O surgimento do espaço urbano no Noroeste da Ibéria. Uma reflexão sobre os oppida pré-romanos

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Bloque IV

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O surgimento do espaço urbano no Noroeste da Ibéria. Uma reflexão sobre os oppida pré-romanos Gonçalo Passos Correia da Cruz Sociedade Martins Sarmento CITCEM, Universidade do Minho [email protected] Abstract The inception of urbanism in North-western Iberia, has long time been connected with the roman presence and the administrative integration of the territory, from Augustus onwards. At the same time, the traditional literature identifies the so called “large hillforts” or oppida as a product of the Romanization. Regarding the excavations in Briteiros, we pretend to analyse some features of these settlements, define to which extent they can be regarded as urban sites, review chronologies and question (discuss) the notions of “conquest”, “Romanization” and “urbanism”. 1. Introdução O critério que, talvez de forma mais evidente, é utilizado para classificar os oppida do Noroeste peninsular, independentemente das divergentes datações que lhes são atribuídas por diferentes investigadores, são as suas dimensões extraordinárias, quando comparados com a generalidade dos castros (Fig. 1). Uma grande parte destes povoados, conhecidos mais usualmente como “citânias” ou “grandes castros”, apresentam dimensões que variam entre os 7 e os 24 hectares, correspondendo a aglomerados de tamanho inédito para a região em questão, sendo certo que se parecem restringir a uma área específica do Noroeste peninsular: o EntreDouro-e-Minho e Trás-os-Montes Ocidental, em Portugal, e o Sul da atual Galiza (Fig. 2). No entanto, o destaque que foi conferido a estes “grandes castros” por mais de cem anos de publicações, resultantes de diversos trabalhos e estudos, não se justifica pela sua especificidade geográfica. Por muito que os oppida do Noroeste estejam no cerne do desenvolvimento do conceito historiográfico denominado como “Cultura Castreja” (Silva, 2007; Lemos, 2009), a verdade é que constituem um fenómeno que se verificou em grande parte da Europa Ocidental, no final da Idade do Ferro, na periferia da bacia mediterrânica, mas não só. Não é tanto um fenómeno generalizado na Europa Ocidental, mas parece localizado em regiões específicas, como sejam o atual Norte de Portugal e Sul da Galiza, a área ocidental da Meseta ibérica, historicamente conhecida como o território dos Vetões (Alvarez-Sanchis, 1997), a bacia do Reno (Woolf, 1993; Fernández Götz, 2011), o Sul de Inglaterra (Pitts e Perring, 2006; Pitts, 2010), apenas para mencionar algumas zonas. Em cada uma destas áreas conhecemos povoados de 407

grandes dimensões que evidenciam características específicas de cada região, que se verificam sobretudo a nível arquitetónico, condicionadas pelo meio envolvente (características climáticas, recursos e tecnologias), mas também, naturalmente, pelas conceções culturais das comunidades que edificaram e habitaram os oppida europeus. Este ponto de partida conduz-nos, e porque de urbanismo tratamos, a uma velha questão. Tendo sempre em linha de conta as especificidades do povoamento proto-histórico nesta região, as tecnologias e as dinâmicas económicas verificadas ao longo do I milénio a. C. no Norte de Portugal/Sul da Galiza, e as circunstâncias históricas em que se formam estes oppida, a sua classificação como sítios urbanos continua a ser discutida, embora tenda a concentrar-se sobretudo na questão cronológica, que abordaremos um pouco adiante. 2. Cidades indígenas Quando, em termos diacrónicos, classificamos um aglomerado como “urbano”, não temos apenas em conta uma mera concentração populacional. As cidades concentram população, mas concentram também funções: administrativas, económicas, culturais, cívicas e religiosas. Estão no centro das inovações tecnológicas e culturais. É nas cidades que se torna mais evidente a diferenciação social. São também as cidades espaços onde mais se evidenciam mecanismos de controlo da população por parte do poder, nomeadamente em contextos tendencialmente oligárquicos. Em suma, a existência de centros urbanos reflete uma sociedade mais dinâmica, mais complexa, mais cosmopolita. A historiografia tradicional tende a considerar que estes aspetos constituíram as principais inovações da integração política no Império Romano, tido desde sempre como uma “civilização urbana”. Considerar os mencionados aspetos como característicos da sociedade do final da Idade do Ferro sempre se revelou algo “arriscado” para os investigadores portugueses e espanhóis de grande parte do século XX. Estes tenderam a “refugiar-se” no ímpeto urbanizador da Romanização, classificando as aparentes inovações técnicas, arquitetónicas e artísticas dos “grandes castros” como algo apenas explicável pela presença romana: as muralhas, as ruas, os banhos, as estátuas e mesmo qualquer solução de construção em pedra (Queiroga, 2007; Harding, 2009). Apresenta-se então a Romanização do Noroeste como algo coerente com a definição preconcebida das comunidades proto-históricas: a inexistência de cidades romanas no seu sentido mais clássico, que mais não seriam do que “castros romanizados”, adaptados a comunidades que refletiam séculos de isolamento, de autarcia, de subsistência e de permanente adaptação a um meio geograficamente inóspito (Bernardes, 2010: 49-50; Haywood, 2009: 105). Tal definição explicou, durante décadas, a aparente raridade de vestígios de época romana, que apenas o desenvolvimento da Arqueologia académica conseguiu esclarecer, com a investigação desenvolvida em torno das capitais conventuais, Bracara (Martins, 2004; Martins et al., 2010), Lucus (Rodríguez Colmenero e Covadonga Carreno, 1999) e Asturica (Sevillano Fuertes e Vidal Encinas, 2002), em torno de outros, muitos, centros urbanos de época romana, que se espalham por todo o Noroeste, 408

bem como da investigação centrada no povoamento rural do período romano, em estado ainda quase que embrionário (Carvalho, 2008). Todo um conjunto de novas informações científicas sugerem uma revisão da interpretação cultural e cronológica dos oppida. Sugerem sobretudo uma necessidade de reorientar as premissas da investigação e a colocação de novas hipóteses de trabalho e pontos de partida. Os oppida do Noroeste da Península, porventura de forma mais consensual que alguns dos oppida centro-europeus, cuja classificação urbana foi já bastante discutida (Woolf, 1993: 226231), aparentam ter polarizado funções específicas, decorrentes da concentração populacional verificada. Falamos de funções de ordem política, económica e ritual (Silva, 2007: 24; Martins, 2009: 218). Os oppida concentram funções políticas e militares. Toda a conceção do espaço, nomeadamente no que diz respeito ao sistema defensivo (muralhas, fossos, torreões, portas), aos arruamentos, à colocação da estatuária, e a outros espaços de carácter público, evidencia uma exibição clara de poder. Evidencia sobretudo a presença de uma elite administrativa e a existência de uma ideologia que parece ter visado o fortalecimento da legitimidade dessa mesma elite. A questão defensiva, ou mais propriamente, a existência de um discurso ideológico assente nos aspetos mais bélicos da sociedade, que desde o Bronze Final se caracteriza pelo habitat fortificado (Martins, 1990; Martins et al., 2005), parece ter estado por detrás da fundamentação do poder: justifica a construção de extensos alinhamentos de muralhas, algumas das quais com aparelhos construtivos vistosos (Hawkes, 1971); a edificação de torreões junto das entradas principais, por vezes adornadas com estatuária (Silva, 2007); a produção de estátuas que aparentam representar “heróis divinizados” (Martins e Silva, 1984: 44), figurados como guerreiros, com uma indumentária caracteristicamente ornamentada; a existência de espaços domésticos atribuíveis a famílias abastadas, que procuram monumentalizar a sua própria casa, demonstrando o seu poder e influência (González Ruibal, 2006-07: 383-401). Além de toda uma linguagem que sugere a existência de um contexto político centralizado (mas não necessariamente individual, ou seja, assente mais num grupo de pessoas do que numa só pessoa), é nos oppida que encontramos elementos concretos identificáveis com uma prática política e administrativa, como os espaços de reunião (Fig. 3). A negociação, a discussão, a decisão, passavam por estes aglomerados populacionais, onde parecem ter funcionado assembleias, cuja composição e prerrogativas concretas são para nós desconhecidas. Os oppida concentram funções económicas. É visível nestes povoados uma especialização de determinadas manufaturas, à partida correspondentes a tradições familiares, mas que se parecem organizar em função da existência de diferentes oficinas, que se especializaram, num período específico, na produção cerâmica, na metalurgia, e mesmo no trabalho da pedra (Lemos e Cruz, 2007; Cruz e Antunes, 2011). Se é verdade que uma grande parte das famílias que habitaram os oppida, como os habitantes dos castros em geral, eram camponeses (Parcero Oubiña, 2002) e se temos como dado adquirido que em diferentes castros, independentemente da sua dimensão, existiam oleiros e ferreiros, tudo parece indicar que, nos oppida, as 409

manufaturas adquirem um carácter mais comercial e menos de mero autoconsumo (Cruz e Antunes, 2011). Por um lado, a existência de diferentes espaços (por exemplo, várias oficinas metalúrgicas em vez de um simples ferreiro), e a sua sinalização (Fig. 4), sugere que uma parte da população ativa tinha ocupações que não se limitavam à agropecuária e que implicavam uma especialização artesanal. Por outro, é nos oppida que nos surgem evidências de uma atividade comercial a longa distância, nomeadamente a identificação de materiais importados, quer num contexto mais antigo de intercâmbio púnico (González Ruibal et al., 2010), quer num âmbito de propagação dos circuitos comerciais romanos, antes da época de Augusto (González Ruibal, 2006-07). Finalmente, as famílias mais abastadas parecem descobrir uma vocação comercial e certos hábitos de ostentação, visíveis na impressão de nomes de pessoas, ou de famílias alargadas (Lemos, 2010), em talhas de armazenamento que surgem em diferentes locais (Fig. 5), nos meios investidos na ornamentação das suas habitações e, ainda que dentro de uma hipótese provável, no patrocínio de construções de carácter público (Lemos et al., 2008). A importação de produtos exóticos, ainda que não de uma forma massiva (talvez com exceção da importação de vinho), bem como a proliferação dos elementos decorados, nas casas e nos edifícios de banhos, terá também contribuído para uma especialização artesanal no domínio da escultura que, se não característica dos oppida, era nestes grandes povoados que encontrava a maior procura. Os oppida concentram também funções relacionadas com as práticas religiosas. Alguns destes “grandes povoados” estavam implantados em locais que, quando não ocupados ininterruptamente ao longo do I milénio a. C., constituem, por vezes, uma reocupação de um assentamento do Bronze Final, no que pode ser interpretado como um retorno a um local ancestral (González Ruibal, 2006-07: 348). Em Briteiros, aliás, o oppidum foi implantado num relevo onde ponteiam várias manifestações rupestres atribuídas ao Neolítico Final e ao Calcolítico (Valdez e Oliveira, 2008). Não sendo este seguramente o único critério para a implantação dos oppida, as funções sagradas destes locais têm sido avançadas, para os oppida da Europa Central, como a principal razão subjacente à sua implantação (Fernández Götz, 2011). Independentemente da sacralização parcial que possivelmente se fazia do espaço ocupado por um oppidum, parece-nos evidente que a concentração populacional num mesmo local, numa época e numa sociedade bastante ritualizadas, e em que muito possivelmente se não diferenciavam personagens com atributos de carácter político e religioso, implica a existência de locais destinados ao culto, nomeadamente aos rituais coletivos, sejam sacrifícios, cortejos, banquetes, entre outros. Existem nos oppida determinados espaços que parecem ter sido especificamente destinados a celebrações litúrgicas de carácter público, grandes recintos que podem ter funcionado como santuários urbanos, como em Lânsbrica, em cujo recinto central se identificou uma epígrafe, em Sanfins, em cuja área central, formada por amplos recintos retangulares, se recolheram aras anepígrafas e fragmentos de uma estátua (Silva, 2007: 66), ou em Monte Mozinho, em cujo recinto apareceram grandes quantidades de ânfora, associáveis à realização de banquetes comunais (González Ruibal, 2006-07: 567-570). Em todos os 410

casos supracitados, o recinto central da acrópole, desimpedido de construções habitacionais, constitui a desembocadura de um arruamento central, mais largo, como que uma avenida de carácter monumental (Fig. 6). Também em Briteiros, o arruamento central da acrópole parece desembocar numa área ampla, cuja configuração foi bastante afetada pela construção da capela do século XIX (Fig. 7). No entanto, a construção do adro da capela no local em questão parecer ter sido sobretudo justificada pela existência anterior de uma área ampla, cujos limites não são totalmente percetíveis devido à construção do muro de suporte oitocentista (Cruz, 2009). Ainda que se possam avançar diferentes utilizações para estes espaços, como locais de mercado, áreas utilizadas para festividades, ou locais de reunião, parece-nos muito provável, tendo em conta uma coabitação cultural entre práticas políticas, lúdicas, rituais e mesmo comerciais, que por vezes se associam à existência de “lugares neutros” (Tranoy, 1981: 194; Lemos, 2010: 120), que estes espaços se assumissem como locais sagrados, ou pelo menos propícios à realização de rituais votivos de carácter público. É curiosa, no caso de Briteiros, cujo recinto da acrópole não deixa de ser uma conjetura (Cruz, 2009), a localização do possível recinto aberto precisamente ao lado da célebre “casa do conselho”, um espaço de reunião aparentemente destinado a um grupo restrito de pessoas. É aqui percetível, tal como no traçado ortogonal dos arruamentos, o recurso a uma conceção “mediterrânica” de cidade, em que a um espaço público aberto, destinado a receber uma multidão que assiste a um espetáculo, seja ele lúdico, sagrado ou um simples ato de evergetismo pessoal, se contrapõe uma “cúria”, local de funcionamento restrito de um órgão político oligárquico. Dentro das características sociais e conceções culturais das comunidades da Idade do Ferro, estes espaços, de carácter público, não deixam de se identificar com uma possível definição de cidade na Antiguidade: “... uma comunidade de cidadãos unidos pela lei e pela adoração dos deuses, o ambiente natural dos homens, por outras palavras, o espaço em que eles melhor podiam concretizar as suas potencialidades morais” (Woolf, 1998: 106). É também nos oppida, numa função igualmente identificável com o mundo ritual, que surgem os exemplos mais notáveis de edifícios de banhos, ornamentados pelas célebres pedras formosas (Fig. 8). Com a exceção do balneário de Braga, cujo enquadramento suscita ainda diversas interpretações (Lemos, 2010: 119; Martins, 2011: 12), a maioria dos balneários da Idade do Ferro estão associados a oppida, ou no interior do sistema defensivo, ou não muito longe do aglomerado. Nos casos de Briteiros e de Sanfins, aliás, os edifícios de banhos foram implantados no interior das muralhas e muito próximos das principais vias de acesso ao interior do oppidum. Constituem-se portanto, tendo presente a monumentalidade dos balneários, como espaços de exceção e reflexos evidentes dos conceitos artísticos do final da Idade do Ferro, tal como se verifica nalgumas construções habitacionais características. Em suma, os oppida parecem ser o reflexo de uma sociedade cada vez mais complexa e cada vez menos autárcica. As soluções arquitetónicas, a organização do espaço intramuros, as manifestações de poder e de influência por parte das elites, as diferentes funções que estes aglomerados assumem, traduzem uma transformação progressiva das mentalidades, em 411

comunidades que não se encontram geográfica e culturalmente isoladas. Parece ter sido esta uma das razões para a identificação deste processo de “oppidização”, cujas causas não iremos aqui abordar, com a Romanização, que adiante discutiremos. 3. A cronologia do urbanismo dos oppida e da Romanização A cronologia dos oppida parece ser a questão menos consensual, resultante da realização indiscriminada de intervenções arqueológicas, em diferentes momentos, obedecendo a diferentes paradigmas, mas também resultante de algumas ideias pré-concebidas, como mencionámos. Existe também um problema latente que se prende, não necessariamente com uma cronologia pré-romana ou romana, mas com a ausência de uma definição, consensual e definitiva, do momento em que deixamos de falar em Idade do Ferro, e começamos a falar em época romana. Acima de tudo, o conceito de Romanização parece assumir diferentes perspetivas. Tomando como exemplo os resultados das escavações realizadas em Briteiros, das quais fomos corresponsável, com Francisco Sande Lemos e Manuela Martins, iremos deter-nos num dos arruamentos ortogonais do oppidum, sob o qual se realizou uma das recentes sondagens arqueológicas (quadrado 97T, 2009-2010). Verificámos a existência de duas pavimentações distintas, correspondendo a primeira à definição do traçado da rua e a segunda a um alteamento do nível de circulação da mesma (Fig. 9). Nos níveis subjacentes à primeira pavimentação, mais antigos, foi recolhido espólio cerâmico, maioritariamente feito a torno, e tipologicamente correspondente à fase III, definida por Manuela Martins (Martins, 1990) para o vale do Cávado, coincidente com a fase III de Armando Coelho Silva (Silva, 2007), para o Noroeste português (finais do século II a. C. e século I a. C.). Falamos de formas típicas como as talhas, potinhos, testos e panelas de asa interior. Nos níveis subjacentes à segunda pavimentação foram recolhidos exemplares das mesmas tipologias cerâmicas, juntamente com fragmentos de ânfora de tipologia Haltern 70. Este fator levou-nos a considerar uma cronologia relativa para o contexto de construção da rua balizada entre o início da mencionada fase III (finais do século II a. C.) e o momento em que começa a importação de ânfora Haltern 70, ou seja, em meados do século I a. C. (Morais, 2007). Pela mesma ordem de ideias, o alteamento do nível de circulação da rua ocorreu entre os meados do século I a. C, e os finais da mesma centúria, não se tendo recolhido, por exemplo, cerâmica comum romana (que terá presumivelmente ocorrido nos níveis acima do pavimento da rua, removidos pelas escavações do século XIX). Ou seja, o arruamento terá sido construído entre os finais do século II e os meados do século I a. C, e terá sido alteado na segunda metade do século I a. C. Terá, posteriormente, sido utilizado no período Romano Alto-Imperial, conforme sugerem os materiais recolhidos na unidade habitacional limítrofe à rua, uma casa “de tipo domus” (González Ruibal, 2006-07: 378). Estes dados coincidem com os resultados da escavação efetuada no castro de Santo Ovídio, em Fafe, pela Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho, entre 1980 e 1984, 412

em que uma rua lajeada mostrou igualmente ter tido duas pavimentações distintas: a mais antiga, e mais arcaica, em momento anterior a meados do século I a. C, e a mais recente, em finais do século I a. C. (Martins, 1991). A existência de dois níveis de pavimentação será um fenómeno ocasional, resultante da dinâmica interna de ambos os povoados. No entanto, não deixa de ser sintomática uma cronologia idêntica para o traçado dos arruamentos. Ainda que estas cronologias, que se baseiam em registos estratigráficos, contradigam claramente a ideia de que os oppida são povoados romanos posteriores a Augusto, como ainda se propõe (Queiroga, 2007), elas não deixam de ser coerentes com a proposta que Armando Coelho Silva aponta, por exemplo, para a Citânia de Sanfins. Com efeito, Silva aponta a máxima extensão de Sanfins, incluindo o sistema defensivo e os arruamentos ortogonais do povoado, para a sua fase III, ou seja, entre os finais do século II e todo o século I a. C. (Silva, 2007). Acontece que, segundo a interpretação de Armando Coelho Silva, esta fase cronológica, embora anterior à época de Augusto, desenvolveu-se já “sob os estímulos e por motivo da romanização” (Silva, 2007: 24). Posto isto, e apesar de se continuar a avançar, para alguns oppida, como Monte Mozinho (Carvalho, 2008-09) e Vieito (Silva, 2008), uma cronologia fundacional mais tardia, de época Romana Alto-Imperial, a questão parece ser sobretudo de ordem conceptual, sobre o que se considera ser a Romanização e sobre a cronologia da “conquista romana”. É então chegado o momento de nos centrarmos na definição de “conquista” e, subsequentemente, no que é a Romanização. Existe uma “tradição histórica” que associa a conquista do Noroeste à expedição de Décimo Júnio Bruto, entre 138 e 136 a. C. Ao abordar a intervenção de Bruto, em finais do século II a. C, temos que ter em conta o significado e os objetivos estratégicos das campanhas romanas nos tempos da República (Fig. 10), e na interpretação que se fazia das ações de “pacificação” no interior das províncias, bem como de ações punitivas ou exploratórias, fora dos limites dessas mesmas províncias. Dentro do ambiente político pluralista da República (Woolf, 1998: 30), várias campanhas foram um recurso frequente de diferentes individualidades, detentoras de cargos públicos, como meio de autopromoção e de obtenção de auctoritas (Goldsworthy, 2008: 35). Estas campanhas militares são sobretudo conquistas pessoais, que suscitavam reconhecimento público, mas que podiam simultaneamente ser relativizadas pelos opositores políticos. É neste contexto que se insere a campanha de Bruto, Procônsul da Hispânia Ulterior, que terá tido diferentes componentes: pacificação da província que controlava; possível punição de um território próximo, não conquistado, e mesmo de exploração geográfica deste último território (Tranoy, 1981). No mesmo contexto, aliás, se inserem as expedições posteriores de Crasso e de Júlio César, enquanto detentores de idênticos cargos provinciais. Não será, portanto, a vitória de Bruto sobre os Brácaros, ou o monumento que subsequentemente terá erigido em Roma para assinalar este feito (Tranoy, 1981: 129) que define uma conquista romana dos territórios a Norte do Rio Douro. Como se explicariam então as posteriores expedições ao Noroeste, se este território tivesse sido “conquistado” por Bruto? E como se justificaria o estabelecimento de uma estrutura administrativa apenas depois das 413

Guerras Cantábricas, mais de 100 anos após a expedição do “Galaico”? Os territórios a Norte do Rio Douro apenas verificaram uma integração no Império Romano na época de Augusto. Automaticamente, não faz sentido, para nós, falar em Romanização num momento histórico anterior, independentemente da recolha de ânforas Haltern 70, de moedas republicanas e de cerâmica campaniense em castros. Curiosamente, nunca se fez uma interpretação idêntica para os materiais púnicos, cuja importação remontará ao século V a. C, recolhidos em vários povoados, sobretudo mais próximos da faixa litoral (González Ruibal et al., 2010), que sempre foram interpretados como o resultado de um intercâmbio exterior, de longa distância, e nunca, sequer, como um possível motor de influência cultural. Esta é tradicionalmente atribuída em exclusivo à proximidade romana. A identificação de materiais romanos em oppida e em castros mais pequenos, em contextos anteriores a Augusto (e quando estes contextos são corretamente identificados), deu origem à expressão irónica de Greg Woolf, aplicada à realidade da Gália, “romanização antes da conquista” (Woolf, 1998: 176). É sabido que os agentes do comércio romano chegavam frequentemente mais longe, e mais rápido, que as legiões e o próprio poder romano. No caso do Noroeste, o comércio suprarregional anterior a Augusto não constituiu propriamente uma inovação romana, tendo em conta os fenómenos identificados por Alfredo González Ruibal como “ciclo de comércio púnico” e “ciclo de comércio romano”, remontando a estrutura mais antiga, púnica portanto, aos finais do século V a. C. (González Ruibal, 2006-07: 512534). Naturalmente, com os produtos que se intercambiam, circulam ideias e inovações. Não falamos de comunidades geográfica e culturalmente isoladas, não sendo portanto de estranhar a existência de espaços urbanos, com uma aplicação muito característica de um modelo ortogonal, anteriores à Romanização. Tendo em conta o estado atual dos conhecimentos, e o que atrás expusemos, faz cada vez menos sentido considerar-se a existência de “castros romanos”, considerar que o urbanismo dos oppida é diretamente inspirado em modelos de cidades romanas e falar em Romanização após a expedição de Bruto. Acima de tudo, não podemos considerar que as comunidades proto-históricas do Noroeste de Portugal, sobretudo no final da Proto-história, constituíam uma sociedade guerreira, segmentária, adversa à presença de elementos estranhos e a qualquer influência exterior. Torna-se, aliás, cada vez mais visível que estas comunidades tinham uma noção clara dos acontecimentos históricos que decorreram na sua periferia geográfica e que esses acontecimentos influenciaram, naturalmente, as dinâmicas sociais e económicas destas comunidades. Foram, de facto, dinâmicas indígenas, mais ou menos influenciadas por fatores exteriores, que conduziram ao aparecimento dos primeiros assentamentos que, no Noroeste Peninsular, podemos classificar como urbanos. Fenómeno notável, mas efémero, porque as circunstâncias políticas do estabelecimento do Império, lá longe, em Roma, acabaram por, nesta região, dar origem ao que classificamos como Romanização, a partir do final das Guerras Cantábricas.

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4. Considerações finais. A Romanização do Noroeste A Romanização, em parte no seguimento de um programa imperial de integração administrativa e económica, denota-se, talvez acima de tudo, num processo de criação de uma cultura provincial, que poderemos designar, à falta de melhor termo, como “galaico-romana”. Este processo terá tido tanto de ação política direta dos agentes administrativos romanos, como de dinâmica indígena das comunidades que habitavam o Noroeste (Lemos, 2010), que não se limitaram a assimilar uma cultura latina, mas criaram uma visão distinta da sociedade, do território, da religião e da economia. Identifica-se este processo, não por arruamentos ortogonais em oppida, nem por casas circulares com vestíbulo, nem por banhos adornados com as monumentais pedras formosas, sobretudo se considerarmos estes elementos como característicos do período anterior a Augusto, como suportam os dados das intervenções arqueológicas supramencionadas. O processo de criação de uma cultura provincial identifica-se pelas fundações de Bracara, Asturica e Lucus, e o inerente estabelecimento de uma estrutura administrativa, pelo surgimento das numerosas sedes de civitas, vici e villae, pela implementação da rede viária, pelos cadastros do território e pela introdução evidente de novos hábitos, gostos e usos (Martins, 2009). Sendo, portanto, uma questão de dinâmica local, não apenas nesta região, mas em grande parte do Império, com maior ou menor peso do substrato indígena, a Romanização não deixa também de corresponder a uma estratégia exterior, inteligentemente adaptada à realidade local, e facilitada por uma integração política pacífica, como parece ter sido, tudo indica que sim, a integração do Norte de Portugal e Sul da Galiza, correspondendo aproximadamente aos limites do Conventus Bracarensis. É sintomático, em Bracara Augusta, o facto de várias individualidades associadas ao poder romano, que constituíam o corpo cívico da cidade, serem pessoas oriundas da comunidade indígena, ao contrário do que se verificou nas outras duas capitais de conventus (Martins et al., 2010: 32). A referida estratégia exterior não é, portanto, exclusiva do poder romano. As elites indígenas souberam tirar partido do que foi, sobretudo, um novo contexto político e consequentemente cultural. Em face do exposto, a Romanização parece ter significado, mais do que uma rutura, uma continuidade, com contornos específicos, no sentido da complexificação cultural e social, do crescimento e intensificação económica, no seguimento do período anterior, a que acresce uma alteração profunda que se verificou na matriz de povoamento. Alteração que se verifica, também, pelo abandono de vários castros e oppida. Para esta continuidade contribuíram as decisões e influência das elites indígenas, que se assumiram, eles próprios, como verdadeiros agentes deste processo.

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Figura 1 - Vista aérea da Citânia de Briteiros, Guimarães, distinguindo-se o sistema defensivo e a zona escavada da acrópole no interior da primeira muralha (Sociedade Martins Sarmento). 419

Figura 2 - Representação cartográfica do Noroeste Português, com marcação dos oppida mais conhecidos.

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Figura 3 - A “casa do conselho” de Briteiros, estrutura circular de 11 metros de diâmetro, com um bando corrido ao longo do interior da parede (Sociedade Martins Sarmento).

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Figura 4 - Fragmento de ombreira com representação de tenaz de forja, assinalando uma oficina metalúrgica. Desenho de Francisco Martins Sarmento, 1876 (Sociedade Martins Sarmento).

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Figura 5 - Fragmento de bordo de talha de cerâmica do final da Idade do Ferro, com epígrafe latina que identifica um possível proprietário. Integra um conjunto de 5 fragmentos, todos com epígrafes relativas a Argius Camali (Sociedade Martins Sarmento).

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Figura 6 - Localização dos “santuários urbanos” e respetivos arruamentos de acesso em Lânsbrica, Santa Luzia, Sanfins e Mozinho (da esquerda para a direita e de cima para baixo). Plantas reproduzidas a partir de González Ruibal, 2006-07: 568.

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Figura 7 - Localização do possível “santuário urbano” na acrópole de Briteiros e rua de acesso, que atravessa a acrópole de nordeste para sudoeste (Sociedade Martins Sarmento).

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Figura 8 - Câmara interior do balneário sul de Briteiros, vendo-se a face posterior da pedra formosa (Palimpsesto).

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Figura 9 - Sondagem aberta num dos arruamentos da acrópole de Briteiros, distinguindo-se os dois níveis de pavimentação no perfil norte (Sociedade Martins Sarmento).

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Figura 10 - Legionários romanos do período republicano. Monumento de Domitius Ahenobarbus, finais do século II a. C., Louvre (Wikimedia Commons, http://commons.wikimedia.org/wiki/ File:Altar_Domitius_Ahenobarbus_Louvre_n3.jpg)

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