adequado, onde tudo mundo se escute legal. É onde o maestro ou alguém pediu um certo volume e você obedecer ... não tocar além do que isso e não menos ... tocar no volume certo, entendeu? Alguém me explica agora o que é isso? Quem explica? Ninguém responde. Jair passa, então, a testar na prática se eles entenderam. Terminada esta fase, Jair diz ... 'Bora voltar! ... Quem conhece aquela chamada

... Dagadacá dagadacá pam pam??

Nem chega a terminar o ritmo quando alguns meninos levantam as baquetas e ele comenta ... vamos só ouvir! Eu sei que vocês devem estar sabendo de tanto

ouvir ... devem estar sabendo, mas vamos fazer assim ... só com a boca, só com a boca. Sabem com a boca? Alguém pergunta como é, e ele, indicando os lábios com os dedos, responde ... com a boca, porque a boca também é um instrumento! Então

cada um faça a parte do seu instrumento com a boca ... Em vez de tocar no instrumento, viu Jefferson?, eu faço assim:

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Jair ... dagadacá dagadacá

Eles ... dum dum

Jair ... dagadacá dagadadagadacá

Eles ...

dudum du dum

Jair ... dra dagadacá

Eles ... dudum du dum

Jair ...

dagá

Eles ... dagadacá dagadacá

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Eles ... dum dudum du dum

... (tudo fica confuso) assim que Jair pergunta ... Como é o final?... dadagadacá

dadagadacá pampapampapá ... só isso! Um, dois, três, qua ... E repetem o final. Passam, depois, aos instrumentos. Ele começa com o primeiro trecho, mas eles erram logo na entrada. Jair pede atenção para que eles ouçam primeiro o que ele vai tocar sozinho, o que o timbau faz. Toca num andamento inferior, marcando com muita clareza. Terminado pede que todos toquem ... geral!

Alguns erram de novo. Sinaliza para parar, esticando os braços para frente e fechando as mãos em punho. Começam e param várias vezes. Jair decide então voltar a tentar com a boca. De volta à música, Jair improvisa um pouquinho para chamar de novo a atenção dos meninos. Começam de novo, mas os repiques de lata erram quase imediatamente. Ele manda parar mas os fundos continuam e terminam a introdução. Jair observa ... Legal o fundo! Ele se aproxima mais a um menino com um repique de lata e manda os dois com o isopor começar para demonstrar como aquele naipe deve tocar. Fala para os fundos ... segurem aí, segurem aí! (Para dizer de não tocar). Pede a Tiago e Turú (no isopor) e aos repiques de tocar, mas como estes erram na primeira parte, Jair manda repetir este trecho. Conta ... três,

qua ... e tocam o trecho final. Erram, explica tudo de novo e ensaiam de novo o final. Jair repete ... dadagadacá dadagadacá pampapampapá. Repetem. Jair volta ao seu lugar e sente-se no banquinho. Dá o sinal de início: desta vez conseguem chegar ao fim.

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Ainda não está perfeito e limpo, mas pelo menos está certo. Um menino do "público" toca alguma coisa batendo na barriga, um outro com baqueta na mão rufa no asfalto da rua. (...) Começam de novo com a mesma seqüência: um repique, fundos, isopor e meio. Agora ele chama a convenção e faz os seguinte: - chama a atenção dos meninos com as mãos

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- bate um punho na palma da outra mão com o ritmo da convenção - mostra a marcação alternando o movimento dos indicadores - dá o sinal de "agora" - indica de novo a marcação dos fundos. Chama de novo a atenção para repetir a convenção e deixa a turma continuar, enquanto ele improvisa. (...) Convida um menino, que está em pé ao seu lado a improvisar. Ele toca por alguns segundos e pára. Jair mostra a ele a batida do isopor para ele repetir. (...) Volta a dar atenção a todos e fala ... só repique de lata

... pápá mpá,mpámpá [convenção] ... eu vou contar e vocês entram ... um, dois, três, qua ... Entram os fundos, entram os meios, entram os isopor e faz sinal para que um deles improvise. Alguns dos repiques começam a marcar o ritmo com os passos. Jair brinca com um menino. Se prepara para chamar a convenção com um dedo levantado, espera um momento para que todos o olhem e dá o sinal de "agora". A música continua. Chama a convenção e a base continua, mas são interrompidos pela avó de um menino que chega gritando, chateada pelo fato que o neto sendo crente devia estar na igreja em vez que tocando os tambores. O ensaio interrompido termina. Jair pede que os meninos entrem no galpão, com o objetivo de conversar com eles sobre o ensaio, sobre as regras para participar (estar bem na escola e em casa) e marcar o próximo encontro.

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Avaliação

Observando as atividades da banda ficou evidente que a avaliação desempenha um papel importante realizado constantemente: o comportamento dos integrantes é avaliado, os ensaios são avaliados, a performance é avaliada, a qualidade tímbrica dos instrumentos reciclados é avaliada e o repertório é avaliado. Em relação à avaliação, Sacristán (1998) afirma que Avaliar se refere a qualquer processo por meio do qual alguma ou várias características de um aluno/a, de um grupo de estudantes, de um ambiente educativo, de objetos educativos, de materiais, professores/as, programas, etc., recebem a atenção de quem avalia, analisam-se e valorizam-se suas características e condições em função de alguns critérios ou pontos de referência para emitir um julgamento que seja relevante para a educação. (Sacristán 1998, 298) A avaliação, como é efetuada na banda Lactomia, baseia-se nos valores, mas sobretudo, nas normas disciplinares que funcionam como meio de controle dentro do sistema de ensino e aprendizagem. Quem vai participar de um show ou de uma gravação será aquele que teve um bom desempenho durante os ensaios, aquele que não faltou, aquele que foi respeitoso com os colegas, e aquele que não estragou instrumento algum. Normalmente, este tipo de avaliação, na qual se determina quais integrantes terão oportunidade de participar de um evento, é realizada por Jair durante os ensaios e funciona como uma seleção. O modo pelo qual ele e seus colegas verificam quem está mais preparado para se apresentar em público faz lembrar uma sabatina: cada integrante é chamado individualmente para tocar um trecho de uma música. Às vezes, ocorre como uma seleção simbólica, cujo objetivo é averiguar em todos a noção do nível musical alcançado e para que nenhum dissimule o seu conhecimento. Este tipo de discurso e prática é também levado às crianças com o claro propósito de estimular uma maior aplicação na

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escola e também em casa. O medo de serem afastadas da banda faz com que elas observem com atenção as regras de comportamento estabelecidas. Durante os ensaios, as músicas que formam o repertório são constantemente avaliadas por Jair e seu grupo. Eles controlam que estejam corretamente executadas e que tenham variedade rítmica para não resultarem repetitivas. Ele comenta que o que a gente tá buscando agora, depois de tudo isso, é que tá começando a ... avaliar alguns ritmo. Não que se pareçam um com outro, mas que têm a idéia do andamento, a idéia da base, às vezes você, a pessoa que ... pensa que é a mesma, mas tem, há uma diferença ... pra gente há uma diferença porque a gente toca isso direto, mas as pessoas que não conhecem pensam, que é a mesma coisa. (Jair,

depoimento do dia 09.03.01) A avaliação inclui também a condição em que se encontram os instrumentos reciclados, que, por serem feitos com latas, precisam ser regularmente controlados para que não percam a sonoridade. Sacristán (1998) confirma que "avaliar não é uma ação esporádica ou circunstancial dos professores/as e da instituição escolar, mas algo que está muito presente na prática pedagógica" (Sacristán 1998, 296). Segundo Jair, a avaliação é um processo que analisa em quais condições estão vários aspectos da vida da banda e seus integrantes, e que determina se as atitudes ou o caminho percorrido precisam ser modificados, planejados ou traçados novamente. Ele observa que Ultimamente parei pra avaliar como é que tá o processo. Porque não é só estar regendo, passando uma base: tem todo um processo antes disso de preparação, a postura, o respeito ao ouvir, o ouvir o colega que tá dando alguma sugestão, o instrumento, se a posição do instrumento tá certo, a altura, se a área tá limpa, como é que tá isso, quem tá chegando cedo, quem tá chegando atrasado, como é que é esse processo de como começar e como terminar, se realmente começou uma base, terminou ela ou não terminou, pulou pra outra porque essa estava difícil, como é que tá sendo feito isso ... Parar pra ver onde eles estão, pra depois ver quais são os próximos procedimentos pra poder empurrar ele mais, que ele cresça mais nessa posição de estar liderando, de estar tirando, de estar criando,

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de estar construindo com uns colegas. Acho que é bem por aí. (Jair,

depoimento do dia 05.08.01) Conforme as palavras de Jair, pode-se perceber que a avaliação é um processo que analisa as atividades da banda e o modo de ser de sues integrantes em todos seus aspectos e é fundamental para assegurar o crescimento da banda.

Capítul o 5

Conclusão e recomendações

Ao longo deste trabalho procurei traçar os paralelos existentes entre o sistema de ensino e aprendizagem musical da banda Lactomia e os conceitos de currículo que caracterizam as teorias tradicionais apontadas por Silva (1999) e utilizadas como embasamento desta investigação. Ressaltei por meio da fala dos integrantes e das minhas observações em campo, quais objetivos, valores e normas fundamentam o sistema de ensino e aprendizagem musical da banda Lactomia; como é entendido e efetuado o planejamento; qual a metodologia e didática utilizada; como é entendida e realizada a avaliação. Se, como comenta criticamente Sacristán (1998), "a teorização sobre o currículo não se encontra adequadamente sistematizada e apareça em muitos casos sob as vestes da linguagem e dos conceitos técnicos como uma legitimação a posteriori das práticas vigentes" (Sacristán 1998a, 13), foi exatamente este o caminho que procurei seguir para compreender o sistema de ensino e aprendizagem musical da banda Lactomia. Em não se tratando de uma instituição escolar com uma proposta curricular explícita, o único modo para compreender as características vigentes no seu sistema de ensino e aprendizagem foi aquele de mergulhar no seu contexto para observar diretamente a sua prática. Peshkin (1992) constata que nem sempre o que consta no currículo escrito corresponde ao que os professores realizam em sala de aula. A este respeito ele diz que "o currículo formal ou

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planejado é uma coisa e o currículo atuado, ou seja, o que os professores realmente fazem na sala de aula é outra"91 (Peshkin 1992, 250). Raciocínio que, no meu entendimento, confirma a importância da experiência em campo do pesquisador para explorar a realidade da sala de aula em todas suas facetas após ter lido e analisado o que consta no documento escrito. Observei, desta maneira, que há objetivos, valores e normas em múltiplos planos por meio dos quais os integrantes da banda Lactomia educam as crianças e os jovens da comunidade enquanto cidadãos, proporcionando-lhes uma prática de educação musical e ambiental e prepará-los eventualmente para a profissão de músico. Os objetivos assim explicitados apontam para um trabalho educativo dentro da própria comunidade que procuram pôr em prática valores humanos (respeito, solidariedade, paz, etc.) e ambientais (respeito à natureza, à vida, etc.). As regras disciplinares, que, por um lado impõem limites rígidos, por outro, permitem uma certa liberdade e autonomia, tanto que em muitos depoimentos os integrantes entrevistados destacaram o incentivo recebido e não as limitações sofridas. O planejamento serve para organizar as etapas necessárias para perseguir os objetivos e é realizado de forma pragmática na base das necessidades e das perspectivas que vão se abrindo no decorrer das situações. A metodologia baseia-se fundamentalmente na imitação e na modelagem, visto que os mais jovens aprendem através da observação e da imitação, seguindo o exemplo dos mais velhos. Durante a aprendizagem musical faz-se freqüentemente uso da percussão de boca, de onomatopéias, como veículo para comunicar idéias musicais e os detalhes necessários para uma boa

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"The planned or formal curriculum is one consideration, and the enacted curriculum, or what teacher actually do in their classrooms, is another".

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execução. A avaliação propõe-se a controlar e verificar se o planejamento e a metodologia utilizados para alcançar os objetivos foram eficazes e se deram os resultados esperados. É na base dessa experiência que vão sendo traçados novos caminhos. Pragmaticamente, o que funcionou fica para ser melhorado e o que não deu os resultados esperados terá que ser repensado e planejado. Acredito que a hipótese inicial, segundo a qual os elementos que formam o currículo podem ser encontrados também no sistema de ensino e aprendizagem da banda Lactomia, tenha sido afirmativamente respondida. Através da análise dos dados pude demostrar que o sistema de ensino e aprendizagem musical da banda Lactomia não é algo extemporâneo e nem deixado ao acaso, mas, ao contrário, é um sistema organizado, que tem seus valores, seus objetivos, sua lógica de funcionamento, suas regras, seus planos de ação, sua metodologia e sua modalidade de avaliação. Portanto, constata-se que também no sistema de ensino e aprendizagem da banda Lactomia existe um currículo, embora metafórico. Este estudo foi movido tanto pelo desejo de responder aquelas questões colocadas na introdução e relativas ao modo pelo qual se aprende música fora da escola e, mais especificamente, num contexto de tradição oral, quanto pela constatação que este tipo de ambiente ainda sofre uma certa discriminação. Fazer com que o sistema de ensino e aprendizagem musical de um grupo pertencente ao contexto oral, como a banda Lactomia, desse mais um passo em direção a uma progressiva legitimação no mundo acadêmico e na opinião comum tornou-se um estimulante desafio. Aliás, tal desafio surgiu principalmente por causa da conotação ligeiramente pejorativa segundo a qual o termo "informal" é utilizado para definir todos aqueles contextos não incluídos no âmbito escolar da educação. Concordei, portanto, com a opinião expressa por Sandroni (2000), quando ele

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indica que este termo subentende algo "desorganizado", "destituído de forma". Segundo o autor, o emprego destas expressões denuncia antes de mais nada nosso desconhecimento dos modos pelos quais funcionam os variados aprendizados extra-escolares. Elas refletem antes nossa ignorância sobre as "formas" e "sistemas" destes aprendizados do que a ausência, alí, de tais atributos. Não existe educação espontânea; ela não apenas transmite cultura, a educação é ela mesmo um artefato cultural, e como tal, por definição, algo de elaborado, de organizado. Que sua organização seja difícil de ver não nos autoriza a considerá-la inexistente. (Sandroni 2000, 20) Tornar, então, a organização existente no sistema de ensino e aprendizagem da banda Lactomia visível, explicita por meio da descrição e análise do contexto, das atividades, da mentalidade dos integrantes da banda representou um modo para tentar alterar uma visão preconceituosa e incompleta da realidade. Sempre relacionadas com uma visão preconceituosa, considero questionáveis as "oposições binárias"92, as dicotomias, resultantes da relação contrastante entre cultura erudita e cultura popular, entre alta cultura e baixa cultura, entre cultura escrita e cultura oral, que surgem não apenas se tenta definir o que é cada termo que forma a dicotomia. Sua conseqüência, segundo Veiga-Neto (1995), "se manifesta na valoração que é dada a cada elemento do par, de modo que cultura erudita passa a ser entendida como boa cultura, como alta cultura e vice-versa" (Veiga-Neto, acesso online). E, a meu ver, provoca a desvalorização do segundo elemento do par, ou seja, da cultura popular, da baixa cultura e da cultura oral que passam a ser consideradas inferiores e subordinadas às primeiras (cultura erudita, escrita, alta).

92

Termo utilizado por Alfredo Veiga-Neto (1995).

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Para questionar estas contraposições, Simon (1995) frisa que "a textura da vida cotidiana torna disponível uma multiplicidade de localizações no interior das quais formas específicas de sociabilidade, com diferentes graus de importância afetiva, são construídas através de tecnologia cultural diversas" (Simon 1995, 75). Para fazer uma demonstração, o autor lista, como exemplo, as ações realizadas por ele durante um dia: ouvir uma fita de Otis Redding; escutar um programa feminista no rádio; dar uma aula; discutir questões religiosas com o grupo da Torá; fazer compras num shopping center; jogar futebol e tomar algo com os colegas. Estas representam só algumas das atividades colocadas pelo autor com a intenção de ressaltar que os significados produzidos "no curso da minha atividade cotidiana de compreensão e comunicação são potencialmente múltiplos e contraditórios e variam em sua importância afetiva" (Simon 1995, 75). O autor chama a atenção dos educadores e destaca que "as pessoas não vivem suas vidas no interior de campos discursivos unificados" (ibid., 75). Transitando, portanto, continuamente entre cultura erudita e popular, alta e baixa cultura, cultura oral e escrita, deveria-se, a meu ver, dar mais atenção à multiplicidade e à complexidade dos campos discursivos, estudando quais as suas implicações para as várias áreas de conhecimento. Outras considerações surgiram comparando as modalidades de aprendizagem de um contexto oral, como o da banda Lactomia, com as modalidades de aprendizagem típicas de um ambiente que poderia ser o de um conservatório ou de uma escola de música. Durante as leituras relativas à temática do currículo, constatei que vários autores, entre os quais Pedra (1997), afirmam que "qualquer currículo traz a marca da cultura na qual foi produzido", contendo "as concepções de vida social e as relações sociais que animam aquela cultura" (Pedra 1997, 45). Refletindo sobre esta afirmação e tendo em mente o plano de estudos da escola de música ficou evidente que os currículos brasileiros ainda

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refletem a cultura de outros países e "mantêm características e concepções do século XVIII" (Oliveira 1999a, 37), reproduzindo o modelo do conservatório europeu em vez de utilizar também as expressões musicais da cultura local. Numa postura mais crítica, Giroux e Simon (1999) questionam que examinando-se o que foi excluído e o que foi exigido nos currículos oficiais de inúmeros países, percebe-se com clareza que tais decisões foram dialeticamente estruturadas a partir de relações desiguais e injustas. (Giroux e Simon 1999, 101) Eles denunciam que a cultura popular é ignorada e tratada como subversiva pelo sistema dominante, quando, ao contrário, ela seria muito importante para a atuação de uma prática pedagógica crítica. Sobre a relação entre cultura popular e pedagogia, os autores observam que À primeira vista, pode parecer remota a relação entre a cultura popular e a pedagogia aplicada à sala se aula. A cultura popular é organizada em torno do prazer e da diversão, enquanto a pedagogia é definida principalmente em termos instrumentais. A cultura popular situa-se no terreno do cotidiano, ao passo que a pedagogia geralmente legitima e transmite a linguagem, os códigos e os valores da cultura dominante. A cultura popular é apropriada pelos alunos e ajuda a validar suas vozes e experiência, enquanto a pedagogia valida as vozes do mundo adulto, bem como o mundo dos professores e administradores de escola. (ibid., 96) As escolas, desta forma, ressaltam os autores, não podem ser concebidas como únicos lugares de produção cultural, visto que "qualquer prática que intencionalmente busque influir na produção de significados é uma prática pedagógica" (ibid., 115). Estas diferenças fizeram com que eu questionasse toda a minha formação e me desse conta que para atuar tanto em contextos musicais de tradição oral quanto em contextos escolares são necessários outros saberes e outras práticas musicais que pouco têm a ver com o tipo de estudo oferecido por uma instituição do tipo conservatório e escola de música, por exemplo. A minha primeira reação em conhecer um ambiente musical

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como a Lactomia foi de encanto, mas também de crítica acirrada contra um tipo de formação que não reconhece, não valoriza a sua cultura e ainda menos fala a mesma língua dos seus alunos. Com o passar do tempo, comecei a refletir sobre o que estava vivenciando com maior equilíbrio e a perceber também os limites do contexto que estava estudando. Observei que a rigidez das normas disciplinares não estimula o diálogo. Sem diálogo as pessoas não aprendem a expressar suas opiniões, a se colocar frente os colegas. As seleções realizadas para definir quais músicos irão participar de um show acabam gerando competição e às vezes desestimulam mais que estimular, pelo fato que segundo os integrantes existem preferências e não critérios mais sólidos de escolha. Contudo, uma pergunta não abandonava meus pensamentos: o que aconteceria se estas músicas e estes processos de ensino e aprendizagem ingressassem oficialmente numa sala de aula de uma escola regular? Considerando que a inserção da cultura popular na sala de aula é uma operação muito delicada, Giroux e Simon (1999) alertam sobre os riscos de confirmar na sala de aula o que os alunos já sabem, banalizando aspectos importantes ou discriminando alguns grupos dentro da cultura hegemônica. Entretanto, "as formas de expressão popular, para serem adotadas em benefício do fortalecimento do poder individual e do poder social, têm de ser renegociadas e reapresentadas" (Giroux e Simon 1999, 111). Reforçando esta preocupação Dantas (2001) aponta que o conhecimento artístico, quando incorporado à escola, sofre alterações profundas. Com o intuito de torná-lo efetivamente transmissível e assimilável, é reorganizado, reestruturado e se transforma numa configuração cognitiva tipicamente escolar, isto é, em conteúdo de ensino distribuído em disciplinas compartimentadas. Como conseqüência, aparece um saber fragmentado, descontextualizado, esvaziado da sua dimensão expressiva, sem mais nenhuma relação com o fenômeno vivo da cultura. (Dantas 2001, 17-18)

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Ressalto, portanto, a importância de se buscar alternativas de ensino que considerem a complexidade dos fenômenos populares. Do meu ponto de vista, estas alternativas devem unir em vez de fragmentar, contextualizar em vez de descontextualizar e valorizar em vez de mutilar as expressões da cultura popular que podem fazer parte do cotidiano escolar. Com estes pressupostos, tornou-se para mim claro que a formação e atuação do educador musical não pode mais descuidar do seu papel frente à complexidade da sociedade em que vivemos. É preciso ampliar o conhecimento relativo à cultura popular para que seja diminuída a superficialidade com a qual ainda esta é tratada. Por outro lado, é preciso educar para a pesquisa e para o trabalho em equipe. Se partirmos do pressuposto que o professor não pode saber tudo, é necessário que ele seja preparado para buscar outros conhecimentos além das paredes escolares para que os alunos não fiquem reféns das próprias limitações. É preciso saber problematizar e sistematizar tanto a própria prática quanto as novas experiências e os novos caminhos. Observar com sensibilidade, atenção e senso crítico, saber comunicar com pessoas de qualquer contexto social com humildade e interesse sincero em aprender e compreender, manter sempre uma mentalidade aberta e disposta a conhecer mais são algumas das atitudes que deveriam ser despertadas e estimuladas nos estudantes de qualquer nível escolar. Em nome destas constatações, recomendo que sejam realizados ulteriores estudos entorno de outros sistemas de ensino e aprendizagem em contexto de tradição oral, sobretudo em relação ao método da modelagem, que ainda se encontra pouco explorada. Acredito que também seria interessante pesquisar experiências educativas realizadas a partir do trabalho em conjunto de um mestre de cultura com um professor seja num contexto escolar que não-escolar.

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134

Anexo 1

-

Integrantes da banda Lactomia

Adriano Nome: Adriano Silva de Jesus Apelido: O Morto Data de Nascimento: 28.12.1979 Idade: 22 anos Escolaridade: Ensino Médio já concluído Escola Pracatum: 2o ano Família: Mãe, Pai, 1 irmão e 4 irmãs Instrumento musical tocado com a Lactomia: Timbanco, Vocal Banda preferida: Timbalada Estilo musical preferido: Música romântica Ídolo: Djavan Integrante de outras bandas: Arrastão da Timbalada Sonho: Acabar com a pobreza e conseguir mostrar meu talento para o mundo

Anderson

Nome: Anderson Gonçalves Oliveira Apelido: -Data de Nascimento: 04.08.1984 Idade: 17 anos Escolaridade: 5a-6a série no Curso Supletivo Escola Pracatum: 2o ano Família: Mãe, Pai, 2 irmãos e 1 irmã Instrumento musical tocado com a Lactomia: Estante de surdos Banda preferida: Timbalada Estilo musical preferido: Axé Ídolos: Jair, Carlinhos Brown Integrante de outras bandas: Arrastão da Timbalada Sonho: ser um grande percussionista

135 Deco

Nome: Wanderlei Soares Flores Apelido: Deco Data de Nascimento: 24.01.1983 Idade: 18 anos Escolaridade: Ensino médio concluído Escola Pracatum: não freqüenta Família: Mãe, Pai, 1 irmã Instrumento musical tocado na Lactomia: Estante de surdos Banda preferida: Timbalada Estilo musical preferido: Pop rock, axé music Ídolo: Ivete Sangalo Integrante de outras bandas: Arrastão da Timbalada Sonho: Profissionalização musical

Dermeval

Nome: Dermeval Patrício da Silva Apelido: Piu ou Lêle Data de Nascimento: 04.08.1978 Idade: 23 anos Escolaridade: 3a série Luiz Vianna Escola Pracatum: 2o ano Família: Pai, 1 irmão e 2 irmãs Instrumento musical tocado na Lactomia: Timbanco Banda preferida: Banda de Carlinhos Brown Estilo musical preferido: Música Popular Brasileira Ídolo: Carlinhos Brown Integrante de outras bandas: -Sonho: ... ser um bom músico

136

Edivan

Nome: Edivan Fontes Lima Apelido: Caveirinha Data de Nascimento: 24.04.1984 Idade: 17 anos Escolaridade: 5a Série no Colégio Luiz Vianna Escola Pracatum: não freqüenta Família: Mãe, 1 irmão e 1 irmã Instrumento musical tocado na Lactomia: Estante de meio Banda preferida: Lactomia Estilo musical preferido: Axé Ídolo: Carlinhos Brown Integrante de outras bandas: Arrastão da Timbalada e Bloco Abuse e Use Sonho: Tocar na Timbalada o surdo de meio

Elbermário

Nome: Elbermário R. Barbosa Apelido: Élber Data de Nascimento: 29.06.1982 Idade: 19 anos Escolaridade: 5a Série no Colégio Luiz Vianna Escola Pracatum: 2o ano Família: Mãe, 2 irmãos e 1 irmã Instrumento musical tocado na Lactomia: Quadricano Banda preferida: Lactomia Estilos musicais preferidos: Todos Ídolo: Carlinhos Brown Integrante de outras bandas: Arrastão da Timbalada, Hip Hop Hoots Sonho: ... que a Lactomia cresça

137

Jair

Nome: Jair Rezende de Miranda Apelido: -Data de nascimento: 03.05.1979 Idade: 23 anos Escolaridade: -Escola Pracatum: 2o ano Família: 7 irmãos e 8 irmãs Função na Lactomia: Líder e regente da banda Banda preferida: Lactomia Estilos musicais preferidos: vários Ídolos: Guillerme Arantes, Djavan, Carlinhos Brown Regente do Arrastão da Timbalada e os Zárabes Sonho: ... ver todos os integrantes do grupo trabalhando, ajudando a sua família, melhorando a situação do país

Isaías

Nome: Isaías dos Santos Ferreira Apelido: Isaba Data de Nascimento: 26.06.1987 Idade: 14 anos Escolaridade: 4o-5o série no Curso Supletivo Escola Pracatum: -Família: Mãe, 1 irmão e 1 irmã Instrumento musical tocado na Lactomia: Timbales de Lata Banda preferida: Timbalada Estilos musicais preferidos: Pagode, Rap Ídolos: Netinho, Carlinhos Brown Integrante de outras bandas: Arrastão da Timbalada, Banda Beijo Sonho: ... um dia ser um grande percussionista

138

Marcelo

Nome: Marcelo Braga de Souza Apelido: Bulachinha Data de Nascimento: 01.10.1986 Idade: 15 anos Escolaridade: 6a Série no Colégio Luiz Vianna Escola Pracatum: não freqüenta Família: Mãe, Pai, 1 irmão e 1 irmã Instrumentos musicais tocados na Lactomia: Timbales de Lata e Quadricano Banda preferida: Lactomia Estilos musicais preferidos: Todos Ídolo: Carlinhos Brown Integrante de outras bandas: Arrastão da Timbalada Sonho: ajudar a minha família e ser um grande percussionista

Marilson

Nome: Marilson Araújo Souza Apelido: Turú Data de Nascimento: 28.12.1987 Idade: 14 anos Escolaridade: 5a Série no Colégio Luiz Vianna Escola Pracatum: não freqüenta Família: Mãe, Pai, 1 irmão e 3 irmãs Instrumento musical tocado na Lactomia: Efeitos e Timbales de Lata Banda preferida: Timbalada Estilos musicais preferidos: Axé, Pagode, Salsa Ídolo: Carlinhos Brown Integrante de outras bandas: banda de pagode Sonho: ... ser um grande percussionista e grande músico

139

Paulinho Nome: Paulo César de Oliveira Santana Apelido: Paulinho Data de Nascimento: 16.06.1981 Idade: 20 anos Escolaridade: 8a Série no Colégio Luiz Vianna Escola Pracatum: 2o ano Família: Mãe, Pai, 1 irmão (Riquinho) e 3 irmãs Instrumento musical tocado na Lactomia: todos os instrumentos Artista preferida: Ivete Sangalo Estilos musicais preferidos: Axé, Hip Hop Ídolo: Ivete Sangalo Integrante de outras bandas: Arrastão da Timbalada Sonho: ... alcançar o sucesso

Paulo

Nome: Paulo Francisco de Jesus Santos Apelido: Pá Data de Nascimento: 12.01.1983 Idade: 18 anos Escolaridade: Ensino Médio concluído Escola Pracatum: 1o ano Família: Mãe, pai e 1 irmão Instrumento musical tocado na Lactomia: Timbanco Banda preferida: Lactomia e Carlinhos Brown Estilo musical preferido: Pop Ídolos: Carlinhos Brown, Djavan Integrante de outras bandas: Arrastão da Timbalada Sonhos: ... estudar bastante para que um dia eu possa ajudar aqueles que me ajudaram no passado e que me incentivaram, fazendo com que eu nunca desista

140 Riquinho

Nome: Pedro Henrique de Oliveira Santana Apelido: Riquinho Data de Nascimento: 05.06.1987 Idade: 14 anos Escolaridade: 4a-5a Série no Curso Supletivo Escola Pracatum: não freqüenta Família: Mãe, Pai, 1 irmão (Paulinho) e 3 irmãs Instrumento musical tocado na Lactomia: Timbales de Lata Banda preferida: Ivete Sangalo Estilo musical preferido: Axé Ídolo: Carlinhos Brown Integrante de outras bandas: Banda Beijo Sonho: ser um grande músico

Sinho

Nome: Everson Xavier Barbosa Apelido: Sinho Data de Nascimento: 26.08.1981 Idade: 20 anos Escolaridade: 7a Série no Colégio Luiz Vianna Escola Pracatum: 2o ano Família: Mãe, pai, 1 irmão e 2 irmãs Instrumento musical tocado na Lactomia: Estante de Surdos Banda preferida: Lactomia Estilos musicais preferido: Hip Hop e Pop Rock Ídolo: Carlinhos Brown Integrante de outras bandas: Hip Hop Hoots, Arrastão da Timbalada Sonho: ... ver todos os companheiros brilhando no mundo da música

141

Anexo 2

Criança

-

Letras das músicas

(Adriano Silva de Jesus e Elaine Xavier)

Pare pra pensar, Pare pra olhar, Criança tem que estar na escola. Criança tem direito a brincar, Tem direito a sonhar, Tem direito a viver. Escute o que eu vou lhe dizer, Você pode aprender E mostrar para o mundo. Crianças é o futuro do amanhã, São os nossos guerreiros Pra vencer. Eu não sei porque têm crianças nas ruas, Pedindo o que comer Poder, pode sim, Basta o pai não maltratar, Mandar pra escola, E não trabalhar. Criança, futuro do mundo, Criança, mundo do futuro. Oh, oh, oh, E sei que vamos conseguir Essa história mudar Criança sem fome, Criança com lar. Criança quer amor, Chega de sofrer, Quer educação, lazer, crescer. Eu não sei porque têm crianças nas ruas, Pedindo o que comer Poder, pode sim, Basta o pai não maltratar, Mandar pra escola,

142 E não trabalhar. Criança, futuro do mundo, Criança, mundo do futuro. CRIANÇA PRA VENCER.

Menino de rua

(Mário Conceição)

Pobre caladão, Não tem nem onde morar. Todos eles que sofrem calados Eu vou revelar. Não tem proteção, Não tem nem onde morar, Eles são pobres coitados. Vivi assim por precisar. Menino de rua, Eles pedem porque precisam, Todos pedem por precisar. Mas tá revelado, Toda esta tristeza Meninos de rua estão separados. Mas qual é o caso? É o significado Essa música que faço Já mandei o meu recado. Isso é coisa nossa, Isso é coisa nossa, protestar É coisa nossa, eu vou contar. Falado: É coisa nossa freqüentar a escola, É coisa nossa dizer não à violência, É coisa nossa amar o próximo, É coisa nossa proteger a natureza, Dizer não às drogas.

143

Regalia

(Mário Conceição )

Eu me lembro do ano passado, Que eu estive lá na Lactomia, Cantando os meninos tocando Alguma profissão eles querem aprender. Juntando as palavras certinhas, Ganho toda vez esta regalia, Passa a noite, vem o dia, É que ninguém se lembra, nem perceber. Como é que é? Mas eu sou viajante ou não é? Como é que diz? Se eu fosse Lactomista era feliz. Eu dei risada, Depois que acaba a tinta, vem a lata, não é guri! (2x)

Português - Um Objetivo (Bira Maclari) Na conjugação do verbo, Na preposição expresso, O adjetivo qualifica. Vem pronome pessoal, O obliquo é normal, O substantivo que precisa. Só um português dentro da sua vida, Eu te classifico, eu quero te amar, Tem um objetivo Nessa frase singular. O sinônimo e o antônimo No plural te conquistar. Seu nome é próprio amor, Seu nome é próprio. Ah, ah, ah. Por que, pra que, por que, Onde você for eu vou. Oh, oh, oh

144

Matemática

(Bira Maclari)

Matemática Não deixe dividir Me ajude a somar o amor Não pode subtrair (2x) Só multiplicar, só multiplicar Mais, mais nosso valor Só multiplicar, só multiplicar A potência desse amor Ó, ó, ó, você pode matar meu desejo Ó, ó, ó, você pode matar meu desejo Eu já fiz as contas Você é o resultado de todos os termos Não trai a expressão, Calculei você, amada Não dividi, multipliquei Vem ser minha namorada

Tá lí, ô!

(Gibi Cruz)

O que me impede de rir É vê a sina daquele que descalço destaca Que mora na calçada Aprendendo na escola, rua Que na mão deve ter um canivete Pois pra mim pivete é criança Que se agrada com bombom, e se anima com presente Será que posso gostar de vê a sina da menina Que da gravidade me tira, tira, tira, tira, tira a minha Lei do vogal, o sonho do vagal, um pouco amado ser Tá lí, ô! Tá lí, ô! Um pouco amado (2x) Falar de tudo que passado foi De um tempo que eu pulava cerca

145 Pra pegar pitanga, manga rosa de mim Na brincadeira de picula um papai que aguda Lei do vogal, o sonho do vagal, um pouco amado ser Tá lí, ô! Tá lí, ô! Um pouco amado (2x)

Vendaval

(Dennis - Bujão)

Vendaval. Corri, anda, mais espere esperar Vida chegar. No corri-corri das ruas. Fome, miséria mata muita gente. Por isso têm pessoas que faz, que faz Arrastão com a gente. Políticos corruptos nem se falam. Por isso que se diz ... Que país é esse? Com tanta miséria e fome, Tem gente dormindo na rua Esperando alguém passar pra ele ganhar. Nesse dia, um quadro De miséria e fome, nesse mundo. Vai ter que acabar Ah, ah, ah .... Vai ter que acabar Ah, ah, ah .... Vai ter que acabar

É o Brasil!!

146

Anexo 3

-

Faixas do CD

Apresentação dos instrumentos construídos com materiais reciclados: 1-

Timbanco (ensaio do dia 26.11.00)

2-

Timbales de lata (ensaio do dia 26.11.00)

3-

Quadricano (ensaio do dia 26.11.00)

4-

Quadricano 2 (ensaio do dia 26.11.00)

5-

Trisurdo (ensaio do dia 26.11.00)

6-

Estante de meios (ensaio do dia 26.11.00)

7-

Cano de semáforo (ensaio do dia 26.11.00)

Apresentação dos arranjos: 8-

Tá lí, ó! (ensaio do dia 25.11.00)

9-

Carrinho de Madeira (ensaio do dia 18.11.00)

10- Ouro em Lata (ensaio do dia 18.11.00) 11-

Todo mundo quer saber (ensaio do dia 18.11.00)

12-

Carrinho de Madeira (ensaio do dia 26.11.00)

13-

Todo mundo quer saber (ensaio do dia 18.11.00)

147

Anexo 4

-

Lista de Figuras

1- Jair Rezende .................................................................................................................. 63 2- Foto de grupo da Banda Lactomia ..................................................................................66 3- Ensaio do grupo das crianças em um dia de domingo .....................................................70 4- O galpão da Lactomia durante a visita da cantora Gil da Banda Beijo ...........................71 5- O interior do galpão ........................................................................................................ 72 6- Jair regendo a banda ....................................................................................................... 73 7- Ensaio do grupo das crianças ......................................................................................... 75 8 e 9- Show realizado na praça da alimentação do shopping Aeroclube Plaza .................. 77 10- Timbanco ..................................................................................................................... 80 11- Isopor de cerveja ........................................................................................................... 80 12- Timbales de lata ............................................................................................................ 81 13- Quadricano .................................................................................................................... 81 14- Trisurdo ......................................................................................................................... 81 15- Estante de meios ........................................................................................................... 82 16- Efeitos: Chocalho, cano de semáforo e trave com bacia .............................................. 82 17- Set de Latas ................................................................................................................... 83 18- Cano de semáforo e Chocalho ...................................................................................... 83 19 e 20- Foto novos instrumentos musicais ........................................................................ 85 21- Durante um intervalo no qual os integrante cantam uma música ................................. 96 22- Marcelo Bulachinha treina alguns exercícios com Paulinho ........................................ 96 23- Ensaio da banda Lactomia na rua em um dia de domingo ......................................... 108

148

Anexo 5

-

Material do arquivo Lactomia

149

150

151

(Meeting Infanzia Contro le Barriere - Florença, Itália, dezembro 1999)

152

(VII Simpósio Paranaense de Educação Musical – Londrina, 2000)

153

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