O status da Entidade Palestina: notas historiográfico-jurídicas sobre a opinio juris brasileira de 1985 a 1990.

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O status da Entidade Palestina: notas historiográfico-jurídicas sobre a opinio juris brasileira de 1985 a 1990.

Felipe Kern Moreira1

Resumo: O propósito deste artigo é descrever itinerários de posi ções jurídicas brasileiras relativas à Palestina de 1985 a 1990. Analisa o conteúdo dos Pareceres dos Consultores do Itamaraty na qualidade de conteúdos informativos e subsidiários da opinio juris brasileira. Os Pareceres cobrem desde o status da Organização para a Libertação da Palestina até o entendimento jurídico de Estado in statu nascendi. Indica rupturas e continuidades na constituição dos fundamentos jurídicos do reconhecimento do Estado Palestino o que só viria a ocorrer em 2010. Palavras-Chave: Estado Palestino; Brasil; Reconhecimento de Estado.

I – Introdução:

Em dezembro de 2010, o Ministério de Relações Exteriores brasileiro reconheceu o Estado da Palestina. Com este ato culmina uma série de iniciativas ao longo das últimas décadas que conformam a relação bilateral Brasil-Palestina. As incertezas e controvérsias quanto ao assunto, nos termos da prática da política de relações exteriores brasileira, encontram-se registradas também nos Pareceres Jurídicos do Itamaraty. O reconhecimento de Estado é um dos capítulos mais complexos das teorias jurídicas de direito internacional. Dão-se aí, no plano fático, elementos decisivos da passagem para ambientes políticos organizados segundo padrões heterogeneamente anuídos pelos Estados. Por isso, o Estado persevera como o principal eixo de 1

Doutor (2009) e Mestre (2004) em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília UnB. Bacharel (2002) em Ciências Jurídicas pela Fundação Universidade Federal de Rio Grande - FURG. Professor Adjunto do curso de Relações Internacionais e do Mestrado em Sociedade e Fronteiras da Universidade Federal de Roraima - UFRR. Comunicação no X Congresso Brasileiro de Direito Internacional, no Rio de Janeiro, de 22 a 25 de agosto de 2012. Texto para uso pedagógico, não citar sem a autorização do autor.

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legitimimação na sociedade internacional contemporânea. A prova mais evidente da existência e eficácia de um sistema de direito internacional é o reconhecimento mútuo de capacidades jurídicas entre Estados. Não somente a capacidade de existir mas de se relacionar com outras unidades políticas internacionais autônomas. As proposições jurídicas sobre o reconhecimento de Estado procuram sistematizar padrões recorrentes de um tema resultante de processos políticos em diferentes contextos culturais e históricos. Se a história de cada Estado é única e, mesmo assim, é possível identificar elementos semelhantes e contrastantes com a história de outros Estados; como é possível situar o reconhecimento brasileiro da Palestina nas proposições de Direito Internacional Público? Este artigo busca registrar estas notas históriográfico-jurídicas a partir da opinio juris do Estado brasileiro de 1985 a 1990. O propósito deste artigo é descrever itinerários de posições brasileiras relativas ao processo de reconhecimento do Estado Palestino. As fontes da presente pesquisa, no que diz respeito às posições do Estado brasileiro, são majoritariamente originárias dos Pareceres Jurídicos do Itamaraty, fonte historiográfica notável, organizada e publicada pelo Senado Federal. O itinerário das posturas brasileiras é vencido com atenção aos momentos de impasses e incertezas, como decidir sobre o status jurídico dos representantes da Organização para a Libertação da Palestina em 1988 ou mesmo sobre a proclamação de um Estado independente da Palestina em 1989. A tempo, este estudo dá-se no campo jurídico. A complexidade e a abrangência dos processos políticos que envolvem o Estado Palestino são elementos importantes para compreender o reconhecimento brasileiro mas, se constassem devidamente neste trabalho, o mesmo deixaria de ser uma contribuição com o propósito já expressado.

II - Reconhecimento de Estados e política externa brasileira

Em situações de controvérsia política, o reconhecimento brasileiro de Estados não foi tarefa fácil para o exercício diplomático. Talvez, pelo fato de o Brasil ser um país periférico, é instado, nos instantes de incertezas e mudanças, a dar a entender suas preferências e alinhamentos. Algumas vezes este reconhecimento destaca características da política externa, de grandes veios de atuação. Os reconhecimentos da China, Angola,

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Moçambique, Timor Leste e Palestina, representam episódios significativos na história da política externa brasileira. Comentaristas desta história enfatizam grandemente estes reconhecimentos. Para compreender as relações do Brasil com a Palestina, é necessário olhar para o itinerário histórico deste relacionamento. E não pode ficar de fora deste exercício de memória, o relacionamento brasileiro com Israel. Não obstante o jogo de forças políticas no Oriente Médio não se restrinja ao conflito entre Israel e Palestina, os mais diversos países com interesse nesta controvérsia podem ser observados a partir de preferências, por um dos dois, constatadas nas práticas de política externa. A este respeito, o voto brasileiro que equivalia sionismo a racismo, a aproximação com países árabes iniciada na década de 70, o sedeamento da I Cúpula América do Sul Países Árabes em 2005 em Brasília, e, recentemente, a posição brasileira quanto à Líbia, podem ser lidos como tendências aos países árabes. Amado Cervo caracteriza a relação do Brasil com o países árabes como “presença, retirada e retorno” (2008, 288). Isto porque a aproximação com o países árabes promovida por Geisel, a qual inclusive gerou posturas assertivas em relação à criação do Estado Palestino, não perdurou além do oitenta. “O Brasil retirou-se da região e arrefeceu as relações por causa da pressão estadunidense e da política primeiromundista de Fernando Henrique Cardoso” (2008, 290). Contudo, o Brasil retomou as relações e já não com os mesmos interesses que pontuaram as décadas de setenta e oitenta. Esta inflexão é marcada pelo interesse brasileiro nos processos de pacificação no Oriente Médio, em possibilidades comerciais e na promoção de imagens assertivas no contexto das high politics. Nestes termos que Cervo entende que a I Cúpula ASPA revelou que a política externa brasileira é “hábil em produzir consensos, universalista e tolerante, apologética da convivência das diferenças, valorativa da autodeterminação e da não-ingerência em assuntos internos” (2008, 291). De qualquer forma, as relações diplomáticas, empresariais e culturais do Brasil com os países árabes são elementos que entram nos cálculos do relacionamento do Brasil com Israel e também com os Estados Unidos da América. É perceptível o esforço diplomático em afirmar que os laços com Israel têm-se fortalecido ao longo do anos e

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sem prejuízo das iniciativas de aproximação com o mundo árabe e muçulmano (MRE, Nota nr. 707/2010). O interesse brasileiro no Oriente Médio é motivado pela vontade de postura mais assertiva em relação à segurança internacional, da qual as atenções brasileiras à MINUSTAH é exemplo. Após um período de campanha pelo assento permanente no Conselho de Segurança, a reforma das Nações Unidas ocorreu de forma tímida, sem alterar o sistema de segurança coletiva. Uma série de fatores que não nos cabe explicar aqui – pré-sal, credibilidade internacional, estabilidade econômica frente à crise financeira e também modismos quanto aos emergentes - causaram, recentemente, um tipo de percepção por parte de elites internacionais de um adensamento de poder por parte do Brasil, expressado - até vulgarmente - na expressão global player. Esta percepção gerou oportunidades no sistema internacional. Um exemplo é o interesse norueguês numa parceria ideológica-executiva em relação à segurança internacional, dado que o Brasil desenvolve um conceito de plurilateralismo próprio (MARTHOZ, 2010, 09). Contudo, o posicionamento brasileiro quanto ao Oriente Médio e, particularmante, com países árabes, não parece ser casuístico ou circunstancial. É possível identificar na história da política externa brasileira consistências políticas e jurídicas. O próximo tópico encarrega-se de responder por estas.

III - Opinio Juris brasileira e o reconhecimento do Estado Palestino

A expressão opinio iuris sive necessitatis é utilizada, no âmbito do Direito Internacional, para caracterizar o elemento subjetivo do costume, a consciência da obrigação de determinada conduta. Quoq Dihn, Pellet e Daillier indicam tratar-se de uma invenção da doutrina do século XIX, a qual se torna difícil muitas vezes isolar dos próprios comportamentos dos Estados, o que leva juízes a uma “telescopagem” das demonstrações de elementos materiais e psicológicos (2003, 337-341). Matéria já tratada pelos mais brilhantes juristas, parece não ser necessário adentrar nessa dogmática. Basta registrar que as provas materiais do costume são manifestações da personalidade do Estado: discursos diplomáticos e presidenciais, declarações oficiais.

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Os Pareceres Jurídicos do Itamaraty, por si só, talvez não constituam opinio juris, muito embora Browlie mencione pareceres de consultores jurídicos oficiais como fontes materiais do costume (1997, 17). Em conjunto com os atos de Estado estruturam fundamentos valorativos da postura brasileira na sociedade internacional. Existe uma explicação breve e eficiente de Ulfrid Neumann sobre a Teoria da Argumentação Jurídica de Robert Alexy. O conceito central da teoria da argumentação jurídica, é que o argumento é o átomo que junto a outros átomos formam moléculas complexas (argumentações). A partir da análise do fundamento de decisões de direito é possível uma reconstrução da argumentação em termos de quais fundamentos são relevantes e quais são irrelevantes. Por isso, pode a Teoria da Argumentação Jurídica ser compreendida como uma disciplina analítico-descritiva (NEUMANN, 2008, 235236). Estes termos de Neumann servem de referência ao tipo de exercício realizado com os Pareceres Jurídicos do Itamaraty. Ainda mais, tratando-se de estruturas argumentativas que informam o posicionamento brasileiro e, por isso, argumentos de opinio juris. Os Pareceres analisados dizem respeito à estruturação do convencimento jurídico brasileiro em matéria de Reconhecimento de Estado. O período proposto (19851990) foi escolhido com base na Declaração de Independência feita pelo Conselho Nacional Palestino em Argel em 1988, o que torna o período em questão particularmente

decisivo

para

a

formação

de

convencimentos

jurídicos

internacionalistas. O primeiro Parecer é de Haroldo Valadão, de 05 de junho de 1961, sobre o reconhecimento tácito de Estado ou Governo e estabelecimento tácito de relações diplomáticas. O pensamento que pontua este Parecer reflete tanto compromissos internacionais brasileiros – a Convenção sobre Direitos e Deveres dos Estados, de Montevidéo, de 1933 - como entendimentos doutrinários de Verdross, Sereni, e Accioly. Este pensamento pode ser sintetizado nos seguintes termos: “O reconhecimento dum Estado é a instituição com o mesmo, de relações oficiais. (...) Mas pode haver reconhecimento, particularmente quando tácito, sem estabelecimento de relações diplomáticas no sentido preciso e pleno, com a troca de agentes diplomáticos, oficialmente acreditados. O que não se

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compreende é a recíproca: o estabelecimento de relações diplomáticas sem o reconhecimento.” (VALADÃO, 1961, 49-50) Deste Parecer, ressalta-se que o Reconhecimento de Estado é uma matéria intimamente relacionada com o direito diplomático. O reconhecimento pode ser tácito mas as relações diplomáticas exigem consentimento mútuo expresso, dado o conjunto de formalidades (agrément, listas, credenciais, etc). Por sinal, o texto final da Convenção de Viena sobre relações diplomáticas acabara de ser adotado o que confere a este Parecer a característica de firmar posições pioneiras. A propósito, Valadão observa que a Convenção de Havana de 1928 permite o estabelecimento de cônsules com o consentimento expresso ou tácito (1961, 50). A forma como este primeiro Parecer busca compreendee reconhecimento de Estado (‘instituição de relações oficiais’), possui consistência com a história particular do reconhecimento do Estado Palestino pelo Brasil sob a ótica de um gradiente histórico de representações políticas que não possuiam status jurídico consensual de sujeito de direito internacional, i.e., Autoridade Palestina. Antes de reconhecer o Estado Palestino, o Brasil estabeleceu relações formais com a OLP e com a Delegação da Autoridade Palestina, chegando inclusive a atribuir privilégios diplomáticos a seus representantes como se verá nos Pareceres posteriores. Dois anos depois, a matéria a ser submetida ao Consultor Jurídico do Itamaraty, fora a concessão de vistos a países não reconhecidos de jure pelo Brasil, à época: República Democrática Alemã, República Popular da China, República Popular da Mongólia, República Democrática do Vietnã e República Popular Democrática da Coréia. O ora diretor do Departamento de Imigração sugeriu que fosse dado tratamento normal para nacionais de outros países nos termos de vistos diplomáticos ou vistos em passaportes comuns. Já o Secretário-Geral Adjunto para Assuntos da Europa Oriental e Ásia (que submeteu a matéria a Parecer) suscitou a dúvida de a concessão de visto diplomático ou oficial poder ou não acarretar o reconhecimento tácito pelo Brasil. Haroldo Valadão menteve o que denominou ‘tradição’, de que “a concessão de visto diplomático não deixa de significar contacto diplomático.” (VALADÃO, 1964, 175). O reconhecimento do governo da República Popular da China pelo governo brasileiro é a matéria do próximo Parecer a ser analisado, assinado por Augusto de

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Rezende Rocha, em 09 de setembro de 1961. Não se trata de opinio juris sobre reconhecer ou não, tendo que esta é uma decisão política. E é o caráter político que merece o resgate de alguns dados históricos que situam o reconhecimento da RPC como um dos atos unilaterais mais famigerados da história da política externa brasileira. O reconhecimento da República Popular da China está no contexto dos acontecimentos que levaram o Brasil ao regime militar de ’64 a ‘85. Na realidade, aqui, conforme se verá adiante, ocorre Reconhecimento de Governo já que o Brasil Reconheceu a República da China em abril de 1913, conforme trecho do Relatório publicado no “Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público (Período 1899-1918)” (TRINDADE, 1986, 175). Em agosto de 1961, o vice-presidente João Goulart visita oficialmente Beijing e procura estreitar relações com a PRC no âmbito da política externa independente. O estudo de Letícia Pinheiro sobre as relações diplomáticas com a República Popular da China registra que João Goulart declarou à imprensa que reconheceria a RPC na XVI Assembleia Geral da ONU. A ONU reconheceria a China na votação da XXVI Assembleia Geral em 1971 e “o Brasil deixou de copatrocinar a proposta norte-americana que obstaculizava a votação do ingresso da RPC, muito embora tenha votado junto com a delegação dos Estados Unidos” (PINHEIRO, 1993, 253-254). O governo brasileiro reconheceu o Governo da República Popular da China como governo do Estado chinês em 15 de agosto de 1974. Este reconhecimento trata-se de reconhecimento de governo, já que o reconhecimento do Estado já estava constituído. Saraiva Guerreiro, submete a Parecer, dúvidas acerca das consequências jurídicas em termos de propriedades do Estado e dos agentes. O parecer parte do pressuposto que o ato de reconhecimento é político assim como foram os atos procrastinatórios do Reconhecimento (1971, 126-127). Rememora que desde 1950 juristas da ONU já assinalavam que a RPC respondia mais cabalmente aos requisitos necessários para melhor representar o Estado chinês (1971, 127). Com base em Verdross, recita que o efeito do reconhecimento pela ONU indica que trata-se de um Estado no sentido do DIP2. E com Brierly, “se um Estado ou um governo existem 2

De fato, Aldred Verdross entende que o registro de um Estado na ONU efetiva seu reconhecimento por cada um dos membros, que antes ainda não O tinham reconhecido, porque com o registro vêm a expressão que trata-se de um Estado no sentido do Direito

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efetivamente para efeitos de Direito Internacional a sua existência será sempre de jure e não interessa a este direito averiguar como é que eles nasceram.” (1971, 127). No campo da prática de atos de política externa, a incerteza que pairava dizia respeito aos atos internacionais - em particular um Acordo Comercial, celebrado com a China Nacionalista - bem como à destinação das propriedades da Missão Diplomática. O Parecer recomendou: “apressar-se a denunciar o Acordo comercal vigente (ouve mudanças nas circunstâncias políticas), há de fazê-lo para que não se levantem objeções ao seu reconhecimento constitutivo e possa ele adquirir plena eficácia e contornos definitivos. Se consentir na transferência das propriedades do governo da China Nacionalista para pleno uso e posse dos agentes do governo Popular da China é porque estará dando a seu reconhecimento constitutivo as duras consequências materiais e morais que lhe são necessariamente inerentes.” (ROCHA, 1971, 130) Em contraste com o reconhecimento da RPC, o reconhecimento do Estado Palestino parece ir na via oposta da regra geral, mencionada por Rezende Rocha, do reconhecimento de jure que segue-se ao de facto (1971, 127). O Brasil reconhecerá o Estado Palestino, mesmo considerando que de facto, o domínio territorial de Jerusalém, Faixa de Gaza, Colinas de Golã e Cisjordânia não é palestino. O reconhecimento chinês foi considerado declarativo e em vias de se tornar constitutivo. Já o reconhecimento do Estado palestino é declarativo mas alguns dos efeitos constitutivos já estavam em curso, dadas as prerrogativas reconhecidas pelo Brasil à Autoridade Palestina, como se verá adiante. Uma característica que aproxima os dois casos é a força política do reconhecimento, os efeitos colaterais no sistema de parcerias e cooperação internacional. No caso da China, o Brasil reconheceu internamente questão já consensual na ONU, algo que já estava suficientemente despolitizado ou suficientemente legitimado na esfera política. No caso do Estado Palestino persiste grande politização do tema, muito embora exista um fundamento argumentativo legítimo na iliceidade das áreas ocupadas na guerra dos seis dias em 1967.

Internacional (VERDROSS, 1959, 186). Verdross utiliza a palavra “Aufnahme” que possui uma significação corrente de registro. A tradução oficial da Carta da ONU para o português, fala em admissão.

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Em 1987, Antônio Augusto Cançado Trindade formula “curto estudo” sobre as Posições do Brasil em Matéria de Reconhecimento de Governo. E, nos anos posteriores, este Consultor Jurídico formularia, até 1990, cinco Pareceres sobre aspectos graduais da questão da Palestina: desde a situação da representação da Organização para a Libertação da Palestina no Brasil (1988), perpassando o estabelecimento de um governo provisório palestino no exílio (1988), a Proclamação do Estado Independente da Palestina e a questão da representação no Brasil (1989), elementos informativos sobre a formação do Estado da Palestina (1989) e, até, uma apreciação dos argumentos de Israel sobre a aplicação no caso palestino dos critérios para a caracterização do Estado no Direito Internacional (1990). Estes Pareceres formam a espinha dorsal da estrutura argumentativa dos convencimentos jurídicos acerca do reconhecimento da Delegação da Palestina e do Estado da Palestina in statu nascendi. Em particular o parecer sobre “Posições do Brasil em Matéria de Reconhecimento de Governo”, de dezembro de 1987, é um marco no registro da opinio juris brasileira, muito embora não se detenha sobre o caso da entidade palestina. Neste, Cançado Trindade procede um “curto estudo” tentando traçar direcionamentos. Conclui que o Brasil historicamente primou pela avaliação da situação interna do país. Relembra também que em 1930 surge uma denominada doutrina Estrada (atribuída ao Chanceler Mexicano à época e autor do entendimento) que: “pretendeu que se substituísse o ato do reconhecimento pela simples manutenção, ou retirada, de agentes diplomáticos (ante a mudança de governo), - o que, no entanto, não impedia que se interpretasse a medida como reconhecimento tácito, ou não, do novo governo.” (TRINDADE, 2004, 428)

O Brasil não se balizou pela doutrina Estrada. Cançado Trindade registra a oposição de Hildebrando Accioly e também a firme posição em meados dos ’70, descrita num telegrama do Itamaraty à Embaixada brasileira em Washington, expressando que “o Brasil não adota a Doutrina Estrada; exige que o novo Governo exerca controle efetivo sobre o país e prometa cumprir as obrigações internacionais do Estado.” (TRINDADE, 2004, 429). O resultado do estudo é que o Brasil tem sido avesso aos excessos de conveniência política e da doutrina e buscado orientar-se pela

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constatação dos requisitos factuais do ato de reconhecimento do Governo.” (TRINDADE, 2004, 430) O primeiro parecer de um consultor jurídico do Itamaraty sobre a Palestina é de março de 1988, assinado por Cançado Trindade. Trata-se de um pedido do representante da OLP, Farid Suwwan, que à época situava-se como Primeiro Secretário da Missão da Liga Árabe no Brasil, para que à OLP seja reconhecido o nível de Missão Diplomática autônoma. Cançado Trindade procedeu o levantamento que 48 países (na maioria árabe, islâmicos, socialistas e os de tendência mais militante do movimento não-alinhado), conferiam à OLP status diplomático; em 46 países, a OLP não tinha representação alguma; em oito países atuava mediante escritório de informação com status diplomático. O Brasil, Itália e França conferiam à OLP status diplomático mas sem autonomia de missão e, em todos outros países latino-americanos, a situação da OLP era inferior (TRINDADE, 1988, 455). Quando do Reconhecimento brasileiro do Estado Palestino, em 2010, os números dos reconhecimentos são outros, conforme o divulgado pela Nota do MRE nr. 707/2010, que permite avaliar os dados em perspectiva: “Mais de cem países reconhecem o Estado Palestino. Entre esses, todos os árabes, a grande maioria dos africanos, asiáticos e leste-europeus. Países que mantém relações fluidas com Israel – como Rússia, China, África do Sul e Índia, entre outros – reconhecem o Estado palestino. Todos os parceiros do Brasil no IBAS e no BRICS já reconheceram a Palestina” Segundo Trindade, existiam três “modelos” de tratamento jurídico da OLP: o (i) espanhol adotava o status de observador na ONU (graciosamente a Espanha adotou um caráter especial de privilégios diplomáticos); o (ii) austríaco adotara o status diplomático de observador junto a organismo internacional e; o (iii) boliviano reconhecia somente a inviolabilidade da sede, mala diplomática, matrícula oficial de veículos e inclusão na lista diplomática. Frente a estas tendências, o parecerista sugere que quatro elementos devem balizar o posicionamento brasileiro: (i) o princípio afirmado no Protocolo I de Genebra de 1949 que extende a proteção do direito humanitário aos combatentes dos movimentos de libertação nacional; (ii) a Resolução nr. 3.237 (XXIX) de 1974 que

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confere à OLP o status de observador que permitiu que a OLP observasse diversas conferências; (iii) a Convenção de Viena de 1975 dedica sua parte IV às “delegações de observação” e; (iv) uma brecha dada pelo art. 19 (2) da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de 1961 que prevê uma figura denominada “encarregado dos negócios”, como um administrador da representação, sem funções políticas, sem status de Chefe de Missão, investido de atribuições quase diplomáticas (TRINDADE, 1988, 457-459). Trindade entende que faltam títulos para se admitir statehood à OLP; faltam-lhe os requisitos básicos (1998, 461). Aponta que talvez a solução satisfatória devesse ser buscada antes no nível multilateral do que no bilateral. Relembra em mais de uma passagem, o princípio da efetividade (1998, 455 e 460) numa certa continuidade de convencimentos anteriores. O Reconhecimento trata-se de decisão política, não resolvida por opinio juris, muito embora esta possa indicar constrangimentos e possibilidades: “O reconhecimento do caráter de missão diplomática (autônoma), status diplomático pleno, à representação palestina, seria decorrência natural de futura constituição de um Estado Palestino. Ainda não é chegado o dia para tal (...) as propostas de mudança da atual situação jurídica da representação da OLP no Brasil, hão de ser consideradas com a maior prudência e cautela.” (TRINDADE, 1988, 462). Meses depois, surge Parecer sobre a posição brasileira quanto à eventual estabelecimento de governo provisório Palestino no Exílio. Esclarece que o reconhecimento implicaria, ainda que tacitamente, em reconhecimento de um Estado Palestino. Relembra que o Brasil sempre considerou o reconhecimento como faculdade soberana, de natureza declaratória e não constitutiva: “O Estado, cujo governo é reconhecido, já existe. Sua existência não se condiciona ao ato de reconhecimento (do Estado), e ainda menos do reconhecimento de governo” (TRINDADE, 1988, 488). Esta noção parece ser uma reminiscência da de J. L: Brierly: “A state may exist without being recognized, and if does exist in fact, then whether or not it has been formally recognized by other states, it has a right to be treated by them as a state.” (BRIERLY, 1963, 139).

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Existiam impasses jurídicos a serem vencidos para se reconhecer um governo provisório no exílio. O Brasil tinha firmado posição quanto ao princípio da efetividade nos contornos de efetividade e estabilidade de novo governo e a disposição deste em aceitar e resguardar acordos, compromissos, obrigações. Assinala que a doutrina entende por “governo no exílio” a continuidade de um Estado já constituído. E, retoma os temas do Parecer anterior sobre “A questão do Reconhecimento de Governo, Face à Dualidade de Poderes, no Período de Transição e Instabilidades Institucionais no Líbano: Elementos para a Tomada de Posição do Brasil”, de 17/10/1988, onde descreve critérios ou testes do princípio da efetividade 3: “controle territorial efetivo, consentimento dos governados, capacidade e propósito de cumprimento das obrigações internacionais, controle dos serviços públicos, obediência das Forças Armadas, vinculação à ordem normativa interna, realização das funções normais da autoridade pública.” (TRINDADE, 1988, 490)

Em março de 1989 é momento de Cançado Trindade analisar a “A Proclamação do Estado Independente da Palestina e a Questão da Situação Jurídica da Representação de Palestina no Brasil”. Neste, distingue statehood de Reconhecimento e insere a noção de Estado Nasciturus que trata-se do elemento argumentativo que reconhece uma situação, um Estado ad futurum. (TRINDADE, 2004, 503). O Parecer que sucedeu este último (“Elementos para Informação ao Presidente da República sobre aspectos da Questão da Formação do Novo Estado da Palestina”) data de 20 de junho de 1989 e orbita em torno de duas questões: o status atual da OLP no Brasil e a posição do Brasil quanto ao ingresso do Estado Palestino (recém proclamado) na Organização Mundial de Saúde. A primeira questão é sumarizada nos seguintes termos: (a) elevação do status da representação da OLP à categoria de Delegação da Palestina com especificação de privilégios e imunidades; (b) elevação do status do representante da OLP a Delegado da Palestina, (c) comunicação da nomeação e cessação de funções do Delegado da Palestina ao MRE, e; (d) inclusão da Delegação Palestina na Lista Diplomática em categoria especial de “outras representações”. 3

A este respeito Brierly menciona:”an organized government, a defined territory, and such a degree of independence of control by any other state as to be capable of conducting its own international relations.” (BRIERLY, 1963, 137). O check list de Cançado Trindade parece consolidar algumas atualizações.

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Quanto ao ingresso na OMS, Trindade entende que “eventual admissão como Estado Membro de uma organização internacional não há de ser confundida com o ato de reconhecimento de Estado” (TRINDADE, 1989, 533). Isto porque “a admissão de Estado-membros é ato da organização internacional e o reconhecimento de Estado, distinto, é ato discricionário de cada Estado no plano das relações bilaterais.” (TRINDADE, 1989, 533). Interessante que esta opinião dissona com a de Augusto de Rezende Rocha no Parecer – já mencionado - de setembro de 1961, sobre o efeito do reconhecimento da RPC como membro plelno da ONU, que “indicaria trata-se de um Estado no sentido do DIP.” (ROCHA, 1971, 127). Este Parecer marca a transição da representação política no Brasil da “Questão Palestina”, da OLP para a Delegação Palestina e a tentativa de consolidação, por parte do Consultor, da cautela e prudência no norteamento do Reconhecimento do Estado Palestino. Já é possível identificar elementos de jure que contemplam semelhanças administrativas entre a Delegação e o que seria uma Missão Diplomática, inclusive com concessão de privilégios e imunidades. É possível observar que o reconhecimento brasileiro parte do de jure (privilégios e imunidades) para o de facto (princípio da efetividade), o que pode ser constatado até 2012, enquanto este artigo é redigido, nos termos dos testes de statehood propostos por Trindade. Por isso, recomenda a abstenção da Delegação do Brasil na votação da proposta de ingresso da Palestina na OMS, inclusive para preservar a futura decisão sobre o reconhecimento de Estado (TRINDADE, 1989, 534). O último Parecer a ser analisado data de janeiro de 1990. Possui um contexto interessante que vale a pena ser retomado. O Parecer de Cançado Trindade sobre “A Proclamação do Estado Independente da Palestina e a questão da Situação Jurídica da Representação da Palestina no Brasil”, fora uma análise de um documento encaminhado pela OLP ao Itamaraty, denominado “Bases Jurídicas da Proclamação do Estado Independente da Palestina”. A Embaixada de Israel reagiu e encaminhou o seu “PLO/Palestine and the criteria for Statehood in International Law”, para semelhante análise. Os argumentos da Embaixada de Israel manifestam que “falta ao proclamado Estado da Palestina o preenchimento de critérios cumulativos e interdependentes

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necessários à criação de condições para a caracterização de um Estado de Direito Internacional” (TRINDADE, 1990, 630). Argui também que não existe independência, poder governamental e controle sobre o território, o que faz não atender aos requisitos de população permanente nem comunidade estável e organizada. Ao que o Parecerista indaga: “se Israel evocaria os mesmos argumentos e critérios, com a mesma veemência, há quatro décadas, à época de sua criação como Estado? (...) Não se poderia argumentar que o direito palestino à existência, a um viver comum, é tão arraigada quanto o direito israelense correspondente? (TRINDADE, 1990, 631632) Finalmente, Trindade enumera dois fatos que concorrem para a estruturação do reconhecimento da ora ‘entidade’ Palestina: um acordo para troca de prisioneiros, celebrado entre Israel e organizações palestinas e, a admissão da OLP nos debates do Conselho de Segurança da ONU, sobre a situação nos territórios árabes ocupados por Israel. Estes não são efetivamente argumentos que aportam juridicamente o reconhecimento de Estado. São argumentos em resposta a um documento da Embaixada de Israel, que Trindade entende parecer pretender e insistir em fazer crer que a entidade palestina é uma non-entity. O argumento que ambasa o reconhecimento do Estado Palestino fora aqueles do Parecer de 1989 sobre o governo provisório: ainda que não reconhecendo o Estado Palestino como tal – pendente a completa definição territorial e a constituição formal e definida do “Governo Provisório” palestino – permitiria ao Brasil, não obstante, manifestar o seu reconhecimento da nova situação e de um Estado in statu nascendi” (TRINDADE, 1990, 634). Vinte anos após este último Parecer, em dezembro de 2010, o governo brasileiro reconheceu o Estado Palestino conforme as fronteiras antes da guerra dos seis dias em 1967. Já em 2004 havia aberto escritório de Representação em Ramalá e com este fato é possível relacionar o fato à doutrina Estrada de reconhecimento de Estado que substituía o ato de reconhecimento pela manutenção ou retirada de agentes diplomáticos. Doutrina esta , por sinal, que o Brasil não adotou em favorecimento ao princípio da efetividade (TRINDADE, 2004, 427-428). O reconhecimento foi feito mediante carta do Presidente Lula ao Presidente da Autoridade Palestina, Mahmud Abbas. O comunicado à Imprensa

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sobre a Matéria (Nota 707/2010) avalia que a postura é coerente com a disposição histórica brasileira de contribuir com os processos de paz entre Israel e Palestina.

IV - Considerações Finais:

Esta contribuição pretendeu examinar a construção dos argumentos jurídicos brasileiros no que diz respeito ao Reconhecimento do Estado da Palestina. Para tal, foram analisados Pareceres dos Consultores Jurídicos do Itamaraty, com ênfase nos Pareceres de 1985 a 1990, os quais constituem o conteúdo discursivo da posição do Estado Brasileiro. Por isso, estes Pareceres foram tratados como opinio juris, no sentido de elementos de teste para a cosnciência de jurisdicidade de determinado Estado. A presente pesquisa permite destacar três tópicos dentre os que foram tratados. O primeiro é que o Brasil desenvolveu uma tradição jurídica de posições quanto ao Reconhecimento de Estado, baseada no princípio da efetividade. O segundo é que no caso da Palestina o reconhecimento de Estado vetoriza-se no sentido do reconhecimento de jure para o de facto, já que não está resolvida a questão dos territórios ocupados. O terceiro é que o Brasil parece romper com estes argumentos jurídicos constituídos na segunda metade dos oitenta. A própria medida sugerida, de procurar responder a esta questão no plano multilateral - e não no bilateral - acabou não sendo a opção brasileira em 2010. O prova, o reconhecimento unilateral brasileiro do Estado Palestino antes de serem atendidos os títulos de statehood. A este respeito, reafirmadamente, o Brasil buscou “orientar-se pela constatação de pré-requisitos factuais do ato de reconhecimento de governo” (TRINDADE, 1987, 430). Aqui é possível reconhecer fronteiras respeitadas entre a política e o direito. Longe de querer entrar em elocubrações teóricas sobre esta binomidade, a vontade e a decisão do ato soberano de Reconhecer Estado ou Governo são momentos essencialmente políticos. O gestos, os sinais que externalizam, o cumprimento da ritualidade, conferem consequências jurídicas no plano do direito. Os Pareceres dos Consultores Jurídicos do Itamaraty demonstram que o Estado Brasileiro decidiu reconhecer o Estado Palestino de jure, sem que detivesse satisfatoriamente os critérios

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do princípio da efetividade. A bem da verdade, já havia reconhecido diversos elementos de statehood décadas antes, quando reconheceu o status da Delegação Palestina. Ficam as perguntas: Quais argumentos jurídicos foram utilizados para o Reconhecimento do Estado da Palestina em 2010? Qual orientação foi capaz de romper com algumas das tradições jurídico-argumentativas do Itamaraty? Perguntas instigantes; mais apropriadas de serem respondidas em artigo específico com propósito para tais enfrentamentos.

V - Referências Bibliográficas:

BRIERLY, J. L.. The Law of Nations: an introduction to the international law of peace. Sixth Edition. New York: Oxford University Press, 1963. BROWLIE, Ian. Princípios de Direito Internacional Público. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997. BRUGGER, Winfried; NEUMANN, Ulfrid; KIRSTE, Stephan. Rechtsphilosophie im 21. Jahrhundert. Frankfurt am Main: Surkamp, 2008. CERVO, Amado Luiz. Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Editora Saraiva, 2008. DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito Internacional Público. 2a edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2003. MARTHOZ, Jean Paul. Brazil’s emergence and the potential for the Norwegian Peacebuilding diplomacy. Noref Working Paper. Norwegian Peacebuilding Centre, 2010. MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de (org.). Pareceres dos consultores jurídicos do Itamaraty. Volume VII (1972-1984). Coleção Brasil 500 Anos. Brasília: Senado Federal, 2004. ----------. Pareceres dos consultores jurídicos do Itamaraty. Volume VIII (1985-1990). Coleção Brasil 500 Anos. Brasília: Senado Federal, 2004. MINISTÉRIO DAS RELACOES EXTERIORES. Nota nr. 707/2010. Reconhecimento do

Estado

Palestino

nas

Fronteiras

de

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1967.

Disponível

em:

http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/reconhecimento-doestado-palestino-nas-fronteiras-de-1967. Acessado em abril de 2012. PINHEIRO, Letícia. Reestabelecimento de Relações Diplomáticas com a República Popular da China. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol. 6, n. 12, 1993, p. 247270. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público (Período 1899-1918). Brasília: FUNAG, 1986. VERDROSS, Alfred. Völkerrecht. Wien: Springer Verlag, 1959.

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