O Sofrimento Social e a Vergonha

June 7, 2017 | Autor: Eliana Frazão | Categoria: Sociología, Emoções, Sofrimento, Vergonha
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Artigo de Revisão Bibliográfica

O Sofrimento Social e a Vergonha

– Um foco na análise das emoções nos artigos: Embarrassment and Social Organization (1956) de Erving Goffman e, Living inferiority (2004) de Charlesworth, Gilfillan & Wilkinson

Eliana Filipa Frazão Salgueiro 2015

O debate em torno da questão do sofrimento não é novo nem de agora, todavia, este tem ganho novos contornos ao longo do tempo. Existe uma grande dificuldade na definição deste conceito, uma vez que o mesmo pode surgir de distintas formas e ser prespetivando de modos diferentes. Ainda que o sofrimento possa estar ligado a elementos de dor física, a maioria dos autores enfatiza que o mesmo está presente nos «sentimentos de isolamento social, de perda, de sentimentos aliados à depressão, ansiedade, culpa, humilhação e stress» (Werlang & Mendes, 2013). Geralmente as pessoas sofrem quando há estados de privação material, com a perpetuação da injustiça social e com a perda da liberdade em todas as suas formas e expressões. Assim, podemos dizer que enquanto a dor está associada a uma sensação fisiológica, o sofrimento por sua vez assemelha-se a uma espécie de resposta psicológica subjetiva à dor. O sofrimento social é um «sofrimento que se instala/esconde nas zonas de precariedade, nas zonas sociais de fragilidade e cuja ação implica na perda ou possibilidade de perda dos objetos sociais: saúde, trabalho, desejos, sonhos, vínculos sociais, ou seja, o todo da vida composto pelo concreto e pelo subjetivo que permite o viver» (Werlang & Mendes, 2013). O sofrimento revela-se como um fato especificamente social: a obra de Kleinman, Das e Lock (1997) dedicada à questão do sofrimento social inaugura a linha de pensamento segundo a qual o mal-estar não pode ser observado e explicado independentemente das dinâmicas sociais e dos interesses políticos e económicos que o constroem, reconhecem e nomeiam. As interpretações do sofrimento apelam a uma consciência da história do discurso que as elabora, cujo contexto é sempre o das relações de poder locais. (Pussetti & Brazzabeni, 2011) Segundo esta perspetiva, o sofrimento social resulta de «uma violência cometida pela própria estrutura social e não por um indivíduo ou grupo que dela faz parte: o conceito refere-se aos efeitos nocivos das relações desiguais de poder que caracterizam a organização social» (Pussetti & Brazzabeni, 2011). Alude, ao mesmo tempo, a uma série de problemas individuais cuja origem e consequência têm as suas raízes nas fraturas devastantes que as forças sociais podem exercitar sobre a experiência humana. O mal-estar social deriva, portanto, daquilo que o poder político, económico e institucional faz às pessoas e, reciprocamente, de como tais formas de poder podem

influenciar as respostas aos problemas sociais. O sofrimento social é o resultado, por outras palavras, da limitação da capacidade de ação dos sujeitos e é através da análise das biografias dos sujeitos que podemos compreender o impacte da violência estrutural no âmbito da experiência quotidiana. A realidade social evolui e, com ela, as expressões das desigualdades e contradições que vão assumindo contornos dificeis de delinear. O sofrimento vai ganhando forma: a forma das estruturas sociais violentas, geradoras da precariedade em todas as suas dimensões. A violência estrutural exercida pelos mercados financeiros, sob a forma de desemprego, de precarização, tem sua a contrapartida, em maior ou menor prazo, sob a forma de suicídios, delinquência, crimes, toxicodependência, atos violentos, entre outros. (Werlang & Mendes, 2013) Castel (1998) procurou compreender a questão do sofrimento na estreita relação com os vínculos sociais, a integração social ou, ainda, a partir dos processos de dissociação, de desfiliação, da "anomia" dos grupos sociais. Nesta discussão encontra-se presente a questão da ausência de atividade produtiva e a coesão social. A falta do trabalho gera isolamento e esse fato, por sua vez, poderá produzir processos de exclusão, de desfiliação. Para Castel, a vulnerabilidade social traria consequentemente a precariedade do trabalho e, ao mesmo tempo, a ausência dos suportes de proximidade, dos suportes sociais geradores de confiança. Desta forma, a questão social seria caracterizada por uma inquietação quanto à capacidade de manutenção da coesão social. A ameaça da ruptura seria apresentada por grupos cuja existência poderia abalar a coesão da sociedade. (Werlang & Mendes, 2013) Com as novas exigências do trabalho surge a desestabilização dos trabalhadores estáveis, a instalação da precariedade do trabalho, o desemprego e o emprego precário. Não existe mais uma relação de pertença e, paralelamente, surge a questão da “inutilidade social” de boa parte da população. Este fator afeta a identidade de todos aqueles que a tiveram forjada sobre a questão do trabalho, gerando sofrimento e, ainda, a possibilidade de autodestruição. Enfim, para o autor, haveria produção de vulnerabilidades sociais cuja gênese dar-se-ia a partir da perda do lugar de trabalhador de alguns grupos sociais. (Werlang & Mendes, 2013)

Por fim, a zona de desfiliação, na qual os indivíduos não apenas são atingidos pelo desemprego, mas também prla perda de relações anteriormente estabelecidas, que dizem respeito ao bairro, à vizinhança, à família. São relações que se vão deteriorando com o tempo, produzindo insegurança e sofrimento. Ainda no processo de desfiliação pode haver zonas de cristalização, ou seja «espaços específicos em que se cristalizam vários problemas cuja origem encontra-se vinculada ao funcionamento da sociedade salarial» (Werlang & Mendes, 2013). Nesses espaços podem ser encontradas «taxas elevadas de desemprego, instalação da precariedade, ruptura da solidariedade de classes e falência dos modos de transmissão familiar, escolar e cultural e ausência de perspectivas de projeto para controlar o futuro» (Werlang & Mendes, 2013)  Tornou-se consensual, atualmente, o fato de que somos obrigados, durante toda a nossa vida, a responder às exigências que o ambiente nos impõe (entendamos a palavra "ambiente" não num sentido estritamente mecanicista, mas como todo o conjunto de representações e simbologias histórica e socialmente construídas que compõem a significação dos estímulos ambientais). Essa relação, como sublinha Sartre, não pode ser compreendida se referimo-nos apenas a um estímulo e uma resposta, como enuncia o comportamentalismo; devemos, também, considerar a finalidade à qual se direciona tal resposta, visto que a temporalidade da consciência remete-nos tanto ao passado como ao futuro (Moutinho, 1995, p. 71, cit. por Dittrich, 1998). Em cada pequeno ato, portanto, por banal que possa parecer, exercemos algo que Sartre (1946/1987, p.7, cit. por Dittrich, 1998) denominou, de modo genérico, como "responsabilidade". Tal conceito sugere que tomar decisões implica sempre escolhermonos como seres humanos de modo prático e, simultaneamente, implica também o dever de responder por essas decisões, seja formalmente ou através de uma "instância" da nossa subjetividade. Tomar decisões causa conflito, uma vez que, de fato, temos que descartar algumas das possibilidades plausíveis em cada situação e decidirmo-nos por apenas uma delas - conforme Sartre (1946/1987, p. 12 cit. por Dittrich, 1998), temos sempre um campo de "possíveis", dentro do qual efetuam-se nossas escolhas. Posteriormente, podemos chegar à conclusão de que uma determinada decisão foi ou não acertada;

podemos tomar uma nova decisão para corrigir aquela que julgamos equivocada; podemos nos negar a decidir, o que já implica, por si só, uma decisão. Vivemos, afinal, a presença compulsória da decisão, e, portanto, da dúvida, da angústia e do sofrimento (Sartre, 1946/1987, p. 7 cit. por Dittrich, 1998), com todos os seus possíveis desdobramentos psicológicos. Constatar a presença do sofrimento nas nossas próprias vidas é assaz simples, assim como podemos percebê-lo, frequentemente, na vida de outras pessoas. Apesar disso, na maioria das vezes, tal sofrimento não é percebido como patologia; isto somente acontecerá de acordo com certos critérios estabelecidos "cientificamente". Cabe ao médico descobrir as marcas indubitáveis da verdade. A pessoa perdeu o apetite e o sono, seu olhar está parado, entrega-se a longos momentos de tristeza? «E porque sua razão já se perverteu (...) Os poderes de decisão são entregues ao juízo médico: apenas ele nos introduz no mundo da loucura. Apenas ele permite que se distingam o normal do insano, o criminoso do alienado irresponsável». (Foucault, 1995, p. 126-7 cit. por Dittrich, 1998) Com efeito, os termos segundo os quais se procura dar uma definição da loucura são, explícita ou implicitamente, sempre relacionais. Isto é, «designa-se louco o indivíduo cuja maneira de ser é relativa a uma outra maneira de ser. E esta não é uma maneira de ser qualquer, mas a maneira normal de ser. Portanto, será sempre em relação a uma ordem de "normalidade", "racionalidade" ou "saúde" que a loucura é concebida nos quadros da "anormalidade", "irracionalidade" ou "doença"» (Frayze-Pereira, 1985, p. 20 cit. por Dittrich, 1998) Especialmente os profissionais de saúde, enquanto estudiosos da dinâmica social que leva uma pessoa ao sofrimento mental, não podem abster-se do seu papel fundamental de efetivação de práticas inovadoras, condizentes com a ontologia de tal sofrimento. De certo, não seria possível expor, no momento, todas as alternativas viáveis para o auxílio àqueles que sofrem, nem detalhar os diversos passos para a concretização de tais alternativas (até mesmo porque não existem "fórmulas" prontas), contudo, torna-se relevante afirmar que esta efetivação deve ser, inequivocamente, fruto de um trabalho conjunto. (Dittrich, 1998)

Enquanto o sofrimento mental for visto como uma patologia, o isolamento, a segregação e a institucionalização encontrarão uma base sólida para a reprodução das suas práticas. Os profissionais de saúde devem, por todos os meios disponíveis, demonstrar que o sofrimento é, inexoravelmente, um constituinte da existência humana. (Dittrich, 1998) «O melhor "remédio" contra o sofrimento mental é, e sempre será, o contato humano» (Dittrich, 1998). Como sabemos, tal contato tem sido desestimulado na nossa sociedade. Começando no sistema educacional que está apenas voltado para a eficiência da mão-de-obra, disseminando a passividade, o individualismo e competição entre os alunos. Valores como a cooperação, a criatividade e o respeito à alteridade são substituídos por um "currículo oculto" deveras eficiente, que, naturalmente, não consta dos programas de ensino ou unidades curriculares. O trabalho, por sua vez, é realizado de «forma fragmentada, mecânica e impessoal, gerando insatisfação e angústia, além de uma completa ausência de orgulho ou identificação com o produto final» (Dittrich, 1998) . O «entretenimento eletrónico estimula o individualismo e o isolamento (além, obviamente, do consumismo), em detrimento do lazer social, da vida compartilhada» (Dittrich, 1998). Conseguiremos eliminar estes problemas? Infelizmente, seria ingenuidade fazer tal afirmação. Muitos de nós, por certo, sequer concordam que tais práticas se constituam como "problemas"! Porém, poucos de nós poderiam negar o poder da socialização e da vida em comum na prevenção e alívio do sofrimento mental. (Dittrich, 1998) «O sofrimento mental deve encontrar a sua solução no mesmo meio em que foi gerado» (Dittrich, 1998). A institucionalização, como vimos, impossibilita a relação daquele que sofre com o seu mundo social. Seria ingénuo acreditar que, isolando o indivíduo das condições que o fazem sofrer, ter-se-ia uma "cura". Fugir do problema, por certo, não o eliminará. (Dittrich, 1998). A solução passa por abrir ao sujeito um leque de possibilidades, visando o fim do sofrimento (certamente, isto será efetivado por meio de diferentes abordagens e técnicas). Tal tarefa pressupõe a liberdade do indivíduo, para que as técnicas psicoterapêuticas possam encontrar extensão e confirmação no desenvolvimento de seu quotidiano. 

No artigo Embarrassment and Social Organization (1956), Erving Goffman procura analisar, na ótica do interacionismo simbólico e utilizando uma terminologia dramatúrgica, a questão da vergonha e de todas as táticas que os atores usam para evitar criar um incidente, procurando que a imagem social projetada na interação social não seja posta em causa pelos outros intervenientes. Assim sendo, parto do pressuposto que a análise sobre as emoções, tal como a vergonha, é essencial para uma melhor compreensão das relações sociais, neste caso as relações de dominação e subordinação, e ainda da questão do sofrimento, pois são as estruturas sociais que se inscrevem nos corpos e são, de igual modo, uma espécie de inteligência automática que orienta o organismo na direção da melhor opção em busca da sobrevivência do organismo (Damásio, 2000). Para Goffman (1956), o embaraço é sempre uma possibilidade em todas as interações face-a-face, ocorrendo quando a imagem que um indivíduo projeta de si é posta em causa. Assim sendo, a questão essencial é a forma como os outros nos percecionam nos vários encontros sociais que temos ao longo da nossa vida. E todos os encontros são fontes potenciais de embaraço para os indivíduos, onde perdem a sua compostura face aos demais, quebrando a imagem que tinham projetado de si. E isto origina o que o autor apelida de incidente no encontro social, sendo que os participantes têm aqui algumas possibilidades: primeiro, podem fingir que nada observaram; segundo, podem tentar, após o momento do incidente, reestabelecer a dinâmica perdida; terceiro, quando a situação deixa de ser passível de remediar, a resposta pode ser ignorar o indivíduo que causou o incidente e abandoná-lo. E esta situação, o aparecer embaraçado, envergonhado, é visto como uma falha, até mesmo uma falta de caráter, que remete para um estatuto de inferioridade, de fraqueza. Ou seja, um claro desvio da norma. E é por isso que os indivíduos esforçamse, de todas as maneiras possíveis, para esconder todos os sinais de embaraço: seja o sorriso nervoso ou os tiques com as mãos. Claro que em certos casos estas táticas não resultam e os outros intervenientes reparam no embaraço do indivíduo. Mas a questão é que os outros intervenientes não possuem nenhum interesse em provocar um incidente, usando, desta forma, o tato, para que o indivíduo não note que estes repararam na sua perda de compostura, ou, caso

tenha notado, para que possa rapidamente ultrapassar a situação e regressar ao encontro social. O problema é quando isto não resulta, quando os outros indivíduos são incapazes de fingir que não repararam no sentimento de vergonha do indivíduo, o que provoca uma situação insustentável no encontro social. O indivíduo sabe que a sua imagem projetada foi posta em causa; os restantes indivíduos foram incapazes de evitar esta perda de face. Após isto, é muito difícil para o indivíduo recompor-se e, em muitos casos, o que se constata é que o indivíduo quebra completamente, sabe que não vale a pena continuar a tentar manter a situação, e aqui surgem as lágrimas, os ataques de fúria, entre outros. Uma questão importante a reter é que o momento do incidente é socialmente enformado. Nem todas as sociedades possuem os mesmos valores sobre que situação é socialmente inaceitável e passível de cobrir os indivíduos de vergonha. De igual modo, a sociedade, pelo menos a sociedade americana dos anos 1950 que Goffman descreve, valoriza o que autor apelida de sang-froid, uma capacidade de autocontrolo. Uma qualidade social que não é de descurar nos encontros sociais, já que passa por conseguir representar o seu papel sem cair no embaraço nem embaraçar ninguém. Contudo, os indivíduos sabem melhor do que ninguém que existem certas situações, pessoas ou lugares, que têm a capacidade de os colocar numa situação desconfortável. Por isso mesmo, procura-se sempre estabelecer encontros sociais que estejam livres de provocar embaraços. O problema é quando os indivíduos começam a evitar situações essenciais para a vida social, nas quais não se sentem confortáveis. O preço disto é pesado. Em muitos casos significa a perda da vida social. Assim sendo, Goffman afirma que a vergonha deriva de expetativas nãocumpridas, quando um indivíduo, devido a um conjunto de fatores, não consegue manter a imagem social que projetou, quando não consegue realizar o comportamento expectável para o tipo de imagem que deseja passar aos outros. E realmente é isto que está na base de uma interação social bem-sucedida: a capacidade de um indivíduo conseguir passar uma imagem coerente de si e, acima de tudo, que vá de encontro à sua imagem projetada.

Outra questão igualmente importante em todos os encontros sociais: o indivíduo deve aceitar as imagens que os outros projetam deles próprios. Quer dizer, numa interação social existem duas questões-chave: primeiro, as imagens sociais são projetadas pelos participantes; segundo, através dos seus comportamentos ao longo da interação social, procura-se confirmar tais projeções. O verdadeiro obstáculo surge quando alguma destas imagens projetadas é posta em causa. A interação deixa de poder continuar nos mesmos moldes e necessita de ser reconstruída. Esta situação não deixa de provocar sentimentos de vergonha e sofrimento naquele que teve a sua imagem social posta em causa. Mas o autor é rápido a demonstrar que isto é apenas uma parte da questão: além do indivíduo em causa, aquele (ou aqueles) que colocou em causa a imagem do indivíduo também se deve sentir envergonhado. A razão? Não demonstrou tato. Mais, a vergonha é contagiosa, o que faz com que todos os intervenientes da interação social se sintam embaraçados com a quebra da situação. Existe todo um conjunto de circunstâncias que colocam a imagem do indivíduo em causa. Mas a questão complexifica-se ainda mais, pois Goffman defende que cada indivíduo possui vários papéis na sua vida social, o que pode aumentar a margem para situações embaraçosas. Contudo, esta questão é contornada em parte devido a uma segregação da audiência, isto é, o autor defende que, grosso modo, cada papel corresponde a uma determinada audiência: um comportamento mais informal pode ser perfeitamente normal com amigos íntimos, mas se for aplicado perante o chefe pode muito bem colocar em causa a imagem projetada. Desta forma, os indivíduos podem deitar mão dos seus vários papéis sem receio de sofrer qualquer tipo de descrédito. Outro problema advém do facto de nem sempre ser possível estabelecer uma distinção clara entre estas audiências, o que faz com que papéis específicos para determinadas audiências sejam representados perante audiências erradas, com todas as consequências para o indivíduo. Mas a verdade é que o embaraço é uma parte normal da vida social. Possui mesmo uma importante função social, que é o de manter a estabilidade na organização do sistema social. O preço disto é que os indivíduos, em certos casos, acabam por sacrificar a sua imagem projetada. Isto é, «a estrutura social ganha elasticidade; o indivíduo perde apenas a compostura» (Goffman, 1956: 271).

Para concluir, Goffman tem o cuidado de referir que o sentimento de vergonha não significa um não ajustamento do indivíduo; antes pelo contrário, o facto de se sentir embaraçado é um excelente indicador do seu bom ajustamento. O problema é quando a vergonha começa a afetar toda a vida social do indivíduo, e este começa a fechar-se sobre si mesmo. Por sua vez, o artigo, Living inferiority (2004), de Charlesworth, Gilfillan & Wilkinson, analisa o impacto do sofrimento social, quer na vida social quer ao nível da saúde, em indivíduos que pertencem à classe operária. É uma análise inovadora, que constata que muitos problemas biológicos, como depressões, diferenças na esperança média de vida, etc., podem, em parte, ser explicados a partir da forma como os indivíduos experienciam a vida social e as desigualdades que a estruturam. É um estudo que demonstra os fortes sentimentos de inferioridade pelos quais os membros desta classe social passam no dia-a-dia, o que faz com que muitos acabem por se refugiar no seu espaço privado, com todas as consequências para o ligame social e, de igual modo, para o bem-estar do indivíduo. É interessante analisar estes indivíduos, membros de uma classe vista como dura e profundamente masculinizada, e o grau de sofrimento que experienciam, o quanto sofrem na sua dignidade e o grande impacto que tudo isto tem na forma como se veem a si próprios e se comportam nos espaços públicos. Charlesworth, Gilfillan & Wilkinson (2004) iniciam o artigo com uma estatística sobre a esperança média de vida entre 1992-1996 no Reino Unido: a diferença, para homens de classes profissionais distintas (classes liberais vs trabalhadores não especializados) era de 9,5 anos; para as mulheres a diferença reportava-se a 6,4 anos. Questão que sofreu um aumento de cerca de 5 anos desde a década de 1980. Qual foi o motivo para aumento tão drástico? Mais, quais as razões para uma diferença tão acentuada num país como o Reino Unido? Segundo os autores podemos traçar uma mudança a partir da alteração do paradigma socioeconómico que emergiu nos anos 1980, com a ascensão do neoliberalismo, desindustrialização, privatizações e desemprego em massa. A análise centra-se nos efeitos sociais do desemprego e da desigualdade de rendimentos. E a partir do estudo a operários de Rotherham, cidade britânica muito afetada pela desindustrialização, os autores vão constatar os efeitos nefastos, ao nível das relações sociais, de toda esta insegurança económica.

No fundo, é procurar analisar os efeitos psicossociais e como estes não deixam de moldar questões biológicas, afetadas e iniciadas pela forma como nos vemos a nós mesmo e como pensamos que os outros nos veem. De igual modo, estudos consideram que a qualidade da comunidade de residência, seja para o bem ou para o mal, tem efeitos significativos na saúde. Isto é, certos estudos fazem a correlação entre comunidades com um forte sentimento de coesão social, de afiliação, com melhores índices de saúde. A insegurança económica traz consigo uma ideologia de competição, de todos contra todos, que corrói o tecido social, o sentido de comunidade que existia, e remete para formas de sofrimento social, de maiores índices de violência e problemas de saúde. Como um entrevistado refere, atualmente nestas comunidades, que eram marcadas por uma forte coesão social, todo o ligame social foi destruído, sendo agora marcada por lutas de todos contra todos, onde a qualidade suprema é a posse de dinheiro. No fundo, um mundo de cão onde a simpatia não é uma qualidade, mas sim um sinal de fraqueza. Onde as pessoas andam cada vez mais inseguras, prestes a explodirem com qualquer problema, o que leva este entrevistado a admitir que isto levou-o a isolar-se, a interagir com cada vez menos pessoas. Por outro lado, não existe nada mais nocivo do que o sentimento de nos sentirmos ignorados e desvalorizados. E nada parece ser mais relevante do que a forma como os indivíduos percecionam as diferenças hierárquicas e de status. E quem mais sente estas diferenças, no caso dos estudos levado a cabo pelos autores, mesmo que nada seja dito, são os mais desfavorecidos, os membros da classe operária. No fundo, o sentimento de nos sentirmos inferiores, embaraçados na presença de alguém que percecionamos como superior. Um exemplo é o de um operário que numa departição pública explica os seus problemas em sentar-se ao lado de uma senhora que avalia como sendo de classe média; não que a senhora tivesse dito nada, apenas o indivíduo automaticamente começou a pensar em todas as possibilidades: a senhora a olhá-lo de forma sobranceira, com nojo, etc. E no final da entrevista desabafa que esta sensação acontece em toda a parte, um sentimento de inferioridade social perante aqueles vistos como socialmente dominantes, que o faz querer desaparecer. Assim, como os seres humanos são seres reflexivos, que se avaliam através da forma como pensam que os outros os avaliam, as interações sociais podem ser fonte de

grandes problemas, como o caso acima mencionado, em que os indivíduos se sentem desvalorizados, inferiores, entre outros, com todos os impactos que isto tem para a vida social e para a saúde mental. Uma forma de melhor entender este sentimento de inferioridade social é analisando o sentimento oposto, o de nos sentirmos valorizados e reconhecidos. Aqui os autores recorrem à obra de Pierre Bourdieu, que defende que o capital simbólico é o capital mais raro e, em muitos aspetos, o mais cruel de todos. É o capital que remete para o sentimento de sermos importantes para os outros, de termos uma razão para existir. Remetendo para o trabalho de Durkheim sobre o suicídio, constata-se que aqueles menos propensos ao suicídio são os que melhor integrados se encontram, aqueles mais valorizados e que pertencem a comunidades com uma forte coesão social. Desta forma, podemos considerar que «não existe pior privação, pior carência, que a dos perdedores na luta simbólica por reconhecimento, por acesso a uma existência socialmente reconhecida, em suma, por humanidade» (Bourdieu cit. por Charlesworth, Gilfillan & Wilkinson, 2004: 53). E as mudanças socioeconómicas acima mencionadas levaram a um forte acréscimo de situações em que os membros das classes operárias se sentem avaliados e julgados negativamente. Um dos melhores exemplos ocorre na escola e subsequente entrada no mercado de trabalho. Devido à desindustrialização, o número de empregos para jovens sem qualificações praticamente desapareceu, o que torna cada vez mais essencial o diploma. O problema é que a escola, através de mecanismos de reprodução social, é socialmente seletiva, o que faz com que os jovens das classes operárias, apesar de se manterem no sistema escolar, são remetidos para as franjas menos valorizadas. O que acontece é que após toda uma formação, com muitos sacrifícios, estes jovens saem do sistema de ensino com um diploma, mas um diploma desvalorizado, que em muitos casos para nada serve. E é aqui que a exclusão é mais dura, pois, ao contrário dos seus pais e avós, eles tiveram a sua oportunidade e falharam, não foram capazes de aproveitar os benefícios que a sociedade supostamente oferecia. Este é apenas um exemplo de uma situação em que apesar de nada ser dito, os membros das classes operárias sentem na pele os efeitos da desvalorização social a que estão remetidos em todos os encontros com membros de classes socialmente mais

valorizadas. Sentem-se como não possuindo o valor social necessário, como um repositório de tudo o que é mau e que deve ser evitado. A experiência de se sentirem desvalorizados e desrespeitados não deixa de ser interiorizada e exteriorizada corporalmente em todas as situações sociais. Um entrevistado referia que na presença de indivíduos que considerava serem da classe média, sentia-se tão desvalorizado que dizia que parecia andar a arrastar os pés, não sabendo o que fazer. E isto remete para a hexis corporal, isto é, para a forma como usamos o nosso corpo, de como este demonstra significados, valores, posição social. No fundo, a ordem social durante as interações sociais. Como usamos o corpo, portanto, não deixa de ser um marcador social, efetuando uma clara distinção, da qual não podemos facilmente escapar, já que estamos na presença daquilo que Bourdieu apelida de violência simbólica, ainda mais dura e insidiosa do que outras formas de violência. Tudo isto tem o efeito nefasto de levar a uma retirada do espaço público para o espaço privado, de forma a evitar estas constantes interações sociais em que o self sofre desvalorizações e sentimentos de inferioridade. É uma retirada que remete para uma «autoexclusão de um conjunto de atividades públicas das quais estão estruturalmente excluídos» (Bourdieu cit. por Charlesworth, Gilfillan & Wilkinson, 2004: 58). E este constante sentimento de inferioridade não deixará de provocar, quer uma rutura dos laços de comunidade, já que cada indivíduo fecha-se sobre si mesmo, atomizando-se, quer um agravamento de questões relacionadas com a violência, já que a violência, grosso modo, está associada a um sentimento de desrespeito e humilhação e, por conseguinte, da necessidade de responder a esses sentimentos para não agravar ainda mais o sentimento de inferioridade. Assim, Charlesworth, Gilfillan & Wilkinson (2004) defendem que em sociedades marcadas por grandes desigualdades de rendimentos, as formas de sofrimento social abordadas são mais agudas, potenciando um agravamento de questões como o stress e ansiedade nos indivíduos, com as subsequentes implicações de tudo isto na saúde. Ou seja, esta perspetiva sociopsicológica defende que não devemos centrar unicamente a análise na dimensão biológica dos indivíduos e se quisermos analisar as diferenças ao nível da saúde, temos de levar em conta a dimensão social, a forma como

os indivíduos se percecionam e como percecionam as desigualdades sociais que, em último caso, os afetam. Concluindo, como foi possível analisar a partir dos dois artigos selecionados, a vergonha e o embaraço são sentimentos por muitos encarados como os verdadeiros sentimentos humanos. Isto porque é normal sentirmo-nos inferiores em relação aos outros, e que isso, segundo Goffman, possui mesmo uma clara função social. O problema, contudo, é quando esta insegurança remete para um ataque ao eu social, quando os indivíduos se veem avaliados negativamente pela sociedade, o que leva a uma quebra da autoestima, a um aumento da insegurança, stress, sofrimento, esnte outros, que não deixam de ter um forte impacto na saúde dos mesmos. E este sentimento de estar sempre sob avaliação leva a que se equacione medidas de defesa, de uma autoestima negativa, isto é, um egotismo mais voltado para uma negação das inseguranças e um preocupação apenas consigo mesmo (Wilkinson & Pickett, 2010: 5565). E como referido, a insegurança entranha-se na pele. A um estatuto visto como inferior corresponde sentimentos de auto-desvalorização e falta de confiança, como se as diferenças de status remetessem para um essencialismo biológico. Isto não deixa de originar casos de self fulfilling prophecy, em que os indivíduos acabavam por corresponder à forma como os outros os percecionam, seja positiva ou negativamente. E não existe melhor exemplo do que um estudo na Índia, entre jovens de castas diferentes. Duas investigadoras do Banco Mundial propuseram a um número de rapazes de duas castas, de alto e baixo status, que resolvessem uns puzzles. Numa primeira fase, sem revelar a que casta pertenciam, constatou-se que os rapazes da casta de baixo status tiveram um desempenho ligeiramente superior; num segundo exercício, quando foi pedido para cada um revelar a sua casta, constatou-se que o desempenho da casta de baixo status diminuiu de forma muito significativa (Hoff & Pandey, 2004). Isto remete para uma questão de confiança, que no caso dos despossidentes de capital simbólico se encontra corroída pelas constantes experiências de desvalorização social que acabam por se inscrevernos cérebros e fazer com que se autoexcluam daquilo que pensam que não é para eles e que se autoavaliem sempre como inferiores. Ora, isto leva a uma vida dura e alienante, a um permanente sentimento de insegurança, de estar

no sítio errado, que, como vimos, em último caso não deixará de ter impactos em áreas tão díspares como educação e saúde, por exemplo.

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