O STF E O JULGAMENTO DO PEDIDO CAUTELAR DE SUSPENSÃO DE EFICÁCIA DA LEI 13.269/2016 NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 5501

May 24, 2017 | Autor: D. Davis Portela | Categoria: Bioética, Direitos Humanos
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA MESTRADO EM DIREITO

DANIELA DAVIS PORTELA

O STF E O JULGAMENTO DO PEDIDO CAUTELAR DE SUSPENSÃO DE EFICÁCIA DA LEI 13.269/2016 NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 5501

Salvador-BA 2016

2 O STF E O JULGAMENTO DO PEDIDO CAUTELAR DE SUSPENSÃO DE EFICÁCIA DA LEI 13.269/2016 NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 5501 Daniela Davis Portela1

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. A ADI 5501: dos argumentos erigidos pelas partes – 2.1. A tese da AMB – 2.2. A defesa da Presidência da República, Senado Federal e Câmara dos Deputados – 3. Julgamento do STF: a posição majoritária – 3.1 Da violação ao direito à saúde 3.2 – Da ofensa ao postulado da separação de Poderes – 4 – A divergência – 4.1 – Da constitucionalidade nos dispositivos da lei que autorizam o uso privado da substância – 4.2 Do direito fundamental de toda pessoa ao mais elevado nível de saúde física e mental, da autodefesa e da autonomia privada – 5. Conclusão RESUMO: Este artigo aborda a atual posição do STF quanto ao fornecimento de fosfoetanolamina sintética, partindo-se da análise dos votos proferidos em julgamento de pedido de tutela cautelar de urgência na ação direta de inconstitucionalidade nº 5501, em que por 6 votos a 4 deferiu-se a suspensão liminar da Lei nº 13.269/2016. Para tanto, analisa as discussões realizadas no plenário de julgamento, bem como os argumentos erigidos nos votos dos Ministros. ABSTRACT: This article discusses the current position of the Supremo Tribunal Federal as to the supply of synthetic phosphoethanolamine, starting from the analysis of the votes cast in injunctive relief emergency request for judgment in direct action of unconstitutionality No. 5501, where by 6 votes to 4 the injunction was granted to suspend the effects of Law No. 13.269/2016. It analyzes the discussions in plenary trial, and the arguments brought by the Ministers in their votes. PALAVRAS-CHAVE: STF. Direito Público. Direito Constitucional. Direito à saúde. Fosfoetanolamina sintética. 1 Advogada. Mestranda em Relações Sociais e Novos Direitos na Universidade Federal da Bahia.

3 1. Introdução A fosfoetanolamina sintética é uma substância química cuja sintetização foi desenvolvida pelo professor pesquisador aposentado do Instituto de Química da USP, Dr. Gilberto Orivaldo Chierice, nos anos 70. A origem da pesquisa foi, conforme explanado pelo Dr. Renato Meneguelo 2, a fosfoetanolamina natural ter sido isolada pela primeira vez no ano de 1936, encontrada em tumores malignos bovinos pelo pesquisador E.L. Outhouse, fato despertou o interesse de outros pesquisadores sobre se havia alguma relação entre a fosfoetanolamina e as células cancerígenas. Porém apenas recentemente conseguiu-se sintetizar a fosfoetanolamina em laboratório, dando origem à fosfoetanolamina sintética. No trabalho já mencionado, Meneguelo aduz que: A fosfoetanolamina sintética é uma molécula fosforilada artificialmente, com síntese inédita realizada pela primeira vez pelo nosso grupo, no Depto. Química Analítica – USP em São Carlos, com possíveis propriedades anti-inflamatórias e apoptóticas [uma espécie de autodestruição das células].3

O Instituto de Química, durante as suas pesquisas, passou a distribuir a substância fosfoetanolamina sintética a pacientes de neoplasias malignas, o que perdurou anos a fio. Contudo, a partir da publicação da Portaria IQSC 1389/2014 4, que determina procedimentos administrativos quanto à produção, manipulação e distribuição de medicamentos e outros compostos no Instituto de Química de São Carlos (USP), ficou suspensa a distribuição da fosfoetanolamina por aquela Universidade. Senão, veja-se: Artigo 1º – A extração, produção, fabricação, transformação, sintetização, purificação, fracionamento, embalagem, reembalagem, armazenamento, 2 MENEGUELO, Renato. Efeitos antiproliferativos e apoptóticos da fosfoetanolamina sintética no melanoma B16F10. 2007. Dissertação (Mestrado em Bioengenharia) - Bioengenharia, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2007. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/82/82131/tde-12022008-135651/pt-br.php. Acesso em: 21/10/2016. P. 39-40 3 Idem, p.15. 4 USP, Instituto de Química de São Carlos da. Portaria IQSC 1389/2014 de 14 de julho de 2014. Disponível em: . Acessado em: 29/10/2016.

4 expedição e distribuição de drogas com a finalidade medicamentosa ou sanitária, medicamentos, insumos farmacêuticos e seus correlatos, só podem ser efetuadas nas dependências do IQSC após apresentação, à Diretoria do Instituto, das devidas licenças e registros expedidos pelos órgãos competentes, de acordo com a legislação vigente e desde que tais atividades estejam justificadamente alinhadas com as finalidades da Universidade.

A partir dessa determinação, incontáveis ações judiciais individuais foram manejadas por pacientes portadores de neoplasia maligna, em sua maioria já na fase terminal da doença, buscando a tutela jurisdicional para que fosse determinado de forma cogente à Universidade de São Paulo o fornecimento da substância. Diversas medidas liminares foram concedidas e a questão chegou ao Supremo Tribunal Federal por meio da Petição PET 5828SP e da Suspensão de Tutela Antecipada STA 828. Na PET 5828SP, o relator, Ministro Edson Fachin, proferiu decisão monocrática em que consignou que estariam ali presentes os elementos necessários ao deferimento da medida cautelar requerida, no entanto, diante da reconsideração da decisão pelo Tribunal de origem – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – reconheceu a perda do objeto daquele instrumento processual. A STA 828, por sua vez, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, contemplava pedido realizado pela Universidade de São Paulo contra a decisão exarada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, na qual determinou o fornecimento da substância química fosfoetanolamina sintética a pacientes de câncer, sob pena de multa. O Ministro relator proferiu decisão 5 em 07/04/2016, em que, dentre outras coisas, aduziu: Ademais, atribuir a uma universidade pública a obrigação de fornecimento da substância a um número desconhecido de pessoas enfermas acaba por desviá-la das suas finalidades institucionais, nas quais, acredito, não constar a dispensação de medicamentos ou de substâncias para tratamento de saúde. Entendo, por isso, que as decisões atacadas podem contribuir para o caos administrativo da universidade e o abandono de tarefas que lhe foram confiadas pela Constituição Federal e pelas leis do País. 5

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Decisão monocrática na Suspensão de Tutela Antecipada nº STA 828/SP, Relator Ministro Ricardo Lewandowski. Publicada em 07/04/2016. Disponível em: . Acessado em: 19/10/2016.

5 […] Isso posto, defiro em parte o pedido para suspender a execução da tutela antecipada concedida no Agravo de Instrumento 224269189.2015.8.26.0000, em trâmite perante a 11ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, assim como todas as decisões judiciais proferidas em âmbito nacional no mesmo sentido, indicadas ou não nos autos, que tenham determinado à Universidade de São Paulo o fornecimento da substância “fosfoetanolamina sintética” para tratamento de câncer, até os seus respectivos trânsitos em julgado, mantido, porém, o seu fornecimento, enquanto remanescer o estoque do referido composto, observada a primazia aos pedidos mais antigos.

A decisão acima foi bastante noticiada pela mídia, que passou também a divulgar com maior frequência estudos e publicações sobre o tema, notadamente aqueles que reforçam a ideia da eficácia da substância. A exemplo disso, muito foi noticiada uma publicação no British Journal of Cancer 6, na qual se afirma que as pesquisas atuais têm levado a crer que a fosfoetanolamina sintética reduz o crescimento do tumor e inibe a metástase pulmonar além de ter efeitos antileucemia. Essa informação, somada ao fato de que nenhum laboratório tinha se mostrado interessado em conduzir as pesquisas clínicas com a substância, com o objetivo de testar a sua eficácia e intentar o seu registro na ANVISA como medicamento, fez com que o clamor popular por uma medida do Poder Legislativo aumentasse a níveis exponenciais. Movido, então pelo clamor popular, o Congresso Nacional, em 13 de abril de 2016, editou a Lei nº 13.2697, que ganhou o codinome de Lei da Pílula do Câncer e autoriza o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna. O referido diploma legal traz em seu bojo a possibilidade de produção, manufatura, importação, distribuição, prescrição, dispensação, posse ou uso da fosfoetanolamina sintética, independentemente de registro sanitário, em caráter

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FERREIRA, A. K.; SANTANA-LEMOS, B. A. A.; REGO, E. M.; FILHO, O. M. R.; CHIERICE, G. O.; MARIA, D. A. Synthetic phosphoethanolamine has in vitro and in vivo anti-leukemia effects. BRITISH JOURNAL OF CANCER, v. 109, n. 11, p. 2819-2828, NOV 26 2013. Citações Web of Science: 2. Disponível em: http://www.nature.com/bjc/journal/v109/n11/full/bjc2013510a.html. Acessado em: 21/10/2016. BRASIL. Lei 13.269, de 13 de abril de 2016. Autoriza o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna. Disponível em: . Acesso em: 17/10/2016.

6 excepcional, enquanto estiverem em curso estudos clínicos acerca dessa substância. Em específico, a mencionada lei autoriza o uso da fosfoetanolamina sintética, por livre escolha, aos pacientes portadores de neoplasia maligna, desde que eles cumpram os seguintes requisitos: I – Possuir laudo médico que comprove o diagnóstico; e II – Assinar termo de consentimento e responsabilidade. Em 16/04/2016, a Associação Médica Brasileira propôs ação direta de inconstitucionalidade contra a mencionada lei, requerendo em sede de tutela cautelar de urgência a suspensão da eficácia desta até o final do julgamento, por entender que havia grave risco à saúde da população na eventual demora da conclusão do julgamento. O Supremo Tribunal Federal, em sede de julgamento liminar da ADI 5501, acatando o pedido da Associação Médica Brasileira, suspendeu liminarmente a eficácia da Lei 13.269/2016, por 6 votos a 4 e os argumentos ali esposados é que serão objeto de análise no presente estudo. 2. A ADI 5501: dos argumentos erigidos pelas partes Como mencionado, diante da promulgação da Lei 13.269/2016, ingressou a Associação Médica Brasileira com a ADI 5501, objetivando a declaração da inconstitucionalidade daquele diploma legal. Cabe, então, fazer uma análise dos argumentos trazidos por aquela associação e as informações prestadas pela Presidência da República, Senado Federal e Câmara dos Deputados, cotejando-os com as teorias esposadas por doutrinadores de renome. 2.1. A tese da AMB A Associação Médica Brasileira, além de demonstrar a sua legitimidade para postular a ADI e a pertinência temática da instituição com o tema abordado, elencou na sua Petição Inicial8 como justificadores da suspensão dos efeitos da Lei 13.269/2016 quatro argumentos fundamentais. Senão, vejamos.

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ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA. Petição inicial na ADI 5501 em trâmite no Supremo Tribunal Federal. Disponível em: . Acessado em: 29/10/2016.

7 O primeiro ponto trazido foi a suposta violação aos artigos 6º e 196 da Constituição Federal. Segundo a AMB, a lei atacada violaria tais artigos porque, in verbis: […] a disponibilização de substância, cuja eficácia não está comprovada, para o combate à neoplasia maligna, por livre escolha do paciente e independente de prescrição médica, caracteriza verdadeira falha do Estado, no cumprimento do dever de promoção do direito à saúde, previsto no artigo 196 da CF, já transcrito.

Ou seja, na visão daquela postulante, a promoção do direito à saúde está intrinsecamente ligada à segurança das substâncias colocadas à disposição dos pacientes, não admitindo, em sua argumentação, excepcionalidades. O segundo argumento foi a contrariedade ao art. 12 da Lei 6.369/76: haveria precarização do Sistema Nacional de Saúde e de Vigilância. O referido diploma legal dispõe a sujeição dos medicamentos, drogas, insumos farmacêuticos e correlatos, cosméticos, saneantes e outros produtos à Vigilância Sanitária. No seu bojo traz a determinação de que a extração, produção, fabricação, transformação, sintetização, purificação, fracionamento, embalagem, reembalagem, importação, exportação, armazenamento ou expedição daqueles produtos depende de prévio licenciamento no órgão sanitário. Entende que essa lei, sim, seria protetiva e garantidora do direito fundamental à saúde e que ao abrir exceção ao quanto estipulado nesse regramento a sociedade como um todo poderia ser afetada negativamente. O terceiro argumento é o que traz que a permissão de uso de um medicamento cuja toxidade ao organismo humano é desconhecida implicaria em risco grave à vida e integridade física dos pacientes, direitos tutelados pelo caput do artigo 5° da CF. Essa argumentação não se mostra incorreta, desde que excepcionados os pacientes em estágio terminal de câncer – nesse caso a autora deste artigo entende haver a necessidade de tratamento diferenciado da questão. E essa diferenciação encontra base na doutrina de Robert Alexy9, que ensina:

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ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva da 5ª edição alemã. 2ª edição, Ed. Malheiros, 2011, p.397.

8 Portanto, o enunciado geral de igualdade, dirigido ao legislador, não pode exigir que todos sejam tratados exatamente da mesma forma ou que todos devam ser iguais em todos os aspectos. Por outro lado, para ter algum conteúdo, ele não pode permitir toda e qualquer distinção. É necessário questionar se e como é possível encontrar um meio-termo entre esses dois extremos. Um ponto de partida para esse meio-termo é a fórmula clássica “O igual deve ser tratado igualmente, o desigual, desigualmente”[...]

O quarto e último marco argumentativo foi que a dispensa de registro sanitário para o uso da substância contraria o princípio da estrita legalidade, aplicável à Administração Pública, nos termos do caput do artigo 37 da CF. 2.2. A defesa da Presidência da República, Senado Federal e Câmara dos Deputados A Presidência da República, por meio da Advocacia Geral da União, arguiu que a lei fora aprovada em momento de clamor popular decorrente da imensa repercussão social causada pela suspensão do fornecimento da multicitada substância. Defendeu que o objetivo do legislador foi legítimo e consistiu em: […] possibilitar o acesso à fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna, em um processo mais célere, em caráter excepcional, enquanto ainda em curso estudos clínicos acerca dessa substância, considerado o estágio ainda inicial das pesquisas a respeito da substância, bem como a gravidade da doença, especialmente em relação àqueles pacientes com a enfermidade já em estágio avançado, em situação na qual, além de não haver mais alternativa terapêutica aplicável, o tempo é um fator relevante.

Ademais, esclareceu que os estudos até então realizados apontam a inexistência de toxicidade no composto, de forma que não haveria violação aos princípios constitucionais da saúde e da segurança. Concluiu dizendo que seria precipitado falar em risco à vida ou integridade física de pessoas ou mesmo à dignidade da pessoa humana. E que em sentido oposto, tal lei implicaria em verdade na proteção do direito à vida considerado em um sentido amplo, considerado sob o ângulo do direito à vida digna. O Senado Federal, por sua vez, citou artigos científicos que proclamam as benesses da fosfoetanolamina e a sua baixíssima toxicidade. Além disso aduziu que a autorização da substância se enquadra no conceito de uso compassivo de

9 medicamentos previsto na Resolução 38/2013 da Anvisa e que a Lei 13.269/2016 não seria inconstitucional em razão desses motivos. A Câmara dos Deputados, de outro turno, iniciou a sua justificativa explicitando que a fosfoetanolamina não seria um produto químico artificialmente criado ou inventado dentro de um laboratório farmacêutico, mas sim uma substância endógena normalmente produzida no organismo humano, cujas funções metabólicas são conhecidas e que esses são bons indicativos da sua baixa toxicidade e da segurança do seu uso, dados que teriam sido reforçados com os testemunhos de pacientes que negaram a existência de efeitos adversos mesmo após anos de consumo. Acrescentam que a baixa toxicidade foi comprovada em estudos em curso, com ampla divulgação de tais resultados. Afirmou ainda que a lei visou sanear o problema do surgimento de um mercado clandestino, erigido a partir da ampla busca pela substância e, nesse contexto, a legislação atacada garantiria o acesso à substância produzida por laboratórios autorizados e que seguem as boas práticas de fabricação. Entende, a Câmara dos Deputados, que desse modo foram observados os princípios constitucionais pátrios, notadamente no que pertine à garantia do direito à vida, da dignidade da pessoa humana e do direito à saúde. Em suma: tanto a titular da ação direta de constitucionalidade quanto os Poderes Legislativo e Executivo utilizam o princípio constitucional do direito fundamental à saúde como base para as suas alegações. Em interpretações diametralmente opostas, contudo. 3. Julgamento do STF: a posição majoritária O Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria de seis votos, no sentido da suspensão liminar da eficácia da Lei 13.269/2016. E de acordo com os argumentos esposados, denota-se que o julgamento final da ação direta de inconstitucionalidade deva seguir a mesma linha. A decisão colegiada referendou o voto do Ministro Marco Aurélio de Mello, relator, que trouxe em seu voto a seguinte conclusão: É no mínimo temerária – e potencialmente danosa – a liberação genérica do medicamento sem a realização dos estudos clínicos correspondentes, em razão da ausência, até o momento, de elementos técnicos assertivos

10 da viabilidade da substância para o bem-estar do organismo humano. Salta aos olhos, portanto, a presença dos requisitos para o implemento da medida acauteladora. Ante o quadro, defiro a liminar pleiteada para suspender a eficácia da Lei 13.269/2016, até o julgamento definitivo desta ação direta de inconstitucionalidade.

Os argumentos embasadores da decisão foram a violação ao direito à saúde e a violação ao princípio da separação dos poderes, abaixo destrinchados. 3.1. Da violação do direito à saúde Entendeu o Ministro Marco Aurélio Mello que o fornecimento de substância sem comprovação da sua segurança e eficácia, com a devida aprovação e registro pelo órgão competente configura violação ao direito à saúde. Ele aduziu que tal direito somente é garantido quando observada a responsabilidade constitucional de zelar pela qualidade e segurança dos produtos em circulação no território nacional, portanto, quando há a atuação proibitiva do Poder Público voltada a impedir o acesso a determinadas substâncias. Nas suas palavras, o direito à saúde somente é totalmente concretizado se o Estado cumprir “a obrigação de assegurar a qualidade das drogas distribuídas aos indivíduos mediante rigoroso crivo científico, apto a afastar desenganos, charlatanismos e efeitos prejudiciais ao ser humano”. E continua apontando que: O fornecimento de medicamentos, embora essencial à concretização do Estado Social de Direito, não pode ser conduzido com o atropelo dos requisitos mínimos de segurança para o consumo da população, sob pena de esvaziar-se, por via transversa, o próprio conteúdo do direito fundamental à saúde.

O Ministro, contudo, assume posicionamento diametralmente oposto ao que costuma exarar em seus votos, notadamente aquele aposto em julgamentos anteriores acerca da possibilidade de uso de medicamento não regulamentado pela Anvisa, mas aprovado por outro órgão semelhante.

11 3.2. Da ofensa ao postulado da separação de Poderes O outro argumento para a suspensão da eficácia da lei em comento foi a sua ofensa ao postulado da separação de Poderes. A fundamentação seria no sentido de que a Constituição Federal teria incumbido o Estado do dever de zelar pela saúde da população – e nesse conceito estariam incluídos todos os Poderes. Mas que, não obstante tal inclusão, considerando-se a necessidade de descentralização técnica para a fiscalização de atividades sensíveis, a Constituição Federal criou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA como entidade autárquica atrelada ao Ministério da Saúde, à qual compete, nos termos do artigo 37, inciso XIX, autorizar a distribuição de substâncias químicas, segundo protocolos cientificamente validados. Por tal motivo, defendeu o Ministro que não cabe ao Congresso Nacional viabilizar, por ato abstrato e genérico, a distribuição de qualquer medicamento, o que denotaria a cristalina violação ao princípio da separação dos Poderes. O controle dos medicamentos fornecidos à população, nas palavras do Ministro, “é efetuado, tendo em conta a imprescindibilidade de aparato técnico especializado por agência reguladora supervisionada pelo Poder Executivo.” E continua concluindo que “a atividade fiscalizatória – artigo 174 da Constituição Federal – dá-se mediante atos administrativos concretos de liberação das substâncias, devidamente precedidos dos estudos técnicos – científicos e experimentais.” Por esses motivos, o Ministro entendeu pela concessão da medida pleiteada e suspendeu a eficácia do diploma legal atacado até o fim da ação direta de inconstitucionalidade, no que foi acompanhado pelos Ministros Luís Roberto Barroso, Teori Zavascki, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia. O Ministro Barroso acresceu ainda que houve violação à reserva de administração, porquanto, ao autorizar o uso da fosfoetanolamina sem cumprimento das exigências legais consubstanciadas na realização de testes clínicos e na exigência de prévio registro sanitário, “o Poder Legislativo substitui o juízo essencialmente técnico da Anvisa, por um juízo político, interferindo de forma indevida em procedimento de natureza tipicamente administrativo”.

12 4. A divergência O Ministro Edson Fachin abriu divergência 10 para dando interpretação conforme a Constituição, entender pela manutenção da eficácia da lei questionada apenas para os pacientes em estágio terminal da neoplasia maligna. Ele foi acompanhado pelos Ministros Gilmar Mendes, Rosa Weber e Dias Toffoli. Seus argumentos, com os quais a autora deste artigo concorda, foram baseados na diferenciação entre pacientes com câncer em fase terminal e pacientes em estágios curáveis da doença. 4.1. Da constitucionalidade dos dispositivos da lei que autorizam o uso privado da substância Aqui foi esposada a já conhecida tese do Ministro Edson Fachin, que em diversos julgamentos já se posicionou a favor da descriminalização do uso de drogas ao argumento de que o uso de substância por particular, qualquer que seja ela, ainda que possa a vir a causar-lhe algum prejuízo, se insere no âmbito da autonomia privada e, portanto, fora da esfera de atuação do Poder Público, no sentido da proibição de tal comportamento. O Ministro trouxe em seu voto11 a referência aos argumentos por ele utilizados quando do julgamento do RE 635.659, de Relatoria do Ministro Gilmar Mendes. Ali consignou que: O uso privado de substâncias, ainda que apresente eventuais efeitos nocivos à saúde humana, insere-se no âmbito da autonomia privada e está imune à interferência estatal em matéria penal. A rigor, o uso da substância em pauta é permitida se não há lei que o proíba, registre-se, no entanto, que ainda que eventualmente opte o legislador por proibi-la, cominando para tanto uma pena, encontraria limite claro no princípio da ofensividade.

Na visão do mencionado jurista, conquanto não seja possível, sob a perspectiva penal, tipificar o uso desta substância, poder-se-ia se perguntar se considerando a aplicação a pacientes diagnosticados com neoplasia maligna não deveria a substância ser regulada administrativamente e a resposta seria afirmativa. 10 11 FACHIN, Edson. Voto proferido no Recurso Extraordinário 635.659, Relator Min. Gilmar Mendes. Disponível em: . Acessado em 02/10/2016.

13 O Ministro reconhece a titularidade da Anvisa na realização da tarefa de controle e regulamentação acerca de substâncias potencialmente nocivas à saúde. E entende que há fundamento constitucional para tanto. Senão, vejamos a linha de raciocínio por ele esposada no julgamento multicitado. Cumpre, de início, relembrar que nos termos do art. 200, I, da Constituição Federal, compete ao Sistema Único de Saúde controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos 12. O sistema único é definido pela Lei nº 8.080/90 13 como sendo “o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público”. Partindo desse pressuposto, o Ministro pontuou que a lei atacada na ADI 5501 se refere a substância e não medicamento ou suplemento alimentar e que a Lei nº 8.080/90 atribui ao órgão de vigilância sanitária, conforme inciso I do parágrafo 1º do art. 6º as competências para o controle de bens de consumo que direta ou indiretamente se relacionem com a saúde, compreendidas todas as etapas e processos da produção ao consumo. A execução dessa política de controle está a cargo da Anvisa, que detém a competência para regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública. A decisão tomada pela Anvisa tem a finalidade de garantir a segurança, a eficácia e a qualidade do produto destinado à saúde humana. A garantia de segurança é também efetivada pela exigência de registro prévio atribuída de forma exclusiva à agência. Essa decisão transcende os limites de um mero juízo de adequação normativa hierárquica, razão pela qual não se deve buscar a fonte de legitimidade para essa decisão no poder regulamentar da Administração Pública. A formulação dessa politica encontra fundamento na função regulatória do Estado e mais genericamente na atuação do Estado na economia, também de base 12 BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: . Acessado em: 30/10/2016. 13 BRASIL. Lei nº 8.080/90. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 30/10/2016.

14 constitucional. Contudo, afirmar que o fundamento de legitimidade da função regulatória decorre do próprio texto constitucional não explica, contudo, porque se deve optar por ela. As balizas constitucionais para o desempenho da função regulatória são, de um lado, a possibilidade de intervenção direta e de outro o princípio da subsidiariedade. Essas balizas têm por missão harmonizar os princípios da livre iniciativa com justiça social. A intervenção direta só se justifica nos casos de serviços públicos e nas demais hipóteses constitucionalmente admitidas de exploração direta. Todas as demais

são

desempenhadas

por

particulares

por

força

do

princípio

da

subsidiariedade. Há várias hipóteses, no entanto, em que o mau exercício da livre iniciativa pode trazer prejuízos à coletividade. Em situações, por exemplo, como falha de mercado, ou casos de monopólio, ou informações inadequadas, entre outras, justifica-se a função regulatória do Estado materializada em comandos proibitivos, permissivos ou incentivadores, porque destinada a promover a satisfação de interesses essenciais. Por isso, entende o Ministro – e a autora desse artigo o acompanha – que a regulação promovida pela Anvisa se justifica especialmente para o caso de medicamentos e merece ser reconhecida. Contudo, diante do questionamento sobre se o Congresso Nacional poderia autorizar a produção de substância que potencialmente possa afetar a saúde humana dispensando o registro, o Ministro defende que a resposta é condicional. A tese aqui é de que apesar da competência da Anvisa já acima delineada, não se pode entender que a regulamentação de toda e qualquer substância é privativa da agência. Isso porque a concretização do direito à saúde é feita pelo Legislativo. A criação de agência reguladora é faculdade do legislador, portanto, não se pode afirmar que ele não possui legitimidade para exercer ação regulatória intra legem. Em suma, a competência da Anvisa não implica em exclusividade da sua atuação, podendo, portanto, em situações que entender importantes, o Poder Legislativo regulamentar diretamente questões de saúde.

15 Contudo, o Ministro ressalta que embora não haja proibição constitucional de atuação do legislador na regulamentação acerca de medicamentos, por força do princípio da proibição de retrocesso, uma legislação nova não pode ser considerada válida sem que traga todas as diretrizes necessárias a garantir a segurança da saúde pública, tais como prescrições específicas acerca de dosagens, forma de apresentação, validade, armazenamento uso etc. Ao deixar de prescrever tais minucias, haveria na Lei nº 13.269/16 inconstitucionalidade material por ausência de proteção suficiente da saúde. Ocorre que há casos em que a gravidade da situação do paciente justificaria a adoção de medidas extremas, como se explanará no próximo subtópico, ao se comentar o segundo argumento erigido pelo Ministro Fachin. 4.2. Do direito fundamental de toda pessoa ao mais elevado nível de saúde física e mental, da autodefesa e da autonomia privada Este argumento trazido pelo citado Ministro é o ponto fulcral da divergência e conta com a adesão da autora deste artigo. O direito à saúde, além da proteção constitucional, também é garantido por inúmeros tratados internacionais, notadamente, pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e pelo Protocolo de São Salvador. De acordo com o tratado sobre a proteção universal sobre os direitos da pessoa humana, englobamse inúmeros direitos, inclusive, o direito de toda pessoa desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental. Isso inclui o tratamento diferenciado para pacientes que se encontram em fase terminal de doença graves e altamente debilitante. A própria Anvisa admite processo simplificado de liberação de medicamentos na linha do que já autorizam diversas agências reguladoras nos Estados Unidos e Europa. No Brasil, a Resolução nº 38/2013, já mencionada anteriormente, tratando do uso compassivo de medicamentos não registrados. Não se pode afirmar que os requisitos de segurança tenham sido abandonados quando do advento dessa Resolução, especialmente porque são inúmeros os requisitos e condicionantes ali delineados. O fato é que há a previsão já aceita de acesso a determinada substância em vista da condição de saúde do paciente. Em casos tais, a situação de risco parece

16 demonstrar que as exigências relativas à segurança de substância cedem em virtude da própria escolha das pessoas eventualmente acometidas da enfermidade. Essa escolha não decorre apenas do direito à autonomia, mas da autodefesa, ou seja, do direito a agir em prol da qualidade de vida. Observe-se que essa dimensão protetiva alcança a possibilidade de realizar graves ofensas a bem jurídico de terceiro, como ocorre por exemplo na legítima defesa. É à luz do direito de preservar a própria vida que as restrições relativas à segurança da substância podem ser mitigadas. Trouxe o Ministro, em seu voto14 já mencionado, uma diferenciação de suma importância, que ora se transcreve: É verdade que os riscos da ausência de comprovação da eficácia da substância poderiam trazer maiores prejuízos à saúde do paciente, por essa razão seria possível afirmar, na esteira do que decidiu a Suprema Corte dos Estados Unidos em 1979 no caso United States versus Rutherford, que por não fazer distinções entre pessoas sadias e enfermas, as regras de liberação de substâncias não poderiam ser excepcionadas em hipótese alguma. Esta solução, todavia, falha em reconhecer não apenas o que os órgãos postulatórios passaram posteriormente a realizar diferenciação para pacientes crônicos, mas também que na hipótese dos autos a Lei em sentido material e formal que a realiza.

Além disso, é irrazoável supor que a proteção à saúde dependa apenas de tratamentos considerados razoavelmente seguros. Com efeito, no caso de pacientes em estágio terminal, a substância ainda que eventualmente arriscada, torna-se possível de ser administrada. 5. Conclusão Apesar de toda a discussão aqui relatada ter ocorrido em sede de julgamento cautelar, muito se pode inferir a respeito do posicionamento atual do Supremo Tribunal Federal acerca da (in)constitucionalidade da Lei 13.269/2016. A posição majoritária, que deve se confirmar inclusive com maior adesão quando do julgamento definitivo, entende que houve violação ao direito à segurança e à saúde e que não existem ressalvas aplicáveis.

14 Op. cit.

17 No ponto concernente à usurpação de competência por parte do Poder Legislativo, não é possível concordar. Isso porque a regulamentação do direito à saúde, como forma de garantia da sua efetivação constitucionalmente prevista, é de incumbência daquele Poder que, por uma opção legislativa, atribuiu a sua execução à Anvisa. Contudo, tal atribuição não significa a perda da sua legitimidade para legislar a respeito da matéria quando necessário – devendo, entretanto, tal legislação ser realizada com a máxima responsabilidade e cuidado, sob pena de inconstitucionalidade material. Nesse sentido, não se pode deixar de pontuar o acerto das considerações trazidas pelo voto divergente, consubstanciadas na necessidade de diferenciação entre pacientes em estágio terminal da neoplasia maligna e aqueles que ainda dispõem de tratamentos eficazes e formalmente validados. Isso porque na ausência de diferenciação, a conclusão somente poderia ser no sentido da inconstitucionalidade da norma. Contudo, a excepcionalidade do quadro de saúde de certos pacientes justifica a excepcionalidade de certas medidas voltadas ao afastamento de certas normas de controle. É nessa dimensão estrita do estágio terminal que se pode considerar aplicável a lei em questão, isto é, quando não houver outras opções eficazes é que a relativização do controle estabelecido por ela pode ser tido por consentânea com a Constituição. Em tais casos, pode o Congresso Nacional, no exercício de sua competência privativa para regular o funcionamento do Sistema Único de Saúde, reconhecer o direito de pacientes terminais a agirem, ainda que tendo que assumir riscos desconhecidos, em prol de um mínimo de qualidade de vida. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva da 5ª edição alemã. 2ª edição, Ed. Malheiros, 2011. BRASIL.

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