O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO BRASIL COMO MODELO DA IDEIA DE RAZÃO PÚBLICA DE JOHN RAWLS

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA – UFSC CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS – CFH DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

LUIZ OTAVIO COSTA

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO BRASIL COMO MODELO DA IDEIA DE RAZÃO PÚBLICA DE JOHN RAWLS

FLORIANÓPOLIS – SC 2015

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA – UFSC CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS – CFH DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

LUIZ OTAVIO COSTA

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO BRASIL COMO MODELO DA IDEIA DE RAZÃO PÚBLICA DE JOHN RAWLS

Trabalho de Conclusão de Curso, submetido ao Programa de Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina, para a obtenção do Grau de Bacharelado em Filosofia. Orientador Prof. Dr. Denilson Luis Werle.

FLORIANÓPOLIS – SC 2015

LUIZ OTAVIO COSTA

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO BRASIL COMO MODELO DA IDEIA DE RAZÃO PÚBLICA DE JOHN RAWLS

Este Trabalho de Conclusão de Curso foi julgado adequado para a obtenção do Título de Bacharel em Filosofia, e aprovado em sua forma final pelo Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina.

Florianópolis – SC, 02 de março de 2015.

________________________________________ Prof. Dr. Jaimir Conte Coordenador do curso

Banca Examinadora:

_________________________________________ Prof. Dr. Denilson Luis Werle Orientador Universidade Federal de Santa Catarina

________________________________________ Prof. Dr. Delamar José Volpato Dutra Universidade Federal de Santa Catarina

________________________________________ Doutorando: Jorge Armindo Sell (PPG FIL/UFSC)

Dedico este trabalho á minha esposa Arlene e a minha filha Ana Carolina.

RESUMO Este trabalho de conclusão de curso tem como objetivo geral entender o que é a razão pública e mostrar que sua tarefa é a explicitação básica dos valores políticos que expressam a relação recíproca entre as sociedades democráticas e seus cidadãos, de modo que o objetivo é entender o núcleo normativo que caracteriza as sociedades democráticas e que as torna possível. Primeiro vamos interpretar a ideia de razão pública na concepção de John Rawls e depois na concepção de Kant, para que possamos mostrar o contraste entre a razão pública de Rawls e a ideia de uso público da razão em Kant. Em seguida, apresentar a Suprema Corte como modelo de razão pública. E para demonstrar como ela funciona na prática, explicitaremos a Arguição no caso da ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 promovida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, que trata da descriminalização do aborto de fetos diagnosticados com anencefalia no Brasil.

Palavras-chave: razão pública, sociedade bem-ordenada, consenso sobreposto, anencefalia, Suprema Corte.

ABSTRACT

This conclusion paper aims mainly to understand what public reason is, and show that its task is the basic explanation of the political values that express the reciprocal relationship between democratic societies and their citizens, so that we can understand that undemocratic societies can never accept the very idea of public reason. At first we will interpret the idea of public reason in the conception of John Rawls and then in the design of Kant, so we can show the contrast between Rawls’s public reason and the idea of public use of reason by Kant. Then we will present the Supreme Court as a model of public reason. In order to demonstrate how it works in practice we will show the Claim in the action of non-compliance with a fundamental precept 54 promoted by the National Confederation of Workers in Health, which deals with the decriminalization of abortion fetuses diagnosed with anencephaly in Brazil.

Key

words:

public

reason,

anencephaly, Supreme Court.

well-ordered

society,

overlapping

consensus,

LISTA DE ABREVIAÇÕES

Ação Direta de inconstitucionalidade.......................................................................ADI Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.....................................ADPF Conselho Federal de Medicina...............................................................................CFM Constituição Federal..................................................................................................CF Emenda Constitucional..............................................................................................EC Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia........FEBRASGO Organização Mundial de Saúde.............................................................................OMS Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal................................................RISTF Supremo Tribunal Federal.......................................................................................STF

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8 1 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 1.6 1.6.1 1.6.2

RAZÃO PÚBLICA EM JOHN RAWLS ............................................................ 11 Razoável e racional ........................................................................................ 14 Razões não públicas....................................................................................... 17 As Questões e os fóruns da razão pública ..................................................... 19 O Conteúdo da razão pública ......................................................................... 24 A ideia de elementos constitucionais essenciais ............................................ 26 Dificuldades e limites da razão pública ........................................................... 28 Dificuldades .................................................................................................... 28 Limites ............................................................................................................ 31

2 2.1 2.2 2.3

USO PÚBLICO DA RAZÃO EM KANT ........................................................... 34 A razão esclarecida ........................................................................................ 34 Uso público e privado da razão ...................................................................... 36 As divergências entre Rawls e Kant em relação à razão pública ................... 38

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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO MODELO DE RAZÃO PÚBLICA NO BRASIL..................................................................................................... 40 3.1 Concepção da Suprema Corte como modelo de razão pública ...................... 40 3.2 Supremo Tribunal Federal no Brasil ............................................................... 42 3.3 Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ................................ 44 3.3.1 Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 ...................... 45 3.3.2 Anencefalia ..................................................................................................... 48 3.3.3 Voto dos Ministros .......................................................................................... 49 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 55 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 59

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INTRODUÇÃO Neste trabalho iremos tratar da ideia de razão pública, apresentada por John Rawls em O Liberalismo Político. No primeiro capítulo, vamos apresentar a ideia de razão pública, seu conteúdo, suas dificuldades e seus limites. O objetivo desse capítulo é compreender quais os fundamentos normativos da ideia de razão pública, e mostrar que sua tarefa é a explicitação básica dos valores políticos, que se relacionam a partir do principio da reciprocidade em sociedades democráticas. O que se pretende mostrar é que a razão pública forma o cerne normativo da relação política em uma sociedade democrática justa e bem-ordenada em que os cidadãos defendem uma pluralidade de concepções políticas e de doutrinas abrangentes. Em outras palavras, trata-se de mostrar a razão pública como núcleo normativo integrador em uma sociedade marcante por profundas discordâncias, estas irreconciliáveis. Os

cidadãos

dificilmente

poderão

se aproximar da

compreensão mutua e perceberão que nunca poderão chegar a um acordo unânime. Mas por meio da razão pública, as doutrinas abrangentes poderão chegar a um desacordo razoável em torno da ideia do que é politicamente razoável. Com isso não vamos dizer que a razão pública vá atacar ou suprimir as doutrinas abrangentes, mas sim que a razão pública irá apenas exigir que as doutrinas abrangentes aceitem os princípios de justiça, que fazem parte do regime democrático constitucional. O entendimento do que seja razão pública é mostra-la como expressão racional e razoável dos cidadãos de uma sociedade democrática e justa bem-ordenada, onde doutrinas abrangentes totalmente diferentes possam se tolerar e se reconciliarem publicamente, a partir da deliberação de seus cidadãos e através da consciência de ser uma sociedade com um caráter pluralista. Entendemos como doutrinas abrangentes, as doutrinas filosóficas, morais, religiosas ou seculares, que abrangem a vida inteira dos indivíduos e utilizam seus valores e ideais do bem para entenderem suas próprias vidas. Assim sendo, essas doutrinas são razões não públicas, por isso o público de modo geral não tem acesso a essas razões. Por isso devemos abrir mão de nossas pretensões de verdade ao formular nossas justificações na esfera pública, pois a verdade toda como a entendemos não cabe na política. Tendo em vista a necessidade de uma aceitação pública, as concepções de bem devem ser substituídas, no âmbito da razão pública, pelo politicamente razoável. A razão pública parte da ideia de deliberação ou de

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raciocínio público, da aceitabilidade racional expressada por uma família de concepções razoáveis de justiça política, e ela possui um papel normativo, tendo como critério fundamental a reciprocidade. Esse critério exige de quem propõe os ideais de cooperação, que lance pretensões de justiça, reivindicações políticas no espaço público. Em seguida, no segundo capítulo, iremos apresentar a ideia de uso público da razão na concepção de Kant, a partir do texto “Resposta a pergunta: o que é o esclarecimento”, publicado na Berlinische Monatsschriften 30 de setembro de 1784. Neste texto pretendemos mostrar duas coisas. Primeiro, iremos tratar a respeito da concepção kantiana de razão pública, a partir do contexto do esclarecimento, para perceber como Kant entendia as possibilidades de uso da razão esclarecida, ou seja, o uso público e o privado da razão. Temos como objetivo tornar compreensível cada um dos dois tipos de usos tanto o público como o privado da razão, suas características e as diferenças inerente as duas, para então fazer a distinção entre a ideia de razão pública formulada por Rawls, e a concepção Kantiana de uso público da razão, mostrando o contraste entre as concepções desses dois filósofos. Por fim, na parte final, pretendemos analisar o funcionamento da Suprema Corte como modelo de razão pública. Iremos apresentar como funciona esse modelo de razão pública da Suprema Corte a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal Brasileiro,

com

uma

breve

consideração

dos

argumentos

usados

na

descriminalização do aborto de anencéfalos no Brasil. Em um Estado democrático, sua Suprema Corte é o modelo da razão pública. Pensando no Brasil, os onze ministros do Supremo Tribunal Federal têm todas as suas decisões e seus votos pautados na razão pública e no raciocínio moral derivado dela, pois eles estão subordinados ao texto constitucional. Um juiz da Suprema Corte parte do reconhecimento de que nem todas as crenças racionais são consideradas razoáveis para uma sociedade democrática. Já quando se trata do aborto, isso pode significar que, ainda que determinada comunidade moral considere o aborto um atentado contra uma lei divina, esse não é um pressuposto moral que possa ser defendido conforme a razão pública. Apesar de uma crença moral ser racional e válida para uma determinada comunidade, não quer dizer que seja razoável para uma sociedade plural. E isso por inúmeras razões, onde podemos citar que: apesar de uma crença ser racional, não quer dizer que ela seja considerada razoável para a razão pública e em matéria de aborto, grande parte dos

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valores que sustentam a imoralidade do aborto não respeita o princípio de sociedade democrática, ou do pluralismo de doutrinas abrangentes e razoáveis. Conforme veremos no ultimo capitulo deste trabalho. O STF vai realizar audiências públicas para ouvir os mais diversos segmentos da sociedade, a fim de entender quais são as suas posições em relação ao aborto. Então cada juiz do STF poderá fundamentar a sua decisão de votar em favor ou contra a ADPF 54, conforme a razão pública.

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RAZÃO PÚBLICA EM JOHN RAWLS

John Rawls define a razão pública1como sendo a característica de um povo democrático, ou seja, é a razão dos cidadãos2, daqueles que compartilham o status de cidadania igual. Ela faz a delimitação de como deve ocorrer à deliberação pública, no que diz respeito às questões políticas e de justiça fundamental. Também pode ser entendida como o “universo do discurso” 3 formado por parte dos cidadãos que formam seus juízos políticos e tomam suas decisões. A razão pública é um modo de argumentação para cidadãos iguais, funcionando como um princípio que torna legitimo o poder que define os valores políticos fundamentais e as normas morais que devem reger a estrutura básica da sociedade. A razão pública por definição estabelece a ligação entre os princípios de justiça e as deliberações políticas, seu formato e seu conteúdo são partes fundamentais da própria ideia de democracia. A razão pública é a razão de cidadãos iguais que como um corpo coletivo, exercem poder político supremo e coercitivo uns sobre os outros ao aprovar leis e emendar sua Constituição. O primeiro ponto importante é que os limites impostos pela razão pública não se aplicam a todas as questões políticas, mas apenas àquelas que envolvem o que podemos denominar “elementos constitucionais essenciais” e questões de justiça básica (RAWLS, 2011, p. 252).

A partir do pressuposto de que as sociedades democráticas contemporâneas são formadas, em princípio, por cidadãos livres e iguais, fazendo livremente o uso público e privado da razão de maneira que, com decorrência do próprio exercício

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“A razão pública, então é publica de três maneiras: como razão dos cidadãos como tais, é a razão do público; seu objeto é o bem do público, além de questões de justiça fundamental; e sua natureza e seu conteúdo são públicos, uma vez que são determinados pelos ideais e princípios expressos pela concepção política de justiça da sociedade são conduzidos à vista de todos sobre essa base (RAWLS, 2011, p. 251)”. 2 “Uma Sociedade política e, na verdade, todo agente razoável e racional, quer seja um indivíduo, uma família ou uma associação, ou mesmo uma confederação de sociedades políticas, tem um modo de formular seus planos, de colocar seus fins em uma ordem de prioridades e de tomar suas decisões em conformidades com tais planos e prioridades. A maneira como uma sociedade política faz isso é sua razão. Sua capacidade para fazê-lo também é sua razão, embora em um sentido distinto: é uma faculdade intelectual e moral, que tem por base as capacidades de seus membros (RAWLS, 2011, p. 250)”. 3 Uma linguagem pública (WERLE, 2009, p.94).

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livre da razão, acabam por formar doutrinas abrangentes4 que se mostram, muitas vezes, conflitantes e irreconciliáveis entre si. Como conciliar o uso público com o uso privado da razão tendo em vista que ambos são inerentes às democracias plurais e ao mesmo tempo conflitantes entre si? A resposta para esse tipo de questão está na justificação pública, onde cada cidadão precisa estar em acordo, de maneira recíproca com os demais, em relação à determinada posição que tomou dentro de uma deliberação com o objetivo de se obter um consenso. Então para entender esta resposta oferecida pelo Liberalismo Político, é necessário entender a ideia de razão pública formulada por John Rawls. Rawls acredita que a existência de pluralismo de doutrinas razoáveis abrangentes é o fundamento sólido para um regime democrático, as diversas doutrinas são consideradas como razoáveis na medida em que elas possam existir na mesma sociedade, num ambiente onde ocorre a liberdade de pensamento e a tolerância. Para Rawls uma sociedade onde existem diferenças fundamentais pode ser estável, e possibilita a existência do liberalismo político. Segundo Rawls os valores do político têm uma importância muito grande, de modo que para superá-los não é muito fácil, pois esses valores em conjunto expressam o ideal do Liberalismo Politico segundo o qual o poder político somente deve ser exercido de modo que todos os cidadãos possam corroborar a luz da sua razão. Para Rawls, os sinais de um consenso sobreposto5 (que vai além do consenso meramente constitucional) apontam para a conciliação dos usos públicos e privado da razão. A razão pública, mais do que um conjunto de diretrizes e valores para a resolução de problemas, consiste dos compromissos básicos dos cidadãos uns para com os outros, que devem ser constantemente reiterados.

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“Usarei o termo “doutrina” para visões abrangentes de todos os tipos e o termo “concepção” para uma concepção politica e suas partes componentes, como a concepção de pessoa como cidadão. O termo “ideia” é usado como um termo geral e pode referir-se a qualquer um dos dois, de acordo com o contexto (RAWLS, 2011, p. 522)”. 5 Em resumo pode ser dito que a ideia de um consenso sobreposto é possível: desde que as concepções de doutrinas abrangentes professadas pelos cidadãos não sejam tão abrangentes ao ponto de “demolir” os fundamentos democráticos liberais da sociedade. É preciso que as doutrinas abrangentes, pela convivência dentro de uma democracia, incorporem a razoabilidade em suas respectivas condutas.

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Ao analisar o modo como uma sociedade bem-ordenada6 de justiça como equidade estabelece e preserva a unidade e a estabilidade Rawls introduz outra ideia fundamental do liberalismo político, é a ideia de consenso sobreposto. Em tal sociedade, uma doutrina abrangente razoável não pode servir de base para a unidade social, nem fornecer o conteúdo da razão pública sobre questões políticas fundamentais. Desse modo, para mostrar como uma sociedade bem-ordenada pode unificar-se e se tornar estável, introduzimos outra ideia fundamental do liberalismo político: um consenso sobreposto de doutrinas abrangentes razoáveis. Em tal consenso, essas doutrinas subscrevem a concepção política, cada qual a partir de seu ponto de vista especifico. A unidade social se baseia em um consenso acerca da concepção política; e a estabilidade se torna possível, quando as doutrinas que constituem o consenso são aceitas pelos cidadãos politicamente ativos da sociedade e quando as exigências da justiça não conflitam por demais com os interesses essenciais dos cidadãos, considerando-se o modo como esses interesses se formam e são fomentados pelos arranjos sociais de sua sociedade (RAWLS, 2011, p. 157-158).

A razão pública, então, é a razão dos cidadãos que compartilham um status de igualdade e cidadania, que tem como base a liberdade que é por todos reconhecida, onde todos podem entender qual é o seu papel na sociedade e compartilhar os valores políticos. É tarefa da razão pública expor quais os valores políticos que fazem a mediação na relação recíproca da sociedade e seus cidadãos, já que o liberalismo político é baseado na prioridade do justo sobre o bem7. A ideia de razão pública é estruturada a partir de cinco aspectos basilares:

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Para Rawls, a sociedade bem-ordenada é a meta da justiça e aponta três características dessa concepção. “Primeiro, e implícito na ideia de uma concepção pública de justiça, trata-se de uma sociedade na qual cada um aceita, e sabe que os demais também aceitam a mesma concepção política de justiça (e, portanto, os mesmos princípios de justiça política), (RAWLS, 2003, p. 11). Segundo, e implícito na ideia de regulação efetiva por uma concepção pública de justiça, todos sabem, ou por bons motivos acreditam, que a estrutura básica da sociedade [...] respeita esses princípios de justiça (RAWLS, 2003, p. 12). Terceiro, e também implícito na ideia de regulação efetiva, os cidadão tem um senso normalmente efetivo de justiça, ou seja, um senso que lhes permite entender e aplicar os princípios de justiças publicamente reconhecidos e de modo geral, agir de acordo com o que sua posição na sociedade, com seus deveres e obrigações, o exige (RAWLS, 2003, p. 12)”. 7 O significado preciso de prioridade do justo é que as concepções abrangentes são admissíveis ou podem ser promovidas na sociedade somente se sua consecução se faz em conformidade com a concepção política de justiça (se não viola seus princípios de justiça), (RAWLS, 2011, p. 207). Isso significa que o uso público da razão precisa ter primazia quando questões políticas fundamentais estão em jogo.

14 Essa ideia tem cinco aspectos diferentes: (1) as questões políticas fundamentais as quais se aplica; (2) as pessoas a quem se aplica (autoridades públicas e candidatos a cargos públicos); (3) seu conteúdo tal como especificado por uma família de concepções políticas razoáveis de justiça; (4) a aplicação dessas concepções em discussões de normas coercitivas que devem ser aprovadas na forma de Direito legítimo para um povo democrático; (5) a verificação pelos cidadãos de que os princípios derivados das tais concepções de justiça satisfazem o critério de reciprocidade (RAWLS, 2011, p. 524).

Então a ideia de razão pública, para ser concebida, passa pela concepção política de justiça e possui como foco a estrutura das instituições básicas e os princípios que a ela se aplicam. Suas normas devem ser incorporadas nas atitudes dos cidadãos quando agem politicamente e nos fóruns públicas, que representam essas instituições. Apesar de a razão pública ser muito geral em seu conteúdo e operada em instâncias políticas muito elevadas, ela engendra formas de conduta e oferece diretrizes importantes.

1.1

Razoável e racional Para Rawls a verdade toda como a entendemos, não pode ser usada para

fundamentar a justificação, de maneira que dentro de um sistema de justificação, não há como saber, qual a diferença entre uma razão aceitável de uma razão não aceitável conforme a razão pública. Então Rawls utiliza a ideia de razoável para substituir a ideia de verdade, como modelo de aceitabilidade pública. Onde podemos nos basear em algumas razões em detrimento de outras, porque essas razões podem razoavelmente ser aceitas. Entender o que é razoável, no liberalismo político de Rawls, é compreender como fazer a diferença entre uma razão que seja aceitável e outra que não. Na relação política democrática, a ideia de razoável substitui a ideia de verdade, de modo que um cidadão pode se basear em boas razões porque essas razões são razoavelmente aceitas. Entretanto, ele não pode argumentar que suas razões são boas porque são verdadeiras. A rejeição do critério de verdade envolve não só dificuldades envolvendo demonstração e verificação de informações como também o elemento do dissenso em uma democracia plural, algo que o próprio Rawls

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considera ineliminável. Rawls faz uma comparação constante entre o razoável e o racional, pois estas ideias ampliam o conhecimento que temos a respeito de cooperação social. Uma pessoa é racional não pelos fins que ela tem como meta, mas sim pelos meios que utiliza para alcançar estes objetivos. Já no caso de uma pessoa razoável os meios que ela utiliza para alcançar seus objetivos estão sempre levando em consideração as consequências que suas ações podem imprimir nos outros. O racional se difere do razoável à medida que o racional, dotado das capacidades de julgamento e deliberação, utiliza essa sua capacidade simplesmente para realizar interesses com fins auto-interessados. Despossuído de sensibilidade moral ele é capaz de entender o conteúdo e o significado da lei moral, mas não é motivado por ela. Por outro lado, o razoável é o individuo que está sempre propondo e aceitando termos equitativos de cooperação. Ele se submete ao escrutínio público de um modo que o racional não faz. O razoável é um componente da ideia de sociedade como um sistema de cooperação equitativa, e é parte da ideia de reciprocidade a suposição de que estes termos equitativos devem ser aqueles que é razoável que todos aceitem. (...) O racional aplica-se ao modo como esses fins e interesses são adotados e promovidos, bem como à forma como são priorizados. Aplica-se também à escolha dos meios e, nesse caso, é guiado por princípios conhecidos, como optar pelos meios mais eficientes para os fins em questão ou selecionar a alternativa mais provável, permanecendo constantes as demais condições (RAWLS, 2011, p. 58-60).

Para Rawls o razoável e o racional são ideias complementares e por este motivo nenhuma das duas podem dispensar uma à outra. Rawls também acredita que a principal diferença entre o razoável e o racional é que o razoável é público de uma maneira que o racional não consegue ser. Pois é pelo razoável que conseguimos entrar no mundo público dos outros (RAWLS, 2011, p. 63). Segundo Rawls o razoável corresponde à razão pratica pura kantiana, sendo motivado por um imperativo categórico (RAWLS, 2011, p.57). Essa capacidade de inserir as pretensões racionais dentro do contexto da relação com os outros, apresenta duas características distintas: a disposição de propor e se submeter a

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termos equitativos de cooperação e a disposição de reconhecer os limites do juízo e acatar suas consequências. A primeira característica do razoável é a respeito da disposição de propor princípios e critérios como termos equitativos de cooperação e se submeter voluntariamente a eles, tendo a garantia de os outros também farão a mesma coisa. O razoável é uma ideia de sociedade em um sistema de cooperação onde todos os termos são justificados. Onde a aceitação de todos forma a ideia de reciprocidade. Que vai constituir a ideia de imparcialidade e de beneficio mútuo (RAWLS, 2011, p. 58-59). A partir dos termos: disposição e submissão, se da uma autonomia que vai se distinguir em duas. Primeiro a autonomia racional, onde os cidadão se constituem livres em três aspectos: 1) como pessoas com capacidade moral de formular e concretizar racionalmente uma concepção do bem; 2) como pessoas que são fontes autenticadoras de reinvindicações; 3) como pessoas capazes de assumir responsabilidades por seus fins (RAWLS, 2011, p. 86-87). Segundo a autonomia plena, onde os cidadãos é que são autônomos plenamente e não as partes. Os cidadãos aceitam e agem conforme os princípios considerados justos e reconhecem que esses princípios seriam adotados na posição original. Cidadãos são autônomos quando aceitam as restrições. Para Rawls “É em virtude do reconhecimento público e da aplicação informada dos princípios de justiça em sua vida politica, como exige seu senso efetivo de justiça, que os cidadãos adquirem autonomia plena” (RAWLS, 2011, p.92). A segunda característica do razoável é a respeito da disposição de reconhecer os limites do juízo e aceitar suas consequências para o uso da razão pública. Desse modo reconhecendo diferentes visões das fontes do julgamento. Como razoáveis os cidadãos realizam três diferentes níveis de julgamento: é considerado a força de reivindicações; a aplicação a nossas crenças e sistemas de pensamento; e a avaliação a nossa capacidade teórica. Sendo que cada tipo de julgamento possui um limite. Essas diferentes visões das fontes do julgamento formam o desacordo razoável e cada tipo de visão, uma possível conclusão com a possível discordância das partes mesmo havendo uma ponderação razoável, tornase necessário a ideia de tolerância, se uma pessoa é razoável ela aceita os limites da razão como obstáculos separando as diferentes doutrinas e também aceita, compartilhar valores. Desse modo não ha como justificar suas crenças em

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detrimento da verdade. Cidadãos que professam doutrinas razoáveis e são razoáveis, reconhecem a impossibilidade do acordo razoável, quando se apela para a veracidade de uma doutrina. Por isso os indivíduos devem buscar argumentos que possam ser aceitos e compartilhados por todos. Os limites do juízo deixam evidentes os obstáculos para uma concordância: 1) a evidência empírica ou científica é difícil de ser avaliada; 2) podemos concordar com as considerações feitas pelos outros, mas discordar de sua importância; 3) existem conceitos vagos e sujeitos a controvérsias, por isso a indeterminação pode levar a uma confiança nos julgamentos individuais de cada um; 4) existem diversas considerações normativas de peso diferente em ambos os lados de uma controvérsia; 5) existe um limite de valores em cada sistema de instituição social e 6) muitos julgamentos são feitos em condições nas quais não devemos esperar que pessoas conscientes, com pleno domínio de suas faculdades mentais cheguem a mesma conclusão (RAWLS, 2011, p. 66-68). Por esse motivo que a razão pública, é somente aplicada às estruturas básicas da sociedade e apenas em sociedades democráticas.

1.2

Razões não públicas Para Rawls, poderemos ter uma melhor compreensão a respeito da natureza

de razão pública se observar a diferença que existe entre ela e as razões não públicas. A primeira diferença reside no fato de haver muitas razões não públicas, porém apenas uma razão pública. Entre as razões não públicas, Rawls cita: igrejas e universidades, sociedades cientificas e associações profissionais. No entanto ao fazer parte dessas entidades coletivas o individuo para agir de modo responsável e razoável precisa deliberar sobre o que tem que ser feito. Essa forma de deliberação é pública com relação a seus membros, mas não pública com relação à sociedade política e aos cidadãos em geral. As razões não públicas abarcam as muitas razões da sociedade civil e pertencem àquilo que denominei “cultura de fundo”, em oposição à cultura política pública (RAWLS, 2011, p.259).

No entanto, isso não que dizer que estas razões não públicas são consideradas razões privadas, pois são razões de entidades associativas dos mais

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diversificados tipos de associações ou grupos sociais. Para Rawls, elas são razões sociais. A distinção entre público e não público não corresponde à distinção entre público e privado. (...) Não existe algo como uma razão privada. Existe razão social – as muitas razões de associações na sociedade que constituem a cultura de fundo. Também há, digamos, uma razão doméstica – a razão de famílias como pequenos grupos da sociedade – que contrasta tanto com a razão pública quanto com a razão social. Na condição de cidadão, participamos de todos esses tipos de razão e preservamos os direitos de cidadãos iguais quando assim o fazemos (RAWLS, 2011, p. 259260).

A segunda diferença está implícita no fato de que o poder não público é aceito livremente, o que significa que os cidadãos livres e iguais podem deixar de fazer parte das diferentes comunidades, podem deixar de serem membros de entidades associativas no momento em que quiserem se assim desejarem, e sem encontrar nenhum tipo de imposição política ou jurídica contra sua vontade, pois desrespeitar as normas dessas associações, não quer dizer cometeu um delito legal. Porém, em relação à razão pública, a autoridade do Estado, por exemplo, ela não pode ser livremente aceita, os vínculos da sociedade política e da cultura pública são adquiridos ao nascer, e acabam influenciando a vida dos cidadãos desde cedo. No entanto, com o passar dos anos chega-se a uma livre aceitação. Em uma sociedade democrática o poder não público, (...) na autoridade das igrejas sobre seus membros, é livremente aceito. No caso do poder eclesiástico, como apostasia e a heresia não constituem delitos legais, aqueles que não mais reconhecem a autoridade da igreja podem deixar de ser membros dela sem entrar em conflito com o poder estatal. Em oposição, não é possível livra-se da autoridade do Estado, exceto se deixarmos o território em que governa – mesmo assim, nem sempre. O fato de essa autoridade ser guiada pela razão pública em nada altera isso (RAWLS, 2011, p. 261-261).

Esta citação pode dar a falsa impressão que temos mais liberdade dentro das doutrinas abrangentes que fazemos parte, do que na sociedade política em que se vivemos. De fato, não temos escolha na sociedade política em que iremos nascer. Mas dentro dela somos mais livres para escolher de forma autônoma: com que

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vamos nos associar, que doutrina religiosa e que tipo de fé iremos professar, além disso, poderemos abandonar essa posição e fazermos outras escolhas de religião ou de livre associação, em qualquer momento sem estar quebrando nenhuma regra política jurídica. E ainda assim se não estivermos felizes dentro dessa sociedade bem ordenada, podemos tomar a decisão mais radical que é abandonar a sociedade política em que nascemos. No entanto tomar essa decisão implica em graves consequências, pois estaremos deixando para traz todas as nossas referencias, tudo aquilo que moldou nosso caráter e parte de nossa identidade. Considerando que é possível encontrar a mesma comunidade religiosa em mais de uma sociedade. Normalmente abandonar o próprio país é uma grave decisão. Implica abandonar a sociedade e a cultura nas quais fomos criados, a sociedade e a cultura nas quais fomos criados, a sociedade e a cultura cuja língua utilizamos para falar e pensar, para nos expressar e nos compreender, nossos objetivos, anseios e valores; a sociedade e a cultura de cuja história, costumes e convenções dependemos para encontrar nosso lugar no mundo social (RAWLS, 2011, p. 262).

1.3

As Questões e os fóruns da razão pública

Para Rawls o conceito de razão pública expressa o conjunto de valores políticos e princípios de justiça de que devemos nos valer para julgar questões políticas fundamentais, tais como as relativas ao direito de voto e de tolerância religiosa. Ela fica restrita apenas aos elementos constitucionais essenciais e às questões de justiça básica8. Porém, a aplicação da ideia de razão pública não é estendida para todas as discussões políticas9, mas deve ser aplicada estritamente 8

Estas são questões fundamentais, como por exemplo: “(...) quem tem direito ao voto, que religiões devem ser toleradas, a quem se deve garantir a igualdade equitativa de oportunidades ou o direito de possuir propriedades” (RAWLS, 2011, p. 252). Iremos tratar mais adiante no item 1.5 deste capítulo, sobre a definição dos elementos constitucionais essenciais. 9 Muitas questões políticas, se não a maior parte delas, não dizem respeito a essas questões fundamentais, tais como: grande parte da legislação tributária e muitas das leis que regulam a propriedade; as leis de proteção ao meio ambiente e de controle da poluição; as leis que criam parques nacionais e áreas de preservação da vida silvestre e de espécies de animais e vegetais; leis que estabelecem fundos para os museus e as artes (RAWLS, 2011, p. 252-253).

20

nas questões ligadas ao fórum político público. Este que por sua vez está dividido em três partes: (a)o discurso dos juízes nas suas discussões, principalmente a um tribunal supremo em uma democracia constitucional; (b) o discurso dos funcionários públicos, enquanto pertencentes ao legislativo e ao executivo; (c) e o discurso de candidatos a cargos públicos e de seus chefes de campanha. Colocada essa restrição, Rawls aponta a necessidade de estabelecer a diferença da razão pública em relação ao que ele vai chamar de cultura de fundo, que é a cultura da sociedade civil, isto é, todas as formas particulares de cultura, como por exemplo: a cultura das igrejas e associações de aprendizado em todos os níveis, especialmente universidades, escolas profissionais, sociedades científicas e outras. É importante também entender a diferença que existe entre ideia de razão pública e o ideal de razão pública. O ideal consiste na realização da ideia quando os juízes, legisladores, executivos, funcionários do governo e candidatos aos cargos públicos explicam e esclarecem aos cidadãos seus posicionamentos políticos. Rawls denomina isso como dever de civilidade mútua entre cidadãos. Mas fica uma pergunta: de que maneira os outros cidadãos que não são funcionários do governo poderiam cumprir o ideal de razão pública? Rawls salienta que este ideal é efetivado quando os cidadãos, através do voto, referendo, etc., pensam em si mesmos como se fossem legisladores e se perguntam quais estatutos, sustentados por quais razões que satisfaçam o critério de reciprocidade, pensariam ser mais razoável decretar (RAWLS, 2011, p. 527).10 Para Rawls, quando firme e bem difundida, esta disposição dos cidadãos de se verem como legisladores ideais e de repudiar as autoridades governamentais e candidatos a cargos públicos que violam a razão pública constitui uma das bases políticas e sociais da democracia e é vital para que ela permaneça forte e vigorosa (RAWLS, 2011, p. 527)11. (...) O ideal de razão pública realmente aplica-se aos cidadãos quando estes se envolvem na defesa de posições políticas no fórum público. (...) Assim, o ideal de razão pública não somente rege o discurso público das eleições,

quando

as

controvérsias

envolvem

aquelas

questões

fundamentais, como também determina a forma como os cidadãos devem votar quando se trata dessas questões. De outra maneira, corre-se o risco

10

Também pode ser visto em: RAWLS, John. O Direito dos povos – A ideia de razão pública revista, p. 178. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 11 Idem. P.179.

21 de que o discurso público se torne hipócrita: os cidadãos falarão em público de uma forma e votarão de outra. (...) Esse ideal se aplica aos fóruns oficiais e, portanto, aos legisladores, quando se manifestam no plenário do parlamento, e ao Executivo, em seus atos e pronunciamentos públicos. Também se aplica, de maneira especial, ao judiciário e, sobre tudo a um tribunal supremo em uma democracia constitucional, na qual exista um controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. Isso acontece porque os juízes têm de explicar e justificar suas decisões com base no entendimento que têm da constituição e das leis precedentes pertinentes. Como os atos do Executivo e do Legislativo não necessitam justificar-se dessa maneira, o papel especial da Suprema Corte faz dela um caso exemplar de razão pública (RAWLS, 2011, p. 253-254).

Para Rawls, uma das dificuldades em relação à ideia de razão pública seria de como os cidadãos acatariam os limites da razão pública ao discutirem questões políticas fundamentais? Como poderia ser racional ou razoável, recorrer apenas a valores da concepção política de justiça e não a verdade toda tal como a entendem, quando questões fundamentais estão em jogo? (RAWLS, 2011, p. 255). Para responder essas questões Rawls vai recorrer a um principio liberal de legitimidade12 cujo principio possui relação com duas características especiais da relação política entre cidadãos democráticos: Primeiro, trata-se de uma relação entre pessoas no interior da estrutura básica da sociedade na qual nasceram e na qual normalmente passarão toda a vida. Segundo em uma sociedade democrática, o poder político que é sempre um poder coercitivo, é o poder público, isto é, de cidadãos livres e iguais como um corpo coletivo (RAWLS, 2011, p. 255).

Para Rawls há alguns casos em que nós concordamos em não apelar a verdade toda como a entendemos, ainda que para nós seja ela facilmente acessível, e acabamos preferindo recorrer às concepções políticas de justiça. Rawls exemplifica isso mostrando que, em um processo criminal, por exemplo, as normas com relação às evidências limitam o testemunho, para garantir que o acusado tenha 12

“(...) nosso exercício do poder político é plenamente apropriado só quando é exercido em conformidade com uma Constituição, cujos elementos essenciais se pode razoavelmente esperar que todos os cidadãos, em sua condição de livres e iguais, endossem à luz de princípios e ideais aceitáveis para sua razão humana comum. Esse é o principio liberal de legitimidade.” (RAWLS, 2011, p. 161).

22

direito a um julgamento justo, onde são excluídas evidências fundamentadas em boatos, ou obtidas ilegalmente. O acusado também não poder ser obrigado a testemunhar contra si próprio e principalmente os cônjuges não podem ser obrigados a testemunhar um contra o outro, dessa maneira protegendo os laços familiares (RAWLS, 2011, p. 257). Isto acaba por dissolver um aparente paradoxo da razão pública. (...) O acatamento dos limites da razão pública pelos cidadãos em geral é exigido pelos direitos e liberdades fundamentais e seus deveres correspondentes, ou então que isso promove determinados valores importantes, ou ambas as coisas. O liberalismo político apoia-se na conjectura de que os direitos e deveres fundamentais, bem como valores políticos em questão, têm peso suficiente, de maneira que os limites da razão

pública

justificam-se

pelas

avaliações

globais

de

doutrinas

abrangentes razoáveis, uma vez que estas doutrinas tenham se adaptado à própria concepção de justiça (RAWLS, 2011, p. 258).

A partir disso então a razão pública acaba impondo um ideal de cidadania democrática que tem por finalidade garantir um dever moral segundo o qual os cidadãos possam explicar e defender uns diante dos outros e publicamente porque as políticas propostas por eles são congruentes com os valores políticos da razão pública e com a liberdade e igualdade desfrutada por todos. Dessa maneira, a razão pública não fica limitada ao foro legislativo. De fato os cidadãos a assumem como um critério de legitimação, o que faz com que eles também podem adotar o ideal de razão pública a partir das convicções de suas doutrinas particulares razoáveis, de modo que os limites da razão pública não são apenas voltados para as questões políticas fundamentais, mas também para serem aplicados aos cidadãos em geral. (...) O exercício do poder político é apropriado e, portanto, justificável somente quando exercidos em conformidades com uma Constituição cujos elementos essenciais se pode razoavelmente supor que todos os cidadãos subscrevam, à luz de princípios e ideais que são aceitáveis para eles, na condição de razoáveis e racionais (RAWLS, 2011, p. 255-256).

Uma das questões sobre razão pública apresentada, e que Rawls se contrapõe, é à acusação de que a ideia de razão pública colocaria limites às

23

discussões e ao debate políticos de uma maneira não razoável. No entanto, Rawls argumenta que o liberalismo político tem como meta a proteção dos vários interesses na liberdade de associações e de indivíduos, de modo que ele não é uma concepção individualista ou restritiva. “E também é um grave equivoco pensar que a separação entre Igreja e Estado está voltada primariamente para a proteção da cultura secular; naturalmente, ela protege essa cultura, mas não mais do que todas as religiões (RAWLS, 2011, p. 566)”

13

. Esta acusação se deve ao fato de

comumente se realizar a interpretação da razão pública como se fosse uma concepção

que

vai

arbitrar

sobre

as

instituições

e

programas

políticos

especificamente, por exemplo, a prática da oração nas escolas. No entanto, a razão pública é uma “(...) visão sobre os tipos de razão nas quais os cidadãos devem basear seus argumentos políticos ao apresentar justificações políticas (RAWLS, 2011, p. 565)” 14. Outra questão é que a razão pública seria restritiva, porque poderia provocar impasses e desacordos. Para Rawls, porém, o impasse é algo normal não só no que tange a questões de justiça, mas também no âmbito das ciências, no senso comum e na vida de um modo geral. Então essa é uma acusação que é facilmente refutada. Diante do dissenso o que a ideia de razão pública faz é elevar o nível de imparcialidade, de modo que quando no sistema jurídico ocorre de haver um impasse, o juiz não pode recorrer às suas próprias concepções políticas; da mesma maneira quando há um impasse no que tange às decisões dentro de uma sociedade democrática, seus cidadãos não devem deliberar recorrendo meramente a suas doutrinas abrangentes, mas devem se guiar pelo critério da maioria e da reciprocidade. “(...) a unanimidade de visões não deve ser esperada. A concepção política razoável de justiça nem sempre leva à mesma conclusão (RAWLS, 2004, p.222)”. Alguns que acusam a ideia de razão pública de ser restritiva porque provocaria impasses, argumentam em favor de que as pessoas deveriam apresentar suas razões a partir de suas doutrinas abrangentes razoáveis. No entanto Rawls se posiciona da seguinte forma: “como estamos buscando justificativas públicas para

13

Também pode ser visto em: RAWLS, John. O Direito dos povos – A ideia de razão pública revista, p. 218. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 14 Idem, p.217

24

instituições políticas e sociais – para a estrutura básica de um mundo político e social, pensamos nas pessoas como cidadãos (RAWLS, 2004, p. 224)”. Outra objeção é a de que a razão pública seria desnecessária para as democracias bem estabelecidas, por exemplo, as democracias europeias e a dos Estados Unidos, pois a sua aplicação somente seria necessário em democracias visivelmente

problemáticas

e

divididas

com

hostilidades

entre

doutrinas

abrangentes. Para Rawls isso é uma avaliação sociologicamente defeituosa. Pois sem o comprometimento do cidadão com a razão pública e o cumprimento do dever de civilidade, as divisões e hostilidades entre doutrinas inevitavelmente irão se afirmar se já não existiam. A harmonia e a concórdia entre as doutrinas e a afirmação da razão pública pelas pessoas não são, infelizmente, uma condição permanente da vida social. Antes, a harmonia e a concórdia dependem da vitalidade da cultura política pública e de os cidadãos serem devotados e realizarem o ideal da razão pública (RAWLS, 2004, p. 228-229).

1.4

O Conteúdo da razão pública Nesta parte do trabalho vamos tratar do conteúdo da razão pública, assim

poderemos entender que o conteúdo da razão pública, deve ser embasado no princípio da reciprocidade, para que os cidadãos pensem em princípios que os outros cidadãos também livres e iguais possam endossar. O conteúdo da razão pública é construído pela concepção política de justiça (RAWLS, 2011, p. 263). Também é atribuída uma prioridade especial às liberdades e oportunidades iguais aos cidadãos, bem como endossa medidas para tornar esses direitos mais efetivos socialmente. Isso quer dizer que a razão pública se aplica à estrutura básica da sociedade e é elaborada em termos de ideias políticas fundamentais. Supondo que possui um caráter liberal, Rawls apresenta três características do conteúdo da razão pública: (a) tal concepção especifica certos direitos, liberdades e oportunidades fundamentais; (b) imprime certa prioridade a esses direitos e oportunidades, em relação ao bem geral e valores perfeccionistas; (c) prioriza medidas para que seja efetivado o uso de liberdades e oportunidades básicas (RAWLS, 2011, p. 263). Há dois princípios da justiça (princípio da igual liberdade e

25

princípios da igualdade de oportunidades e da diferença) que aparecem como conteúdo da razão pública, de maneira que e isso explica qual é o significado de uma concepção política de justiça que, primeiro, se aplica exclusivamente à estrutura básica da sociedade, depois, nos apresenta uma visão livre de qualquer doutrina abrangente, seja de ordem filosófica ou religiosa, e, por ultimo, é elaborada em termos de ideias políticas fundamentais (RAWLS, 211, p. 263). Também é de suma importância expor as diretrizes de indagação para a aplicação dos princípios de justiça. Então, em uma concepção política liberal devem estar inclusos os seguintes princípios: (a) princípios substantivos para a estrutura básica; (b) diretrizes de indagação: princípios de argumentação e normas com relação a evidências, à luz dos quais os cidadãos terão de decidir se os princípios substantivos aplicam-se de forma apropriada e identificar as leis e a política que melhor os satisfaçam (RAWLS, 2011, p. 264).

Diante dessa argumentação, nota-se que os valores políticos liberais também são de dois tipos, e que o primeiro tipo, que são os valores da justiça política, fazem parte da mesma categoria que os princípios de justiça para a estrutura básica. E o segundo tipo, que são os valores da razão pública, fazem parte da mesma categoria das diretrizes de indagação pública, que realizam esse tipo de indagação livre e pública (RAWLS, 2011, p. 264) Assim, a estrutura básica da sociedade bem como suas políticas públicas precisam estar justificadas para todos os cidadãos de acordo com o princípio de legitimidade política. Para realizar essas justificações, como pede o princípio da legitimidade política, deve ser feita uma apelação para as crenças em geral e formas de argumentação que estão presentes no senso comum, bem como para os métodos e conclusões científicas, não devendo apelar para as doutrinas abrangentes, sejam de ordem filosófica ou religiosa. Então, em uma concepção liberal como a da justiça como equidade, as diretrizes da razão pública possuem a mesma base que os princípios de justiça, isso significa que as partes, na posição original, ao adotarem os princípios de justiça, adotam, também, os critérios e as diretrizes da razão pública para que esses princípios sejam aplicados, pois são partes complementares do mesmo acordo (RAWLS, 2011, p. 265-266).

26

O que importa, no ideal de razão pública, é que os cidadãos devem conduzir suas discussões fundamentais nos marcos daquilo que cada um considera uma concepção política de justiça fundada em valores que se pode razoavelmente supor que outros subscrevam e cada qual se dispõe, de boa fé, a defender tal concepção. Isso significa que cada um de nós deve ter um critério, e se dispor a explicá-lo, acerca de quais princípios e diretrizes acredita que se pode razoavelmente esperar que os outros cidadãos (que também são livres e iguais) subscrevam juntos. Precisamos dispor de um teste que estejamos dispostos a explicitar e que nos permita verificar quando essa condição é satisfeita (RAWLS, 2011, p. 267).

Ocorre que o conteúdo e a ideia de razão pública podem sofrer variações dentro dos limites dos princípios de justiça. Então se torna necessário, considerar a impossibilidade de nem sempre atingir um acordo extenso na razão pública, não sendo necessário que todos aceitem os mesmos princípios de justiça. Simplesmente essas discussões devem estar direcionadas às ideias sobre a concepção política que todos aceitam. “A visão que denominei justiça como equidade é apenas um exemplo de concepção política liberal; seu conteúdo especifico não é definidor” (RAWLS, 2011, p. 267).

1.5

A ideia de elementos constitucionais essenciais Com o objetivo de esclarecer a abrangência de uma concepção política de

justiça necessitamos estabelecer os elementos constitucionais essenciais, que os princípios de justiça vão especificar na estrutura geral do Estado, no processo político e nos direitos iguais que as maiorias legislativas devem respeitar. Elementos esses que são separados em duas espécies:

(a)

Os princípios fundamentais que especificam a estrutura geral do

Estado e do processo político: as prerrogativas do Legislativo, do Executivo e do Judiciário; o alcance da regra da maioria. (b)

Os direitos e as liberdades fundamentais e iguais da cidadania que as

maioria legislativas estão obrigadas a respeitar, tais como o direito de voto e de participação na política, a liberdade de consciência, de pensamento e de associação, assim como as garantias do Estado de Direito.

27

Os elementos constitucionais de primeiro tipo especificam de uma forma geral a estrutura do Estado e do processo político (o modo de adquirir e exercer o poder político), e esses elementos podem ser especificados de algumas maneiras diferentes, podemos utilizar, como exemplo, a diferença entre governos com sistemas parlamentarista ou presidencialista. Porém, depois de estabelecidos, não devemos desejar sua alteração, principalmente em função de interesses particulares por conquista de mais poder, embora isso possa acontecer no caso de uma exigência da justiça política (RAWLS, 2011, p. 269). O segundo tipo de elementos constitucionais, que especificam os direitos e liberdades fundamentais e iguais da cidadania, somente podem ser especificados de uma maneira que sofram poucas variações. Neles são estabelecidas a garantia da liberdade de consciência de pensamento, de associação e de expressão, direito de voto e participação política, garantido o acesso a concorrer a qualquer cargo eletivo, característicos de regimes democráticos (RAWLS, 2011, p. 269). Depois de realizada essa análise, Rawls também estabelece a diferença entre os princípios de justiça que especificam os direitos e liberdades fundamentais e os princípios que regulamentam as questões fundamentais de justiça distributiva. Essa diferença determina que ambos os princípios especificam papéis diferentes para a estrutura básica da sociedade. Assim, os princípios expressam valores políticos, no entanto suas diferenças residem nos papéis diferenciados da estrutura básica da sociedade: no primeiro papel se da à especificação e a garantia de direitos e liberdades básicos, assim instituindo procedimentos justos; e no segundo papel se da a criação das instituições de base da justiça social e econômica (RAWLS, 2011, p. 270). Rawls, então, nos apresenta quatro motivos para estabelecer a distinção entre os elementos constitucionais essenciais especificados nas liberdades fundamentais pelos princípios que regulam as desigualdades sociais e econômicas, que são os seguintes:

(a)

Os dois tipos de princípios especificam papéis diferentes para a

estrutura básica. (b)

É mais urgente estabelecer os elementos essenciais que têm por

objetivo as liberdades fundamentais.

28 (c)

É muito mais fácil determinar se esses elementos essenciais estão

sendo realizados. (d)

É muito mais fácil chegar a um acordo sobre quais direitos e

liberdades devem ser fundamentais, evidentemente não em todos os detalhes, mas nos aspectos mais importantes. (RAWLS, 2011, p. 271).

Podemos perceber que uma concepção política de justiça atinge os elementos constitucionais essenciais e as questões de justiça básica, abarcando também a questão da liberdade de movimento e a livre escolha, e também a ideia de um mínimo social que possa suprir as necessidades básicas dos cidadãos. (RAWLS, 2011, p. 272).

1.6

Dificuldades e limites da razão pública Neste item, vamos entender algumas dificuldades manifestadas com a razão

pública, bem como os limites que a cercam, e apresentar as respostas que Rawls a essas objeções.

1.6.1 Dificuldades Segundo Rawls, o que estamos dispostos a fazer é encontrar uma concepção política que esteja fundamentada em valores da justiça e da razão pública, com o objetivo de alcançar um horizonte razoável que possa ser inscrito em um acordo sobre as questões políticas fundamentais, a saber, as que envolvem os elementos constitucionais básicos e as questões de justiça básica. Uma primeira dificuldade que podemos observar é que a razão pública admite mais de uma resposta razoável em relação a uma questão específica, em função da existência da diversidade de valores políticos. Nesse caso pode não haver um acordo, e essa é uma possibilidade que ocorre com mais frequência do que se espera. Muitos vão atacar a razão pública dizendo que ela não consegue resolver a questão. Sendo assim os cidadãos estariam legitimados a recorrer a valores não políticos, de maneira que nem todos os valores não políticos seriam iguais. Porém cada um estaria de acordo com os valores não políticos que professa (RAWLS, 2011, p. 284). Para responder a essa dificuldade, devemos situar o horizonte

29

específico da razão pública em um âmbito puramente político, considerando que a razão pública não estabelece uma exigência de que todos devam aceitar os mesmos princípios, mas sim que precisamos nos conduzir para as discussões fundamentais nos baseando naquilo que consideramos ser uma concepção política (RAWLS, 2011, p. 285). Uma votação pode dizer respeito a uma questão fundamental e, se esta questão for debatida recorrendo-se a valores políticos e os cidadãos votarem segundo sua opinião sincera, o ideal se manterá (RAWLS, 2011, p. 285).

A segunda dificuldade tem a intenção de fazer uma avaliação no que diz respeito ao significado de votar segundo uma opinião sincera, de modo que para atingir esse objetivo, segundo Rawls, precisamos identificar três condições necessárias para poder afirmar que respeitamos a razão pública e o seu princípio de legitimidade: (a)

Quando conferimos um peso muito grande e que normalmente não

pode ser superado ao ideal que prescreve a razão pública; (b) quando acreditamos que a razão pública é adequadamente completa, (...) há alguma combinação de valores políticos que basta para mostrar de modo razoável a resposta; (c) e, finalmente, quando acreditamos que a posição especifica que defendemos e a lei ou a política pública que nela se baseia expressam uma combinação e um equilíbrio razoáveis desses valores (RAWLS, 2011, p. 285).

A principal questão é saber se determinado grupo de cidadãos, ao utilizar somente os valores políticos para deliberarem sobre questões fundamentais, de maneira que não estejam usando doutrinas abrangentes, estariam sendo sinceros? Segundo Rawls, as crenças em doutrinas abrangentes são coerentes com as três condições apresentadas. Ao acatar as três condições mencionadas, aceitamos o dever de recorrer a valores políticos como um dever de adotar certa forma de discurso público. Como as instituições e leis são sempre imperfeitas, podemos considerar imperfeita essa forma de discurso e, de todo modo, que não corresponde à verdade toda, tal como prescrita por nossa doutrina abrangente. Também

30 podemos considerar que esse discurso é superficial, porque não contém os fundamentos mais profundos nos quais acreditamos que nossa visão abrangente se baseia (RAWLS, 2011, p. 286-287).

Par Rawls, a razão pública requer apenas que os cidadãos sejam capazes de sustentar seu posicionamento uns aos outros, dentro de um equilíbrio razoável de valores políticos públicos. As doutrinas abrangentes e razoáveis que os cidadãos professam como um fundamento de apoio a esses valores políticos, sendo que os valores políticos que um cidadão subscreva deve ser razoável de maneira que os outros cidadãos também possam considera-lo razoável. Desse modo, apenas as doutrinas abrangentes não razoáveis entrariam em desacordo com a razão pública, não podendo dar sustentação a um equilíbrio razoável de valores políticos15 (RAWLS, 2011, p. 287) A terceira dificuldade seria a respeito da definição de quando uma questão consegue obter um resultado exitoso através da razão pública. Rawls enfatiza uma concepção política de justiça completa, de modo que seus valores políticos possam admitir um equilíbrio tal que consiga apresentar uma resposta razoável a maioria das questões essenciais. Para obter um maior esclarecimento, Rawls menciona quatro problemas de extensão: Um deles é entender a justiça de modo que abarque nossos deveres para com as gerações futuras (nisso se inclui o problema da poupança justa). Outro problema é estendê-la aos conceitos e princípios que se aplicam ao direito internacional e às relações políticas entre povos – a jus gentium tradicional. Um terceiro problema de extensão é formular os princípios que se aplicam aos cuidados básicos com a saúde. E por fim, podemos nos perguntar se a justiça pode estender-se a nossas relações com os animais 16

e com a ordem da natureza (RAWLS, 2011, p. 289) . 1

Para Rawls, a justiça como equidade pode dar conta de resolver os três primeiros problemas, desde que seja de uma perspectiva de contrato social segundo 15

Para exemplificar isso Rawls faz uma ilustração com a controvertida questão do aborto. Ele supõe uma sociedade bem ordenada, expondo um corriqueiro caso de mulheres adultas e maduras e também supõe examinar essa questão com base em três valores políticos importantes (RAWLS, 2011, p. 288). 16 O segundo problema de extensão é desenvolvido por Rawls em The Law of peoples. Onde ele vai propor um Direito dos Povos, ou seja, uma teoria de justiça global no âmbito puramente político, de maneira que possa utilizar uma razão pública, devendo ser aceitável para povos razoáveis plurais, de maneira eficaz e imparcial na criação de esquemas de cooperação (RAWLS, 2004, p. 17).

31

a qual os indivíduos de uma sociedade são plenamente reconhecidos como cidadãos livres e iguais. Diante dessa perspectiva, devemos nos voltar para sentido de futuro em relação a outras gerações, no sentido externo referente a outras sociedades, e no sentido interno no tocante àqueles que precisam de cuidados médicos (RAWLS, 2011, p. 290). O quarto problema que trata a respeito de uma ética ambiental, deve ser resolvido a partir de valores não políticos, onde cada qual decide a partir de suas doutrinas abrangentes, tentando convencer os outros de seu posicionamento, já que não é possível aplicar os limites da razão pública a esses casos (RAWLS, 2011, p. 290-291).

1.6.2 Limites Dando prosseguimento com a questão referente aos limites da razão pública, Rawls apresenta na investigação dois modos diferentes de se entender a razão pública: a visão exclusiva e a visão inclusiva. No que se refere à visão exclusiva, podemos entendê-la da seguinte forma: as razões que são oferecidas nos termos de doutrinas abrangentes em nenhuma hipótese devem ser introduzidas na razão pública, isso no tocante às questões políticas fundamentais. Já no que se refere à visão inclusiva, é permitido aos cidadãos, em circunstâncias específicas, que possam apresentar a base dos valores políticos, contidos em sua doutrina abrangente, desde que isso possa fortalecer o ideal de razão pública (RAWLS, 2011, p. 293). Assim para Rawls, devemos entender o ideal de razão pública de acordo com a visão inclusiva, pois esta visão admite uma maior variação de justificativas políticas, dependendo do caso especifico, sendo mais flexível da maneira necessária para a promoção do ideal de razão pública (RAWLS, 2011, p. 293). Para fundamentar esse ponto de vista, Rawls apresenta uma ilustração trazendo dois exemplos: o primeiro trata-se de uma sociedade mais ou menos bemordenada, com um sólido consenso sobreposto de doutrinas razoáveis e respeito ao ideal de razão pública, e que não está afetada por conflitos internos, não existindo injustiças fundamentais sobre as quais seus cidadãos queiram protestar. Assim não há por parte dos cidadãos interesse em introduzir outras considerações. Desse modo, a razão pública nessa sociedade bem-ordenada está de acordo com a visão exclusiva, pois estão invocando apenas valores políticos e valorizando o ideal de

32

razão pública. Em um segundo exemplo, Rawls apresenta uma sociedade quase bem-ordenada, com um grave conflito em relação ao respeito do princípio de igualdade equitativa de oportunidades no que diz respeito à educação para todos, esse conflito trata-se do apoio estatal somente para as escolas públicas ou, também, apoio para as escolas religiosas. E nessa situação vários grupos religiosos acabam por se opor uns aos outros, de tal maneira que começam a duvidar uns dos outros em relação ao respeito pelo compromisso com valores políticos fundamentais. Assim, é fundamental que os diversos grupos sejam obrigados a explicar suas razões, e demonstrando como cada doutrina abrangente confirma os valores políticos em um fórum público (RAWLS, 2011, p. 293-294). Outro exemplo que ilustra bem uma sociedade que não é bem-ordenada, onde o ideal de razão pública admite a visão inclusiva, seria a sociedade norte-americana no pré-guerra civil, em que os abolicionistas produziram criticas aos defensores da escravidão, e justificavam que suas instituições escravagistas eram contrárias às leis de Deus. Para Rawls, eles não estavam desrespeitando o ideal de razão pública, pois pensavam que suas razões abrangentes eram fundamentais para apoiar uma concepção política. Os abolicionistas poderiam dizer, por exemplo, que apoiavam os valores políticos da liberdade e igualdade para todos, mas que, levando em conta as doutrinas abrangentes que professavam e as doutrinas correntes em sua época, fazia-se necessário recorre às razões abrangentes nas quais uma grande maioria acreditava que esses valores estivessem baseados. Considerando essas circunstâncias históricas, não deixava de ser razoável que agissem como agiram em prol do próprio ideal de razão pública (RAWLS, 2011, p 297).

Assim os exemplos apresentados por Rawls, nos fazem perceber a necessidade do apoio mútuo entre a concepção política e seu ideal de razão pública, para que uma sociedade possa se tornar estável vindo a ser uma sociedade bemordenada, proporcionado a formação de um senso de justiça por parte dos cidadãos e os incentivando a cumprir esses deveres de civilidade (RAWLS,2011, p. 297-298). É nesse sentido que se deve entender o ideal de razão pública como um elemento normativo central de uma democracia constitucional, caracterizada pela pluralidade de doutrinas abrangentes razoáveis. Os diferentes tipos de questões

33

políticas aplicadas à razão pública são questões relativas aos elementos constitucionais essenciais e às questões de justiça básica. O objeto da razão pública é aplicado ao cidadão enquanto está envolvido na deliberação prática e pública sobre essas questões fundamentais? Além disso, especificamente, é aplicado às autoridades públicas e governamentais nos fóruns oficiais. Especialmente, os requisitos, valores e diretrizes da razão pública se aplica ao judiciário, tanto em suas decisões como em sua condição exemplar institucional de razão pública 17. O conteúdo da razão pública é apresentado pela concepção política de justiça e então passam a formar os princípios substantivos de justiça para a estrutura básica da sociedade bem como as diretrizes de indagação, e também as concepções de virtudes cívicas necessárias para realizar a razão pública. Os limites da razão pública se encontram no ideal de cidadãos democráticos, que tentam levar seus assuntos políticos nos termos dos valores públicos, de um modo que seria razoável esperar que os outros também aceitem. A razão pública exige o equilíbrio de valores públicos que se considera razoável em um caso específico (RAWLS, 2011, p. 297299).

Dessa maneira a razão pública destaca o papel do dever de civilidade como um ideal de democracia, considerando que o conteúdo da razão pública seja formado apenas pelos valores políticos e as diretrizes de uma concepção política de justiça, não havendo nenhuma relação com uma concepção moral de doutrina abrangente. No entanto, dessa maneira a razão pública pode se aproximar de uma teoria moral substantiva, já que ela apela para valores morais-políticos como civilidade, razoabilidade e cidadania. Mas este é um assunto do qual não nos ocuparemos nos limites desse trabalho.

17

No terceiro capitulo deste trabalho, vou tratar do judiciário principalmente da suprema corte como um modelo de razão pública.

34

2

USO PÚBLICO DA RAZÃO EM KANT

Neste capitulo temos como objetivo interpretar a ideia de razão pública para mostrar duas coisas. Primeiro, iremos tratar a respeito da concepção kantiana de razão pública, a partir do contexto do esclarecimento18. Para entender como Kant entendia as possibilidades de uso da razão esclarecida, ou seja, o uso público e o privado da razão. Temos como objetivo tornar compreensível cada um dos dois tipos de usos tanto o público como o privado da razão, as características e as diferenças inerente as duas, bem como apontar o contraste existente entre a razão pública de Rawls e a razão pública de Kant. O objetivo é apenas destacar algumas das características que tornam a ideia de razão pública de Rawls diferente de uma versão mais kantiana. .

2.1

A razão esclarecida Em geral, quando ouvimos a palavra Iluminismo, quase que imediatamente

este termo nos remete a um “período histórico”, período este que aconteceu uma grande efervescência cultural, cientifica e erudita. No entanto, o que nos interessa é o que esse termo quer dizer literalmente: clarificação ou esclarecimento (Aufklärung). O Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso do teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento (Aufklärung) (Kant, 1985, p.100).

18

Texto de Kant que foi publicado na Berlinische Monatsschriftem 30 de setembro de 1784, o nome desse texto é uma resposta à pergunta: O que é esclarecimento? (Was ist Aufklärung?).

35

A menoridade a que Kant se refere não é a mesma menoridade que geralmente entendemos.19 O que ele quer dizer é: uma menoridade que o individuo se impõem a si mesmo, na qual o individuo abre mão de se orientar por sua própria razão, tornando-se incapaz de controlar seus atos, perde sua autonomia. A menoridade que Kant se refere, aparece, por exemplo, quando passamos a depender de alguém para nos dizer como devemos nos comportar; na autoridade que um terceiro exerce sobre nós, decidindo o que devemos fazer. De maneira que, segundo Kant, com a tendência que temos de nos acomodar, essa menoridade vai se agravando cada vez mais, pois para nós é conveniente não nos ocuparmos com algumas obrigações passando essa responsabilidade a outro. Kant ressalta que essa tal menoridade é culpa do próprio homem. O que nos deixa a seguinte questão: Por que o homem é culpado de sua condição de não esclarecido? 20 Apesar da culpa da menoridade recair sobre o próprio homem, isso não parece preocupá-lo, pois ele está alheio a este tipo de questionamento, devido a atitudes viciosas, como a falta de coragem, a má vontade para com suas obrigações. É tão cômodo ser menor. Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um médico que por mim decide a respeito de minha dieta, etc., então não preciso de esforçar-me eu mesmo. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis (KANT, 1985, p.100-102).

Para Kant, todo homem tem tanta condição de dirigir suas atitudes quanto qualquer líder, uma vez que o tal líder ou doutrina, pertencendo também à espécie humana, está sujeito aos mesmos vícios que qualquer outro indivíduo. Dependendo a saída dessa menoridade unicamente da vontade desse homem 21. A coragem de servir-se de si mesmo é uma maneira de agir da liberdade da vontade do indivíduo. Isso é um indicador que alguns indivíduos conseguem se apoderar de sua própria razão, deixando para traz a covardia. E dessa maneira, servindo-se de si mesmo, o 19

Menoridade como uma faixa etária limitada em determinada idade, exemplo: individuo menor de idade até os 18 anos, ou menoridade como individuo incapaz juridicamente. 20 A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha, continuem, no entanto de bom grado menores durante toda a vida (KANT, 1985, p. 100). 21 O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a falta dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo (KANT, 1985, p.100).

36

homem consegue se livrar de sua menoridade e assim, consegue iniciar seu esclarecimento. Neste processo, a razão e seus usos tem um papel fundamental.

2.2

Uso público e privado da razão Kant compreende a razão como sendo aquilo que distingue o homem dos

outros seres. E a razão está intrinsicamente ligada à liberdade, sendo a razão indispensável para o que Kant denominou de servir-se de si. Para Kant todo homem é livre e essa liberdade pode ser operada de maneira individual. Segundo ele, o homem é possuidor de um direito natural, que dá ao homem a possibilidade de usar sua própria liberdade, da melhor maneira possível, de modo que, através de sua razão e de seus próprios julgamentos, consiga atingir seu objetivos. Que limitação, porém, impede o esclarecimento (Aufklärung)? Qual não o impede, e até mesmo o favorece? Respondo: o uso público de sua razão deve sempre ser livre e só ele pode realizar o esclarecimento entre os homens. O uso privado da razão pode, porém muitas vezes ser muito estreitamente limitado, sem, contudo por isso impedir notavelmente o progresso do esclarecimento (Aufklärung). Entendo, contudo sob o nome de uso público de sua própria razão entendo aquele que qualquer homem, enquanto sábio, faz dela diante do grande público do mundo letrado. Denomino uso privado àquele que o sábio pode fazer de sua razão em um certo cargo público ou em função a ele confiado (KANT, 1985, p.104).

Porém Kant entende que o homem esclarecido não deve agir apenas com interesse, isto é, em vista de apenas atingir seus fins particulares, pois suas ações, por mais que ele não perceba, vão interferir em todas as suas interações sociais. De modo que a ação de cada indivíduo, mesmo que este não se de conta, colabora para que o desenvolvimento da espécie humana ocorra, pois essas ações se tornam um progressivo desenvolvimento ordenado, denominado por Kant como leis naturais. Como o esclarecimento ocorre publicamente, isso não quer dizer que é um desrespeito à autoridade instituída, como também não pode ser uma obediência cega. O bom uso público da razão, quer dizer que devemos realizar nossas ações conforme as circunstâncias e criticamente refletir sobre elas. Kant apresenta alguns exemplos de como acontece o uso público da razão: quando um militar que faz parte

37

de uma corporação e devendo obrigações a esta corporação, cumpre as tarefas que lhe são impostas, mas sem deixar de refletir de maneira critica quanto à disciplina da caserna; quando o funcionário de finanças, ligado ao banco, cumpre de maneira honrada o cargo que lhe foi confiado e passa a efetuar as cobranças que lhe cabem, e também não deixa de refletir de maneira critica sobre as taxas dos juros; e ainda quando o clérigo, fazendo parte de uma Igreja, desempenhando a função de pastor, realiza o sermão aos seus fiéis obedecendo de maneira reta a sua doutrina, mas, no entanto sem deixar de refletir sobre as contradições desta Instituição. Segundo Kant, também o cidadão tem seu papel a cumprir, ele é chamado as suas obrigações frente ao Estado, devendo obediência as suas leis, mas sem que isto o impeça de pensar na natureza de suas atribuições (KANT, 1985, p. 106). Para entender melhor, vamos observar a ilustração que Kant faz a respeito do clérigo. Mas, enquanto sábio, tem completa liberdade, e até mesmo o dever, de dar conhecimento ao público de todas as suas ideias, cuidadosamente examinadas e bem intencionadas, sobre o que a de errôneo naquele credo, e expor suas propostas no sentido da melhor instituição da essência da religião e da igreja. (...) Poderá dizer: nossa igreja ensina isto ou aquilo. (...) Em todo caso, porém, pelo menos nada deve ser encontrado ai que seja contraditório com a religião interior. (...) O uso que um professor empregado faz de sua razão diante de sua comunidade é unicamente um uso privado, por que é sempre um uso doméstico, por grande que seja a assembleia. Com relação a esse uso ele, enquanto padre, não é livre e nem tem o direito de sê-lo. (...) Já como sábio, ao contrário, que por meio de suas obras fala para o verdadeiro público, isto é, o mundo, o sacerdote, no uso público de sua razão, goza de ilimitada liberdade de fazer uso de sua própria razão e de falar em seu próprio nome (KANT, 1985, p. 106-108).

Assim o indivíduo em esclarecimento é aquele que tem autonomia para pensar como bem entender, porém, não pode deixar de agir conforme o dever, ou seja, por mais autônoma que seja o uso da razão, ela não está fora dos limites normativos dados pelo Estado. Então podemos dizer que fazer uso público da razão é o mesmo que emitir juízos, de modo que esclarecer-se equivale a emancipar-se, ou seja, é alcançar a autonomia racional através do uso da razão em domínio público. O uso público da razão é limitado por uma publicidade formal, e com base em um entendimento pratico, onde uma ação individual qualquer afetará também os

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outros. Assim em uma época de esclarecimento, cada indivíduo tem a preocupação de realizar suas ações publicamente seguindo os princípios de uma razão livre diante dos outros. De modo que fazer uso público da razão, a respeito de qualquer coisa é uma premissa do esclarecimento cosmopolita. Assim inversamente, o uso privado da razão é restrito normativamente por uma figura institucional, é necessário obediência a seu regulamento. Porém, isso não quer dizer que o indivíduo filiado a uma instituição esteja impossibilitado de servir-se de si fazendo o uso público da razão.

2.3

As divergências entre Rawls e Kant em relação à razão pública Com relação à razão pública em Kant, destacaremos agora duas

características fundamentais. Primeiro, o uso público da razão não é limitado à uma sociedade, pois Kant tem uma concepção cosmopolita. Assim a razão pública de Kant é para o mundo inteiro. Segundo, ela não é exercida no contexto das instituições políticas. Como no exemplo a seguir: um funcionário público tem o dever de obediência ao regulamento de suas funções, mesmo considerando que elas sejam injustas. O uso público da razão para Kant, não poderia ser exercido neste contexto. Esse funcionário pode usar publicamente sua razão somente quando estiver fora do contexto institucional, ai sim ele vai poder manifestar publicamente o que ele pensa em relação ao ordenamento das instituições políticas 22. Diretamente ligado a essas duas características estão tanto o cosmopolitismo quanto o contexto não institucional está o conceito de autonomia. Pois o uso público da razão para Kant somente ocorre quando não estamos limitados por alguma autoridade externa à própria razão e quando não estamos presos dentro do espaço geográfico de uma sociedade, se estivermos livres dessas restrições, então conseguiremos realizar o uso público da razão. Dessa maneira a ideia de razão pública de Rawls se diferencia das duas características da concepção de Kant que apresentamos. Primeiro: Rawls pensa a razão pública dentro dos limites de uma sociedade, que pretende ser bem-ordenada, assim a razão pública de Rawls não é cosmopolita. Segundo: Rawls concebe que a razão pública se aplica ao fórum político público. Ele define este fórum como os 22

Kant apresenta três exemplos (KANT, 1985, p. 104-106)

39

discursos dos juízes em suas decisões, os discursos dos agentes públicos do executivo e legislativo e, também, os discursos em campanhas eleitorais, mas também a razão pública se aplica aos cidadãos em geral quando eles exercem sua cidadania por meio do voto (RAWLS, 2011, p. 254). Dessa maneira, ao contrário de Kant, a razão pública formulada por Rawls é exercida dentro do contexto das instituições políticas. Ao conceber que a ideia de razão pública é aplicada ao fórum político público, e vai tratar de valores enraizados na cultura política pública, fica claro que o principal interesse de Rawls é a cultura e os valores presentes nas instituições políticas de uma sociedade democrática e constitucional. Enquanto para Kant, se um autor publicar um livro sobre Ética, por exemplo, ele está fazendo uso público da razão. Para Rawls, é bem o contrário, a ideia de razão pública limita a admissão de discussões filosóficas ou religiosas e doutrinas abrangentes no contexto do fórum político público. De modo que não é nem um pouco razoável um cidadão se justificar baseando-se em razões religiosas ou filosóficas de doutrinas abrangentes. Assim, podemos compreender por que a ideia de razão pública para Rawls é diferente da que Kant concebia. Para Rawls, é necessário que em uma democracia constitucional exista uma cultura política capaz de tornar estável este regime e guialo para a formação de uma sociedade mais justa.

40

3

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO MODELO DE RAZÃO PÚBLICA NO BRASIL Neste capítulo, vamos expor a concepção que Rawls tem da Suprema Corte

como sendo um modelo de razão pública, bem como vamos exemplificar uma Suprema Corte, nesse caso a Suprema Corte brasileira conhecida como o Supremo Tribunal Federal (STF), procurando mostrar como funciona essa suprema corte de maneira que ela possa ser considerada um modelo de razão pública. Em relação ao Supremo Tribunal Federal (STF), traremos a decisão do (STF) a respeito da ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 54, que trata da descriminalização do aborto de fetos com anencefalia, expondo, ainda que de forma breve, o que cada Ministro do (STF) considerou para justificar o seu voto, com base na razão pública.

3.1

Concepção da Suprema Corte como modelo de razão pública Segundo Rawls, a Suprema Corte ou Supremo Tribunal é o que podemos

chamar de modelo exemplar de razão pública, principalmente porque a razão pública é a razão da Suprema Corte. Porém Rawls ressalta que isso não é uma definição (RAWLS, 2011, p. 272). Então Rawls nos apresenta de inicio, duas questões para serem esmiunçadas: primeiro, se a razão pública é apropriada para ser a razão da Suprema Corte, no seu exercício de intérprete judicial em última instância, mas não o intérprete da lei mais alta; segundo, se a Suprema Corte é a parte do Estado com mais características para expressar a razão pública (RAWLS, 2011, p.273). Rawls vai esclarecer essas questões a partir da exposição de cinco princípios do constitucionalismo:

(a)

O primeiro princípio é a distinção (...), entre o poder constituinte do

povo para estabelecer um novo regime e o poder comum das autoridades públicas e do eleitorado, exercido na política cotidiana. O poder constituinte do povo institui uma estrutura para regular o poder ordinário e somente entra em cena quando o regime existente se dissolveu. (b)

A segunda distinção é entre a lei mais alta e a lei ordinária. A lei mais

alta é a expressão do poder constituinte do povo e é investida da autoridade

41 mais elevada da vontade de “Nós, o povo”, ao passo que a legislação ordinária se reveste da autoridade e constitui a expressão do poder ordinário do parlamento e do eleitorado. A lei mais alta obriga e guia este poder. (c)

Como um terceiro princípio, uma constituição democrática é a

expressão fundada em princípios, na lei mais alta, do ideal político de um povo se autogovernar de certa maneira. O objetivo da razão pública é articular esse ideal. (d)

Um

quarto

princípio

é

que,

mediante

uma

constituição

democraticamente ratificada e conte com uma Carta de Direitos, o corpo dos cidadão fixa de uma vez por todas certos elementos constitucionais essenciais, por exemplo: os direitos e as liberdades civis e políticos iguais , as liberdades de expressão e de associação, bem como os direitos e liberdades e liberdades que asseguram a segurança e a independência dos cidadãos, tais como as liberdades de movimento e de escolha de ocupação e as garantias do Estado de direito. (e)

O quinto e último princípio prescreve que, em um governo

constitucional, o poder supremo não pode ser depositado nas mãos da legislatura, nem mesmo de um tribunal supremo, que é somente o interprete judicial de última instância da constituição. O poder supremo pertence aos três poderes, em uma relação adequadamente especificada entre si, em que cada um deles é responsável perante o povo. (RAWLS, 2011, p. 273275).

Com relação ao primeiro principio, podemos citar como exemplo de poder constituinte do povo, aqui no Brasil, a Constituição de 1988, que foi promulgada após um período ditatorial23 estabelecendo uma democracia constitucional. Já em relação ao segundo princípio, podemos citar, como exemplo de lei mais alta aqui no Brasil, também a Constituição de 1988, e como lei ordinária, todas as outras leis estabelecidas pelo Congresso Nacional que afetam e regulam nossas ações, mas que são reguladas pela Constituição: leis ambientais, leis trabalhistas, lei de cotas, Estatuto do idoso e Estatuto da criança e do adolescente, etc.

23

Ditadura Militar, período que teve início em 1964, com o golpe militar que culminou na destituição do Presidente João Goulart, e se estendeu até 1984, quando mesmo após um movimento intenso no país pedindo o retorno de eleições diretas “Diretas Já”, o governo optou por realizar eleições indiretas e o congresso elegeu o Sr. Tancredo Neves como primeiro Presidente civil após esse período, demarcando assim o fim da Ditadura Militar.

42

De modo que fica evidenciado o caráter dualista existente na democracia constitucional. Isso ocorre devido à distinção entre o poder constituinte do poder ordinário, e a Suprema Corte precisa estar dentro dessa ideia de democracia constitucional, tendo como objetivo defender a lei mais alta que expressa o poder constituinte do povo24. A Suprema Corte, então, é apresentada como um modelo institucional exemplar de razão pública, pois é função dos juízes realizar da melhor maneira possível uma interpretação da constituição, não fazendo o juiz uso de critérios pessoais, como doutrinas religiosas ou filosóficas para o julgamento, apelando somente a valores políticos pertencentes à concepção política de justiça. Um papel essencial da Suprema Corte como instituição modelo de razão pública é dar força e vitalidade à razão pública em um fórum que também é público, interpretando de forma efetiva a constituição de maneira razoável (RAWLS, 2011, p.279-281).

3.2

Supremo Tribunal Federal no Brasil Na República Federativa do Brasil, país este em que vivemos, atualmente sob

o regime de uma democracia constitucional, o poder supremo pertence aos três poderes, em uma relação adequadamente especificada entre si. A nossa Suprema Corte, órgão institucional com a função defender a lei mais alta e que expressa o poder constituinte do povo, recebe a denominação de Supremo Tribunal Federal. O Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do Poder Judiciário, e a ele compete, precipuamente, a guarda da Constituição, conforme definido no art. 102 da Constituição Federal. A partir de agora então vamos ter uma ideia de como é formado e como atua o STF. O Supremo Tribunal Federal é composto por onze Ministros, brasileiros natos (art. 12, § 3º, IV, da CF/88), escolhidos dentre cidadãos com mais de 35 e menos de 65 anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada (art. 101

24

Para exemplificar isso Rawls apresenta a Fundação, a Reconstrução e o New Deal como períodos que foram construídos com base nos valores políticos da razão pública, destacando a Suprema Corte como o intérprete judicial supremo do corpo de lei superior (Rawls, 2011, p.276).

43

da CF/88), e nomeados pelo Presidente da República, após aprovação da escolha pela maioria absoluta do Senado Federal. (http://www.stf.jus.br/portal/cms). O Presidente do Supremo Tribunal Federal é também o Presidente do Conselho Nacional de Justiça (art. 103-B, inciso I, da CF/88, com a redação dada pela EC nº 61/2009). (http://www.stf.jus.br/portal/cms). O Tribunal indica três de seus Ministros para compor o Tribunal Superior Eleitoral (art. 119, I, a, da CF/88). (http://www.stf.jus.br/portal/cms). Entre suas principais atribuições está a de julgar a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, a ação declaratória de

constitucionalidade

de

lei

ou

ato

normativo

federal,

a

arguição

de

descumprimento de preceito fundamental decorrente da própria Constituição e a extradição solicitada por Estado estrangeiro. (http://www.stf.jus.br/portal/cms). Na área penal, destaca-se a competência para julgar, nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República, entre outros. (http://www.stf.jus.br/portal/cms). Em grau de recurso, sobressaem-se as atribuições de julgar, em recurso ordinário, o habeas corpus, o mandado de segurança, o habeas data e o mandado de injunção decididos em única instância pelos Tribunais Superiores, se denegatória a decisão, e, em recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida contrariar dispositivo da Constituição. (http://www.stf.jus.br/portal/cms). A partir da Emenda Constitucional nº 45/2004, foi introduzida a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal aprovar, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, súmula com efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (art. 103-A da CF/88). (http://www.stf.jus.br/portal/cms). O Plenário, as Turmas e o Presidente são os órgãos do Tribunal (art. 3º do RISTF/80). O Presidente e o Vice-Presidente são eleitos pelo Plenário do Tribunal, dentre os Ministros, e têm mandato de dois anos. Cada uma das duas Turmas é constituída por cinco Ministros e presidida pelo mais antigo dentre seus membros, por um período de um ano, vedada a recondução, até que todos os seus integrantes tenham exercido a Presidência, observada a ordem decrescente de

44

antiguidade (art. 4º, § 1º, do RISTF/80 – atualizado com a introdução da Emenda Regimental n. 25/08). (http://www.stf.jus.br/portal/cms).

3.3

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental Neste item vamos identificar o que significa Arguição de Descumprimento de

Preceito

Fundamental (ADPF).

Que

é

a

forma

como

foi

denominada

no Direito brasileiro, este dispositivo legal, que é utilizado para evitar ou reparar dano a um preceito fundamental resultante de um ato do poder público (União, Estado, Distrito Federal e Município), também está incluso nisso os atos anteriores à promulgação da Constituição de 1988. Sendo instituída aqui no Brasil em 1988 pelo parágrafo 1º do artigo 102 da Constituição Federal25, a ADPF foi posteriormente regulamentada pela lei nº 9.882/9926. O objetivo de sua criação foi de fechar a lacuna, deixada pela ação direta de inconstitucionalidade (ADI), que não pode ser proposta contra lei ou atos normativos que entraram em vigor em data anterior à promulgação da Constituição de 1988. A ADPF apresenta algumas características básicas como as seguintes: (1) a legitimação ativa é a mesma prevista para a ação direta de inconstitucionalidade (art. 103, I a IX, da Constituição federal, art. 2° da Lei 9.868/1999 e art. 2°, I da Lei 9.882/1999); (2) do mesmo modo que a ADI, alguns legitimados para ADPF não precisam ser representados por advogados, já que possuem capacidade postulatória; (3) a competência de julgamento será sempre do Supremo Tribunal Federal (STF); (4) a ADPF admite liminar, concedida pela maioria absoluta dos ministros do STF (art. 5° da Lei 9.882/1999). Esta liminar pode estar fundamentada na determinação para que juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou de efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da ação; informações: o relator da ADPF poderá solicitar informações às autoridades responsáveis pelo ato questionado. Na ADPF admite-se a figura do “amicus curiae” (amigo da corte); (5) a decisão da ADPF 25

Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, Edições Câmara-35ª edição, 2012. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9882.htm.

26

45

produz efeito “erga omnes” (contra todos) é também vinculante em relação aos demais órgãos do poder público. Os efeitos no tempo serão retroativos, mas o STF poderá, em razão da segurança jurídica ou de excepcional interesse social, restringir os efeitos da decisão, decidir que essa somente produzirá efeitos a partir do trânsito em julgado ou de outro momento futuro que venha a ser fixado. Decisões nessa linha

excepcional

exigem

voto

de

dois

terços

dos

membros

do

STF

(http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9882.htm).

3.3.1 Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 54 garantiu que no Brasil a interrupção terapêutica da gravidez de feto portador de anencefalia fosse acrescentada a modalidade que exclui a hipótese de crime de aborto. Em abril de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde entrou com uma proposta Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), sendo concedida uma liminar pelo ministro Marco Aurélio de Mello autorizando as mulheres a interromper a gestação no caso do feto ser portador de anencefalia. Após quatro meses em vigência, essa liminar que autorizava a interrupção da gestação em caso de anencefalia no feto foi cassada na sessão plenária da Suprema Corte, em 20 de outubro de 2004. Essa liminar foi cassada porque foi considerado que primeiro era necessário o julgamento prévio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). No dia28 de abril de 2005, os juízes realizaram a deliberação pelo cabimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). No dia 10 de abril de 2012, o Ministro Dias Toffoli declarou-se impedido porque já tinha atuado nesse caso na condição de Advogado Geral da União. Então o julgamento teve inicio no dia 11 de abril de 2012, reunidos em plenário, votaram os ministros Marco Aurélio de Mello, Rosa Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Carmem Lúcia e Ricardo Lewandowski, apenas o Ministro Ricardo Lewandowski foi contrario a causa e assim encerrou o primeiro dia de votação. Em 12 de abril de 2012 iniciou o segundo dia de votação e votaram os ministros Ayres Britto, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Cezar Peluso. Apenas Cezar Peluso foi contrario a causa e assim encerrou o segundo dia de votação. Sendo assim por maioria, e nos termos do voto

46

do relator, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 (ADPF), declarando inconstitucional a interpretação segundo a qual, é tipificada como crime a interrupção terapêutica da gravidez de feto com anencefalia. A decisão do Supremo Tribunal Federal não descriminaliza o aborto, bem como não cria nenhuma exceção ao ato criminoso previsto no Código Penal Brasileiro, porém a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 decidiu que não deve ser considerada como aborto a interrupção terapêutica induzida da gravidez de um feto portador de anencefalia. O Supremo Tribunal Federal realizou audiência pública a fim de promover a participação das entidades representativas dos diversos segmentos sociais, religiosos e científicos. As sessões ocorreram em 26 e 28 de agosto de2008 e em 04 e 16 de setembro de 2008. E foram expostos argumentos como, por exemplo: Os Drs. Luiz Antônio Bento e Paulo Silveira Martins Leão Júnior, representantes da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Ambos defenderam a humanidade do feto em gestação, independentemente de má-formação, bem como o fato de a reduzida expectativa de vida não ter a condição de lhe negar direitos e identidade. Argumentaram que “a vida de cada indivíduo não é apenas um bem pessoal inalienável, mas também um bem social”, ou seja, cabe à própria sociedade a promoção e defesa dos direitos do feto portador de anomalia, não podendo o Estado julgar o valor intrínseco de uma vida pelas deficiências (STF, ADPF 54, 2012, p. 19).

(...) O Dr. Carlos Macedo de Oliveira, representante da Igreja Universal do Reino de Deus, sustentou o livre arbítrio de todo ser humano. Disse prevalecer, nesse caso, o desejo da mulher, única capaz de dimensionar o impacto pessoal de uma gravidez de feto anencéfalo. Apontou as diferenças entre descriminalizar a citada espécie de aborto e torná-lo obrigatório para todas as mulheres, independentemente da opção religiosa, cultural ou social (STF, ADPF 54, 2012, p. 19-20).

(...) O Dr. Rodolfo Acatauassú Nunes, professor adjunto do Departamento de Cirurgia Geral da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e livre docente pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, observou que a Associação Médica Americana não aceita a equivalência da anencefalia à morte encefálica, tendo proibido a possibilidade de retirada dos órgãos de tais fetos para a realização de transplantes. Apontou a existência da Portaria nº 487, do Ministério da

47 Saúde, cujo artigo 1º prevê que a retirada de órgãos e/ou tecidos de neonato encefálico para fins de transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de parada cardíaca irreversível (STF, ADPF 54, 2012, p. 20).

(...) As Doutoras Irvênia Luíza de Santis Prada, médica ginecologista, e Marlene Rossi Severino Nobre, médica ginecologista, Chefe dos Serviços de Clínicas e de Patologia Clínica do Posto de Assistência Médica de Várzea do Carmo, São Paulo, atualmente no exercício da Presidência da Associação Médico-Espírita Internacional e da Associação Médico-Espírita do Brasil. Para a primeira, a neurociência demonstra que o anencéfalo tem substrato neural para desempenho de funções vitais e consciência, o que contraindica a interrupção da gravidez, possibilitando a disponibilização dos órgãos do recém-nascido para transplante. A segunda defendeu que a vida do anencéfalo se sobrepõe a todos os outros direitos e que é um bem fundamental que lhe pertence. Afirmou não estar em discussão o direito da mulher, mas o direito à vida (STF, ADPF 54, 2012, p. 20-21).

O Dr. Jorge Andalaft Neto, representante da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO), apontou que as mulheres gestantes de feto anencéfalo apresentam maiores variações do líquido amniótico, hipertensão e diabetes, durante a gestação, bem como aumento das complicações no parto e no pós-parto e consequências psicológicas severas, com oito vezes mais risco de depressão. Relata que, segundo a FEBRASGO, a interrupção da gestação de feto anencéfalo constitui direito de cidadania (STF, ADPF 54, 2012, p. 21).

(...) O Deputado Federal Luiz Bassuma, Presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Vida – Contra o Aborto manifestou-se a favor do direito inviolável à vida. Acrescentou que, recentemente, o Estado brasileiro referendou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – circunstância que alcançaria a situação dos anencéfalos, mediante a qual se impõe à República Federativa do Brasil e à sociedade o dever de assegurar o direito de igualdade de oportunidade aos deficientes (STF, ADPF 54, 2012, p. 22).

(...) A Dra. Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília, doutora em Antropologia e pós-doutora em Bioética. A representante do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero – ANIS relembrou o impacto do diagnóstico nas mulheres grávidas de feto com anencefalia e discorreu

48 acerca da chamada “experiência da tortura” a que são submetidas. Insistiu na necessidade de se entender a decisão pela antecipação do parto como matéria de ética privada, vale dizer, a escolha, apesar de dever ser protegida pelo Supremo, cabe a cada mulher. Concluiu, por fim, defendendo que a laicidade do Estado brasileiro significa reconhecer que, para a vida pública, a neutralidade é um instrumento de segurança e, nesse caso, de proteção à saúde e à dignidade das mulheres. (STF, ADPF 54, 2012, p. 2324).

3.3.2 Anencefalia A anencefalia se caracteriza pela má formação ou ausência do cérebro, ou também da calota craniana. Neste caso se os rudimentos de cérebro existirem, não estão cobertos por ossos. Ainda que o termo sugira a total falta de cérebro, nem sempre é isso mesmo que acontece e muitas vezes há falta de partes importantes do cérebro, mas a presença de algumas estruturas do tronco cerebral, o que sustenta a sobrevivência do feto. Porém, a expectativa de vida de bebês nascidos com anencefalia é muito curta. Mais comum de ocorrer em fetos femininos e em mães nos extremos da faixa reprodutiva, muito jovens ou muito idosas, a anencefalia ocorre na seguinte proporção: 1/1.000 ou 1/10.000, conforme as estatísticas. Mas, a incidência pode ser muito maior, porque ocorrem muitos casos de abortos espontâneos

em

que

a

condição

não

é

diagnosticada

(http://www.abc.med.br/p/saude-da-mulher/340714/anencefalia.htm). A anencefalia decorre aparentemente de fatores genéticos e ambientais, geralmente no primeiro mês de embriogênese. Sabe-se que a probabilidade de maior incidência de anencefalia ocorre com mães muito jovens ou nas de idade avançada e que essa condição tem seis vezes mais probabilidade de ocorrer em mães diabéticas que nas não diabéticas. E também a anencefalia tem sido associada a uma elevada exposição a toxinas, tais como cromo, chumbo, mercúrio e níquel (http://www.abc.med.br/p/saude-da-mulher/340714/anencefalia.htm). A gravidez de um bebê anencéfalo pode apresentar complicações, tais como: acúmulo de líquido amniótico no útero devido a não deglutição do líquido da bolsa amniótica, pelo feto anencéfalo, já que este tem menos reflexos. Se o bebê com anencefalia chega a nascer, ele geralmente é cego, surdo, inconsciente e incapaz de sentir dor, sendo, portanto, inviável. Os fetos anencéfalos podem assumir

49

posições anômalas, dificultando o parto, já que o fenômeno físico do parto precisa do crânio. O ombro deles, não se sabe o porquê, é maior. E ainda existe o risco de não contração uterina após o parto levando a hemorragias no pós-parto, o que pode colocar a vida da mulher em risco. A anencefalia pode ser diagnosticada ainda no útero, por volta da décima segunda semana de gestação, através de um exame de ultrassonografia. Em mulheres sem acesso à ultrassonografia a condição da doença só é diagnosticada durante o parto, o que reforça a importância da realização

adequada

do

pré-natal.

(http://www.abc.med.br/p/saude-da-

mulher/340714/anencefalia.htm).

A melhor maneira de prevenir a anencefalia é a ingestão de ácido fólico durante a gestação, pois previne más formações fetais de maneira geral. O prognóstico para o portador dessa deficiência é a morte. Na sua grande maioria os fetos não sobrevivem ao nascimento. Quando acontece do feto nascer com vida ele geralmente morre em poucas horas ou dias, de parada cardiorrespiratória. Aproximadamente 75% dos bebês morrem dentro do útero ou durante o parto e os outros 25% morrem dentro de algumas horas ou dias após o parto. Há raros casos de sobrevivência de 20 a 24 meses. Em virtude de a anencefalia poder ser diagnosticada antes do nascimento, muitos médicos aconselham a interrupção da gravidez, já que o feto terá uma vida extrauterina muito curta ou nascerá morto, sendo este diagnóstico extremamente traumático para uma mulher que deseja esta gravidez. No entanto, é importante que esta gestante tenha o direito de escolher entre manter a gravidez ou não e seja orientada por seu médico sobre os riscos

e

a

gravidade

do diagnóstico.

(http://www.abc.med.br/p/saude-da-

mulher/340714/anencefalia.htm).

3.3.3 Voto dos Ministros Neste item vamos verificar como foi o voto de cada Ministro, como consideraram os argumentos de cada doutrina e entidade representativas que participaram das audiências públicas realizadas para o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54. Como o Ministro Dias Toffoli se declarou impedido, então vamos verificar apenas dez votos de um total de onze

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ministros, sendo que o placar da votação foi de oito votos a favor e dois votos contra a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54.

1. Voto do Ministro Marco Aurélio de Mello: Em seu voto, ele afirma que na ADPF 54 não se discute a descriminalização do aborto: distingue a antecipação terapêutica do parto no caso de anencefalia do aborto e considera que o aborto é crime contra a vida, pois atenta contra a vida em potencial e no caso do anencéfalo, não existe vida possível. Como a anencefalia pressupõe a ausência parcial ou total do cérebro, não havendo cura nem possibilidade de desenvolvimento da massa encefálica, o anencéfalo jamais poderá se tornar uma pessoa. Para o Ministro, não se trata de vida em potencial, mas de morte certa. O Ministro também lembrou o caráter laico do Estado brasileiro, previsto desde a Carta Magna de 1891, afirmando ser inconstitucional a interpretação segundo a qual configura crime a interrupção de gravidez de feto anencéfalo, ressaltando que esta questão não pode ser examinada a partir de orientações morais religiosas. Pois o Estado não é religioso, tampouco é ateu. O Estado é simplesmente neutro. O Ministro também descartou a posição que defende a manutenção da gestação do anencéfalo com base no argumento de que os seus órgãos poderiam ser doados. Segundo ele, além de ser vedada a manutenção de uma gravidez somente para viabilizar a doação de órgãos, essa possibilidade é praticamente impossível no caso de anencefalia, pois o feto terá outras anomalias que inviabilizariam essa prática. Obrigar a mulher a manter a gravidez apenas com esse propósito, para o relator, seria tratá-la a partir de uma perspectiva utilitarista, de instrumento de geração de órgãos para doação, o que também fere o princípio da dignidade da pessoa humana (STF, ADPF 54, 2012, p. 32-88). 2. Voto da Ministra Rosa Weber: A Ministra Rosa Weber afirmou que o que está em jogo não é o direito do feto anencefálico à vida, já que, de acordo com o conceito de vida do Conselho Federal de Medicina (CFM), jamais terá condições de desenvolver uma vida com a capacidade psíquica, física e afetiva inata ao ser humano, pois não terá atividade cerebral que o qualifique como tal. O que está em jogo, segundo ela, é o direito da mãe de escolher se ela quer levar adiante uma gestação cujo fruto nascerá morto ou morrerá em curto espaço de tempo após o parto, sem desenvolver qualquer

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atividade própria do ser humano. Para a Ministra, a gestante deve ficar livre para optar sobre o futuro de sua gestação do feto anencéfalo. Do contrario não há garantias dos direitos, como o da dignidade da pessoa humana, consagrado na constituição (STF, ADPF 54, 2012, p. 89-144). 3. Voto do Ministro Joaquim Barbosa: Para o Ministro, a antecipação do evento morte, que é o resultado da anencefalia, em nome da saúde física e psíquica da mulher, subscreve o princípio da dignidade da pessoa humana, na perspectiva da liberdade e autonomia privada. Em relação à vida extrauterina inviável e a liberdade e autonomia privada da mulher, prevalece o direito da mulher escolher aquilo que melhor representa seus interesses pessoais, suas convicções morais e religiosas (STF, ADPF 54, 2012, p. 145-153). 3. Voto do Ministro Luiz Fux: A partir de vários estudos e dados científicos, o Ministro Observou três pontos sobre a gestação de anencéfalos: (a) que a expectativa de vida deles fora do útero é absolutamente efêmera; (b) que o diagnóstico de anencefalia pode ser feito com razoável índice de precisão; (c) que as perspectivas de cura da deficiência na formação do tubo neural são absolutamente inexistentes nos dias de hoje. Diante disso, ele ressaltou a importância de proteger a saúde física e psíquica da gestante. Ele desafiou a possiblidade de qualquer pessoa comprovar, à luz do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, que é justo a gestante de um feto anencéfalo responder penalmente por aborto. Segundo o Ministro por que punir essa mulher que já padece de uma tragédia humana? Na visão do Ministro a interrupção da gravidez de fetos anencefálicos é matéria de saúde pública que aflige, em sua maioria, mulheres de menor poder aquisitivo, sendo, portanto, uma questão a ser tratada como política de assistência social. Segundo ele, o importante é dar à gestante, todo apoio necessário em uma situação tão lastimável e não punir com uma repressão penal destituída de qualquer fundamento razoável (STF, ADPF 54, 2012, p. 154-171). 4. Voto da Ministra Cármem Lúcia: Segundo a Ministra, nada pode fragilizar mais o ser humano do que o medo e a vergonha. Ela relata que em uma das cartas enviadas aos ministros, uma mulher contou que durante cinco meses de gravidez, após ter descoberto a anencefalia do seu feto, não saía mais de casa porque em toda fila, até mesmo na do banco, perguntavam quando o bebê iria nascer, qual o nome da criança, e o que a mãe

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pensava para o filho. Mas ela não podia responder. Portanto, ela passou cinco meses dentro de casa se escondendo por vergonha de não ter escolhas numa sociedade que se diz democrática, com possibilidade de garantir liberdade para todos. Para a Ministra, na democracia a vida impõe respeito. Neste caso, o feto não tem perspectiva de vida, porém há outras vidas que dependem, exatamente, da decisão que possa ser tomada livremente por esta família, no sentido de garantir a continuidade livre de uma vida digna (STF, ADPF 54, 2012, p. 172-236). 5. Voto do Ministro Ricardo Lewandowski: O Ministro divergiu seu voto dos votos anteriores. Segundo ele a possibilidade de que uma decisão favorável ao aborto de fetos anencéfalos torne lícita a interrupção da gestação de embriões, com diversas outras patologias que resultem em pouca ou nenhuma perspectiva de vida extrauterina. Citando dados da Organização

Mundial

de

Saúde

(OMS)

sobre

malformações

congênitas,

deformidades e anomalias cromossômicas, o Ministro observou que existem inúmeras patologias fetais em que as chances de sobrevivência são nulas ou muito pequenas tais como: como acardia (ausência de coração), agenesia renal, hipoplasia pulmonar, atrofia muscular espinhal e outras. Então uma decisão judicial isentando de punição o aborto de fetos portadores de anencefalia, abriria a possibilidade de interrupção da gestação de inúmeros outros casos. Segundo o Ministro, sem lei devidamente aprovada pelo parlamento, que regule o tema com minúcias, precedida de amplo debate público, provavelmente retrocederíamos aos tempos dos antigos romanos, em que se lançavam para a morte, do alto de uma rocha, as crianças consideradas fracas ou debilitadas (STF, ADPF 54, 2012, p. 237252). 6. Voto do Ministro Ayres Britto: Para o Ministro, a gravidez se destina à vida, e não à morte. O que contraria a lógica, segundo ele, no caso da gestação que estamos falando, pois a mulher já sabe, por antecipação, que o produto da sua gravidez, longe de desfrutar da vida, logo se precipitará à morte. Ainda de acordo com o Ministro, o direito brasileiro protege a decisão da mulher que queira interromper a gestação de um feto anencéfalo, pois esta decisão seria ditada pelo mais forte e mais sábio dos amores: o amor materno. Para ele a mulher, mesmo sabendo que é portadora de um feto anencéfalo, poderá assumir sua gravidez até as últimas consequências. Pois é opcional (STF, ADPF 54, 2012, p. 254-266).

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7. Voto do Ministro Gilmar Mendes: De acordo com o Ministro a hipótese específica de aborto de fetos anencéfalos está compreendida entre as excludentes de ilicitude, estabelecidas pelo Código Penal. Segundo ele, na legislação brasileira, o aborto não é punido em duas situações: quando não há outro meio de salvar a vida da mãe (aborto necessário ou terapêutico) e quando a gravidez é resultante de estupro, caso em que se requer o consentimento da gestante, porque a intenção é proteger a saúde psíquica dela. (STF, ADPF 54, 2012, p. 267-309). 8. Voto do Ministro Celso de Mello: Segundo o Ministro, não é o caso de autorizar uma prática abortiva, legitimando a prática do aborto. Ele afirmou que há uma grande diferença entre legalização do aborto e a antecipação terapêutica do parto em caso de anencefalia. Para o Ministro, há diversos conceitos de vida, sobre seu início e fim, e que a Constituição não define quando ela se inicia. Argumenta que na Assembleia Nacional Constituinte, foram apresentadas diversas emendas definindo o início da vida humana a partir do momento da concepção, mas elas foram todas rejeitadas. O Ministro também mencionou a palestra de um médico durante a audiência pública de 2008 que antecedeu o julgamento da ADPF 54, segundo o qual o critério deve ser o mesmo previsto na Lei 9.434/97 (que trata da remoção de órgãos, partes e tecidos para fins de transplante)

27

, e na Resolução 1.752/97 do Conselho Federal de

Medicina (CFM), que consideram morto um ser humano quando cessa completamente sua atividade cerebral, ou seja, a morte encefálica. Por analogia, segundo ele, o feto anencéfalo não é um ser humano vivo, porque não tem cérebro e nunca vai desenvolver atividade cerebral, de modo que nem pode haver crime contra a vida na interrupção antecipada de tal parto. Para o Ministro se não existe vida a ser protegida, não existe crime tipicidade. Ainda em seu voto, o Ministro citou depoimentos dados na audiência pública por médicos especialistas, segundo os quais há um elevado índice de mortalidade das mulheres com gravidez de feto anencefálico, bem como de transtornos psiquiátricos. (STF, ADPF 54, 2012, p. 313366). 9. Voto do Ministro Cesar Peluso:

27

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9434.htm

54

O Ministro foi totalmente contrario a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54. Ele destacou que o anencéfalo morre, e ele só pode morrer porque está vivo. Para o Ministro essa questão dos anencéfalos deve ser tratada com muita cautela, diante da imprecisão do conceito, das dificuldades do diagnóstico e dos dissensos em torno da matéria. Ele afirma que, para que o aborto possa ser considerado crime, basta à eliminação da vida, de modo que não deve ser considerada nenhuma especulação quanto à sua viabilidade futura ou extrauterina. Para o Ministro os apelos para a liberdade e autonomia pessoais atentam contra a própria ideia de um mundo diverso e plural, e a discriminação que reduz o feto a mera condição de lixo, não é diferente do racismo, do sexismo e do especismo. Para ele todos esses casos retratam a absurda defesa e absolvição da superioridade de alguns sobre outros. (STF, ADPF 54, 2012, p. 375-415). Então conforme os dez votos que acabamos de ver nenhum dos ministros que votaram justificaram seus votos com base em algum tipo de doutrina abrangente seja de ordem religiosa, filosófica ou secular. Todos os votos mesmo os dois contrários a ADPF 54, tiveram como fundamento a razão pública.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS John Rawls nos apresenta uma concepção política de justiça, que parece ser muito adequada em relação à questão do pluralismo. Ele apresenta a justiça como a qualidade mais importante em uma sociedade bem-ordenada. Principalmente, mostra que não poderia existir uma sociedade bem-ordenada sem que houvesse um espaço ampliado de participação pública para que todos os indivíduos de uma sociedade, que compartilham da condição de cidadãos livres e iguais discutem sobre aspectos relativos à justiça política. A esse espaço ampliado de debate Rawls vai chamar de “razão pública”. Para que uma sociedade seja justa e bem-ordenada, ela deve ser estruturada a partir de princípios que todos aceitem, independente de suas concepções individuais e de doutrinas abrangentes. Rawls apresenta um modelo de sociedade, que não interfere nessas concepções, não exalta tão pouco proíbe atitudes da esfera privada, desde que sejam razoáveis, de modo que seja possível um convívio democrático. A razão pública trabalha com a ideia daquilo que é politicamente razoável, e não com os valores de verdade de doutrinas abrangentes. Ela afirma valores políticos e morais a partir do critério de reciprocidade, pois é o dever de civilidade, que impõe um ideal de cidadania democrática, fundamentada na legitimidade da lei, e baseada nos princípios de tolerância e liberdade de consciência, que fundamentam os direitos de liberdades e oportunidades básicas dos cidadãos. Rawls estabelece uma referência objetiva para a multiplicidade dos juízos morais em desacordo, a partir da afirmação do critério de reciprocidade em uma circunstancia de legitimidade legal. A razão pública concebida por Rawls possibilita um direcionamento cognitivo para a determinação dos juízos morais. O critério de reciprocidade é construído a partir de uma razão comum de todos os cidadãos, que estão dispostos a assumir publicamente, um compromisso de ideais e valores políticos, possibilitando a construção dos princípios de justiça. A razão pública também possibilita uma justificação pragmática, já que ela vai dar oportunidade para que ocorra um consenso sobreposto entre doutrinas abrangentes diferentes, desde que aceitem o ônus da razoabilidade. E assim se estabelecem as diretrizes públicas com base na reciprocidade. Ao formular a razão pública, Rawls mostra que os grupos políticos são levados a participar da discussão em fórum público, sendo que cada grupo com um tipo de doutrina abrangente

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diferente tem o dever de elevar a discussão para o âmbito de concepções políticas de justiça, e que possam ser justificadas publicamente. E assim começam então a aparecer reivindicações relacionadas à extensão do consenso, pois é necessário garantir as liberdades iguais, o mínimo de bem estar material e social, de maneira que os cidadãos possam ter o direito à igualdade de oportunidades. Então podemos perceber por que a ideia de razão pública de Rawls é diferente da kantiana. Para Rawls é necessário que uma democracia possa ter uma cultura política que seja capaz de estabelecer um regime estável e amadurecer para a formação de uma sociedade justa e bem-ordenada. Rawls ressalta que um regime democrático não depende apenas de instituições formalmente democráticas para existir. Já para Kant, o individuo esclarecido significa que ele conquistou sua autonomia racional através do uso da razão principalmente em domínio público. O uso público da razão, de acordo com um ambiente formal de publicidade, se estabelece em uma compreensão prática, onde a ação de cada cidadão afetara os outros cidadãos, de maneira que a preocupação de cada indivíduo é agir publicamente, de acordo com os princípios de uma razão livre diante dos outros. De modo que fazer uso público da razão em relação a qualquer matéria, é uma premissa do esclarecimento. Em uma sociedade democrática, existem diferenças marcantes nos compromissos políticos e institucionais entre um parlamentar e um juiz. Por exemplo: é aceitável que um parlamentar, como representante de uma comunidade moral, tenha como objetivo representar as concepções políticas de sua comunidade no debate legislativo. Podemos perceber aqui no cenário político brasileiro, onde um parlamentar cristão defende um projeto de lei sobre o direito incondicional à vida do feto, partindo do princípio moral da sacralidade da vida. E, no entanto, se quiser obter uma justificação pública para sua posição, esse parlamentar não pode estar se baseando apenas em dogmas religiosos, ou concepções específicas à sua comunidade moral. Ocorre que para muitos parlamentares, a razão pública não é um compromisso muito claro, assim como é para os juízes da Suprema Corte. A razão pública é a maneira de argumentar dos representantes da estrutura básica de uma sociedade. Por isso, quanto menos secular for uma sociedade, menor é o grau de adesão à razão pública. Pois não consiste de um compromisso jurídico e sim um compromisso moral político, cuja força motivacional está dependente do julgamento e virtudes democráticas de cada um.

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É grande a variedade de argumentos fundamentados na razão pública a serem observados por um juiz da Suprema Corte ao realizar um julgamento. Principalmente o compromisso com o consenso sobreposto e a razoabilidade de seus argumentos. Por exemplo: um argumento somente é razoável quando pode ser expresso em termos públicos; o consenso sobreposto é o conjunto de acordos firmados por diferentes concepções e doutrinas abrangentes. No caso específico do aborto em uma sociedade justa e bem-ordenada, o juiz da Suprema Corte não pode equiparar o seu papel político ao de um parlamentar quando propõe um projeto de lei sobre o aborto. A razão pública e o compromisso com a laicidade do Estado devem servir de guias para o raciocínio moral e jurídico de um juiz, o que por muitas vezes não é para um parlamentar. A Suprema Corte é sem dúvida nenhuma o modelo de razão pública em uma sociedade democrática. Em relação ao Brasil, os 11 ministros que fazem parte do Supremo Tribunal Federal entendem a razão pública como algo central para ao funcionamento e a manutenção da democracia. Além disso, proferem seus votos com base nesse raciocínio moral, já que estão subordinados ao texto constitucional que é a lei mais alta. Um juiz da Suprema Corte tem como entendimento que toda crença racional pode ser considerada como razoável para uma sociedade democrática e bem-ordenada. Com relação ao aborto, isso quer dizer que mesmo que uma doutrina abrangente de determinada comunidade considere o aborto um atentado contra a lei divina, isso não pode ser um pressuposto moral defensável na esfera pública. Então mesmo que uma crença moral seja racional, de modo que seja fundamentada, defendida e justificada por uma determinada comunidade com certa doutrina abrangente, isso não quer dizer que seja razoável para a esfera pública de uma sociedade justa e bem-ordenada. Em relação ao aborto, a maior parte dos valores que sustentam a imoralidade do aborto não respeitam os princípios de uma sociedade justa bem-ordenada. Apesar de um juiz participar de uma determinada comunidade com certa doutrina abrangente em sua vida privada, como representante da razão pública seus julgamentos não se basearão em suas crenças particulares. A razão pública não deve ser apenas um mecanismo de argumentação para os juízes e os procuradores em sessões de julgamento. Acima de tudo é também uma garantia para a estabilidade democrática de uma sociedade democrática constitucional, de modo que o compromisso com a razão pública permita uma

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análise dos posicionamentos dos juízes em seus próprios termos morais. A razão pública é a linguagem e a razão da Suprema Corte, e também é um instrumento de controle democrático do posicionamento de seus juízes. Aqui no Brasil poucos temas acabaram provocando os juízes do Supremo Tribunal Federal, para além do caráter instrumental e de controle da razão pública, sendo que o julgamento sobre a ação de anencefalia é considerado uma exceção nesse cenário.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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DIANA, A. R. S. Uma defesa da razão pública no liberalismo político de John Rawls. Dissertação de mestrado. Brasília: UnB, 2006.

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FORST, Rainer. Contextos da justiça. São Paulo: Boitempo, 2010.

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