O Sistema português de Extradição

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P. Saragoça da Matta

O Sistema Português de Extradição após a publicação da Lei nº 144/99 de 31 de Agosto I) Intróito A 31 de Agosto de 1999 foi publicada a Lei nº 144/99, pela qual a Assembleia da República aprovou a lei de cooperação judiciária internacional em matéria penal. No respectivo artigo 1º nº 1 al. a) tal diploma legal esclarece que no seu âmbito de aplicação se encontra a extradição1 como uma das formas de cooperação judiciária internacional em matéria penal. A afirmação inicial vem depois a ser desenvolvida nos nºs 2 e 3 do mesmo artigo, onde, respectivamente, se estatui que o disposto no número anterior se aplica à cooperação de Portugal com as entidades judiciárias internacionais

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estabelecidas no âmbito de tratados ou convenções que vinculem o Estado Português, e que a regulamentação emergente deste acto legislativo se aplica subsidiariamente à cooperação em matéria de infracções de natureza penal, na fase em que tramitem perante autoridades administrativas, bem como de infracções que constituam ilícito de mera ordenação social, cujos processos admitam recurso judicial. Conforme esclarece o artigo 2º de tal diploma, os objectivos visados com a Lei nº 144/99 são, em última análise, a protecção dos seguintes interesses do Estado Português: a sua soberania, a segurança, a ordem pública e outros que a Constituição defina, razão pela qual a respectiva disciplina não confere, a quem quer, o direito de exigir qualquer forma de cooperação. Seguidamente, dispõe tal acto legislativo que as formas de cooperação em si previstas, entre elas a extradição,

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se regulam pelo disposto nos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português, e na sua falta pelo regime emergente da própria lei de cooperação judiciária internacional em matéria penal; casos que ainda assim resultem omissos serão regulados pelas disposições do Código de Processo penal (CPP) – (artº 3º). Dois dos principais vectores na interpretação do concreto regime instituído relativamente à extradição encontram-se nos artigos 4º e 6º da Lei nº 144/99 (LCJIMP). Com efeito, naquele primeiro preceito referido dispõe-se que a cooperação internacional em matéria penal resulta do princípio da reciprocidade entre soberanos2, a qual resultará “demonstrada” mercê da experiência anterior ou, se a mesma não for suficientemente elucidativa, de “garantias” ad hoc prestadas pela entidade requisitante. Por outro lado, no artigo 6º da LCJIMP, a propósito dos requisitos gerais negativos da cooperação

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Sobre Extradição, e apenas como bibliografia básica de recurso imediato, cfr. Carlos Fernandes, A extradição e o respectivo sistema português, Coimbra Editora, Coimbra, 1996 e António Pinto Pereira, O regime de Extradição, Colecção Direito da União Europeia, Série “O direito material e as políticas da União”, Editora Rei dos Livros, Lisboa, 1999. 2 O princípio da reciprocidade só poderá ser afastado, excepcionalmente, nas situações referidas nas alíneas do nº 3 do artigo 4º da LCJIMP: “3. A falta de reciprocidade não impede a satisfação de um pedido de cooperação desde que essa cooperação: a) se mostre aconselhável em razão da natureza do facto ou da necessidade de lutar

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internacional, encontra-se, por certo, a mais relevante inovação do sistema agora instituído, mais propriamente sob os nºs 1 als. e) e f), 2, 3 e 5 3, como adiante teremos oportunidade de sublinhar. Ora, sem prejuízo de novas apreciações direccionadas ao próprio regime emergente da LCJIMP, cabe aqui apreciar tal diploma legislativo num ângulo eminentemente pragmático, tendo-se escolhido uma perspectiva de abordagem que, sendo inovadora, ou até mesmo insólita, se crê permitir um razoável confronto com o regime anteriormente vigente. Toma-se pois como padrão hermenêutico a jurisprudência constitucional fixada nos Acórdãos nºs 474/95 e 1146/96 4 pelo Tribunal Constitucional (TC).

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II) A Jurisprudência Constitucional em análise No âmbito do primeiro dos processos referidos, proferido no vulgarmente conhecido “Processo Varizo” (processo nº 518/94 da 2ª Secção do TC), sustentava o recorrente a inconstitucionalidade do artigo 6º nº 1 als. e) e f) e nº 2 als. a) e c) do Decreto-Lei nº 43/91 de 22 de Janeiro5 em qualquer interpretação que dessas normas (nºs 1 al. e) e 2 al. c) ambos do artº 6º), fosse feita no sentido de autorizar a extradição no caso vertente, pois aos crimes que motivavam o pedido de extradição era, segundo a lei norte-americana, aplicável a “pena de prisão com limite mínimo de 10 anos e máximo de prisão

contra certas formas graves de criminalidade; b) possa contribuir para melhorar a situação do arguido ou para a sua reinserção social; c) sirva para esclarecer factos imputados a um cidadão português”. 3 Artº 6º LCJIMP: “1.O pedido de cooperação é recusado quando: (…) e) o facto a que respeita for punível com pena de morte ou outra de que possa resultar lesão irreversível da integridade da pessoa; f) respeitar a infracção a que corresponda pena de prisão ou medida de segurança com carácter perpétuo ou de duração indefinida. 2 O disposto nas alíneas e) e f) do número anterior não obsta à cooperação: a) se o Estado que formula o pedido, por acto irrevogável e vinculativo para os seus tribunais ou outras entidades competentes para a execução da pena, tiver previamente comutado a pena de morte ou outra de que possa resultar lesão irreversível da integridade da pessoa ou tiver retirado carácter perpétuo ou duração indefinida à pena ou medida de segurança; b) se, com respeito a extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requerente, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida, o Estado requerente oferecer garantias de que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada; c) se o Estado que formula o pedido aceitar a conversão das penas ou medidas por um tribunal português segundo as disposições da lei portuguesa aplicáveis ao crime que motivou a condenação; ou d) se o pedido respeitar ao asilo previsto na alínea f) do nº 1 do artigo 1º, solicitado com fundamento na relevância do acto para presumível não aplicação dessas penas ou medidas. 3. Para efeitos da suficiência das garantias a que se refere a alínea b) do número anterior, ter-se-á em conta, nomeadamente, nos termos da legislação e da prática do Estado requerente, a possibilidade de não aplicação da pena, de reapreciação da situação da pessoa reclamada e de concessão da liberdade condicional, bem como a possibilidade de indulto, perdão, comutação de pena ou medida análoga, previstos na legislação do Estado requerente. (…) 5. Quando for negada a extradição com base nas alíneas d), e) e f) do nº 1, aplica-se o mecanismo de cooperação previsto no nº 5 do artigo 32º ”. 4 Publicados, respectivamente, no DR nº 266 de 17/11/1995, a pp. 13.792 e ss. e no DR nº 294 de 20/12/1996, a pp. 4557 e ss. Aquele primeiro Acórdão aborda ainda a muito relevante problemática do âmbito do princípio constitucional ne bis in idem, sendo certo, porém, que tal questão não deverá aqui ser objecto de análise mercê do propósito do presente comentário. 5 Artº 6º do Decreto-Lei nº 43/91 de 22 de Janeiro: “1. O pedido de cooperação é recusado quando: … e) O facto a que respeita for punível com pena de morte ou com pena de prisão perpétua; f) Respeitar a infracção a que corresponda medida de segurança com carácter perpétuo. 2. O disposto nas alíneas e) e f) do número anterior não obsta à cooperação: a) Se o Estado que formula o pedido tiver comutado aquelas penas ou retirado carácter

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perpétua”, sendo que a interpretação correcta da segunda norma citada impunha que se não aplicasse o respectivo regime à extradição, mas apenas às demais formas de cooperação previstas. Ao invés, entendia o Ministério Público que inexistia qualquer inconstitucionalidade, pois que, em face da garantia diplomática dada pelos EUA, se podia concluir pela “presumível não aplicação dessa pena”, o que era suficiente para manter a cooperação, ex vi do nº 2 al. c) do mesmo diploma. Tendo o Tribunal da Relação de Lisboa julgado pela improcedência do recurso6, novamente recorreu o extraditando, desta feita para o STJ, insistindo na impossibilidade de extradição quando o país requerente preveja a pena de prisão perpétua para o tipo legal de crime que motiva o requerimento de extradição. O STJ, em face de nova documentação junta aos autos pelo MºPº (segundo a qual o Juiz

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do processo norte-americano decidira que o limite máximo de pena de prisão a aplicar in casu ao arguido não ultrapassava os vinte anos, o que constituía um compromisso dos EUA perante o arguido que não seria quebrado, e se o fosse fundamentava recurso no seio da respectiva jurisdição norteamericana), veio a decidir que já não se podia considerar que ao caso vertente fosse em abstracto aplicável pena de prisão perpétua, pelo que ficava prejudicada a aplicação do artigo 6º nº 2 al. c) do Decreto-Lei nº 43/91. Nessa conformidade, julgou improcedente o recurso e confirmou a decisão de extradição anteriormente decretada. Subidos os autos em recurso ao TC, e após algumas questões de carácter prejudicial, foi tirado liminarmente o Acórdão nº 417/95 pelo plenário de tal Tribunal, segundo o qual tal alta instância decidiu que a proibição de extradição quando ao crime corresponda pena de morte segundo o direito do Estado

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requisitante excluía a possibilidade de essa extradição ser concedida havendo apenas garantia da substituição da pena. O argumento dado era o seguinte: “a expressão ‘segundo o direito do Estado requisitante’ tem de ‘entender-se como sendo o direito internamente vinculante desse Estado, constituído, tão-só, pelo respectivo corpo de normas penais, de que conste a possibilidade abstracta da pena de morte, e por quaisquer mecanismos –e só eles– que se inscrevam vinculativamente no direito e processo criminais, ainda que decorrentes do direito constitucional ou do direito jurisprudencial do Estado requisitante, dos quais resulte que a pena de morte não será devida no caso concreto, porque nunca poderá ser aplicada…”. Foi então convidado o MºPº a fazer prova nos autos de que a decisão interlocutória do juiz norte-americano a que atrás se fez referência constituía caso-julgado, ficando o juiz interno dos EUA juridicamente

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impedido de vir a condenar o arguido em pena de morte ou de prisão perpétua, em termos tais que se pudesse afirmar que tais penas nunca poderiam ser aplicadas ao extraditando. A prova carreada para o processo nesse sentido era constituída por uma declaração de um procurador federal dos EUA,

perpétuo à medida; … c) Se respeitar a auxílio solicitado com fundamento na relevância do acto para presumível não aplicação dessas penas ou medidas; …”. 6 A improcedência do recurso foi ditada, nos termos da decisão do Tribunal da Relação, pelo facto de julgar procedente a interpretação efectuada pelo MºPº do artigo 6º nº 2 al. c) e, ainda, considerando que o artigo 33º da CRP apenas proíbe a extradição por crimes a que corresponda a pena de morte, e não qualquer outra consequência jurídica penal.

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segundo a qual tal decisão não só havia sido proferida a pedido da acusação, como só era recorrível pelo próprio arguido, o extraditando, sendo certo que nenhum outro juiz norte-americano a poderá revogar e, ainda, que a nenhum outro juiz será deferido tal processo mercê da estrutura judiciária interna dos EUA. Ora, no que ao caso concerne, e em face dos argumentos sumariamente alinhados, o TC afastou a questão da inconstitucionalidade da norma do artº 6º nº 1 al. e) “no sentido de não proibir a extradição nos casos em que os factos a que ela respeita tenham já sido objecto de julgamento noutro país … por a inconstitucionalidade desse marco normativo nunca ter sido questionada pelo recorrente e por esse mesmo segmento não ter sido verdadeiramente aplicado pelo Supremo Tribunal de Justiça”, tendo-se

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debruçado exclusivamente sobre a alegada inconstitucionalidade dessa mesma norma “interpretada no sentido de não proibir a extradição nos casos em que, embora os factos que a fundamentam sejam puníveis com prisão perpétua de acordo com a moldura penal abstracta prevista na lei, for previsível (ou certa) a sua não aplicação no caso concreto”. Posto isto, e considerando que o mesmo TC já havia feito interpretação autêntica relevante através do Acórdão (interlocutório) nº 417/95 lavrado nos mesmos autos, conclui o Tribunal que a norma seria inconstitucional se permitisse “a extradição por casos em que a aplicação da pena de morte (ou de prisão perpétua) é legalmente possível, embora não previsível, designadamente em função das garantias transmitidas pelo Estado requerente; mas já não será inconstitucional na medida em que permite a extradição, se for certa a não aplicação dessas penas, não obstante elas serem em princípio

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aplicáveis ao caso, por tal já não ser juridicamente possível”. Ora, como dos autos não resultava que fosse juridicamente impossível ou inadmissível a alteração da decisão do juiz norte-americano em fixar o limite máximo de pena de prisão a aplicar ao arguido em vinte anos (i.e., não resultava demonstrada a irrevogabilidade de tal decisão), logicamente que existia a possibilidade legal de tal decisão não ser definitiva. Por isso concluía o TC que “não se pode afirmar que ao crime não corresponde a pena de prisão perpétua, ‘segundo o direito do estado requisitante’…”. Assim sendo, e ponderando ainda que, apesar de o artigo 33º nº 3 da CRP só excluir a extradição por crimes a que corresponda pena de morte, tal preceito deve ser interpretado conjuntamente com o nº 1 do mesmo artigo, que determina a inconstitucionalidade de quaisquer penas ou medidas “privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida”, conclui-se pela inconstitucionalidade da

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extradição quando ao crime corresponda pena de prisão perpétua. Aliás, esse mesmo era o espírito legislativo segundo se pode depreender do preâmbulo do Dec.-Lei nº 43/91, e tal tem sido entendimento constante do Estado português, como resulta da reserva feita pelo mesmo aquando da ratificação da Convenção Europeia de Extradição 7.

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A reserva constituiu precisamente na afirmação do Estado português de que mantinha o direito de negar a extradição em caso de crime punido com prisão perpétua.

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A decisão declarou, portanto, a inconstitucionalidade da norma do artigo 6º nº 1 al. e) do Dec.-Lei nº 43/91 quando interpretada de modo a permitir a extradição por casos em que seja juridicamente possível a aplicação da pena de prisão perpétua, embora seja previsível a sua não aplicação por terem sido dadas garantias nesse sentido pelo Estado requisitante. Já no que concerne ao segundo dos arestos referidos, o Acórdão nº 1146/96 do Plenário do TC, foi o mesmo proferido no processo nº 338/94, o qual havia sido desencadeado por recursos paralelos interpostos por um grupo de deputados à Assembleia da República e pelo Procurador-Geral Adjunto junto do TC. A questão de inconstitucionalidade em apreço assentava nas seguintes considerações: a – o Dec.-Lei nº 437/95 de 16 de Agosto, regulador dos processos de extradição e que admitia a

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extradição passiva de criminosos mesmo quando a lei do Estado requisitante previsse a pena de morte ou de prisão perpétua, desde que o dito Estado oferecesse garantias de que tais penas não eram efectivamente aplicáveis, foi mandado aplicar também ao território de Macau; b – com a entrada em vigor da CRP de 1976, instituiu-se um novo conjunto de direitos fundamentais, entre os quais se encontra a recusa peremptória da aplicação da pena capital, termos em que o normativo disciplinador da questão, o respectivo artº 23º (actual artº 33º nº 3), passou a impedir a extradição sempre que esteja em causa crime “a que corresponda a pena de morte segundo o direito do Estado requisitante”; c – também a posição assumida por Portugal aquando da ratificação da Convenção Europeia sobre Extradição de 13/12/1957, apondo a reserva de não admissão de extradição para crimes puníveis

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com pena de morte, impunha a impossibilidade de extradição “quando pelo direito do Estado requisitante seja aplicada a pena de morte”; d – mercê dos condicionalismos supra-legais referidos, entrou em vigor o Dec.-Lei nº 43/91 de 22 de Janeiro sobre cooperação judiciária internacional em matéria penal, tendo o legislador ordinário expressamente feito referência preambular à inconstitucionalização superveniente que havia ferido o anterior regime legal após a entrada em vigor da CRP de 1976; e – todavia, não se procedeu à extensão do Dec.-Lei nº 43/91 ao território de Macau, termos em que continuou vigente nesse espaço territorial o anterior Dec.-Lei nº 437/75, que, como se disse, havia sido inconstitucionalizado no território português; Ora, no que importa à análise que agora se desenvolve, e deixando de parte questões de legitimidade dos

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recorrentes e de jurisdição do TC sobre diplomas legais vigentes no território de Macau, cabe dizer que o que estava em causa no processo referido era a constitucionalidade do artigo 4º nº 1 al. a) do Dec.-Lei nº 437/75, onde se dispunha que “1.A extradição pode ser negada quando: a) o crime for

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punível no Estado requerente com a pena de morte ou com prisão perpétua e não houver garantia da sua substituição”, por confronto com o artigo 33º nº 3 CRP, que estabelece que “Não há extradição por crimes a que corresponda pena de morte segundo o direito do Estado requisitante”. A questão já havia sido apreciada pelo mesmo TC no Acórdão nº 417/95 8, tirado também em Plenário, aresto esse em que havia sido concluído pela inconstitucionalidade de tal preceito “na parte em que permite a extradição por crimes puníveis no Estado requerente com a pena de morte, havendo garantia da sua substituição”9. Ora, a fundamentação do acórdão em apreço é decalcada sobre a destoutro que se acabou de referir, resumindo-se essencialmente no seguinte: a CRP não admitiu, nem literal nem teleologicamente, a extradição nos casos em que no país requerente exista a possibilidade de aplicação

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da pena de morte, mesmo na circunstância de tal pena poder vir a ser substituída por uma outra; daí que a protecção constitucional do direito à vida “significa averiguar em concreto da compatibilidade da extradição com os princípios que a enformam, tendo em atenção, especialmente, a Constituição, a infracção, e a pena, seja no plano substantivo, seja no plano processual, à luz do ordenamento interno dos dois Estados interessados na extradição”. Ou seja: a extradição só é admissível quando, segundo o direito interno do Estado requisitante, a pena susceptível de, em concreto, ser aplicada ou já aplicada ao caso não seja a pena de morte, pois “só então não corre perigo o direito à vida do extraditando”10. Nesta conformidade, escreve o TC, a expressão “segundo o direito do Estado requisitante” usada no 33º nº 3, tem de entender-se como sendo “o direito internamente vinculante desse Estado, constituído, tão-só, pelo respectivo corpo de normas penais, de que conste a

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possibilidade abstracta da pena de morte, e por quaisquer mecanismos –e só eles- que se inscrevam vinculativamente no direito e processo criminais, ainda que decorrentes do direito constitucional ou do direito jurisprudencial do Estado requisitante, dos quais resulte que a pena de morte ‘não será devida’ no caso concreto, porque ‘nunca’ poderá ser aplicada”11. Na sequência da fundamentação referida, o TC reitera que com a jurisprudência fixada pretende significar que “o artigo 33º nº 3 CRP proíbe a extradição por crimes cuja punição com pena de morte seja ‘juridicamente possível’, de acordo com o ordenamento penal e processual penal do Estado requisitante, sendo, por isso, incompatível com quaisquer ‘garantias’ de não aplicação ou de substituição da pena capital prestadas pelo Estado requerente, que não se traduzam numa ‘impossibilidade jurídica’ da sua aplicação”. Mas o egrégio Tribunal vai ainda mais longe na fixação

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do seu entendimento quando, apelando ao decidido no Acórdão 474/95, diz que será inconstitucional a norma em apreço “na medida em que permite a extradição por casos em que a aplicação da pena de

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Publicado in DR, 2ª Série, nº 266, de 17 de Novembro de 1995. Tal aresto mereceu a concordância de J. J. Gomes Canotilho, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 128, nº 3857, pp. 248 e ss., e a oposição de Carlos Fernandes, in A Extradição e o respectivo sistema português, Instituto Hispano-Luso-Americano de Direito Internacional, Lisboa, 1996. 9 Aliás, igual solução havia sido adoptada já nos Acórdãos nºs 430/95 e 449/95, do mesmo TC. 10 Direito este que é, segundo o TC, o referente que se pretende tutelar com a proibição de extradição em causa, e que encontra fundamento último na dignidade da pessoa humana e no princípio do Estado de Direito democrático .

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morte é legalmente possível, embora não previsível, designadamente em função das garantias transmitidas pelo Estado requerente, não sendo, porém, inconstitucional na medida em que permite a extradição, se for ‘juridicamente certa’ a não aplicação dessa pena, não obstante ela ser, em abstracto, aplicável ao caso”. Razões pelas quais, ao abrigo dos poderes legalmente concedidos, foi decretada a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 4º nº 1 al. a) do Dec.-Lei nº 437/75 de 16 de Agosto, “na parte em que permite a extradição por crimes puníveis no Estado requerente com a pena de morte, havendo garantia da sua substituição, se esta garantia, de acordo com o ordenamento penal e processual penal do Estado requerente, não for juridicamente vinculante para os respectivos Tribunais”.

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De referir, porém, que dos treze juizes que constituíam o Tribunal, dois votaram vencidos, pelo seguinte fundamento: “se a proibição de extradição se funda no asseguramento da inviolabilidade da vida humana, ou, (…) na defesa do valor positivo da vida, então, se o Estado requisitante dessa forma de cooperação judiciária assegurar a Portugal, como Estado requisitado, que a vida do extraditado não será violada por intermédio da aplicação da pena de morte, já será, na nossa perspectiva, possível, sem ofensa da proibição constante do nº 3 do artigo 33º, o deferimento da extradição”. Daí que tais julgadores se tenham afastado da restritiva interpretação segundo a qual a “expressão ‘segundo o direito do Estado requisitante’ usada no nº 3 do artigo 33º tem (…) de entender-se como sendo o direito internamente vinculante desse Estado, constituído, tão-só, pelo respectivo corpo de normas penais, de que conste a possibilidade abstracta da pena de morte, e por quaisquer mecanismos –e só

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eles- que se inscrevem vinculativamente no direito e processo criminais…”. Ou seja, e por outras palavras, entende-se nesta perspectiva que havendo uma garantia que internacionalmente vincule o Estado requisitante, nenhum motivo existe para que a mesma se não reflicta no respectivo plano interno, com igual força vinculante, o que aliás resultará da aplicação às relações entre Estados soberanos do princípio da boa-fé que informa a validade internacional dos compromissos que os mesmos assumem entre si. Ademais, acrescentam os Conselheiros vencidos, nada demonstra que o compromisso assumido pelo Estado requisitante no caso vertente não constitui (constituiria) “parte do respectivo ‘direito interno’ no sentido (…) de integrar um mecanismo que se inscreva ‘vinculativamente no direito e processos criminais, ainda que’ decorrente do ‘direito constitucional ou do direito jurisprudencial’ desse Estado”.

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Em suma, neste entendimento, a norma em apreço “entendida no sentido de que é vedada a extradição quando o direito do Estado requisitante puna o crime com pena capital, salvo se este se comprometer, ainda que por mero acto unilateral, a não aplicar em concreto tal pena, não padece de inconstitucionalidade, uma vez que, assegurado que seja esse compromisso, salvaguardada está a defesa do aludido interesse positivo de defesa da vida, valor subjacente à injunção constante do nº 3

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Cfr. Acórdão nº 1146/96 e 417/95, cit.

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do artigo 33º da Constituição”. E tudo isto porque se defende que o legislador constituinte desenhou tal preceito normativo tendo como pressuposto o princípio de que entre os princípios fundamentais que regem o direito internacional e a respectiva ordem pública está aquele que impõe o cumprimento dos compromissos assumidos. Assim, a correcta interpretação do artigo 33º nº 3 CRP deve ponderar que o que releva para os seus fins não é a punibilidade em abstracto de certo comportamento com a pena de morte, mas sim a punibilidade em concreto com tal sanção, a qual será afastada, logicamente, quando o Estado requisitante assume o compromisso de não aplicar tal sanção “por qualquer das formas aceites pelo direito internacional”. E mesmo que tal entendimento não procedesse, sempre igual conclusão resultaria do entendimento de que a declaração internacionalmente assumida pelo

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Estado requisitante passa a enformar o direito interno do mesmo Estado, passando a “deter idêntica força vinculativa à de ordenamento que, igualmente no caso, tornasse juridicamente impossível a aplicação da mencionada pena (ou, se se quiser, não vai operar uma modificação casual do direito interno em termos de, quanto a ele, haver uma impossibilidade jurídica de aplicação da pena de morte)”.

III) A Lei nº 144/99 à luz do entendimento jurisprudencial apontado Em face do entendimento jurisprudencial referido, cumpre concluir que não é admissível a extradição por casos em que a aplicação da pena de morte é legalmente possível, embora não previsível, designadamente em função das garantias transmitidas pelo Estado requerente; mas já não será inconstitucional na medida em que permite a extradição, se for certa a não aplicação dessas penas,

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não obstante elas serem em princípio aplicáveis ao caso, por tal já não ser juridicamente possível. Tal interpretação deve ser estendida às situações em que a pena aplicável no Estado requisitante seja a pena de prisão perpétua, isto apesar de o artigo 33º nº 3 da CRP só excluir a extradição por crimes a que corresponda pena de morte. É que o nº 3 de tal artigo tem logicamente que ser interpretado conjuntamente com o respectivo nº 1, o qual determina a inconstitucionalidade de quaisquer penas ou medidas “privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida”. Em resumo, entende o TC ser imposição constitucional que havendo a possibilidade legal de aplicação ao extraditando de uma pena de morte ou de prisão perpétua, seja negada a extradição requerida, mesmo que seja previsível a sua não aplicação por terem sido dadas garantias nesse sentido pelo Estado

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requisitante. A contrario, conclui-se que já será admissível a extradição em tais circunstâncias se a “garantia” dada pelo Estado requerente se inscrever no respectivo corpo de normas penais ou processuais criminais, ainda que tal inscrição da garantia decorra do direito constitucional ou jurisprudencial, posto que tal signifique a impossibilidade de aplicação de qualquer dessas penas no caso concreto. Por outras palavras, sendo “juridicamente impossível”, in casu, a aplicação pelo Estado

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requerente de qualquer das penas constitucionalmente vedadas, então nada obsta à concessão da extradição. Todavia, e ressalvado o devido respeito, parece-nos que não foi correctamente perspectivada (ou pelo menos problematizada), a questão nos doutos arestos analisados. É que a questão da admissibilidade ou não da

extradição (rectius: da vinculatividade interna do Estado requisitante como requisito da extradição ), não passa pela análise da suficiência ou insuficiência, em abstracto, das garantias diplomáticas ou das declarações formais de órgãos judiciários para “descansar” o Estado requerido (rectius: para legitimar à luz da CRP a concessão da extradição). Bem ao invés, uma garantia diplomática ou uma declaração

formal dos órgãos judiciários que fique a constar do processo em que o pedido de extradição se funde,

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tanto pode ser suficiente como insuficiente enquanto garantia de “impossibilidade” jurídica de aplicação concreta da reacção criminal proibida no nosso ordenamento, dependendo a resposta do valor jurídico de tal garantia/declaração à luz do ordenamento jurídico do Estado requisitante. Em suma, tudo se resumirá a uma questão de aferição comparada dos sistemas jurídicos em presença, tendo em vista apurar se a garantia/declaração internacionalmente apresentada a Portugal têm vigor jurídico suficiente para vincular os órgãos judiciais responsáveis no Estado requisitante pela aplicação da pena. Assim, para apreciar se é “juridicamente impossível” a aplicação de tais penas e correlativamente admissível a concessão da extradição, cabe apurar se uma garantia diplomática ou uma declaração inserta no respectivo processo judicial limita ou não a “liberdade decisória” da judicatura do Estado requerente,

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pelo menos quanto à escolha da modalidade de pena aplicável ao extraditando. Dizendo-o deste modo, em nada se belisca o entendimento perfilhado pelo TC, pois que a “impossibilidade” acaba por decorrer indirectamente “da própria estrutura substancial ou processual” do sistema jurídico do Estado requerente. Não obstante, poderia julgar-se que o entendimento que ora se perfilha poderia conflituar com a recusa manifestada pelo TC em aceitar uma “garantia de substituição da pena prestada pelo Estado requerente”. Julga-se, porém, que assim não é, pois o sentido correcto da jurisprudência constitucional não é recusar in genere “garantias de substituição da pena”, mas apenas “garantias” que efectivamente o não sejam por não tornarem “juridicamente impossível” a aplicação da pena vedada pela ordem jurídica portuguesa. Só assim, aliás, se compreende a afirmação feita no segundo dos acórdãos analisados, nos termos da qual se admite a não-inconstitucionalidade da

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extradição “se for ‘juridicamente certa’ a não aplicação dessa pena, não obstante ela ser, em abstracto, aplicável ao caso”. De referir, ainda, que não merecem acolhimento as observações constantes do duplo voto de vencido apenso ao segundo dos acórdãos. Com efeito, é totalmente irrelevante para a presente discussão a apreciação dos princípios que internacionalmente norteiam as relações entre Estados soberanos, pois o que releva é a estrutura constitucional interna do Estado requerente de extradição. I.e., o modo pelo qual estão estruturados e se inter-relacionam os diversos “poderes” nesse Estado. Aliás, a improcedência dos

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raciocínios expendidos resulta patente quando se submetem os mesmos aos seguinte raciocínio crítico: uma garantia diplomática prestada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros português não vincularia, em circunstância alguma, um magistrado judicial, pois o princípio constitucional da separação de poderes impede qualquer ingerência da Assembleia da República, do Governo ou do Presidente da República na função jurisdicional. Assim sendo, de bem pouco relevaria a “boa-fé” do Governo do Estado requerente, se internamente não pudesse ( como na maioria dos casos não pode), limitar o poder judicial. Não cabe pois apelar para o princípio do cumprimento dos compromissos assumidos, quando a entidade que assume o compromisso nada pode decidir, verdadeiramente, quanto à aplicação ou não ao extraditando desta ou daquela pena criminal. Já se poderia ser tentado a

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concordar com a linha argumentativa dos votos de vencido se se hipotetizasse a existência de uma declaração formal do órgão judiciário competente. Mas ainda aqui a tentação deverá ser afastada em benefício da racionalidade e justiça da decisão. É que mesmo que o órgão judiciário se “comprometesse” a não aplicar certa pena, nada poderá garantir a impossibilidade de “violação” do compromisso por parte de outro órgão judiciário de nível hierárquico superior, pois como é sabido os Tribunais de recurso não ficam totalmente vinculados às decisões dos Tribunais inferiores, nem a proibição da reformatio in pejus é princípio universal do processo penal. Nesta conformidade, e uma vez mais, cabe recusar a argumentação expendida nos votos de vencido referidos, no que se afastam do entendimento que atrás se deixou perfilhado.

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Resta, por fim, apreciar os mecanismos instituídos pela Lei nº 144/99 à luz da jurisprudência constitucional alinhada e das posições que se foram deixando anotadas. De especial relevo, para tal propósito, são os artigos 1º, nº1 al. a), 6º, 23º, nº1 al. f) e 32º, nº2 al. c) do diploma legal em apreço, por referência ao artigo 33º da CRP. Vejamos: constitui requisito geral negativo da cooperação internacional, e assim da extradição, implicando a respectiva recusa, o facto de o procedimento criminal ao abrigo do qual a extradição é requerida ter por objecto um crime punível com pena de morte, com pena de que possa resultar lesão irreversível da integridade da pessoa ou com pena de prisão ou medida de segurança perpétuas ou de duração indefinida (artºs 1º, nº1 al. a) e 6º als. e) e f) da Lei nº 144/99 de 31 de Agosto). Porém, tais obstáculos à extradição desaparecerão, dizem-nos as alíneas a) e c) do nº 2 do artigo 6º, “a. se o

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Estado que formula o pedido, por acto irrevogável e vinculativo para os seus tribunais ou outras entidades competentes para a execução da pena, tiver previamente comutado a pena (…) c. se o Estado que formula o pedido aceitar a conversão das mesmas penas ou medidas por um tribunal português segundo as disposições da lei portuguesa aplicáveis ao crime que motivou a condenação”. Paralelamente, deixará de ser obstáculo à extradição por crimes “a que corresponda (…) pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida”, o

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facto de “o Estado requerente oferecer garantias de que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada” (artº 6º nº 2 al. b) da Lei nº 144/99). Em resumo, e ponderando também o teor do artigo 31º nº 1 da mesma lei, temos o seguinte esquema: -

será admissível a extradição por crimes em abstracto puníveis com pena de morte ou com pena de que possa resultar lesão irreversível à integridade da pessoa, nos termos do artigo 6º nº 2, se se tratar de um pedido de extradição para cumprimento de pena ou medida de segurança, mas não se estivermos em face de um pedido de extradição para efeitos de procedimento penal. E assim é porque as “excepções” à recusa de extradição constantes das alíneas a) e c) do nº 2 do artigo 6º pressupõem a fixação prévia da pena a aplicar ao extraditando, que o mesmo é dizer, pressupõem o

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encerramento do processo penal pela aplicação da sanção em julgamento. Com efeito, se as excepções se traduzem no facto de o Estado requerente “entretanto” ter comutado a pena (ter retirado carácter perpétuo ou duração indefinida à pena) ou aceitar a respectiva conversão por um

Tribunal português, à luz da lei portuguesa, está a lei a pressupor que já houve condenação e substituição da pena ou condenação e aceitação de conversão segundo os padrões do Estado requisitado, razão pela qual não haverá excepção à recusa de extradição se o pedido de cooperação tiver em vista a sujeição do arguido a um procedimento penal pendente 12; nos casos acabados de referir, a comutação da pena e/ou o “retirar-do-carácter” perpétuo/duração indefinida à pena terá de resultar de um acto do Estado requerente da extradição, acto esse que tem de ser irrevogável e vinculativo para qualquer entidade responsável pela execução da pena.

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será admissível a extradição por crimes em abstracto puníveis com pena de prisão perpétua ou de duração indefinida, nos termos do artigo 6º nº 2, quer se trate de pedido de extradição para efeitos de procedimento penal, quer se trate de pedido de extradição para cumprimento de pena ou medida de segurança, desde que o Estado requerente: ofereça “garantias de que tal pena ou medida de segurança não ser(á) aplicada ou executada” (al. b)); “por acto irrevogável e definitivo para os seus tribunais ou outras entidades competentes para a execução da pena (…) tiver retirado carácter perpétuo ou duração indefinida à pena ou medida de segurança” (al. c)), ou se “aceitar a conversão das mesmas penas ou medidas por um tribunal português segundo as disposições da lei

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A menos que se entenda que a expressão “retirar carácter perpétuo ou duração indefinida à pena ou medida de segurança” não pressuponha a prévia determinação da sanção a aplicar ao extraditando, o que tornaria o preceito totalmente impreceptível e ilógico, uma vez que: ou ao crime em abstracto é aplicável pena de prisão perpétua, o que determina a aplicação da proibição do artigo 6º nº 1 al. f), e possível aplicação da excepção constante do artigo 6º nº 2 al. a), ou então deixa, em abstracto, de lhe caber tal pena perpétua, e nem sequer se está no âmbito da proibição daquele primeiro preceito citado. Assim sendo, como é, o único entendimento possível da expressão legal, à luz dos princípios interpretativos que nos vinculam, será aquele que se lhe dá no texto, segundo o qual a estatuição da al. a) do nº 2 do artº 6º pressupõe a condenação do agente numa pena de prisão perpétua ou de duração indefinida (pena já individualizada e aplicada ao agente), vindo depois o Estado requerente, por acto irrevogável e vinculativo internamente, a “retirar” tal carácter perpétuo ou indeterminado… melhor seria o legislador ter utilizado, uniformemente, a expressão “comutação” de pena, usada na primeira parte da mesma alínea (além de que se não entende o significado técnico-jurídico do conceito “retirar-carácter-perpétuo”, se não for no sentido de comutação da pena fixada).

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portuguesa aplicáveis ao crime que motivou a condenação” (al. c)). Para efeitos de apreciar a “suficiência das garantias” referidas na alínea b) do nº 2, diz-nos o artigo 6º nº 3, “ter-se-á em conta, nomeadamente, nos termos da legislação e da prática do Estado requerente, a possibilidade de não aplicação da pena, de reapreciação da situação da pessoa reclamada e de concessão da liberdade condicional, bem como a possibilidade de indulto, perdão, comutação de pena ou medida análoga, previstos na legislação do Estado requerente” Ora, só aparentemente e parcialmente o sistema resultante da conjugação dos artigos 1º nº 1 al. a), 6º nº 1 als. e) e f), nº 2 als. a), b) e c) e 31º da Lei nº 144/99 está “conforme” com o entendimento perfilhado pelo TC e vertido nos arestos atrás analisados. Segundo se crê, o legislador ordinário criou um sistema que

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a vários títulos se afasta do desejável, o que, em face da abundante e esclarecedora jurisprudência constitucional existente, será de certo modo censurável. Em certos momentos o sistema instituído é ainda mais restritivo do que aquele que resultava imposto pelas decisões de constitucionalidade citadas; noutras perspectivas é um sistema mais amplo do que o admitido pelo TC ( e nessa medida será inconstitucional); por último, o sistema instituído não apresenta integral congruência interna. Tudo

como se passa a analisar. O sistema instituído é indesejavelmente mais restritivo do que é imposto pela CRP - Antes de mais, não parece justificável a “restrição” feita na circunscrição das excepções constantes das alíneas a) e c) do nº 2 do artigo 6º da Lei 144/99. Com efeito, não se compreende qual a razão de ser de limitar a eficácia dos actos irrevogáveis e vinculativos emanados do Estado requerente de extradição aos casos

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em que tenha havido comutação de pena ou em que o mesmo haja “retirado carácter perpétuo ou duração indefinida à pena ou medida de segurança” (i.e., não se compreende a limitação da “eficácia” de tais actos apenas aos pedidos de extradição para cumprimento de pena ou medida de segurança ). Bem ao invés,

e ponderando que a alínea a) do nº 2 do artigo 6º se aplica quer aos casos da alínea e), quer aos casos da alínea f) do nº 1 do mesmo artigo, a opção do legislador ordinário deveria ter ido em sentido inverso, com o que recolheria na lei a jurisprudência mais autorizada sobre a matéria: devia, assim, a alínea a) permitir uma excepção à recusa de extradição prevista nas alíneas e) e f) do nº 1, mas de carácter geral, i.e., que se aplicasse a pedidos de extradição para efeitos de procedimento penal e para efeitos de cumprimento de pena. Dito de outro modo, a alínea a), a manter-se, deveria ter o seguinte teor: “Se o Estado que formula o pedido, por acto irrevogável e vinculativo para os seus Tribunais e

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para as entidades competentes para a execução da pena, tiver decidido que qualquer das penas referidas nas alíneas e) e f) do número anterior não será aplicada ou executada, ou se o dito Estado, por acto dotado das mesmas características, aceitar a conversão das mesmas penas por um tribunal português segundo as disposições da lei portuguesa aplicáveis ao crime que motivou o processo ou a condenação”.

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Mercê da alteração sugerida ao teor da alínea a), poderia ser eliminada a actual alínea c), com o que se ganharia também pela ampliação da abrangência do objecto desta última alínea, nos termos atrás referidos. Concomitantemente, também não se entende a razão de ser da “limitação” feita, na alínea b) do nº 2 do artigo 6º, à relevância das “garantias” oferecidas pelo Estado requisitante de extradição aos casos de extradição por crimes a que corresponda pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida. I.e., se não se censura a esta alínea o aplicar-se apenas a um dos tipos de processos de extradição ( como sucedia com as alíneas a) e c) do nº 2 do artigo 6º), já se lhe reprova o facto de não estender a respectiva estatuição aos processos de

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extradição por crimes puníveis com pena de morte ou de que possa resultar lesão irreversível da integridade da pessoa. Dito de outro modo, tal como as alíneas a) e c) do nº 2 (nos termos aliás expressamente previstos no corpo deste número), se constituem como excepções à recusa de extradição por

qualquer dos crimes sancionados nos termos previstos nas alíneas e) e f) do nº 1 do artigo 6º, também a alínea b) deste nº 2 deveria aplicar-se, indistintamente, a ambas as referidas alíneas e) e f) do nº 1 do artigo em apreço. Assim sendo, a alínea b), a manter-se, deveria passar a ter o seguinte teor: “Se o Estado que formula o pedido oferecer garantias de que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada”. Em suma, as excepções do artigo 6º nº 2 à recusa de cooperação ( decretada pelo artigo 6º nº 1 als. e) e f) da Lei nº 144/99), poderiam resumir-se a duas alíneas, uma em que se condensariam lógica e homogeneamente

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as situações actualmente constantes das alíneas a), b) e c) do nº 2, e outra em que se manteria a actual alínea d) do nº 213. Tal alínea consagradora da “excepção” à recusa de cooperação prevista nas alíneas e) e f) do nº 1, poderia, assim, apresentar o seguinte recorte: “Se o Estado que formula o pedido oferecer garantias de que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada ou se o mesmo Estado por acto irrevogável e vinculativo para os seus Tribunais e para as entidades competentes para a execução da pena, tiver decidido que qualquer das penas referidas nas alíneas e) e f) do número anterior não será aplicada ou executada; igualmente não obstará à cooperação a previsão das ditas alíneas se o dito Estado, por acto dotado das características atrás referidas, aceitar a conversão das mesmas penas por um tribunal português segundo as disposições da lei portuguesa aplicáveis ao crime que motivou o processo ou a condenação”.

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Assim se permitiria a criação de um sistema homogéneo de “excepções” à recusa de cooperação, que trataria igualmente situações que merecem o mesmo tratamento, e se permitiria a instituição de um regime legal mais amplo, coerente e perceptível, sem ultrapassagem dos marcos constitucionais fixados.

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Também esta, logicamente, com outro teor literal, em face da deficiência comunicacional que actualmente a vicia, mas que aqui não se criticará por sair do âmbito do estudo que se desenvolve.

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O sistema instituído é mais amplo do que é permitido pela CRP - Por outro lado, também não parece legítimo, e por isso será de duvidosa conformidade com a CRP, o critério legal de determinação da “suficiência” das garantias prestadas pelo Estado requerente da extradição, constante do artigo 6º nº 3 do diploma legal em análise. Com efeito, diz-nos tal preceito que para efeitos de “apreciação da suficiência das garantias a que se refere a alínea b) do número anterior, ter-se-á em conta, nomeadamente, nos termos da legislação e da prática do Estado requerente, a possibilidade de não aplicação da pena, de reapreciação da situação da pessoa reclamada e de concessão da liberdade condicional, bem como a possibilidade de indulto, perdão, comutação de pena ou medida análoga, previstos na legislação do Estado requerente”.

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Ora, conforme ensina o TC na jurisprudência atrás comentada, as garantias nesta matéria apenas serão suficientes à luz do ordenamento constitucional português se, de acordo com o ordenamento penal e processual penal do Estado requerente, forem de molde a tornar juridicamente impossível a aplicação ao extraditando das penas vedadas pela CRP, i.e., se a garantia dada for juridicamente vinculante para os Tribunais do Estado requerente e demais entidades que aí forem competentes para a execução da pena. Assim sendo, claro resulta que o elenco de indícios de suficiência das garantias constante do artigo 6º nº 3 é não só deficiente como desajustado dos princípios e fins que norteiam a exigência constitucional. Certo foi apelar o preceito, como fontes da recolha de indícios, para a “legislação e prática do Estado requerente”, se com a referência a “prática” se estiver a querer significar “prática jurídica vinculativa”, realidade tão comum nos países de common-law. Todavia, não se compreende

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como, nem porquê, é que se deverá ter em conta a “possibilidade de não aplicação da pena”, a possibilidade “de reapreciação da situação da pessoa reclamada”, ou a possibilidade de “concessão da liberdade condicional”. Na verdade, não só nenhum desses supostos indícios de suficiência de garantias indicia seja o que for, como mesmo que indiciasse não seria garantia suficiente nos termos constitucionalmente exigíveis, na exacta medida em que não tornam juridicamente vinculante para os órgãos jurisdicionais do Estado requerente a “afirmação internacional” de não aplicação ou não execução de qualquer das penas previstas nas alíneas e) e f) do artigo 6º nº 1. Aliás, basta atentar no teor totalmente vago de tais referências para logo concluir pela sua total inadmissibilidade enquanto parâmetros de circunscrição do comportamento constitucionalmente fixado. E de iguais vícios padecem as restantes referências feitas no artigo 6º nº 3 a título de “outros indícios” de suficiência das

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garantias prestadas pelo Estado requerente da extradição, i.e., “a possibilidade de indulto, perdão, comutação de pena ou medida análoga previstos na legislação do Estado requerente”. Nem deixe de se referir alguma “ingenuidade” do legislador ordinário ao elencar estes outros “indícios”, que a serem procurados, por definição, nada garantiriam sobre a sorte do extraditado. Basta interpretar sistematicamente a alínea b) do nº 2 com o nº 3 do artigo 6º para tal se tornar patente: se a alínea b), tal como está desenhada, apenas funciona como excepção à recusa de cooperação resultante do nº 1 al. f), estaremos perante caso em que no direito do Estado requerente o crime é sancionado com pena de prisão perpétua, e em que o dito Estado oferece a Portugal garantias de que tal pena não ser aplicada

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ou executada… pergunta-se: que relevância tem para efeitos de tal garantia apreciar a praxe ( ou possibilidade) de surgirem indultos, perdões ou comutações de pena no Estado requerente de

extradição? A relevância é, claramente, nenhuma! É que, de duas uma: ou o Estado requerente solicita a extradição para efeitos de procedimento penal ou a solicita para efeitos de execução de pena. Se a solicita para efeitos de procedimento penal, a praxe relativamente a indultos, perdões ou comutações de pena e relativamente a reapreciação da situação da pessoa reclamada ou a concessão de liberdade condicional nada garante sobre a pena que será aplicada em julgamento; ao invés, se o Estado requerente solicita a extradição para efeitos de execução de pena, então não cabe aferir de qualquer praxe, pois a garantia só estará satisfeita com a efectiva e definitiva concessão do indulto, perdão ou

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comutação da pena, ou com a vinculação à concessão de uma liberdade condicional a partir de determinado momento da execução da pena. Ou seja, o legislador no artigo 6º nº 3 demonstrou inclusivamente não ter ponderado, no elenco criado, a relevância dos supostos indícios perante as situações processuais possíveis. Mas mais: se a CRP, relativamente às penas a que se referem as alíneas e) e f) do artigo 6º nº 1, apenas admite a extradição, sob pena de inconstitucionalidade da lei, “se for ‘juridicamente certa’ a não aplicação dessa pena, não obstante ela ser, em abstracto, aplicável ao caso”, então nunca será constitucionalmente admissível extraditar um indivíduo com base nas garantias elencadas no artigo 6º nº 3, pois de nenhum desses supostos “indícios” de suficiência das garantias resulta “juridicamente impossível” a aplicação ao extraditando das penas criminais constitucionalmente vedadas.

20 Uma última referência para comentar o regime instituído no artigo 32º relativamente à extradição de cidadãos portugueses. Com efeito, duplicando o teor do artigo 33º nº 2 da CRP, encontramos no nº 2º do artigo 32º da Lei nº 144/99 os requisitos de admissibilidade de extradição de nacionais. Ora, na alínea c) deste nº2, exige-se que “a ordem jurídica do Estado requerente consagre garantias de um processo justo e equitativo”, vindo o nº 4 do mesmo artigo a esclarecer que “para efeitos de apreciação das garantias a que se refere a alínea c) do nº 2, ter-se-á em conta o respeito das exigências da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e de outros instrumentos internacionais relevantes na matéria ratificados por Portugal, bem com as condições de protecção contra as situações a que se referem as alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 6º”14.

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Ora, à parte mais uma demonstração de má técnica legislativa, pois poderia o nº 4 limitar-se a remeter

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Artigo 6º: “O pedido de cooperação é recusado quando: a) O processo não satisfizer ou não respeitar as exigências da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 4 de Novembro de 1950, ou de outros instrumentos internacionais relevantes na matéria, ratificados por Portugal; b) Houver fundadas razões para crer que a cooperação é solicitada com o fim de perseguir ou punir uma pessoa em virtude da sua raça, religião, sexo, nacionalidade, língua, ou das suas convicções políticas ou ideológicas ou da sua pertença a um grupo social determinado; c) Existir risco de agravamento da situação processual de uma pessoa por qualquer das razões indicadas na alínea anterior; d) Puder conduzir a julgamento por um tribunal de excepção ou respeitar a execução de sentença proferida por um tribunal dessa natureza;…”

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para as alíneas a), b) e c) do nº 1 do artigo 6º, em vez de repetir o teor daquela alínea a) e adoptar procedimento diverso para as alíneas b) e c), cabe questionar se as “garantias de um processo justo e equitativo” devem também ser apreciadas nos mesmos termos indicados pelo TC para aferição da suficiência das garantias referidas no artigo 6º nº 3. Neste particular, e embora se trate, obviamente, de garantias relativamente a realidades diversas15, julgamos poder defender-se uma aplicação do mesmo critério constitucional a que se fez referência, pelo que se concluirá que o “processo será justo e equitativo” dependendo da conformação da lei penal substantiva e adjectiva do Estado requerente da extradição (e respectivo entendimento constitucional e jurisprudencial), com os diplomas e requisitos enunciados nas alíneas a), b) e c) do artigo 6º, ex vi da remissão feita no artigo 32º nº 4.

10 Em virtude das críticas precedentes, e como súmula final, julgamos poder concluir que a regulamentação legal constante da Lei nº 144/99 de 31 de Agosto relativamente aos requisitos gerais negativos da extradição é internamente incongruente e assistemático (alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 6º), e mesmo parcialmente inconstitucional (artigo 6º nº 3, por referência ao nº 2 al. b)), termos em que se deveria proceder à respectiva revisão por via legislativa, ou, caso assim não suceda, e pelo menos, à apreciação da conformidade com a constituição da norma resultante do artigo 6º nº 2 al. b) e nº 3.

Lisboa, 06 de Janeiro de 2000

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No artigo 6º nº 3 as garantias referem-se à afirmação pelo Estado requerente da extradição de que não aplicará ou não executará a pena privativa de liberdade com duração perpétua ou indeterminada, e no artigo 32º nº 2 al. c) fala-se de garantias de um processo justo e equitativo.

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