O SUL DA MÚSICA INSTRUMENTAL BRASILEIRA: PRELÚDIOS DE UMA ANÁLISE

July 7, 2017 | Autor: R. Moreira da Silva | Categoria: Jazz Studies, Etnomusicologia, Análise Musical, Região Sul Do Brasil, Música instrumental brasileira
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O SUL DA MÚSICA INSTRUMENTAL BRASILEIRA: PRELÚDIOS DE UMA ANÁLISE Rodrigo Moreira da Silva Universidade do Estado de Santa Catarina

Resumo O presente artigo trata da representação da identidade regional do Sul do Brasil na produção fonográfica de música instrumental brasileira. Numa perspectiva etnomusicológica, exponho uma contextualização preliminar da música instrumental brasileira e da música gaúcha, com ênfase no nativismo, buscando possíveis nexos entre uma e outra. Após uma breve narrativa sobre experiência pessoal com o grupo Entrevero Instrumental, apresento algumas propostas de análise musical que acredito poderem ser aplicadas ao estudo da música instrumental brasileira. Entre essas abordagens analíticas, destaco: a teoria das tópicas aplicada à música popular brasileira, conforme Piedade (2013), que certamente pode colaborar com a catalogação de certas tópicas sulistas; a proposta de análise musical do jazz de Cugny (2009); e o recente trabalho de Tagg (2014) sobre análise de música popular. O objetivo deste trabalho é apontar possíveis caminhos para uma investigação aprofundada sobre a imagem musical do Sul brasileiro no contexto da música instrumental brasileira. Palavras-chave: Música instrumental brasileira; Sul do Brasil; análise musical. Abstract This article deals with the representation of regional identity in southern Brazil in the phonographic industry of brazilian jazz. In an ethnomusicological perspective, I will make a preliminary contextualization of brazilian jazz and 'música gaúcha', with an emphasis on 'nativismo', seeking possible links between each other. After a brief narrative about my experience with the Entrevero Instrumental group, present some proposals for musical analysis which I believe can be applied to the study of brazilian jazz. Among these analytical approaches, highlight: the theory of topics applied to the brazilian popular music, as Piedade (2013), which can certainly work with the cataloging of certain Southerners topics; the proposal for musical analysis of jazz according Cugny (2009); and the recent work of Tagg (2014) on popular music

analysis. The objective of this study is to identify possible paths to a thorough investigation of the musical image of the Brazilian South in the context of Brazilian instrumental music. Keywords: Brazilian jazz; South of Brazil; musical analysis.

Introdução O presente artigo trata de maneira preliminar da representação do Sul, enquanto imaginário de identidade cultural, na música instrumental brasileira (MIB). Este trabalho é parte de um projeto de tese de doutorado que pretende realizar uma etnografia sobre a produção de MIB que de alguma maneira remete à região Sul do Brasil. Alguns conceitos como música instrumental brasileira, música do Sul do Brasil, identidade cultural, etnografia, análise musical, entre outros, serão essenciais nesta empreitada. Entretanto, neste momento pretendo fazer uma introdução a alguns dos conceitos citados e uma breve revisão bibliográfica sobre algumas abordagens de análise musical visando preparar o terreno metodológico para um estudo mais aprofundado sobre a representação (ou elaboração) do Sul na MIB. MIB O rótulo “música instrumental brasileira”, ou simplesmente “música instrumental”, ou ainda “jazz brasileiro” (brazilian jazz, como utilizado principalmente nos Estados Unidos e Europa) abrange uma considerável variedade estética e de estilos (Piedade, 1997).

O termo música instrumental, muito utilizado atualmente, é

relativamente recente, se consolida na segunda metade do século XX e diz respeito a determinados grupos e instrumentistas que, apesar da variedade estética, compartilham algumas características como: a produção musical feita em solo brasileiro ou por brasileiros; utilização de materiais rítmicos, melódicos e timbrísticos tipicamente nacionais ou regionais; o destaque ao músico instrumentista e ao virtuosismo; a prática da improvisação; entre outras (Maximiano, 2009, p. 12). Em relação à produção acadêmica sobre a música instrumental, Maximiano (2009) comenta:

[...] “há uma produção acadêmica relativamente restrita sobre o tema; e, apesar de ser um território musical bastante ativo no circuito de festivais e apresentações ao vivo, bem como através de instrumentistas e compositores, está em segundo plano também no mercado fonográfico” (Maximiano, 2009, p, 11). Particularmente, vejo que existe um interesse acadêmico crescente sobre a música instrumental, principalmente nas últimas três décadas. Desde o início da consolidação da pós-graduação em música no Brasil na década de 1990 (Castagna, 2008), o “jazz brasileiro” vem sendo abordado em artigos, trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses1. Contudo, enquanto músico e agente da música instrumental brasileira, concordo que esta ocupa um lugar secundário no mercado fonográfico e exige estratégias alternativas de produção e difusão, muitas vezes circulando em contextos muito restritos. O termo música instrumental é utilizado com frequência pela mídia, em estantes de lojas de CDs, por pesquisadores, aparece na indústria fonográfica, em editais de incentivo à cultura e nas representações verbais dos músicos. “Na maioria das vezes em que tal denominação é empregada, vem relacionada a uma música diversificada e com muitas vertentes e segmentações” (Cirino, 2005, p. 1). Na vastidão estética que o termo engloba, podemos identificar algumas das principais tendências, como aponta Piedade (1997): “A linha mais ecm, uma linha jazzística mais meditativa e mais europeia, cujos artistas se agregam em torno do selo alemão ECM, onde se colocam nomes como Egberto Gismonti e Naná Vasconcelos. [...]. A linha mais fusion, onde predomina a mescla entre samba e funk, tendo suas raízes no movimento Black Rio, onde se encontra classificada a banda Cama-de-Gato. [...]. A linha mais brazuca, que se norteia em ritmos nacionais como baião, frevo, maracatu, samba, ou fazendo referência ao                                                              1 Alguns trabalhos como Bastos (2008), Bastos e Piedade (2006), Cirino (2005), Müller (2010) e Piedade (1997; 2005; 2007; 2011 e 2013) ilustram este panorama de pesquisa. Sendo que Piedade (1997) é um dos textos pioneiros sobre música instrumental brasileira, citado em grande parte de todo o material consultado sobre o tema.

chorinho, e articulando o discurso jazzístico em diálogo com elementos expressivos destes ritmos, tendo como expoente máximo Hermeto Pascoal” (Piedade, 1997, p. 5). De acordo com o autor, estas três vertentes da música instrumental não possuem fronteiras claras, e às vezes podem ser praticadas por um mesmo compositor, músico, ou ainda podem se manifestar ao mesmo tempo numa única composição. Creio que hoje este panorama é ainda mais diversificado, no sentido que novos regionalismos se integram ao discurso da música instrumental, além de outros elementos como música eletrônica, aleatoriedade, improvisação livre, novos timbres etc. Maximiano (2009, p. 25) indica três aspectos nos registros fonográficos de música instrumental que são frequentes em composições, no repertório e nas interpretações: o uso de materiais regionalistas, materiais advindos do samba e do choro e a instrumentação. Pretendo focalizar esta discussão principalmente nos materiais regionais utilizados na MIB provenientes da região Sul do Brasil e sua relação na elaboração da identidade cultural desta região. Para tal, a compreensão desta música instrumental depende da descoberta de nexos entre música e cultura, “daí a necessidade de uma atenta análise musical que inclua o olhar para a cultura e para o discurso”, como trataremos adiante (Piedade, 2005, p. 198). A MIB origina-se a partir de uma vasta rede de influências e de intersecções entre outras músicas (Maximiano, 2009, p. 8). Para Piedade (2005, p. 198), este processo de formação da música instrumental é uma relação ao mesmo tempo de tensão e de síntese, de aproximação e de distanciamento, e está profundamente ligada a discursos sobre imperialismo cultural, identidade nacional, globalização e regionalismo. A MIB surge como uma espécie de subgênero dentro da música popular brasileira (MPB) e possui atualmente um prestígio nacional e internacional, apesar da dificuldade de uma inserção mais ampla no mercado e na indústria fonográfica, conforme já mencionado (Cirino, 2005, p.3). Bastos e Piedade (2006) fornecem um panorama histórico da música instrumental que remonta à época das modinhas e lundus do Brasil imperial, no entanto, a música instrumental tratada aqui tem origem nos trios instrumentais (geralmente piano, contrabaixo e bateria) de bossa nova com forte influência do jazz norte-americano, sobretudo pelo destaque na improvisação musical. O Sul da MIB

Atualmente existem alguns grupos e músicos de música instrumental no Sul do Brasil que, em maior ou menor medida, mesclam elementos musicais regionais com elementos nacionais e/ou do jazz. Renato Borghetti, Quartchêto, Trio Ponteio, Yamandú Costa, Dr. Cipó, Alegre Corrêa e Entrevero Instrumental, grupo no qual atuo como baixista, são alguns exemplos deste contexto (Schmidt, 2011, p. 47). Além disso, artistas de outras regiões do país que também fazem uso de certos elementos musicais para evocar o Sul do Brasil, como no caso de Hermeto Pascoal na música “Vai um Chimarrão, Tchê?” (dedicada a Renato Borghetti) do disco “Eu e Eles” (1999) e André Marques em “Chamame para Arlindo”, por exemplo. Num olhar preliminar, considero que a ênfase musical no tradicionalismo gaúcho ou no nativismo é o principal elemento de representação de um ethos, ou identidade cultural, sulista na MIB. Com isso, vale buscar entender o que são tradicionalismo e nativismo e o que representam para a cultura do Sul do Brasil. O Movimento Tradicionalista Gaúcho, MTG, surgiu por volta da década de 1950 se espalhando rapidamente pelo Rio Grande do Sul e logo ultrapassando as fronteiras do estado (Agostini, 2005, p. 12). [...] “o Tradicionalismo [...] é, por excelência, a instância em que o mito do gaúcho-herói vive e se ritualiza ciclicamente. Por essa característica, o Tradicionalismo encontra resistência em alguns setores da sociedade, sendo tachado de conservador e ideologicamente alienante. Por outro lado, exatamente por ser assim, hermético, fechado a inovações, nesse movimento as tradições sofrem menos modificações” (Agostini, 2005, p. 14). O Nativismo, por sua vez, mais aberto a novas influências, diferenciou-se em parte dos padrões ideológicos e estéticos da música tradicionalista. De acordo com Agostini (2005): “O Nativismo [...] propõe o questionamento acerca de realidades não contempladas pelo Tradicionalismo, tais como o caráter injusto das relações patrão-peão, a exploração desmedida dos recursos naturais pelo interesse econômico etc.” (Agostini, 2005, p. 16).

Apesar do antagonismo existente entre o tradicionalismo e o nativismo, o passado é o caráter de idealização comum a ambos. Nativistas e tradicionalistas, portanto, têm o mesmo passado em comum, sendo que as abordagens da tradição no presente é que se modificam. O Movimento Nativista e suas ideias progressistas trouxeram novos ares para a música regional em vários sentidos: nas composições, nas instrumentações e no refinamento de poesias e letras das canções do movimento (Ferraro, 2006, p. 7). A fusão, ou fricção, de gêneros regionais sulistas a outros elementos musicais e culturais é algo intrínseco à MIB quando toca a região Sul. Neste caso, esta música instrumental segue uma terceira via, nem tradicionalista, nem nativista, incorpora-se ao discurso da própria MIB como um todo e certamente colabora com a afirmação e elaboração de uma identidade cultural da região Sul do país. De acordo com Ferraro (2013), a formação dos gêneros de música gaúcha tem grande influência nas danças de salão europeias de finais do século XIX, da mesma forma que diversos outros gêneros de música popular, como o choro, o jazz, o tango, entre tantos outros que se consagram na indústria fonográfica da primeira metade do século XX. Sobre algumas destas danças de salão do século XIX, o autor ilustra o scottishe que teria derivado o xote gaúcho; a valsa, a mazurca e a polca que mantém praticamente os mesmos nomes originais em gêneros gaúchos atuais; e a habanera que teria originado o vaneirão ou vaneira. Além da influência destas danças de salão europeias, a música gaúcha também teria sido influenciada por alguns gêneros musicais do sudeste, como as toadas, rasgueados e cateretês. O bugio seria talvez o único gênero genuinamente gaúcho, pois teria sido inspirado nos sons e simbolismo do macaco bugio, espécie nativa da região Sul. (Ferraro, 2013, p. 128) O autor também destaca a influência das imigrações ítalo-germânicas na região Sul na utilização do acordeom como instrumento fundamental na música gaúcha, assim como o violão ou viola de origem ibérica e o pandeiro trazido do sudeste e centro do Brasil (op.cit., p. 136). Ferraro (2013) aponta que na década de 1980 a produção fonográfica da música gaúcha, principalmente relacionada ao nativismo, se apropria de gêneros musicais platinos, principalmente dos vizinhos argentinos e uruguaios, como a milonga e o chamamé e posteriormente a chacarera e a zamba (Ferraro, 2013, p. 129). Creio que a representação do Sul na MIB está de certa maneira muito embasada nesta cena nativista pós década de 1980, já que a utilização ou estilização desses gêneros musicais platinos parece prevalecer em gravações de MIB com referência ao Sul. Num olhar preliminar, o

que músicos, compositores e arranjadores da MIB parecem entender como sonoridade (ou identidade) sulista indica ter forte influência nos rumos do movimento nativista, sobretudo na utilização dos gêneros chamamé, chacarera e milonga para expressar o ethos sulista. Os processos de construção da identidade estiveram sempre presentes nas discussões nacionalistas, tanto no Brasil quanto em outros países e também no campo artístico, como no caso do modernismo brasileiro2. Um conceito importante relacionado à construção de identidade é o de autenticidade (Stokes, 1994). Para Stokes, autenticidade e identidade estão intimamente ligadas (op.cit., p. 6). O autor também discute a problemática de definir-se o conceito de etnicidade, e discorre que este deve ser entendido em relação à construção, manutenção e negociação de fronteiras. Complementa formulando que fronteiras étnicas definem e mantém identidades sociais (op. cit., p. 6). Os modernistas brasileiros, por exemplo, em sua busca por uma arte nacional autêntica, utilizaram material folclórico como fonte de inspiração. Essa autenticidade artística atuaria na construção e manutenção de uma identidade nacional, o que consequentemente destacaria as fronteiras nacionais no contexto artístico internacional. A autenticidade artística viria como resultado da utilização de matériaprima autêntica, retirada do folclore oriundo principalmente do meio rural brasileiro. Penso que os ideais modernistas, centrados na figura de Mário de Andrade (Travassos, 2000), ainda ecoam na produção artística brasileira, como no caso da música instrumental, na qual a reciclagem de materiais folclóricos e regionais é prática comum. Para ilustrar, falarei brevemente de uma experiência pessoal no trabalho com o grupo Entrevero Instrumental. O Sul do Entrevero Instrumental Desde 2009 atuo como baixista do grupo Entrevero Instrumental3, um quinteto de música instrumental formado por violão de sete cordas, acordeom, baixo elétrico, sax tenor e bateria. O grupo desenvolve um trabalho autoral baseado na música do Sul do Brasil e em linguagens “modernas”, como a improvisação jazzística por exemplo. Os arranjos e algumas composições nasceram da improvisação. A improvisação, por sua vez, além de ser parte da forma na maioria das composições, revela traços regionais                                                              2 Como mostra Travassos (2000). 3 www.entreveroinstrumental.com

atravvés de deterrminadas tó ópicas musiicais (Piedaade, 2011; 2013) 2 que ffluem com certa naturralidade em m músicos nativistas n ddo grupo (v violonista e acordeonissta). O con ntraste timbrrístico da formação fo in nstrumental do grupo (que une vio olão e acorddeom, típiccos da músiica gaúcha,, a baixo elétrico, bbateria e saaxofone, in nstrumentoss frequentes em diverrsos gêneroos musicais globais) poode ser um m elemento de fricção entre elem mentos regioonais e naciionais ou esstrangeiros. Dessa form ma, o timbrre do grupoo é instituído o não someente pela reeunião de determinado d os instrumen ntos, mas também pella maneira como são ttocados. Naa maneira como c princiipalmente o violão e acordeom a sãão abordados no grupoo, a referênncia ao Sul é marcantee. Além dissso, alguns arranjos, prrincipalmen nte no que se refere à seção ríttmica, são inspirados em gênero os nativistaas. Creio que q a sonoridade do Entrevero E In nstrumentall, nesta persspectiva reg gionalista esspecífica, agrega certaa autenticiddade ao traabalho. Um m discurso importante,, portanto, no trabalh ho do Entreevero Instruumental, é a elaboraçãoo de uma id dentidade mu usical que aao mesmo tempo expreessa o carátter urbano e globalizaddo e afirma traços t regio onais. Este ddiscurso vai além do esstritamente musical e se s apresentaa obviamentte no discurso falado e escrito do grupo g e tam mbém graficcamente, co omo vemos nas imagen ns de capa e encarte doo CD “Êxodo” a seguiir:

Fig. 1: Cappa (à esquerd da) e encarte (à direita) do o disco “Êxo odo” do gruppo Entrevero Instrumentaal. Na capa, a curucaca, aave típica da região Sul, e no encarte, o “gaúcho”,, reprresentados de maneira coontemporâneea na arte de Diego Dedabblio.

Na busca das tópicas sulistas No que se refere à análise musical da música popular brasileira, penso que os recentes trabalhos de Piedade (2007; 2011; 2013) sobre as “tópicas” da música brasileira são de grande importância para uma abordagem etnomusicológica desta face da MIB. O conceito de “tópica” tem origem na Poética Musical, disciplina que se configurou a partir dos estudos, baseados em escritos de Cícero e Aristóteles, que vários teóricos do século XVII fizeram sobre a retórica para descrever a oratória da música. No século seguinte, esses estudos resultaram na Teoria dos Afetos. As tópicas (topoï), noção fundamental da filosofia Aristotélica, são as fontes que estão na base do raciocínio (Piedade, 2007). O conceito de tópicas utilizado aqui está embasado na semiótica de Agawu (1991) e na adaptação da noção das tópicas para a música brasileira (Piedade, 2007). Para Agawu (1991), tópicas são unidades do texto musical que têm significado dentre um ciclo de ouvintes, uma espécie de categoria músico-cultural. O autor, quando utiliza a teoria das tópicas para fazer uma análise semiótica da música instrumental do período clássico europeu, parte do princípio que este repertório é orientado para o ouvinte e que só é possível injetar significado no texto musical se o compositor compartilha dos valores do seu público e domina a linguagem musical, ou seja, domina o que Agawu (1991) chama de códigos extramusicais. Nesse sentido, o autor propõe que a comunicação é dada através de duas dimensões: expressão e estrutura. “As unidades de expressão interagem dentro de uma estrutura definida pelos termos convencionados da retórica musical” (Bastos e Piedade, 2006, p.5) A “teoria das tópicas” é uma teoria da expressividade e do sentido musical (Piedade, 2007). A princípio a “teoria das tópicas” é aplicada à música erudita ocidental, porém a adaptação à música popular é possível (Bastos e Piedade, 2006; Piedade, 2007). Inclusive, é a partir do classicismo (entre 1770 e 1830) que a música que chamamos de erudita ocidental passa a ser apresentada em teatros e ser orientada para o ouvinte, desta forma, as músicas que Agawu analisa podem ser consideradas de caráter popular na Europa do século XVIII e XIX. Acredito que esta teoria acrescenta para a compreensão da música brasileira no que diz respeito à significação musical (Piedade, 2007). Desta forma, creio que seja pertinente uma análise de tal discurso musical a partir da teoria das tópicas para realizar um estudo sobre a representação do Sul na música instrumental.

Como vimos, a MIB possui forte vínculo com o jazz, sobretudo no que se refere à prática da improvisação. Sendo assim, algumas abordagens analíticas sobre o jazz podem interessar o campo de estudo da música instrumental brasileira e colaborar na análise de tópicas sulistas. Para Cugny (2009, p. 14) existe uma problemática envolvendo a análise do jazz. Em geral as teorias analíticas não abordam este tipo de prática musical, geralmente tratam das músicas ocidentais de tradição escrita, que costumamos chamar de música erudita, ou as de tradição oral. Para o autor, o jazz possui caráter de música escrita, porém a improvisação, que não é música escrita, é uma de suas características principais. Nesse sentido, tanto a musicologia não disporia das ferramentas necessárias para uma análise coerente desta música improvisada, quanto a etnomusicologia também careceria de métodos adequados a esse tipo de empreitada (Cugny, p. 14). Dessa forma, o autor sugere uma musicologia do jazz, adaptada ao estudo deste objeto. Esta musicologia do jazz não abriria mão de métodos já existentes, mas faria uma seleção daquilo que melhor se ajusta a este propósito. Pelo caráter de fusão, ou fricção de elementos musicais/culturais presentes na MIB, o que também ocorre com o jazz, podemos também emprestar a tripartição de Jean Molino, assim como sugere Cugny (2009, p. 15): nível neutro ou imanente (a obra por seu conteúdo próprio), dimensão poiética (processo de produção da obra) e dimensão estésica (recepção da obra). Cugny ressalta a importância de uma análise consistente do nível neutro (forma, motivos, harmonia, ritmo etc), mas também inconcebível analisar uma obra de jazz sem levar em consideração as condições de sua produção e recepção. Para a análise do jazz, o autor seleciona algumas gravações consideradas como referências em termos de arranjo e interpretação de algumas obras. O mesmo procedimento poderia ser facilmente aplicado no universo da música gaúcha e suas representações na MIB, selecionando alguma produção fonográfica que possa ser considerada como referência para a produção tanto de MIB quanto de música gaúcha de maneira geral e seus possíveis cruzamentos. Delimitar este universo fonográfico seria o primeiro passo para este viés analítico. Na dimensão imanente desta produção musical, ou em seu nível neutro, algumas abordagens analíticas também podem vir de empréstimo, como no caso de Tagg (2014) que trata especificamente da música popular. O autor certamente colabora no campo da harmonia em música popular numa perspectiva musicológica atual e pode adensar uma discussão analítica sobre a MIB. Tanto em Cugny (2009) quanto em Tagg (2014) o foco

está basicamente em produções musicais do hemisfério Norte Ocidental, como o jazz e a música pop/rock. Entretanto esses trabalhos apresentam recursos metodológicos que podem ser aplicados em outros contextos, como no caso da MIB. No caso da MIB que toca o Sul do Brasil, penso que há uma ênfase especial no compasso ternário, principalmente em referência aos gêneros chacareira e chamamé. Influências da milonga e do próprio tango também são presentes em alusões sonoras ao ethos sulista na MIB. Timbres, ornamentações e articulações específicos desses gêneros sulistas também são fatores de relevância para uma futura descrição analítica mais detalhada dessas tópicas. Considerações Finais Considero o estudo da música instrumental de grande importância para a pesquisa em música no Brasil atualmente, já que o assunto ainda é pouco contemplado em pesquisas acadêmicas e é de grande importância para a cultura brasileira. Estudar a imagem do Sul do Brasil na música instrumental numa abordagem etnomusicológica é, sem dúvida, estudar a sociedade desta região. Referências Bibliográficas AGAWU, V. Kofi. Playing with signs: a semiotic interpretation of classic music. Princeton: Princeton University Press, 1991. AGOSTINI, Agostinho Luís. O Pampa na cidade: o imaginário social da música popular gaúcha. Dissertação de Mestrado em Literatura e Cultura Regional da Universidade de Caxias do Sul. Caxias do Sul, 2005. BASTOS, Marina Beraldo. Tópicas na Música Popular Brasileira: Uma análise semiótica do choro e da música instrumental. Trabalho de Conclusão de Curso do Departamento de Música da UDESC. Florianópolis, 2008. BASTOS, Marina Beraldo e PIEDADE, A. T. C.. O desenvolvimento histórico da “música instrumental”, o jazz brasileiro. Anais do XVI Congresso da ANPPOM. Brasília, 2006. CASTAGNA, Paulo. Avanços e perspectivas na musicologia histórica brasileira. Revista do Conservatório de Música da UFPel, Pelotas, vol. 1, p. 3257, 2008.

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