O SOBERANO BEM DO ROMANCE. PENSAMENTO MÍSTICO NO ÚLTIMO ROLAND BARTHES

June 5, 2017 | Autor: Claudia Amigo Pino | Categoria: Roland Barthes
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O SOBERANO BEM DO ROMANCE. PENSAMENTO MÍSTICO NO ÚLTIMO ROLAND BARTHES Claudia Amigo Pino É muito difícil se referir à obra de Barthes como unidade, já que, para ele, “mudar de ideia, a gente o faz quase como respira” (BARTHES, 2005, p. 10). Por isso, é comum encontrar referências ao primeiro Barthes “marxista” (de Mitologias e O grau zero da escrita), ao segundo “estruturalista” (de Elementos de semiologia e S/Z) e mesmo a um terceiro “hedonista” (de O prazer do texto e Roland Barthes por Roland Barthes). Mas aqui não nos deteremos em nenhum deles; nosso objetivo é analisar o último Barthes, que queria se distanciar de todos os anteriores e mudar completamente de escritura. Pouco conhecemos desse último Barthes. Em 1978, em seu curso “A preparação do romance”, ele anuncia, como reação a um evento trágico1, a necessidade de mudar, de começar uma “vida nova”: Portanto, para quem já escreveu, o campo da Vita Nuova só pode ser a escrita: a descoberta de uma nova prática de escrita. Excetuando o Novo, é apenas isto: que a prática de escrita rompa com as práticas intelectuais antecedentes; que a escrita se destaque da gestão do movimento passado: o sujeito que escreve sofre uma pressão social para o levar (o reduzir) a gerir a si mesmo, a gerir sua obra repetindo-a: é esse nhenhenhém que deve ser interrompido. (BARTHES, 2005, p. 10)

A forma de sair do nhenhenhém, ou seja, da demanda do público, era mudar a prática da escritura: sair da crítica para “entrar em literatura”, ou, Revista TB, Rio de Janeiro, 198: 41/54, jul.-set., 2014

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mais especificamente, entrar no romance. Um romance do final dos anos 70, na França, teria muito em comum com a obra de Barthes. Fragmentação, citação, referências autobiográficas eram recursos dos seus textos e também da literatura de sua época2. Porém, Barthes precisava escolher um gênero oposto ao que ele sempre tinha praticado. Assim, surpreendendo toda sua audiência, ele anuncia, no colóquio e Cerisy de 1978, que ele tinha vontade de escrever um romance realista, como A guerra e a paz, de Tolstoi (COMPAGNON, 2003, p. 409-410). Mais tarde, ao inaugurar o curso dedicado a esse projeto, “A preparação do romance” (1978-80), ele mudará de modelo e afirmará que procura reescrever Em busca do tempo perdido, mas com suas próprias personagens, seus lugares, seus descaminhos. Mas o essencial seria mantido: seu romance também trataria de um herói que procura a forma de se tornar escritor, “entrar em literatura”, como o livro de Proust. Barthes queria narrar a própria história da escrita de seu romance, que já tinha um título definido, Vita Nova (BARTHES, 2012). Porém, após sua morte, em março de 1980, foram encontrados apenas oito fólios manuscritos (oito planos) correspondentes ao projeto: aparentemente, ele não escreveu Vita Nova, o que ele já tinha anunciado na sua última aula no curso “A preparação do romance”3. Não foram encontrados manuscritos de redação, nem de elaboração de personagens, nem sequer um plano mais ou menos consolidado da narrativa. Mas isso não significa que ele não tenha trabalhado no romance: há três conjuntos de fichas preparatórias, manuscritos dispersos em outras pastas, dois cursos dedicados ao romance e vários textos dispersos que comporiam o projeto, mas foram publicados de forma independente.4 Nesse caminho para o romance, Barthes, por vezes, revisitou conceitos antigos, mas também encontrou novas formas de pensar a literatura, por vias totalmente inusitadas. Por mais que ele não tenha escrito, de fato, um romance, ele se forçou a mudar de escrita e, nesse processo, conseguiu, por vezes, sair do seu nhenhenhém e entrar numa vida nova. Neste artigo, nosso objetivo será seguir uma dessas formas de pensar nos manuscritos, fichas preparatórias e textos escritos para o romance. Para isso, seguiremos uma espécie de “crítica genética às avessas”. Em vez de estudar os manuscritos para entender como uma obra foi 42

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escrita, como propõe a crítica genética francesa (GRÉSILLON, 2007), vamos usá-los para entender como uma obra não foi escrita (mas gerou uma reflexão).5 Aqui tomaremos uma via completamente nova para Barthes, a da relação entre a literatura e misticismo. As referências teológicas podem, em um primeiro momento, espantar. Afinal, Barthes podia ter origem protestante, mas, adulto, nunca foi religioso. De qualquer maneira, a sua crença não tem a menor importância para o nosso desenvolvimento: queremos mostrar aqui como a exploração de textos místicos no projeto do romance está relacionada ao amor pela literatura, que o fez ver, no fundo do seu luto, a esperança de uma vida nova. 1. A apologia Os fólios correspondentes a Vita Nova foram publicadas como anexo Obras completas de Barthes, em 1995. São oito planos instáveis de uma narrativa autobiográfica que se iniciaria com o luto, e depois passaria a descrever a procura de novas atividades, a procura e a desistência de um novo parceiro amoroso e o encontro de uma vida nova, “entrar em literatura”. Porém, nenhum dos planos termina com a escrita, de fato, do romance. A busca do romance leva-o a uma espécie de ócio contemplativo e a um misterioso reencontro (BARTHES, 2002b). No entanto, no sétimo plano há uma mudança total no projeto. Não seria mais um romance, mas uma espécie de coletânea de fragmentos, semelhante aos Pensamentos6, de Pascal, que originalmente tinham outro título: “Apologia da religião cristã”. Reproduzimos aqui o trecho do fólio de Vita Nova em que Barthes anuncia essa mudança: [Lendo Pascal] Vontade de: - Fazer como se eu devesse escrever minha grande obra (Soma) - mas Apologia do quê ? Eis a questão! Em todo caso não de “mim”!) 7, 8 (BARTHES, 2002b, p. 1016).

Da mesma forma que os Pensamentos de Pascal, Barthes pensava em não publicar o romance em si, mas os fragmentos de uma grande

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obra inacabada: justamente o romance Vita Nova. Porém, Barthes encontrava uma dificuldade nessa ideia. O texto de Pascal, embora escrito em fragmentos, possui uma unidade: a sua produção e a sua leitura têm como horizonte a defesa do cristianismo, “a apologia da religião cristã”. Os fragmentos da vida nova de Barthes não tinham um horizonte: a única unidade que ele via nos seus manuscritos era ele mesmo e ele não poderia fazer uma apologia de si. Contudo, ele não abandona a ideia e a desenvolve em outros manuscritos relativos ao projeto e encontrados no Fonds Roland Barthes: os manuscritos de Incidentes: Eu retomo (talvez porque as primeiras fichas 1969 79) a velha ideia dos Incidentes. Agora, em uma nova volta da espiral: 1) Autocomentário Aufheben 2) Classificação por maços (Cf. Pascal) 3) Apologia de um valor (e não mais desmistificação) 4) Cuidado extremo da forma (tão firme e inteligente que Pascal)9. (FONDS ROLAND BARTHES, b, p. folio 1)

No item 3, ao se referir à “Apologia de um valor”, Barthes indica que não se trataria mais de desmistificação, o que corresponde aparentemente a uma alusão a um de seus primeiros livros, Mitologias (1957). Nesse texto, ele defende uma análise feita a partir de dois movimentos: primeiro, a apresentação de um mito, um discurso naturalizado da sociedade burguesa francesa; e segundo, a desmistificação, a interpretação de um significado político desse mito (BARTHES, 2002a). Vita Nova também seria composto por dois momentos de leitura, porém, o segundo momento não desarticularia do primeiro, como nas Mitologias. Ainda seria um momento crítico, como podemos observar nesse conjunto de manuscritos de Incidentes. A maior parte das minhas observações é discutível recusável – em relação ao benefício precisamente de uma maior inteligência, generosidade Conceber um discurso com dois componentes: a anotação e sua transcendência, de onde surge o valor verdadeira

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autocrítica, mas como transcendência e a descoberta não do valor mas de uma forma de enxergá-lo 10 (FONDS ROLAND BARTHES, b, p. fólio 1)

A generosidade à qual se refere Barthes nesse trecho é provavelmente a generosidade do leitor, que deverá, a partir das anotações autobiográficas do “romance”, projetar uma nova dimensão do texto, o seu “valor”. Mais adiante no manuscrito não há indicações do que seria esse valor, porém, há uma nova aproximação de Pascal, que nos permite fazer uma releitura do curso A preparação do romance e uma discussão maior dessa inusual relação entre teologia e criação literária anunciada nesses fólios manuscritos. Ideia (que se apossa de mim cada vez + em cada ficha) de um auto comentário (porque só depois) à levando o trabalho para o Bem, para se tornar “bem” perfeito, moral (em direção à mãe). Iniciação. Religião. (FONDS ROLAND BARTHESM b, p. folio 2)

O que antes era um problema apenas formal para o seu projeto faz com que ele se aproxime cada vez mais de Pascal, a partir do seu conceito de “Bem”. O valor que Barthes procurava para juntar os seus fragmentos autobiográficos já escritos é esse Bem, relacionado à mãe recentemente falecida e à religião. Barthes não era místico, mas sua mãe sim: nesse momento de ausência, a busca de um referente religioso os aproxima. Isso pode ser observado, por exemplo, no Diário de Luto: 7 de junho de 1978 O cristianismo: a Igreja: sim, éramos decididamente contra, quando era associada ao Estado, ao Poder, ao Colonialismo, à Burguesia, etc. Mas, outro dia, uma espécie de evidência do tipo: no fundo... Ainda ela? E não é ela, no circo das ideologias, das morais, o único lugar onde se pensa ainda um pouco na nãoviolência? (BARTHES, 2011, p. 248-249)

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2. O soberano Bem Pascal é citado em várias obras de Barthes, de forma oblíqua. Desde Michelet (1954) até Roland Barthes par Roland Barthes (1975), aparecem diversas referências aos Pensamentos. Aparentemente, tratase de uma leitura inaugural para Barthes, mas que é retomada com mais força nos últimos escritos, talvez pela necessidade de aproximação mística da mãe. Graças às alusões do manuscrito elencadas anteriormente, é possível observar que boa parte do curso A preparação do romance gira em torno de um conceito de Pascal: o soberano Bem. A seguir, faremos uma leitura desse curso a partir dos manuscritos, com o objetivo de entender o que seria esse valor e o papel que ele cumpriria na estrutura do romance. Antes de reler A preparação do romance, no entanto, vamos nos deter um pouco na função do “Soberano Bem” nos Pensamentos de Pascal. Trata-se de uma questão antiga que vários filósofos se colocaram. Aristóteles, em Ética a Nicômaco, introduz o problema: todas as nossas ações caminham para um bem determinado, porém, como desejamos e fazemos coisas diferentes durante a nossa vida, deve haver algum bem que comande todos os outros, senão “inútil e vão seria o nosso desejar” (ARISTÓTELES, 1984, p. 49). Esse seria o “Sumo bem” para Aristóteles. Para Pascal, o “Soberano bem” é, em primeiro lugar, a felicidade. Todos os homens procuram ser felizes. Porém, segundo ele, em todos os países, em todas as classes sociais, em todos os tempos, ninguém teria sido capaz de chegar a esse bem comum sem a fé. O que explicaria essa impossibilidade? O que quer dizer esta avidez e esta impotência, senão que houve em outra época no homem uma felicidade verdadeira, da qual hoje só resta a marca e o vestígio totalmente vazio e que ele procura inutilmente preencher de tudo o que o entorna, procurando das coisas ausentes o apoio que ele não obtém das presentes, que são totalmente incapazes de dá-lo, porque esse abismo infinito só pode ser preenchido por um objeto infinito e imutável, ou seja, o próprio Deus. (PASCAL, 1991,p. 133-134)

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Assim, para Pascal, o verdadeiro Bem só pode ser Deus, que o homem busca exatamente porque, em algum momento, já o encontrou. Em várias passagens do curso A preparação do romance, Barthes refere-se ao soberano Bem como o próprio romance. Escrever um romance: esta seria a busca da felicidade suprema para Barthes, o ponto para o qual convergiriam todos os seus projetos provisórios, seus saberes específicos. As feridas do Desejo podem ser recolhidas, transcendidas pela ideia de “fazer um Romance”, de ultrapassar as contingências do malogro por uma grande tarefa, um Desejo geral cujo objeto é o mundo inteiro. Romance: espécie de grande Recurso à sentimento de que não nos sentimos bem em parte alguma. A escritura seria, pois, minha única pátria? Romance (como “algo a fazer”, agendum): aparece como Soberano Bem [...]11. (BARTHES, 2005, p. 27)

Se para Barthes o romance é o horizonte, a grande tarefa, a interpretação pascaliana da questão coloca um problema. Afinal, se o Soberano Bem é algo que de certa forma já se encontrou, como Barthes teria encontrado o romance antes de escrevê-lo? Existem duas respostas possíveis para essa pergunta: ou esse romance inicial não foi escrito, mas lido por Barthes, ou a sua busca não se refere à forma romance, mas a algum tipo de efeito produzido pelo romance, e que já foi experimentado antes, na vida. Na conferência inaugural do curso “A preparação do romance”, Barthes se refere a esse efeito a propósito de um episódio de A guerra e a paz, a morte do velho príncipe Bolkonski, e outro de Em busca do tempo perdido, a morte da avó do herói/narrador. Nos dois casos, uma personagem acompanha a outra no leito de morte: ela sabe que a outra vai morrer, mas ainda está viva. Dessas duas leituras, da emoção que sempre reavivam em mim, tirei duas lições. Verifiquei primeiro que esses episódios, recebia-os (não encontro outra expressão) como “momentos de verdade”: de repente, a literatura (porque é dela que se trata) coincide absolutamente com o dilaceramento emotivo, um “grito”; diretamente no corpo do leitor que se vive, por Revista TB, Rio de Janeiro, 198: 41/54, jul.-set., 2014

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lembrança ou previsão, a separação do ente amado, uma transcendência se coloca: qual Lúcifer criou ao mesmo tempo o amor e a morte?12 (BARTHES, 2012, p. 360)

Na leitura desses dois episódios, em que as personagens Marie (em Tolstoi) e o herói (em Proust) percebem o amor que sentem respectivamente pelo pai e pela avó, e, ao mesmo tempo, a iminência de sua morte, Barthes pôde, por um segundo, sair da dor de seu luto. Ele percebeu que o que sentira fazia parte da sua tragédia pessoal, mas também das tragédias das personagens e de muitas outras pessoas. Nesse momento (utópico?) de epifania, ele deixou de ser um sujeito vivendo, sozinho, um luto, para se sentir “vivendo junto” com todos os outros sujeitos do mundo, a “vivência de um máximo amor possível”. No curso A preparação do romance, Barthes desenvolverá a questão do “momento de verdade” em relação ao haicai: esse poema produziria no leitor a sensação de déjà-vu, ele sentiria ter vivido exatamente a situação descrita. Mesmo em tempos diferentes, o leitor teria a sensação de “viver junto” com o haicai. Precisar, conforme o projeto do Curso, o encaminhamento que vai – que iria, já que se trata de um programa – da “Vida” (e o haicai é feito na própria vida, sem resto) a uma forma que a constitui posteriormente em lembrança, em emoção, em inteligibilidade, em “caridade” (tema do Soberano Bem).13 (BARTHES, 2005, p. 70)

Gostaria de destacar, aqui, o uso da palavra “caridade”, que também aparecerá no manuscrito de Vita Nova (BARTHES, 2002b, p. 1018). A palavra refere-se à demonstração de um máximo amor possível, sem retribuição material, motivado pelo amor sentido por Deus e tendo como único fim o amor deste14. A caridade é o vínculo entre esse conhecimento prévio (amor) que o homem tem de Deus e o desejo de reencontrá-lo (“Soberano Bem”). No trecho acima, vemos como o projeto de romance (“a forma”) tinha esse mesmo objetivo “caritativo”: o reencontro de um amor, que ele já tinha sentido antes, especificamente, nos “momentos de verdade” de Guerra e paz e Em busca do tempo perdido. Por acreditar que no romance esse reencontro era possível, seu projeto ganhou este nome, “romance”, e seu curso, este título, “A 48

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preparação do romance” (embora nada parecesse de fato indicar que ele escreveria um romance). Esse reencontro é literalmente enunciado em alguns manuscritos de Vita Nova. Porém, em uma primeira leitura, sem o diálogo com o “Soberano Bem”, é difícil entender o seu papel dentro do projeto. Agora que podemos deduzir o que ele queria reencontrar, podemos entender melhor o sentido desse caminho. 3. O reencontro Em francês, a palavra “rencontre” não significa necessariamente “encontrar de novo”, pode ser simplesmente um equivalente de “encontro”. Porém, o projeto de Barthes, como mostrado até agora, é concebido como uma busca de alguma coisa (o máximo de amor possível) que ele já encontrou na vida. O encontro final, que permite que o livro termine, só pode ser um reencontro. Ele aparece no final dos três primeiros planos de Vita Nova e depois, em certa medida, desaparece como título, mas não como ideia. No primeiro plano, o reencontro aparece depois de um capítulo dedicado ao ócio, nesse momento relacionado ao conceito de “neutro” e ao Tao: V O ócio [O Neutro? O Tas/Tao] {O não fazer nada filosófico} Epílogo: o Reencontro (BARTHES, 2002b, p. 1008)

No segundo plano, ele aparece depois do sétimo capítulo, dedicado novamente ao neutro, em que ele acrescenta um dado importante (a lápis): a ausência da “Vida nova” (VN). VII O ócio puro: o “não fazer nada filosófico”. (O Neutro, o Tao/ o Tas. - Os Amigos (Fantasia de só se ocupar deles) - O Retorno aos lugares anteriores. Continuar. Nada de VN Epílogo: o Reencontro (BARTHES, 2002b, p. 1010) Revista TB, Rio de Janeiro, 198: 41/54, jul.-set., 2014

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No terceiro plano, esse reencontro novamente está situado ao lado do ócio, porém, agora é acrescentada a presença da “criança marroquina”, e a “ausência de mestre”. É preciso destacar outro acréscimo importante no manuscrito, um ponto (ou vários) de interrogação: ? – A ausência de mestre Poema Zenzin

| A criança marroquina do

| O ócio puro O Reencontro ? Epílogo (BARTHES, 2002b, p. 1001-1012)

Nos planos seguintes, não há alusão a qualquer reencontro, mas há ainda a referência à criança marroquina e ao ócio no quarto e no quinto planos e, no plano final, a ligação da criança marroquina com o Tas/Tao, aludido nos primeiros planos. Para entender o que seria esse reencontro, então, seria necessário relacioná-lo a outros “temas” que aparecem ligados a ele no manuscrito: o Tao, o Neutro, a criança marroquina e o ócio. Não cabe aqui desenvolver qualquer reflexão sobre a filosofia espiritual taoísta, tema extraordinariamente complexo15, mas sim sobre o que Barthes entendia como Tao. A partir de uma leitura de Jean Grenier, ele define o Tao no início de seu curso A preparação do romance como: c) Método = caminho (Grenier, Tao = Caminho. O Tao é ao mesmo tempo o caminho e o fim do percurso, o método e a sua realização. Assim que encontramos o caminho, já o percorremos). Tao: o importante é o caminho, o andar, não o que se encontra no fim à a busca da Fantasia já é uma narrativa à “Não é necessário esperar para empreender, nem triunfar para perseverar.” [...]. (BARTHES, 2005, p. 42)

Segundo a analogia com que Roland Barthes entende o Tao, o reencontro do fim do seu livro seria o encontro de um caminho. Resta entender que caminho é esse. Como já foi possível observar no caso de Pascal, Barthes não necessariamente assumia o misticismo com o qual dialogava. Mais do que uma verdade a pregar, as suas referências

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teológicas são usadas como imagens para conceber a criação literária. Nesse sentido, suponho que a palavra “caminho” usada aqui se refere ao encontro do caminho da literatura, da mesma forma que o narrador de Em busca do tempo perdido anuncia, no final do seu romance, o início da escrita de um romance (o mesmo romance que estamos lendo). Porém, apesar de Barthes não assumir nenhuma das reflexões místicas às quais ele aludia, é necessário se perguntar por que ele usava essas referências. Se explorarmos a noção de “Neutro”, anunciada no seu curso anterior (1977-1978), veremos que talvez seja possível ligar esse reencontro final a uma experiência, de fato, mística. Em seu curso, Barthes define “o Neutro como aquilo que burla o paradigma, ou melhor, chamo de Neutro tudo o que burla o paradigma. Pois não defino uma palavra; dou nome a uma coisa: reúno sob um nome, que aqui é o Neutro”. Mais adiante, ele afirma que toda ação (por exemplo, toda a ação contida em um romance) é fruto de uma oposição: “o sentido se assenta no conflito (escolha de um termo contra o outro), e todo um conflito é gerador de sentido” (BARTHES, 2003, p. 16-17). O neutro, fundado na não oposição, ou seja, em “burlar o paradigma”, pode ser visto como a ausência da ação, ou a recusa do sentido. Chegamos então a uma contradição: como, no final do seu projeto de livro, Barthes encontraria o caminho do romance e, ao mesmo tempo, recusaria a ação? A ideia de reescrever Em busca do tempo perdido não teria mais cabimento: ao contrário do narrador do seu modelo, ele não empreenderia ação alguma, entraria no domínio do “ócio puro” ou do “não fazer nada”, o que é reforçado pelo fato de ele não ter escrito, como se sabe, romance algum. Voltando à “Vida nova” de Barthes e ao caminho que ele reencontra no final dos seus planos, podemos, neste momento, apontá-lo como um caminho não de agressão ao sentido, mas de “suspensão do sentido”. É difícil aqui não ver uma relação com a filosofia do Tao, que tem como fundamento a procura do vazio, a suspensão dos desejos e, inclusive, da ação. Ao chegar a esse caminho de esvaziamento (o Tao), entra-se em um estado de percepção particular, em que é possível observar o vazio de todas as coisas e o elo vital (o amor) que as une. Nesse sentido, o esvaziamento é também a percepção da união total das coisas, a vivência de um “máximo amor possível”.16 Assim, toda a ideia do projeto de romance de Barthes era poder reviver uma experiência que ele já tinha vivido em sua própria vida Revista TB, Rio de Janeiro, 198: 41/54, jul.-set., 2014

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pessoal, mas também na sua vivência com a literatura. Escritor e crítico, o reencontro previsto era um reencontro com aqueles que ele tinha amado, mas também com os romances que o tinham levado a amar. A experiência mística de Roland Barthes, de esvaziamento dos sentidos e de percepção da união silenciosa entre as coisas, é também a experiência de união da vida e da literatura. A referência à criança marroquina, presente também neste reencontro final, é um símbolo dessa união. Ela corresponde ao mesmo tempo a uma criança observada por Barthes durante a sua viagem ao Marrocos em 1969, e depois descrita em “Incidentes”, e a um poema de Zenzin Kushu (século XV), citado logo a seguir desse trecho sobre a criança. Barthes une a sua experiência à leitura do poema que, juntas, o levariam a construir uma imagem desse momento do “neutro”, em que, sem fazer nada, suspendendo o sentido, é possível sentir a união entre o olhar do garoto e o crescimento da grama, entre o mundo e a literatura: Um garoto sentado num muro baixo, à beira da estrada para a qual ele não olha – sentado como eternamente, sentado por estar sentado, sem tergiversar: “Sentados tranquilamente, sem fazer nada, A primavera vem e a relva cresce sozinha”. (BARTHES, 2004, p. 45)

Notas 1 A morte de sua mãe, em outubro de 1977. 2 É o caso de um dos romances mais célebres da época: A vida modo de usar, de Georges Perec, de 1978, em que cada capítulo corresponde a um cômodo de um prédio. 3 De fato, qual seria a conclusão desse curso? – A própria obra. Num bom roteiro, o fim material do Curso deveria coincidir com a publicação real da obra cujo encaminhamento e vontade acompanhamos, em nível de projeto. /Infelizmente, no que me concerne, isso está fora de questão: não posso tirar nenhuma Obra de meu chapéu e, com certeza, não aquele Romance cuja Preparação eu quis analisar. (BARTHES, 2005, p. 348)

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4 Os mais importantes seriam “Incidentes” e “Noites de Paris” (BARTHES, 2004) o Diário de luto (BARTHES, 2011). 5 Seria possível tomar vários caminhos a partir desses manuscritos, como o do pensamento sobre a língua, sobre o amor, sobre a teoria romance, que já abordamos em outros artigos (PINO, 2012) (PINO, 2011). 6 Os Pensamentos, de Pascal, é uma coletânea de manuscritos publicados postumamente, classificados em “maços”, com títulos como “Ordem”, “Vaidade”, “Miséria”, “Tédio e qualidades essenciais ao homem” etc. (PASCAL, 1991) 7 Grifos nossos. 8 Toda esta pesquisa foi feita com base nos manuscritos originais e nas obras em francês. No entanto, considerando as edições cuidadosas que existem no mercado brasileiro, optamos aqui por usar as traduções e traduzir os manuscritos. 9 Grifos nossos. 10 Grifos nossos. 11 Mais adiante, nesse trecho, Barthes se refere a outros autores, como Santo Agostinho e Dante. É curioso que ele não tenha citado Pascal, a sua principal referência em relação a esse conceito. 12 Grifos nossos. 13 Grifos nossos. 14 Tal como observado na consulta do termo no Centre National de Ressources Textuelles et Lexicales (CNRTL). Disponível em: . Acesso em: 28 mai. 2012. 15 Em relação a esse propósito, ver, por exemplo, o livro Taoism. The enduring tradition (KIRKLAND, 2005), no qual o autor se refere à dificuldade de estabelecer fontes ou textos originários que possam construir uma base “teológica” para compreender o Taoísmo. Trata-se de uma tradição ligada a diferentes práticas e escolas desde o século quinto. 16 Isso está presente em muitas reflexões do livro base do Tao, o Tao Te Ching, a passagem a seguir é apenas um exemplo: “Tomando-o por guia [o tao], o céu e a terra unem-se e deixam escorrer um doceorvalho que atinge igualmente todas as coisas. Tão logo começa a agir, tem um nome. E tendo um nome, em seu seio os homens podem encontrar a paz. Quando sabem como nele repousar, libertar-se-ão de todo o erro. A relação do Tao com o mundo é como a dos grandes rios e os mares para onde correm todas as águas dos vales.” (TSÉ, s/d, p. 63)

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Revista TB, Rio de Janeiro, 198: 41/54, jul.-set., 2014

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