O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A DISCRIMINAÇÃO POR ORIENTAÇÃO SEXUAL: HOMOFOBIA E HOMOAFETIVIDADE NA DECISÃO DA ADPF 132/ ADI 4.277

June 6, 2017 | Autor: Lawrence Estivalet | Categoria: Direito Constitucional, Género, Direito de família, Homofobia, ADPF 132
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REVISTA CRÍTICA DO DIREITO Só leia se estiver seguro para abandonar o conforto de suas certezas

ISSN 2236-5141 QUALIS B1

NÚMERO 4 - VOLUME 64

Cleomar Rodrigues, dirigente da LCP, foi assassinado por pistoleiros a mando de latifundiários em 22/10/2014

1º de dezembro de 2014 a 31 de março de 2015 Só leia se estiver seguro para abandonar o conforto de suas certezas

FICHA CATALOGRÁFICA

Revista Crítica do Direito nº 1, vol. 9 São Paulo, 2011 Mensal ISSN 2236-5141 QUALIS B1 Vários editores 1. Teoria do Direito - produção científica CDD 341.1 Índice para catálogo sistemático 1. Teoria do direito 341

EDITOR RESPONSÁVEL Vinícius Magalhães Pinheiro CONSELHO EDITORIAL Alysson Leandro Barbate Mascaro Daniel Francisco Nagao Menezes Júlio da Silveira Moreira Roberta Ibañez Thiago Ferreira Lion Tiago Freitas Vinicius Magalhães Pinheiro

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A DISCRIMINAÇÃO POR ORIENTAÇÃO SEXUAL: HOMOFOBIA E HOMOAFETIVIDADE NA DECISÃO DA ADPF 132/ ADI 4.277 Roger Raupp Rios – Bacharel, Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Juiz Federal e Professor do Centro Universitário Ritter dos Reis, no Mestrado Stricto Sensu (Direitos Humanos) e na Graduação. Lawrence Estivalet de Mello – Mestrando em Direito pelo PPGD/UFPR (Programa de Pósgraduação em Direito da Universidade Federal do Paraná), área de concentração Direitos Humanos e Democracia. Bolsista de Mestrado do CNPq. Bacharel em Direito pela UFPEL (Universidade Federal de Pelotas). O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL A DISCRIMINAÇÃO POR ORIENTAÇÃO SEXUAL: HOMOFOBIA E HOMOAFETIVIDADE NA ADPF 132/ ADI 4.277 RESUMO Este artigo analisa a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 132/ADI 4.277, sob a perspectiva do enfrentamento da discriminação por motivo de orientação sexual no direito brasileiro. A partir do exame dos conceitos de homofobia e heterossexismo, investiga os efeitos da ênfase no direito de família como caminho para a afirmação de direitos sexuais no Brasil, tomando como referência os fundamentos da decisão judicial proferida na ADPF 132/ ADI 4.277. Considerando os fundamentos desenvolvidos nos votos que mais se dedicaram às noções de homofobia e de homoafetividade, a análise conclui pela deficiência do enfrentamento à discriminação por orientação sexual, em virtude da do conteúdo assimilacionista do conceito de homoafetividade, veiculado na justificação do julgado. Palavras-chave: direito da antidiscriminação - discriminação por orientação sexual direitos sexuais -– direito de família – homofobia – homoafetividade – ADPF 132/ ADI 4277 ABSTRACT

This paper analyses the Supremo Tribunal Federal ruling on ADFP 132/ADI 4.277, focusing on the sexual orientation discrimination issue in the Brazilian legal system. Taking into account the concepts of homophobia and “homoaffectivity” in the reasoning of the decision, it considers the consequences of locating the debate on sexual rights in the field of Family Law in the Brazilian experience. Examining the opinions in which the notions of homophobia and “homoaffectivity” are more developed, it concludes that the reproval against sexual orientation discrimination provided by the ruling is deficient, considering the assimilationist ideology embedded in the notion of “homoaffectivity”. Keywords: sexual rights – family law – homophobia – homoaffectivity – ADPF 132/ ADI 4277

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INTRODUÇÃO Desde a década de 1980, o Estado brasileiro é terreno de movimentações políticas em prol da diversidade sexual e dos direitos daqueles que se denominam LGBTs 1. Os movimentos não foram em vão: na Constituição Federal de 1988 foram consagrados, como princípios fundamentais da nossa República Federativa, dentre outros, os da igualdade geral, da proibição de discriminação por motivo de sexo, da liberdade geral e da liberdade sexual. Diante disso, colocou-se o desafio da adequada interpretação destes princípios, apta a enfrentar a discriminação por motivo de orientação sexual, promovendo a concretização da igualdade geral em igualdade sexual, da liberdade geral em liberdade sexual e, em especial, da proibição de discriminação por motivo de sexo em proibição de discriminação por motivo de orientação sexual. Promulgada a Constituição de 1988, a partir de meados da década de 1990, iniciam-se de forma significativa os primeiros precedentes judiciais afirmando a proibição de discriminação por orientação sexual. Desde então, na experiência jurídica brasileira, o desenvolvimento de direitos sexuais vinculados à orientação sexual registra a adoção de duas vias: demandas acerca de direitos relativos à seguridade social e demandas no direito de família. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal firma precedente histórico neste campo. Na decisão judicial proferida conjuntamente na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132 e na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 2, o tribunal enfatizou, dentre vários argumentos, a força dos direitos fundamentais da igualdade (compreendida como igualdade sexual) e da liberdade (também compreendida como liberdade sexual), ao mesmo tempo em que salientou a reprovação constitucional da discriminação por motivo de orientação sexual, lançando mão da noção de homofobia. Ao mesmo tempo, o julgado valeu-se, de modo explícito e recorrente, da ideia de homoafetividade, a fim de legitimar o enfrentamento da discriminação homofóbica, assim concretizando os direitos de liberdade e de igualdade sexuais, bem como o respeito à dignidade humana. Este artigo analisa os fundamentos presentes nos votos onde foram articuladas de modo mais explícito e extenso as noções de homofobia e homoafetividade (Ministros Ayres Britto, Celso de Mello e Marco Aurélio), voltando sua atenção e preocupação com a concretização dos direitos invocados objetivando o enfrentamento à homofobia. Por mais relevante que possa ser, não se trata de investigar o conteúdo deste precedente histórico do ponto de vista do direito de família, mas sim de perguntar-se sobre a adequação da categoria “homoafetividade” em face do enfrentamento da homofobia. A reflexão ora desenvolvida desemboca na conclusão pela insuficiência e inadequação da ênfase na homoafetividade como estratégia argumentativa para o enfrentamento da discriminação por orientação sexual e para a concretização da igualdade e da liberdade sexuais, em virtude do conteúdo assimilacionista a ela inerente. Superar posturas assimilacionistas ao concretizar as normas constitucionais é tarefa urgente e necessária, na medida em que continuam alarmantes os dados da violência homofóbica em nosso país (como atestam, por exemplo, aqueles veiculados pelo Grupo Gay da Bahia3). 1

Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, segundo classificação adotada pela ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais). 2

Neste trabalho, referir-se-á ao julgado como “ADPF 132/ ADI 4.277”.

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O Grupo Gay da Bahia (GGB) divulga, anualmente, relatório acerca de assassinatos de homossexuais, a partir de sistematização de notícias de jornal a respeito do tema. Segundo a entidade, o Brasil é o país onde mais ocorrem assassinatos fundados em homofobia no mundo. Foram 266 assassinatos em 2011, seis a mais do que 2010 e 118% a mais do que em 2007, quando o número total de assassinatos foi de 122. Ainda que os dados sejam passíveis de questionamento acerca de sua cientificidade, é inegável que um mesmo método, repetido em diversos anos, aponta ao menos tendências de crescimento dos

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Para tanto, o artigo divide-se em duas partes, tendo cada um delas duas seções. O primeiro capítulo apresenta os conceitos a partir dos quais serão analisados os votos indicados no julgamento da ADPF 132/ADI 4.277. Na primeira seção deste capítulo, examinam-se o conceito de homofobia e a repercussão no debate sobre direitos sexuais e direito de família. Na segunda seção, apresenta-se uma tipologia das decisões judiciais favoráveis a direitos sexuais, mediante a identificação das mais importantes tendências presentes nas respectivas fundamentações, quadro que permitirá a análise do julgado. A segunda parte examina os votos onde as categorias “homoafetividade” (Ministro Ayres Britto) e “homofobia” (Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello) foram mais abordadas (primeira seção). A seção seguinte conclui pela deficiência no enfrentamento da homofobia, decorrente da ênfase na homoafetividade como categoria justificadora e legitimadora da proteção antidiscriminatória.

1. HOMOFOBIA, JURISPRUDÊNCIA

DIREITOS

SEXUAIS

E

DIREITO

DE

FAMÍLIA

NA

Pois a política, dado que é constituída graças a esse discurso de inteligibilidade, exige que assumamos uma posição a favor ou contra o casamento gay; mas a reflexão crítica, que com certeza é parte de qualquer filosofia e prática política seriamente normativa, exige que se interrogue por que e como isso se transformou no problema, o problema que define o que irá ou não se qualificar como discurso político significativo. Por que, sob as condições presentes, a própria perspectiva de “se tornar política” depende da nossa habilidade de operar dentro da lógica binária instituída discursivamente e não se interrogar, e se empenhar em não saber, se o campo sexual é violentamente restrito pela aceitação desses termos? (BUTLER, 2003, p. 228) Perguntar-se sobre o adequado enfrentamento da homofobia pela ADPF n.º 132/ ADI n.º 4.277 requer identificar qual a compreensão desenvolvida acerca desta modalidade de discriminação, bem como contrastá-la com o estado da arte sobre o tema. Como se constata pela leitura do julgamento como um todo, no que não diferem os votos referidos, a noção de homofobia é veiculada sob as perspectivas dos direitos sexuais e o do direito de família, a começar, pelo fato de o julgamento cuidar de hipótese (reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo) que intersecciona estas áreas. Deste modo, serão analisados, de modo destacado mas relacionado, os conceitos de homofobia e a relação entre os direitos sexuais e o conceito jurídico de família, objetivando a compreensão do julgamento sob a perspectiva do enfrentamento da homofobia. 1.1 HOMOFOBIA, DIREITOS SEXUAIS E DIREITO DE FAMÍLIA O conceito de homofobia surge no cenário científico e político no séc. XX, acionado para denunciar o preconceito e a discriminação arbitrários contra homossexuais (BORRILLO, 2009:15). Antes disso, desde o séc. XIX, tratava-se de associar à homossexualidade, considerada em si mesma e no contexto maior das variações da sexualidade humana, um juízo positivo ou negativo. índices de homofobia. Recomenda-se a análise das tendências de crescimento por ano das tabelas apontadas pelo GGB, conforme os links a seguir. No ano de 2004: ; no ano de 2009: ; e em 2010: .

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Nesse sentido, a ideia mesma de homofobia propõe um determinado modo na compreensão da homossexualidade. Isso porque, em matéria de sexualidade, as aproximações científicas e políticas não foram desenvolvidas de modo respeitoso ou neutro, muito menos com posturas livres de preconceito. Numa perspectiva histórica, percebe-se que a sexualidade nem sempre exigiu a cristalização de papeis, sendo muito comum ser entendida enquanto prática, e não enquanto identidade. Sobre as práticas sexuais, Foucault diferencia dois procedimentos que historicamente foram viabilizados para a produção de verdade sobre a sexualidade. Por um lado, a ars erotica4, típica de regiões como China, Japão, Índia e nações árabes-muçulmanas; por outro, a scientia sexualis 5, que virá a serviço de uma espécie de controle da sexualidade, a partir de diferentes mecanismos. Assim é que, com o advento do cristianismo, somado à teoria neoplatônica acerca do corpo e do uso dos prazeres, restaram cristalizados, cada vez mais, identidades sexuais, inicialmente em decorrência da moralidade cristã. Como afirma Funari (2002, p. 52), a sexualidade foi culpabilizada e passou a ser percebida como uma esfera da realidade a ser submetida a um processo de confissão. Mais do que isso, contudo, diferentes mecanismos de controle foram deslocados sobre este campo da vivência humana, associando-se à moralização procedimentos de vigilância e de controle da sexualidade. É como se manifesta a scientia sexualis, instituindo procedimentos de produção de verdade sobre o corpo, excluindo dos padrões de normalidade tudo o que não fosse adstrito ao aceito hegemonicamente. Assim, a percepção e o tratamento da sexualidade, nos diversos níveis e esferas de organização e de constituição da vida individual e social, são desenvolvidos em consonância com a heterossexualidade, instituindo o heterossexismo, sendo este entendido como conjunto de normas e padrões sociais que afirmam a heterossexualidade como forma de sexualidade “natural” na sociedade contemporânea. Com base neste padrão social, tudo que se desvia da “heterossexualidade compulsória” (BUTLER, 2003) é considerado errado, anormal, bizarro, inaceitável, pecaminoso, doente. A homofobia, neste contexto, designa o tratamento discriminatório e arbitrário que corresponde ao heterossexismo. Assim, diferem-se o heterossexismo e a homofobia por ser aquele o conjunto de padrões sociais, de diferentes mecanismos de controles e produção da verdade, a partir do qual se ordena a sociedade em que a heterossexualidade é compulsória, enquanto a homofobia, em outro sentido, trata-se da dinâmica excludente, de formas de violência ocorridas contra aqueles que desviam do padrão heterossexista hegemônico. O campo do direito de família, a partir dos papeis cristalizados de gênero e de determinada moralidade sobre a sexualidade, acabou por legitimar e naturalizar um único modelo de família. Mais que simplesmete uma determinada comunidade dentre outras, esta família foi afirmada como a base da sociedade. No seio desta comunidade determinada, que é a família heterossexual monogâmica, não há lugar para o respeito à diversidade de práticas sexuais e à não-cristalização dos papeis gênero, uma vez que incompatível com tudo o que dissociado na norma heterossexista. Do ponto de vista das relações de gênero, é nesta estrutura familiar que se produz a cristalização de determinados papeis sociais ao homem e à mulher, a partir de uma visão 4

“Na arte erótica, a verdade é extraída do próprio prazer, encarado como prática e recolhido como experiência; não é por referência a uma lei absoluta do permitido e do proibido, nem a um critério de utilidade, que o prazer é levado em consideração, mas, ao contrário, em relação a si mesmo: ele deve ser conhecido como prazer, e portanto, segundo sua intensidade, sua qualidade específica, sua duração, suas reverberações no corpo e na alma (...). Dessa forma constitui-se um saber que deve permanecer secreto, não em função de uma suspeita infâmia que marque seu objeto, porém pela necessidade de mantê-lo na maior discrição, pois segundo a tradição, perderia sua eficácia e sua virtude ao ser divulgado” (FOUCAULT, 2007, pp. 65 e 66). 5 “Nossa civilização, pelo menos à primeira vista, não possui ars erotica. Em compensação é a única, sem dúvida, a praticar uma scientia sexualis. Ou melhor, só a nossa desenvolveu, no decorrer dos séculos, para dizer a verdade do sexo, procedimentos que se ordenam, quanto ao essencial, em função de uma forma de poder-saber rigorosamente oposta à arte das iniciações e ao segredo magistral, que é a confissão” (FOUCAULT, 2007, p. 66).

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binária; assim são instituídas a masculinidade e a feminilidade, atributos tidos como índices de normalidade encontráveis apenas em relacionamentos heterossexuais. Esta dinâmica é alimentada e reproduz o heterossexismo, ao estabelecer padrões de sexualidade, de gênero, em determinadas formas de conjugalidade. Ainda que haja, como denomina Butler, “fronteiras variáveis” nesta configuração heterossexista, elas não são senão manifestações de sexualidades não-hegemônicas, resistentes no interior de papeis sociais desempenhados de forma artificial 6. Elas revelam a tensão presente no interior do padrão heterossexista hegemônico. Estas fronteiras variáveis não comportam, de fato, aqueles que são inequivocamente excluídos do padrão de normalidade heterossexual binário. É o caso de gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis, cujas práticas são tidas como ilegítimas socialmente, moralmente inaceitáveis. Neste espaço entre práticas ilegítimas e práticas legítimas, Butler identifica o heterossexismo compulsório, que leva os excluídos pela norma hegemônica a buscarem legitimar suas práticas sexuais mediante a aceitação dos papeis designados à sexualidade na família. Daí a serem avaliadas como problemáticas, por exemplo, algumas defesas do casamento gay, a depender de seus fundamentos e objetivos (BUTLER, 2003, p. 228). Com efeito, percebe-se a busca de legitimidade por parte de alguns identificados como moralmente inaceitáveis, por meio do adaptar-se à configuração hegemônica da família heterossexual. Se este movimento, por um lado, pode aparentar fortalecer a legitimidade destes, por outro, acaba por intensificar a ilegitimidade daqueles que rejeitam adaptar-se. De fato, o que resta àqueles que não se adaptam aos padrões conjugais hegemônicos, nem tampouco o desejam, é uma região, nas palavras de Butler, duplamente desprotegida e excluída: Exigir e receber reconhecimento, segundo normas que legitimam o casamento e deslegitimam formas de alianças sexuais fora do casamento, ou normas que são articuladas em uma relação crítica ao casamento, é deslocar o espaço de deslegitimização de uma parte da comunidade gay para outra ou, mais ainda, é transformar uma deslegitimização coletiva em uma deslegitimização seletiva (BUTLER, 2003, p. 240). Neste movimento de legitimação familista da sexualidade, acirra-se a desqualificação de tudo que não é higienicamente voltado a um sexo reprodutivo, e incluído na conjugalidade heterossexista, como sujo e pecaminoso, convertendo-se em objeto de confissão e de correção (FOUCAULT, 2007). Há algumas décadas, contudo, começam a surgir estudos acadêmicos que contrariam esta perspectiva. No lugar da origem dos hábitos e da solidificação de identidades, estuda-se a origem da violência sobre os hábitos e a construção das identidades. No lugar da origem da diferença, estuda-se a origem do controle sobre o que seja a normalidade. No lugar dos estudos sobre homossexualidades, o olhar volta-se para a homofobia. Após diferentes formas de controle sobre a sexualidade, faz-se necessário deslocar o centro da análise, numa atitude ao mesmo tempo epistemológica e política. Como afirma Borrillo: A recente preocupação com a hostilidade para com gays e lésbicas muda a maneira como a questão vinha sendo problematizada. De fato, em vez de se dedicar ao estudo do comportamento homossexual, a atenção se volta agora para as razões que levaram essa forma de sexualidade a ser considerada, no passado, desviante. Esse deslocamento do objeto de análise sobre a homofobia produz 6

Mesmo no campo da sexualidade inteligível, descobrimos que os pólos binários que ancoram suas operações possibilitam zonas intermediárias e formações híbridas, sugerindo que a relação binária não exaure o campo em questão. De fato, existem zonas intermediárias – regiões híbridas de legitimidade e ilegitimidade – que não têm nomes claros e onde a própria nominação entra em crise produzida pelas fronteiras variáveis, algumas vezes violentas, das práticas legitimadoras que entram em contato desconfortável e, às vezes, conflituoso, umas com as outras (BUTLER, 2003, p. 229).

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uma mudança tanto epistemológica quanto política. Epistemológica porque não se trata exatamenet de conhecer ou compreender a origem e o funcionamento da homossexualidade, mas sim de analisar a hostilidade provocada por esse forma específica de orientação sexual. Política porque não é mais a questão homossexual, mas a homofobia que merece, a partir de agora, uma problematização particular (BORRILLO, 2009, p. 16). Nesta encruzilhada entre a diversidade sexual e o heterossexismo, onde as perspectivas se bifurcam entre a justificação/reprovação da homossexualidade e o enfrentamento da homofobia, é preciso ter presente o conteúdo da jurisprudência nacional diante dos direitos sexuais (com atenção especial àquela que veicula a noção de “homoafetividade”), possibilitando o avançar desta investigação. 1.2. DIREITOS SEXUAIS E HOMOFOBIA NA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA A evolução jurisprudencial brasileira referente aos direitos sexuais7, como também a ADPF 132/ ADI nº 4.277, tornam inequívoca a conexão entre os campos do direito de família, direitos sociais, sexualidade e heterossexismo 8. O exame desta relação revela que o campo do direito de família é historicamente impregnado de heterossexismo, sendo-lhe comum e tido como natural a manutenção de que não sejam incluídos no seu rol de legitimados aqueles e aquelas que constituem relações homossexuais. Roger Raupp Rios e Rosa Oliveira (2012) propõem uma classificação das decisões judiciais de direitos sexuais em quatro categorias, quais sejam, (i) conservadorismo judicial e heterossexismo explícito; (ii) abstencionismo judicial e heteronormatividade implícita; (iii) assimilacionismo familista e homoafetividade; e (iv) diversidade sexual e afirmação dos direitos sexuais. Busca-se, com essa classificação, evitar uma postura celebratória do avanço dos direitos sexuais, desvelando-se um viés crítico acerca dos fundamentos das decisões, a partir da precisão do que sejam tais direitos, identificando-se tensões e tendências no desenvolvimento deste campo. Isto é, perceber que todo discurso jurídico possui uma visão de mundo e elementos conceituais ao fundo, que deve ser desmembrado para que consigamos perceber em que medida, e com quais limitações, a dita “inclusão” da pauta da diversidade sexual vem, efetivamente, combatendo a homofobia e o heterossexismo. É como problematizam:

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Vejam-se RIOS, Roger Raupp. A Justiça e os Direitos de gays e lésbicas: Jurisprudência Comentada. Porto Alegre: Sulina, 2003; e RIOS, R. R. (Org.); Leivas, P (Org.); GOLIN, C. (Org.). Homossexualidade e direitos sexuais: reflexões a partir da decisao do STF. Porto Alegre: Editora Sulina, 2011. 8

Roger Raupp Rios identifica duas tendências na evolução jurisprudencial brasileira. A primeira tendência, de reconhecimento via direitos sociais, principalmente previdenciário, é seguida de uma segunda tendência das decisões judiciais acerca de direitos sexuais, a saber, a que os reconhece mediante o direito de família. Segundo Rios, “não é difícil perceber que, em muitos casos, a inserção de conteúdos antidiscriminatórios relativos à orientação sexual valeu-se de argumentos de direito de família” (RIOS, 2011, p. 296). Essa segunda tendência, entretanto, traz junto de si conservadorismos importantes, como o autor menciona a seguir: “Ainda nesta linha, a formulação de expressões, ainda que bem intencionadas, como ‘homoafetividade’, revela uma mentalidade homonormativa. Conservadora, na medida em que subordina os princípios de liberdade, igualdade e não-discriminação, centrais para o desenvolvimento dos direitos sexuais (Rios 2007) a uma lógica assimilacionista; discriminatória, porque, na prática, distingue uma condição sexual ‘normal’, palatável e ‘natural’ de outra assimilável e tolerável, desde que bem comportada e ‘higienizada’. Com efeito, a sexualidade heterossexual não só é dizível como tomada por referência para nomear o indivíduo ‘naturalmente’ detentor de direitos (o heterossexual, que não necessita ser heteroafetivo), enquanto a sexualidade do homossexual é expurgada pela ‘afetividade’, numa espécie de efeito mata-borrão” (RIOS, 2011, p. 296).

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É o que sugere, por exemplo, a leitura de precedentes judiciais que defenderem direitos ao argumento de que, afora a igualdade dos sexos, os partícipes da relação reproduzem em tudo a vivência dos casais heterossexuais – postura nitidamente nutrida na lógica assimilacionista. Nesta, o reconhecimento dos direitos depende da satisfação de predicados como comportamento adequado, aprovação social, reprodução de uma ideologia familista, fidelidade conjugal como valor imprescindível e reiteração de papeis definidos de gênero. Daí, inclusive, a dificuldade de lidar com temas como prostituição, travestilidades, liberdade sexual, sadomasoquismo e pornografia (OLIVEIRA E RIOS, 2012, p. 13). Assim, o sugerido pelos autores é que se deve perceber a que modelo de conjugalidade se estão associando as sexualidades não-hegemônicas, bem como de que forma prosseguem à margem aqueles que não escolheram nem desejam escolher a conjugalidade monogâmica institucional como forma de expressar sua sexualidade. É quaternária a tipologia propostas pelos autores, proposta a partir de padrões discursivos que revelam diversos graus entre posturas heterossexistas e valorações positivas ou negativas da homossexualidade (OLIVEIRA E RIOS, 2012, P. 15). Entre essas possibilidades, há que se destacar, especificamente, duas tipologias, quais sejam, a do “Conservadorismo Judicial e heterossexismo explícito” e a do “Assimilacionismo familista e homoafetividade”. Elas são, de fato, as duas grandes correntes de pensamento presentes nos votos da ADPF n.º 132/ ADI n.º 4.277, como se demonstrará abaixo. A linha decisória que acompanha o padrão do “Conservadorismo Judicial e heterossexismo explícito” está presente nas decisões em que o raciocínio judicial expõe manifestações negativas quando à homossexualidade, havendo ou não sucesso na decisão judicial por parte dos proponentes da ação. Assim classificam os autores: “trata-se de modalidade de raciocínio judicial informada por uma classificação hierárquica das diversas manifestações da sexualidade, subordinadas à matriz heterossexual todas demais expressões” (OLIVEIRA E RIOS, 2012, p.16). A ADPF 132/ ADI 4.277 poderia incorrer nesta modalidade caso os Ministros, ao pronunciarem seus votos, expusessem entendimento de que os homossexuais não poderiam ter o objeto de sua ação reconhecido, eis que seu relacionamento, ontologicamente, é inferior aos relacionamentos heterossexuais. Isso, como se sabe, não ocorreu, ainda que tenha havido, no voto do Ministro Lewandowski, o traçado de uma distinção entre o que seria uma “união estável homossexual” e uma “união homossexual estável”. De fato, essa modalidade discursiva pode ser também identificada quando os Ministros, no decorrer das fundamentações, reconhecem o objeto da ação, ressalvando, contudo, não se tratar do mesmo tipo de relacionamento, eis que desadaptado, desabrigado, diferente enfim do relacionamento heterossexual, devendo ter as consequências jurídicas do reconhecimento discutidas. Esse padrão discursivo pode ser identificado nos votos dos Ministros Ricardo Lewandowski9, Gilmar Mendes10 e César Peluzo11, que se sustentam sob o argumento de que 9

“Em suma, reconhecida a união homoafetiva como entidade familiar aplicam-se a ela as regras do instituto que lhe é mais próximo, qual seja, a união estável heterossexual, mas apenas nos aspectos em que são assemelhados, descartando-se aqueles que são próprios da relação entre pessoas de sexo distinto [grifo nosso], segundo a vetusta máxima ubi eadem ratio ibi idem jus, que fundamenta o emprego da analogia no âmbito jurídico” (LEWANDOWSKI, 2011, p. 719). 10 O Ministro Gilmar Mendes percorre um caminho de complexificação do que seja a união homossexual, insinuando que deve ser examinada com cuidado, e não meramente reconhecida como o é a entidade familiar heterossexual. Contudo, a união estável é uma modalidade de entidade familiar que reconhecidamente busca desburocratizar e tornar menos formal os procedimentos de constituição de família, em evidente contraposição ao instituto do casamento civil. O Ministro, portanto, nutre-se de lógica claramente heterossexista, que impõe dificuldades desnecessárias, de controle, sobre o que venha a ser o reconhecimento da união estável entre pares não-heterossexuais. Sobre as consequências do reconhecimento, ainda, podemos perceber mais explicitamente a diferenciação realizada pelo Ministro Gilmar Mendes, ao citar que as famílias não-heterossexuais foram, em diversos países, regulamentadas em leis próprias: “Me pus a pensar sobre questões que afligem os próprios cultores do Direito Comparado, eu me lembro de que estava em Portugal quando foi promulgada a lei do casamento de

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as entidades familiares previstas pela Constituição Federal são determinadas pelos papeis de gênero, não cabendo flexibilizar a leitura estrita do trecho “entre homem e mulher” do art. 226 da CF/88, mas sim pensar como visualizar a técnica da analogia12. Em diferentes sentido e grau, encontra-se outra modalidade de discurso judicial que, embora não explicitamente conservadora, como a supramencionada, é em alguma medida também heterossexista, ao reafirmar padrões de sexualidade, limitando-a e higienizando-a. Trata-se do que tais autores denominam “Assimilacionismo familista e homoafetividade”. Essa tendência, predominante também em decisões locais e regionais que asseguravam direitos civis desde antes da decisão judicial da ADI nº 4.277, tem como duas marcantes características o assimilacionismo e o familismo. O primeiro, conforme definem, “onde membros de grupos subordinados ou tidos como inferiores adotam padrões oriundos de grupos dominantes, em seu próprio detrimento”; o segundo, “entendido como tendência a subordinar o reconhecimento de direitos sexuais à adaptação a padrões familiares e conjugais institucionalizados pela heterossexualidade compulsória” (OLIVEIRA E RIOS, 2012, p.16).

A conjugação desses dois conceitos, mais do que mera coincidência, funciona como um mecanismo de resposta ao que seja a legitimação estatal das relações entre pares do mesmo sexo. É o que Butler (2003) chama de “heterossexualidade compulsória”. No decorrer do processo, são diferenciados valores e padrões tidos como positivos e negativos e, se antes todas as relações não-heterossexuais eram negativas, algumas delas, desde que adaptadas, passam a ser aceitas. Desse modo, então, é que a afetividade passa a ser um conceito chave para o heterossexismo. Se observarmos o histórico da estrutura familiar, a afetividade só passa a ser considerada central a partir da época moderna, entendendo-se ela como um elemento constitutivo que se contrapõe ao formalismo anteriormente essencial a estruturas mais rígidas, como o casamento. Nesse sentido, embora recente, ela funciona como o elemento “legitimador” da homossexualidade nas decisões judiciais. É como afirmam Rosa e Rios: Neste contexto, a identificação do “afeto” como fator distintivo dos relacionamentos e identificador dos vínculos familiares cumpre função anestésica e acomodadora da diversidade sexual às normas da heterossexualidade compulsória, na medida em que propõe a “aceitação” da homossexualidade sem qualquer questionamento mais intenso dos padrões sexuais hegemônicos. Isto porque a “afetividade” acaba funcionando como justificativa para a aceitação de dissonâncias à norma heterossexual servindo como um mecanismo de anulação, por compensação, de práticas e preferência sexuais pessoas do mesmo sexo, e lá saiu a restrição quanto à adoção. Sistemas diversos têm dado disciplinas específicas ao tema. Eu vejo aqui, por exemplo, a lei recente da Argentina, que contém – claro que trata de todo tema do matrimônio, com as modificações – nada mais, nada menos, do que quarenta e dois artigos” (MENDES, 2011, pp. 745 e 746). 11 "E se deve preenchê-la [a lacuna], segundo as regras tradicionais, pela aplicação da analogia, diante, basicamente, da similitude – não da igualdade [grifo nosso] –, da similitude factual entre ambas as entidades de que cogitamos: a união estável entre o homem e a mulher e a união entre pessoas do mesmo sexo. E essa similitude entre ambas situações é que me autoriza dizer que a lacuna consequentemente tem que ser preenchida por algumas normas. E a pergunta é: por que classe de normas?" (PELUZO, 2011, p. 874) 12

Sobre a lacuna normativa, também afirma Peluzo: “E a segunda consequência é que, na disciplina dessa entidade familiar recognocível à vista de uma interpretação sistemática das normas constitucionais, não se pode deixar de reconhecer – e esta é o meu fundamento, a cujo respeito eu peço vênia para divergir da posição do ilustre Relator e de outros que o acompanharam nesse passo – que há uma lacuna normativa, a qual precisa ser preenchida” (PELUZO, 2011, p. 874).

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heterodoxas, cujo desvalor fica contrabalanceado pela “pureza dos sentimentos”. Desta forma, opera-se uma assimilação ao mesmo padrão que se buscava enfrentar, produzindo a partir daí um novo rol de exclusões (OLIVEIRA E RIOS, 2012, p. 19). Com isso, podemos perceber que o debate tido na Corte Constitucional brasileira enfrenta conceitos complexos, com diferentes perspectivas, cuja falta de precisão terminológica pode traduzir um combate deficiente à homofobia. Não se trata apenas de identificar o conservadorismo explícito, presente em alguns votos, mas de buscar entender em que medida se diferenciam os discursos com presença mais forte de elementos de combate à homofobia, por um lado, e os que se sustentam sob o argumento da necessidade de reconhecimento da homoafetividade, por outro. Estes, como será visto, possibilitam uma discussão circunscrita ao direito de família, ignorando a necessidade de situar o panorama dos direitos sexuais e de combate ao heterossexismo e à homofobia. 2. A DECISÃO DO STF NA ADPF 132/ ADI 4.277 E O ENFRENTAMENTO À HOMOFOBIA: HOMOAFETIVIDADE E PROTEÇÃO DEFICIENTE A decisão judicial proferida na ADPF 132/ ADI 4.277 tem importância histórica incontestável. Com efeitos ex tunc, passa a reconhecer entidades familiares antes mantidas à margem do ordenamento legal brasileiro. Reconhece constitucionalmente, ademais, princípios caros aos direitos sexuais, como a igualdade sexual e a liberdade sexual. Nesta, passa a entender-se protegido também o direito à intimidade sexual e à privacidade sexual. É nesta decisão, ainda, que finalmente é consagrada pela ordem constitucional brasileira a proibição de discriminação por orientação sexual no interior da proibição de discriminação por motivo de sexo. Trata-se de mecanismo não apenas de reconhecimento dos direitos sexuais, mas efetivamente de postura explícita de combate à homofobia e à transfobia. O reconhecimento dos direitos sexuais mencionados pode fazer avançar nosso país como um daqueles aptos a desenvolver um sistema de enfrentamento da homofobia na América Latina13. Entretanto, a avaliação de quão robusta pode ser este enfrentamento depende da compreensão que seê à homofobia e ao heterossexismo, o que exige uma análise da fundamentação do precedente jurisprudencial em questão, verificando-se em que medida seu conteúdo efetivamente é capaz de apreender os fenômenos da homofobiae e do heterossexismo. Desse modo, proceder-se-á à descrição dos votos que possuem mais centralmente elementos de combate à homofobia e de fundamentação da homoafetividade. Após, ao exame de que medida a fundamentação desenvolvida, ao enfatizar a categoria da homoafetividade, revela-se apta para o enfrentamento da homofobia. 2.1 HOMOFOBIA E HOMOAFETIVIDADE NA ADPF 132/ ADI 4.277 Podem ser identificados, na decisão do Supremo Tribunal Federal, três votos centrais para a investigação sobre a compreensão da homofobia e da homoafetividade. De um lado, aqueles que se debruçam de modo mais específico sobre o que seja a homofobia e a necessidade de seu combate. De outro, aquele que se dedica mais à idéia de homoafetividade. 13

Observa-se um avanço mais nítido dos direitos reprodutivos e sexuais, na América Latina, em alguns países. Na Argentina, por exemplo, desde 2004 a Cidade de Buenos Aires reconhece as uniões civis homossexuais; na Nicarágua, a Lei n. 423 de 2002, no Código Geral de Saúde, incorpora o respeito aos direitos sexuais e reprodutivos; no Equador, a Constituição Federal de 1998, no artigo 23, item 03, explicitamente protege a liberdade de orientação sexual e a não-discriminação; nas Bahamas, a Lei n. 26 de 2003 prevê que a vida sexual como âmbito de privacidade dos indivíduos; na Colômbia, a Lei n. 599 de 200 proíbe e penaliza a discriminação por orientação sexual (BUGLIONE, 2007, pp. 97 e 98). Por outro lado, há países onde o avanço dos direitos sexuais encontra barreiras mais firmes, como Costa Rica, Cuba, El Salvador, Chile e Porto Rico. Nesses, podemos observar desde criminalização da prática homossexual até retrocesso de reconhecimento de direitos civis. Afirma Buglione: "O que se observa na América Latina e no Caribe de forma geral é que ainda não há uma perspectiva que integre os diversos direitos relacionados à sexualidade, quando muito há uma visão sobre a existência de alguns direitos referentes à saúde e à reprodução. O que há são previsões pontuais de reconhecimento e garantia de direitos" (BUGLIONE, 2007, p. 99).

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Trata-se, respectivamente, dos votos dos Ministros Celso de Mello e Marco Aurélio e do voto do Ministro Ayres Britto. Com efeito, o voto do Ministro Britto é aquele com maior aprofundamento a respeito do princípio da liberdade, que consagra os já referidos direitos à igualdade sexual e à liberdade sexual, bem como à intimidade sexual e à privacidade sexual. É nele, além disso, que está presente a proibição de discriminação por orientação sexual como decorrência da proibição de discriminação por motivo de sexo. No entanto, a manifestação do Ministro Relator volta-se com maior ênfase à noção de homoafetividade. 2.1.1. O voto do Ministro Ayres Britto: direitos sexuais e homoafetividade A manifestação do Ministro Relator toma como ponto de partida direitos fundamentais enumerados na Constituição Federal, em especial os direitos à liberdade (concretizada em liberdade sexual) e à igualdade (concretizada em igualdade sexual). Ela busca descrever o domínio dos direitos sexuais, quando da fundamentação da proibição da discriminação por motivo de sexo, por meio da caracterização do que seja sexo 14 e também do que seja sexualidade15, contextualizando-os em dados biológicos. A sexualidade, no seu raciocínio, é “natural”, isto é, faz parte do mundo da vida. Essa descrição, todavia, emcontraste com as dinâmicas do heterossexismo e da homofobia, mostrase fragilizada. Ela efetivamente distancia-se das dinâmicas sociais e culturais do heterossexismo, na medida em que sua argumentação tende a afirmar, com base neste argumento, uma equivalência entre as práticas não-heterossexuais e aquelas hegemônicas, afastando valorações inferiorizantes. Nesta esteira, o voto propõe uma leitura do caput do art. 226, nele incluindo as uniões entre pessoas do mesmo sexo, ao que vincula determinadas concepções de família, homoafetividade, sexualidade e homofobia. Assim, partindo da constatação de que vivemos em uma sociedade em que “nada incomoda mais as pessoas do que a preferência sexual alheia, quando tal preferência já não corresponde ao padrão social da heterossexualidade” (BRITTO, 2012, p. 627), afirma ser necessário que se perceba e se aceite a homoafetividade, entendida nos seguintes termos: “Verbete de que me valho no presente voto para dar conta, ora do enlace por amor, por afeto, por intenso carinho entre pessoas do mesmo sexo, ora da união erótica ou por atração física entre esses mesmos pares de seres humanos” (BRITTO, 2012, p. 630). 14

“O órgão a tomar o nome do ser em que anatomicamente incrustado. Mas "sexo" ou "aparelho sexual" como signo linguístico de um sistema de órgãos cumpridores das elementares funções de estimulação erótica, conjunção carnal e reprodução biológica. Três funções congênitas, como sabido, e que, por isso mesmo, prescindentes de livres, escola, cultura ou até mesmo treinamento para o seu concreto desempenho” (BRITTO, 2012, pp. 633 e 634). Neste trecho, encontra-se assentado o conceito de sexo de Britto, que pode ser lido como biologicista, o que dificulta ou impossibilita a extensão do direito de antidiscriminação, fundado no sexo, a transexuais e travestis. 15

“Afinal, a sexualidade, no seu notório transitar do prazer puramente físico para os colmos olímpicos da extasia amorosa, se põe como um plus ou superávit de vita. Não enquanto um minus ou déficit existencial. Corresponde a um ganho, um bônus, um regalo da natureza, e não a uma subtração, um ônus, um peso ou estorvo, menos ainda a uma repriumenda dos deuses em estado de fúria ou de alucinada retaliação perante o gênero humano. (...) Nesse movediço terreno da sexualidade humana é impossível negar que a presença da natureza se faz particularmente forte. Ostensiva. Tendendo mesmo a um tipo de mescla entre instinto e sentimento que parece começar pelo primeiro, embora sem o ortodoxo sentido de pulsão. O que já põe o Direito em estado de alerta ou de especiais cuidados para não incorrer na temeridade de regulamentar o factual e axiologicamente irregulamentável. A não ser quando a sexualidade de uma pessoa é manejada para negar a sexualidade da outra” (BRITTO, 2011, p. 637).

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Assentado isso, passa a explicitar sua compreensão da comunidade familiar. A percepção que demonstra acerca da homofobia, longe de ser dimensionar suas diversas dimensões (como faz, por exemplo, Borrillo, ao elencar as dimensões psicológica, social e institucional (2009)), acaba por enfatizar a homofobia no contexto do “não aceitar que homossexuais possam constituir família”,. Daí extrai um conceito não-reducionista de família, a fim de evitar um discurso homofóbico: Assim interpretando por forma não-reducionista o conceito de família, penso que este STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo da coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico (BRITTO, 2011, p. 649). Registre-se que este é o único momento, na argumentação desenvolvido pelo voto do relator, onde há menção ao termo homofobia, vinculado à comunidade familiar e à afirmação da homoafetividade. 2.1.2. O voto do Ministro Marco Aurélio: homofobia e diversidade sexual Com foco bem diverso, o voto do Ministro Marco Aurélio prima pela ênfase no conceito de homofobia. Ele registra: Em 19 de agosto de 2007, em artigo intitulado “A igualdade é colorida”, publicado na Folha de São Paulo, destaquei o preconceito vivido pelos homossexuais. O índice de homofobia é revelador. Ao ressaltar a necessidade de atuação legislativa, disse, então, que são 18 milhões de cidadãos considerados de segunda categoria: pagam impostos, votam, sujeitam-se a normas legais, mas, ainda assim, são vítimas preferenciais de preconceitos, discriminações, insultos e chacotas, sem que lei específica coíba isso. Em se tratando de homofobia, o Brasil ocupa o primeiro lugar, com mais de cem homicídios anuais cujas vítimas foram trucidadas apenas por serem homossexuais (AURÉLIO, 2011, p. 809). Diante da idéia de família, o Ministro acentua sua historicidade e conexão com os interesses de classe de cada época: A união de pessoas com o fim de procriação, auxílio mútuo e compartilhamento de destino é um fato da natureza, encontra-se mesmo em outras espécies. A família, por outro lado, é uma construção cultural. Como esclarece Maria Berenice Dias (Manual de direito das famílias, 2010, p. 28), no passado, as famílias formavamse para fins exclusivos de procriação, considerada a necessidade do maior número possível de pessoas para trabalhar em campos rurais. Quanto mais membros, maior a força de trabalho, mais riqueza seria possível extrair da terra. Os componentes da família organizavam-se hierarquicamente em torno da figura do pai, que ostentava a chefia da entidade familiar, cabendo aos filhos e à mulher posição de subserviência e obediência. Esse modelo patriarcal, fundado na hierarquia e no patrimônio oriundo de tempos imemoriais, sofreu profundas mudanças no tempo da revolução industrial, quando as indústrias recém-nascidas passaram a absorver a mão de obra nos centros urbanos. O capitalismo exigiu a entrada da mulher no mercado de trabalho, modificando para sempre o papel do sexo feminino nos setores públicos e privados. A aglomeração de pessoas em espaços cada vez mais escassos nas cidades agravou os custos de manutenção da prole, tanto assim que hoje se pode falar em família nuclear, em contraposição à família extensa que existia no passado (AURÉLIO, 2011, p. 813).

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Ao longo de suas razões, em alguns momentos, recorre à idéia de homoafetividade a fim de legitimar a qualificação das uniões homossexuais à categoria de união estável 16, problematizando o tema considerando a constitucionalização do direito civil, que passa do plano do ter para o plano do ser17. Neste contexto, a maior ênfase dada pelo Ministro é referente ao caráter contramajoritário dos direitos fundamentais 18, à fundamentação histórica das estruturas familiares e à necessidade de combate à homofobia, bem como à defesa da não-discriminação 19 e da liberdade de orientação sexual . Isso faz com que, sem dúvida, seu voto se aproxime do que seja o padrão de decisões judiciais definido por Oliveira e Rios como “Diversidade sexual e afirmação dos direitos sexuais”. 2.1.3. O voto do Ministro Celso de Melo: homofobia, direitos humanos e democracia constitucional O Ministro Celso de Mello, por sua vez, discorre sobre a homofobia, inicialmente, em perspectiva histórica, salientando a experiência nacional de repressão às práticas homossexuais. Fundamenta a existência de heterossexismo nas instituições sociais, exemplificando, inclusive, a partir da tipificação da prática de relações homossexuais ainda vigente no Código Penal Militar: Vê-se, daí, que a questão da homossexualidade, desde os pródromos de nossa História, foi inicialmente tratada sob o signo da mais cruel 16

“A homoafetividade é um fenômeno que se encontra fortemente visível na sociedade. Como salientado pelo requerente, inexiste consenso quanto à causa da atração pelo mesmo sexo, se genética ou se social, mas não se trata de mera escolha. A afetividade direcionada a outrem de gênero igual compõe a individualidade da pessoa, de modo que se torna impossível, sem destruir o ser, exigir o contrário. Insisto: se duas pessoas de igual sexo se unem para a vida afetiva comum, o ato não pode ser lançado a categoria jurídica imprópria. A tutela da situação patrimonial é insuficiente. Impõe-se a proteção jurídica integral, qual seja, o reconhecimento do regime familiar” (AURÉLIO, 2011. p. 817). 17

“O Direito Civil, sabemos, restringia-se ao ‘ter’. O titular da propriedade era o grande destinatário das normas do Direito Civil, e a propriedade era o direito por excelência. O direito de família oriundo do Código de Bevilácqua concernia a questões patrimoniais. O Direito Civil, na expressão empregada por Luiz Edson Fachin, sofreu uma ‘virada de Copérnico’, foi constitucionalizado e, por consequência, desvinculado do patrimônio e socializado. A propriedade e o proprietário perderam o papel de centralidade nesse ramo da ciência jurídica, dando lugar principal à pessoa. É o direito do ‘ser’, da personalidade, da existência” (AURÉLIO, 2011. pp. 817 e 821). 18

“(...) ressalto o caráter tipicamente contramajoritário dos direitos fundamentais. De nada serviria a positivação de direitos na Constituição, se eles fossem lidos em conformidade com a opinião pública dominante. Ao assentar a prevalência de direitos, mesmo contra a visão da maioria, o Supremo afirma o papel crucial de guardião da Carta da República” (AURÉLIO, 2011, p. 820). 19

“Há, isso sim, a obrigação constitucional de não discriminação e de respeito à dignidade da pessoa humana, às diferenças, à liberdade de orientação sexual, o que impõe o tratamento equânime entre homossexuais e heterossexuais” (AURÉLIO, 2011, p. 821).

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das repressões (LUIZ MOTT, “Sodomia na Bahia: O amor que não ousava dizer o nome”), experimentando, desde então, em sua abordagem pelo Poder Público, tratamentos normativos que jamais se despojaram da eiva do preconceito e da discriminação, como resulta claro da punição (pena de prisão) imposta, ainda hoje, por legislação especial, que tipifica, como crime militar, a prática de relações homossexuais no âmbito das organizações castrenses (CPM, art. 235), o que tem levado alguns autores (MARIANA BARROS BARREIRAS, “Onde está a Igualdade? Pederastia no COM”, “in” “Boletim IBCCRIM, ano 16, nº 187, jun/2008; CARLOS FREDERICO DE O. PEREIRA, “Homossexuais nas Forças Armadas: tabu ou indisciplina?”, v.g.) a sustentar a inconstitucionalidade material de referida cláusula de tipificação penal, não obstante precedente desta Corte em sentido contrário (MELLO, 2011, pp. 832 e 833). O Ministro destaca, em sua fundamentação, a função contramajoritária do Supremo Tribunal Federal no Estado Democrático de Direito, bem como o direito à busca da felicidade, derivado do princípio da dignidade da pessoa humana: Parece-me irrecusável, desse modo, considerado o objetivo fundamental da República de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (CF, art. 3º, IV), que o reconhecimento do direito à busca da felicidade, enquanto idéia-força que emana, diretamente, do postulado constitucional da dignidade da pessoa humana, autoriza, presente o contexto em exame, o rompimento dos obstáculos que impedem a pretendida qualificação da união civil homossexual como entidade familiar (MELLO, 2011, p. 861). O voto em exame também lança mão da idéia de afetividade, todavia como mais um argumento à equiparação das uniões estáveis entre pares do mesmo sexo em relação às uniões estáveis entre pares de sexos distintos, e não como um fator central ou determinante para a legitimidade dessas relações. Com peso argumentativo diverso, a “homoafetividade” é citada em apenas um dos nove tópicos em que o Ministro Celso de Mello fundamenta seu voto, em específico no capítulo de número sete. Perceba-se que, nos outros oito capítulos, o Ministro trata diretamente da importância da intervenção da sociedade civil em julgamentos deste tipo (capítulo 1), do histórico da repressão da sexualidade nas instituições brasileiras (capítulo 2), do imperativo constitucional do reconhecimento da união estável homoafetiva (capítulos 3 e 4), da função contramajoritária do STF (capítulo 5), do direito à busca da felicidade como derivado da dignidade da pessoa humana (capítulo 6), dos Princípios de Yogyakarta, derivados de conferência internacional realizada na Indonésia em 2006 (capítulo 8) e da colmatação de omissões constitucionais (capítulo 9). A menção à afetividade, portanto, é mais um argumento, e não o central, no que concerne à fundamentação do que seja entidade familiar para Celso de Mello, cujo voto solidifica terreno fértil para novos debates constitucionais, como aquele acerca da desconformidade constitucional do art. 235 do Código Penal Militar, explicitamente mencionado. 2.2 ADPF 132/ ADI 4.277: HOMOAFETIVIDADE E ENFRENTAMENTO DEFICIENTE DA HOMOFOBIA Assim sumariado o percurso argumentativo e o modo como as noções de homofobia e de homoafetividade foram apresentadas nos votos referidos, coloca-se a pergunta a respeito do adequado enfrentamento da homofobia, acaso adotada uma ou outra via argumentativa, em especial diante da ênfase com que se registrou a ideia de homoafetividade. Como dito, não se trata de menosprezar a importância da presença ou não de laços afetivos para a experiência familiar, muito menos de olvidar de que se tratava de uma questão de direito constitucional de família. O que se indaga é o conteúdo e o peso que se associaram à noção de homoafetividade, considerando que o não-reconhecimento decorre, precisamente, da

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homofobia. Com efeito, a interpretação constitucional deve primar pela via argumentativa que mire o cerne da questão (a homofobia), afastando soluções que se mostrem deficientes, diante do ordenamento jurídico, para o combate a este tipo de discriminação. Considerando o exposto nas seções anteriores, em especial o papel capital que desempenham os direitos fundamentais da liberdade e da igualdade, há que se evitar que a legitimação das práticas e das identidades sexuais esteja associada a uma categorização onde a noção de gênero submeta-se a um pretenso binarismo radicado na natureza biológica, olvidando-se que a homossexualidade, enquanto categoria identitária, passa a existir apenas no séc. XIX, no quadro político e epistemológico então vigente. De fato, em sentido diverso, a contemporaneidade nos chama atenção para a sexualidade como dispositivo de poder e de controle, o que coloca a questão numa perspectiva diversa da investigação pelas quais uma ou outra orientação sexual deva ser, naturalmente, admitida ou rejeitada. O caminho que conduz à enumeração de determinadas orientações sexuais enquanto identidade social, historicamente, é resultado de hierarquização e padronização das práticas e desejos sexuais, lógica que não colaborando para a construção de uma sociedade que respeite o direito à liberdade e à igualdade sexuais, conforme a própria decisão do STF salienta ser imperativo constitucional. Assim sendo, é necessário problematizar se está sendo trilhado um caminho constitucional adequado, por meio do Supremo Tribunal Federal, à compreensão dada aos direitos sexuais na sua decisão e, em especial, aos fenômenos discriminatórios engendrados pelo heterossexismo e pela homofobia. A fundamentação da decisão, longe de ser etapa secundária em relação à decisão em si, tem efeitos de alta relevância para o desenvolvimento do direito constitucional, por meio da afirmação e consagração de determinadas concepções sobre os direitos fundamentais em jogo e a percepção das realidades discriminatórias, o que certamente tem efeito no exame de outros casos onde esteja em questão discriminação por orientação sexual. A afirmação do direito ao reconhecimento de uniões estáveis homossexuais, acaso calcada basicamente à análise dogmático-jurídica de direito de família, com especial ênfase à categoria da homoafetividade, retira do sistema constitucional de direitos fundamentais força e conteúdos decisivos para o adequado combate à homofobia. Como referido, observa-se a existência de duas tendências na fundamentação dos direitos fundamentais sexuais, presentes na decisão do STF. Uma primeira, aquela que dá ênfase à categoria da homoafetividade para concluir pelo reconhecimento das uniões estáveis homossexuais como entidades familiares. Uma segunda, aquela que dá ênfase no combate à homofobia para daí extrair conseqüências em face do direito de família. A fundamentação da decisão com base na categoria homoafetividade acaba por fragilizar a compreensão dos direitos fundamentais envolvidos e apontar para uma lógica deficiente no combate à homofobia. Com efeito, no único momento em que cita o termo “homofobia”, como já descrito na seção precedente, fá-lo de modo rápido e superficial, o que não responde adequadamente aos desafios encetados pela homofobia. Parece claro que não é o reconhecimento da família para pares não-heterossexuais, por si só, que será capaz de enfrentar a raiz da discriminação, verificada pontualmente no direito de família, que se expressa pela homofobia e pelo heterossexismo. Nesta linha, não causa surpresa que a supervalorização da noção de família, informada pela idéia de homoafetividade, acabe por induzir a uma legitimação da liberdade e da igualdade, no campo da sexualidade, de modo mais fraco. Tudo como se, em detrimento da defesa aberta dos direitos fundamentais, fosse suficiente e adequada uma resposta conservadora à problemática, de jaez familista e assimilacionista. É o que se revela no jugaldo, na medida em que o relator aponta para a necessidade de reconhecimento de um tipo específico de família (“homoafetiva”), assimilando-a ao padrão estabelecido historicamente, ao invés de fundamentar o reconhecimento na necessidade de combate à discriminação, ocorrida em torno justamente da constituição desta estrutura familiar, com suas fundamentações morais, interesses econômicos e cristalização de papeis de gênero. O reconhecimento da legitimidade da homoafetividade não garante a defesa da liberdade e da igualdade sexuais, de modo forte e apto para enfrentar outras manifestações homofóbicas, como, por exemplo, podem sofrer outras identidades e práticas vitimadas pela homofobia. A fundamentação deveria ter ocorrido em sentido inverso: o reconhecimento da liberdade e da igualdade sexuais, que não se circunscrevem ao direito de família, garantem a defesa, inclusive e não apenas, da homoafetividade, cuja presença não é, por si, razão de justificação dos direitos de liberdade e de igualdade.

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De fato, a legitimação das relações e do desejo por pessoa do mesmo sexo, mediante a categoria da homoafetividade, não faz menção à necessidade de proteção constitucional à discriminação que ocorre também em outras situações da vida em que a sexualidade se faz central, como a prostituição, a transexualidade, o acesso à saúde, à educação, ao mercado de trabalho, assim caracterizando o combate à homofobia como circunscrito ao reconhecimento da família, o que obviamente é insuficiente. Saliente-se que não se trata de ignorar que o objeto do controle difuso de constitucionalidade, demandado no julgado, era concernente ao reconhecimento da entidade familiar constituída por pessoas do mesmo sexo, isto é, ao reconhecimento de um direito sexual em tese referente ao direito de família. Pelo contrário, trata-se de perceber que o direito de família, após a Constituição Federal de 1988, não está auto-referenciado, devendo rumar a um sentido transformador, e não meramente adaptativo aos padrões historicamente constituídos. A decisão do Supremo Tribunal Federal supervaloriza, em sua fundamentação, a ênfase à proteção à homossexualidade desde que manifestação de afeto e assimilada aos padrões familiares desenvolvidos em uma cultura heterossexista, em vez de alicerçar-se na necessidade de proteção da liberdade e da igualdade sexuais ameaçadas peloa homofobia. Sublinha-se, portanto, o modo como a sexualidade homossexual homoafetiva será protegida e valorizada, e não a existência de desvalorização e vulnerabilidade de sexualidades historicamente discriminadas, o que vai bem além da dimensão afetiva ou familiar. A questão, portanto, é superestimar a fundamentação afetivista sem o cuidado suficiente no enfrentamento das raízes (homofobia e heterossexismo) que põe em risco a efetividade dos direitos fundamentais que a própria decisão veicula. Trata-se de um percurso que, partindo de uma ideologia familista, protege deficientemente da violência (física, simbólica, econômica e institucional) a que estão expostos aqueles que não experimentam suas vivências homossexuais fora do padrão familiar gestado no heterossexismo. Longe de ser pacífico o entendimento sobre de que forma deve ser buscada a efetiva proteção à liberdade e à igualdade sexuais, fica claro, todavia de que forma essa proteção não é suficientemente desenvolvida com tal ênfase afetivista e familista, de cunho assimilacionista. CONCLUSÃO O julgado da ADPF 132/ ADI 4.277 representa um avanço no panorama constitucional brasileiro. Consolida, em decisão unânime, o caráter contramajoritário do Supremo Tribunal Federal, bem como a proteção de direitos fundamentais, na esfera da sexualidade, tais como o princípio da dignidade da pessoa humana e dos direitos de liberdade e de igualdade. Estes, de fato, ganharam especial destaque, concretizados como princípios de liberdade sexual e de igualdade sexual, bem como os princípios da não-discriminação em razão de orientação sexual, da intimidade sexual e da privacidade sexual. O campo dos direitos sexuais no Brasil, antes uma tendência desenvolvida em alguns tribunais de justiça isoladamente, passa a ser uma realidade nacional, do ponto de vista institucional, dada a decisão do Supremo Tribunal Federal. No entanto, há que se evitar certos riscos, em especial a tendência à interpenetração entre os campos dos direitos sexuais e do direito de família. Persiste o desafio da concretização do ordenamento jurídico brasileiro de modo a produzir respostas mais fortes diante da homofobia e do heterossexismo, como demonstra a ênfase em tendências familistas e assimilacionistas. A homoafetividade, como elemento legitimador das sexualidades tidas como desviantes, anormais, à margem, não responde satisfatoriamente à necessidade de combate à homofobia e de respeito à diversidade sexual. De fato, a fundamentação da decisão judicial da ADPF 132/ ADI 4.277 recorreu, de maneira central, à afetividade como elemento higienizador de uma sexualidade que, na sua forma livre, prossegue não insuficientemente protegida. O paradoxo reside, justamente, no reconhecimento da liberdade e da igualdade sexuais, por um lado, e de tendências assimilacionistas, de outro, para a legitimação de direitos sexuais. Ainda assim, há que se destacar que também na decisão há avanços importantes a serem salientados. Os votos dos Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello, principalmente, traduzem a preocupação central com a dignidade da pessoa humana e com o combate à discriminação, em um primeiro plano, deixando a legitimação mediante a afetividade apenas como elemento acessório. Com nuanças, são votos fortes do ponto de vista do desenvolvimento dos direitos sexuais no Brasil e apontam perspectivas importantes do fundamento dos princípios que norteiam este campo.

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É neste terreno de tensões de fundamentação que se encontra, após tão histórico julgamento, o campo dos direitos sexuais. Restam necessários maiores delimitações deste campo em relação ao campo do direito de família. Os direitos sexuais encontraram, em suma, momento marcante na evolução jurisprudencial nacional com o julgamento da ADPF 132/ ADI 4.277, mesmo que tais tensões e tendências desafiem uma compreensão mais adequada para um eficiente enfrentamento da homofobia e do heterossexismo.

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