O surgir de um anjo: Aracy de Carvalho Guimarães Rosa [...]

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O SURGIR DE UM ANJO: ARACY DE CARVALHO GUIMARÃES ROSA – DESOBEDIÊNCIA CIVIL, (BIO)ÉTICA, CORAGEM, ALTERIDADE, DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS E ESQUECIMENTO EM SEU PRÓPRIO PAÍS THE ARISING OF AN ANGEL: ARACY DE CARVALHO GUIMARÃES ROSA – CIVIL DISOBEDIENCE, (BIO)ETHICS, COURAGE, ALTERITY, HUMAN RIGHTS DEFENSE AND FORGETFULNESS IN HER OWN COUNTRY Selma Aparecida Cesarin* Resumo Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, D. Aracy ou simplesmente Ara, como era chamada por seu marido, o escritor Guimarães Rosa, recebeu da comunidade judaica a carinhosa alcunha de “o Anjo de Hamburgo”, por ter auxiliado dezenas de judeus a escaparem da Alemanha antissemita de Hitler, desobedecendo, também, ordens de Getúlio Vargas, que havia proibido, expressamente, qualquer auxílio para trazer semitas para o Brasil. Este artigo é sobre uma pequena parcela da vida desta mulher singular e suas atitudes corajosas. Assim, analisa-se a vida de D. Aracy, relacionando-a a atos de Desobediência Civil e à Bioética, ainda que este termo não fosse utilizado à época de suas ações. Este ensaio trata da reunião destas três, por assim dizer, personagens reais da história da Humanidade: D. Aracy – o Anjo de Hamburgo; a Desobediência Civil e a Bioética, aquela fazendo uso destas duas para defender os direitos humanos numa época em que a política antissemita de Hitler esboçava os horrores da Alemanha nazista. Tanto D. Aracy quanto a Desobediência Civil são temas que merecem reconhecimento e discussão. Além disso, atrelada a esta mulher espetacular, é possível trazer-se à baila a Bioética. Aracy Guimarães Rosa é a única mulher homenageada no Museu do Holocausto, em Jerusalém e, apesar disso, quase não é conhecida em sua pátria. Em movimentos pequenos, a história desta fabulosa mulher parece começar a receber a luz e os holofotes que merece, sendo este também um dos objetivos deste pequeno ensaio. Palavras-chave: Aracy Guimarães Rosa. O Anjo de Hamburgo. Desobediência Civil. Bioética. Alemanha nazista. ABSTRACT Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, Mrs. Aracy or just Ara, as she was called by her husband, the famous writer Guimarães Rosa, received from Jewish community the charming nickname “The Angel of Hamburg”, because she helped dozens of Jews to run away from Germany, where they were persecuted by Hitler. Acting this way, she also disobeyed Getulio Vargas orders as he were prohibited, expressly, any kind of helping Semitics to come to Brazil. This essay *

Mestre em Bioética pelo Centro Universitário São Camilo; professora de Bioética na pósgraduação no Centro Universitário São Camilo; professora universitária de Direito, Filosofia Geral, Filosofia Jurídica, Hermenêutica e Língua Portuguesa; Advogada.

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is about a little part of this singular woman life and her courageous attitudes. So, we analyze her life, making relation among her attitudes, Civil Disobedience and Bioethics, even if this word was not yet used at that time. This essay is about the union of these three real characters in Human Being History: Mrs. Aracy – The Angel of Hamburg, Civil Disobedience and Bioethics, the first one making use of second and third ones in order to defend human rights at a time when Hitler anti-Semite politics drew its horrors in Nazi Germany. Even Mrs. Aracy and Civil Disobedience are subjects that deserve recognition and discussion. Besides, joined to this spectacular woman, we can also bring to light Bioethics. Aracy Guimarães Rosa is the unique woman honored in the Holocaust Museum, in Jerusalem and, despite of that, she is almost unknown in her birth country. In little movements and writings, the history of this fabulous woman seems starting receiving light and holophotes she deserves, being this also one of the objectives of this paper. Key-words: Aracy Guimarães Rosa. Disobedience. Bioethics. Nazi Germany.

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The

Angel

of

Hamburg.

Civil

INTRODUÇÃO É senso comum quão pouca importância o Brasil dispensa a seus

verdadeiros heróis e heroínas e quão limitada é a memória nacional quando se refere aos fatos e atos históricos e heroicos dos filhos da pátria amada, mãe gentil. Aracy Moebius de Carvalho ou Aracy de Carvalho Guimarães Rosa (por casamento) é personagem real que faz parte deste universo. Assim como D. Aracy, muitas vezes também relegada a segundo plano, a Desobediência Civil é considerada instituto praticamente à parte do Direito, já que, por óbvio, as normas do Direito devem ser obedecidas, por serem coercitivas, e não questionadas e enfrentadas, ainda que sob a égide de se fazer o que é justo. Desta

forma,

no

mesmo

patamar,

tanto

D.

Aracy

quanto

a

Desobediência Civil tornam-se temas que merecem reconhecimento. D. Aracy trabalhava com vistos de viagem, no Consulado do Brasil, em Hamburgo, na época da II Grande Guerra e, desobedecendo ordem expressa do governo de Getúlio Vargas, em franca atitude de Desobediência Civil, facilitou e providenciou a concessão de vistos que salvaram mais de uma centena de judeus que puderam escapar da Alemanha nazista. Como

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agradável consequência desses atos, ela ficou conhecida como “o Anjo de Hamburgo” e mesmo relegada a segundo plano – ou a plano nenhum – na memória de seu próprio país, é a única mulher cujo nome consta na lista do Museu do Holocausto, por ter auxiliado os judeus, e que este artigo pretende ajudar a incluir também na memória nacional.

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OBJETIVOS O objetivo deste artigo é ajudar a resgatar para a memória nacional esta

importante personagem brasileira que, fazendo uso da Desobediência Civil, ajudou a trilhar caminhos mais humanos em uma época em que o mundo apresentava-se ensandecido com conceitos de supremacia ariana, eugenia, poder... Desta forma, D. Aracy, ao exercitar pacificamente seu Direito de Resistência, encontrou uma forma de ajudar e perpetuar a justiça e de: [...] mostrar, de um lado, que “o direito de desobedecer ao Direito (no sentido de desobedecer à lei)” é legítimo quando o cidadão busca reiterar ou manter a justiça, ameaçada por leis e normas injustas impostas pelos representantes do Poder Constituído. (CESARIN, 2009, p. 4)

Ademais, impulsionada pela inquietação de identificar e resgatar a figura desta mulher generosa e corajosa que se via frente a situações que considerava injustas, ainda que criadas com bases legais, floresceu o desejo de vê-la expressamente reconhecida em processos, textos e lembranças que visem a engrandecer a atuação das mulheres e das pessoas justas neste país e, por que não, neste mundo conturbado, inquieto e tão carente de exemplos (bio)éticos, de coragem, de dedicação ao próximo e de alteridade.

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METODOLOGIA E DELINEAMENTO DO ARTIGO A opção pela metodologia adotada apresentou-se ao mesmo tempo

tarefa fácil e difícil. Difícil por se tratar de biografia e personagem sobre quem há pouquíssimo material formal para pesquisa. Fácil, porque no universo do material disponível, o caminho que se apresentava era a pesquisa qualitativa, por meio da seleção de informações e textos, realizando um trabalho com base

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em pesquisa bibliográfica, com leitura e fichamento prévio do material consultado, identificado nas referências citadas no final do artigo. Não obstante o material referente à personagem escolhida não ser extenso, o mesmo não ocorre com os outros ganchos do artigo, a Bioética e a Desobediência Civil, instituto pertencente ao gênero do Direito de Resistência. No primeiro momento, o ensaio se organiza a partir da apresentação do conceito e surgimento do Direito de Resistência e da Desobediência Civil e do surgimento, conceitos, princípios e referenciais da Bioética. Em um segundo momento, ocorre a apresentação e comentários sobre a personagem cerne deste estudo, Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa, Ara (para seu “Joãozinho”), ou simplesmente D. Aracy. Assim, este artigo se trata de pequeno ensaio sobre estas três, por assim dizer, personagens reais da história da Humanidade: D. Aracy – o Anjo de Hamburgo, a Desobediência Civil e a Bioética, aquela fazendo uso destas duas para defender os direitos humanos numa época em que a política antissemita de Hitler esboçava os horrores da Alemanha nazista.

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DIREITO DE RESISTÊNCIA E DESOBEDIÊNCIA CIVIL

4.1

Breve histórico do Direito de Resistência Ao tentar identificar as raízes históricas do Direito de Resistência,

Machado Paupério registra o Código de Hammurabi, no qual já se previa a rebelião como castigo ao mau governante que não respeitasse os mandamentos e a lei. (PAUPÉRIO, 1978, p. 17) O embrião do Direito de Resistência se encontra na Grécia antiga e também aparece na baixa Idade Média, sendo que seu processo de evolução foi longo e turbulento; passou por vários episódios de resistência e começou a gerar várias teorias. (COSTA, 1990, p. 22-3) No decorrer da História, encontrou positivação expressa em diversos textos constitucionais e legais, bem como a colaboração e o posicionamento de diversos autores, tanto juristas, quanto filósofos, tais como São Tomás de Aquino (1225-1264) e João Calvino (1509-1564), mas só alcançou sua maturação teórica com os contratualistas, que entendiam o Pacto Social como

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um acordo bilateral de vontades, em que ambas as partes encontravam-se sujeitas a direitos e obrigações. Cabe ressaltar, entretanto, que estudos posteriores conduziram à aceitação de que a sociedade não é exatamente resultado do Pacto Social, mas da necessidade natural do homem, e essa é a ideia que predomina na atualidade. O Direito de Resistência e a Desobediência Civil evoluíram em paralelo à construção do Estado Moderno, no qual se deve obedecer às leis. Entretanto, não se pode exigir obediência cega, pois as leis não podem oprimir sem limites. Se isso acontecer, os cidadãos se veem no direito legítimo de resistir ao governo ou, até mesmo, de lutar para substituí-lo, sendo que a única forma de o Direito de Resistência – e a Desobediência Civil – ser legítimo é ele ter caráter/mote público e coletivo. A resistência deve ser necessária ao bem coletivo, não ao bem individual; manifestada por interesses pessoais e momentâneos.

4.2

Desobediência Civil A história da Desobediência Civil identifica-se com a história do próprio

Direito de Resistência, pois aquela é espécie deste. Entre eles, a diferença básica é que a Desobediência Civil pode ser praticada por indivíduos isolados – embora raramente nessas situações seja classificada como tal (é neste caso que se encaixam as ações de D. Aracy), ou pela minoria, e a resistência se traduz pela maioria se insurgindo contra o governo, chegando ao ponto de objetivar substituí-lo ou mudar todo o ordenamento jurídico, além de a Desobediência Civil se apresentar mais fácil e frequente de acontecer, pois se relaciona a leis específicas. (CESARIN, 2009, p. 65) Como vários outros fenômenos, é possível identificar a Desobediência Civil na História, em épocas em que ainda não existia um termo para definir a atitude tomada. Atos de resistência (quer Desobediência Civil, quer Objeção de Consciência) já apareciam na literatura da Grécia antiga, na personagem Antígone, de Sófocles, e passaram por inúmeros filósofos, teóricos e juristas,

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mas só a partir de 1849, com o ensaio Civil Disobedience, de David Henry Thoreau, começaram a ser assim denominados. Inegavelmente, existe o Direito de Resistência a atos ilegais e injustos e sobre isto é pertinente ressaltar o que escreveu Cícero: “[...] que era uma insensatez acreditar que tudo o que está regulado pelas leis é justo, pois as maiorias podem aprovar leis injustas, como acontece nos regimes tirânicos”. (grifo nosso) (SOIBELMAN, 1998, verbete: Cícero e o justo por lei). Segundo Thoreau: “O Direito de Resistência é reconhecido por todos, isto é, o direito de negar lealdade e de oferecer resistência ao governo sempre que se tornem grandes e insuportáveis sua tirania e ineficiência”. (grifo nosso) (THOREAU, 2005, p. 17) Ademais, os cidadãos se veem legitimados a lutar pela manutenção de direitos fundamentais quando eles forem negados ou violados, ainda que por meio de ações diferenciadas, como é o caso da Desobediência Civil. E esta legitimação encontra em Aracy Guimarães um exemplo perfeito, com sintonia entre coragem, defesa da ética e da justiça, preocupação bioética, luta pela cidadania e pela dignidade e defesa dos direitos humanos.

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BIOÉTICA É irrefutável que todo e cada cidadão tem responsabilidade com sua

qualidade de vida, com a qualidade de vida dos cidadãos em geral e com a qualidade de vida das gerações futuras, devendo agir sempre de forma ética. Assim, o estudo da Bioética torna-se indispensável, por sua inegável e irreversível importância, ao mesmo tempo em que o entendimento do seu universo é imprescindível para que este mundo possa ser – ou voltar a ser? – um lugar possível para a vida (biológica e emocional) do ser humano.

5.1

Bioética: surgimento, conceito e evolução O biólogo americano Van Rensselaer Potter empregou, pela primeira

vez, o neologismo Bioética, em 1971, para destacar a importância das ciências biológicas como garantidoras da qualidade de vida e sobrevivência do Planeta.

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Não muito tempo depois de publicar o conceito1 inicial, o próprio Potter redefiniu Bioética e elaborou uma nova versão como forma de enfatizar a proposta de uma Bioética Global, isto é, com ampla abrangência. Poucos anos depois do surgimento do verbete “Bioética”, foi criada uma Comissão para identificar os princípios que deveriam nortear a pesquisa médica que envolvesse seres humanos, ainda que já houvesse o Código de Nuremberg e a Declaração de Helsinque. Desta comissão originou-se o Relatório Belmont, a partir do qual surgiram os Princípios da Bioética, que no início eram três, mas que posteriormente foram subdivididos, formando os quatro princípios apresentados por Beauchamp & Childess – autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça. (BEAUCHAMP & CHILDRESS, 2002) Entretanto, o tempo mostrou que não é possível encaixar todos os atos humanos e éticos relativos à vida em um universo tão limitado de princípios. Desta forma, a reflexão levou à conclusão de que era necessário encontrar outros caminhos, que condissessem mais com a realidade. (CESARIN, 2009, p. 28) Como um desses caminhos, por meio de estudo pioneiro de Hossne, foi proposta a Teoria dos Referenciais, que mostraram ser mais pertinentes à realidade (...) porque fica muito difícil inserir certos conceitos, sentimentos e variáveis no universo inflexível dos princípios, tais como a dignidade, a alteridade, a vulnerabilidade, a solidariedade, entre outros exemplificados por Hossne. (CESARIN, 2009, p.33-6) Assim, mesmo que à época das ações de Aracy o termo ainda não fosse aplicado, não há como refutar que seus atos eram extremamente (bio)éticos, pois ao refletir e se decidir pela moral, pela ética e pela justiça no que se referia ao judeus em perigo na sociedade antissemita daquele tempo, além de uma adorável desobediente civil, Aracy foi também exemplo de Bioética.

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DIREITOS FUNDAMENTAIS, CIDADANIA E BIOÉTICA

Em frase célebre, Pinto Ferreira (1918-2009) declara que: “Direitos fundamentais ou liberdades públicas são aquelas que limitam o poder dos entes estatais. São as liberdades clássicas ou civis, a liberdade política ou de participação e as liberdades concretas (...). Ou seja, são os poderes de autodeterminação.”

De acordo com Hossne (2000), um dos grandes méritos da Bioética é o de levar a ética à sociedade e trazer a sociedade para a ética, criando os fundamentos éticos do controle social nas ciências da vida, sendo que a Bioética remete, também, aos direitos fundamentais e à cidadania. No mesmo diapasão, o de cidadania e de ética para a sociedade, com base também nos direitos humanos do cidadão, bem declara Dallari (2008): A Bioética está inserida no amplo movimento de recuperação dos valores humanos que a Declaração Universal dos Direitos Humanos desencadeou. Os que procuram a preservação ou a conquista de privilégios (...) os que pretendem que seus interesses tenham prioridade sobre a dignidade da pessoa humana (...) pretendendo o controle irresponsável da vida e da morte, esses resistem à implantação das normas inspiradas nos princípios da Declaração Universal [...] (grifos nossos)

E aqueles que combatem interesses pessoais e defendem a cidadania e a dignidade são os verdadeiros representantes dos direitos fundamentais e defensores da cidadania. Esta afirmação poderia, até, estar impressa sob um retrato de D. Aracy, tão patente são suas atitudes a favor e em defesa desses direitos e da dignidade do ser humano. Dallari (2004, p. 22) afirma: “a cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo”. Isto foi exatamente o que fez D. Aracy. E por povo ela entendia todos do mundo e via os judeus como “irmãos”, como ela mesma declarou, posteriormente, sendo que da vida deles e do governo de seu país – ainda que o desobedecendo – ela fez questão de participar de forma definitiva e solidária.

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E claro é que D. Aracy se fez grande defensora dos direitos humanos e, embora palavras tenham sido suprimidas, devido às condições da época, atos foram sua forma de defender a dignidade e a cidadania daqueles que ajudou a proteger sendo ela, inegavelmente, um ser (bio)ético, num tempo, sob um governo pátrio e num lugar onde palavras, conceitos e atos como direitos humanos, ética, cidadania, alteridade e respeito estavam enterrados o mais profundo possível na escuridão da mente dos governantes e no medo e adesão dos governados.

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DADOS BIOGRÁFICOS DE ARACY GUIMARÃES ROSA Aracy Moebius de Carvalho nasceu no Paraná, em 1908; filha de um

brasileiro e de uma alemã. Casou-se muito jovem com um descendente alemão, chamado Johannes Tess, no início dos anos 30. O casamento não deu certo, ela se desquitou alguns anos depois e se mudou para a Alemanha, levando seu único filho. Aracy falava fluentemente alemão, inglês e francês e isso a auxiliou a ser nomeada para trabalhar no Consulado brasileiro, em Hamburgo. Entre suas atribuições de trabalho, ela era encarregada da seção de vistos de viagem. Em 1938, o diplomata João Guimarães Rosa, que depois se tornaria um dos maiores escritores brasileiros, foi nomeado cônsul adjunto em Hamburgo e deixou a primeira mulher e as duas filhas no Brasil. Ele e Aracy se conheceram no Consulado e se apaixonaram. Aracy Moebius de Carvalho tornou-se Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa ao se casar com o autor de Grande Sertão: Veredas, cuja dedicatória, aliás, é para ela, que ele chamava carinhosamente de Ara. Mais do que lhe dedicar a obra, o escritor declara que o livro pertence a ela: “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”. O caminhar do período e das atitudes de guerra fizeram com que Aracy e Guimarães Rosa voltassem para a terra natal, após se casarem por procuração, no México, já que as leis brasileiras não permitiam o casamento de desquitados.

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O relacionamento entre João e Aracy durou até a morte dele, em 19 de novembro de 1967, três dias após a sua nomeação para a Academia Brasileira de Letras. Aracy não se casou novamente. Guimarães Rosa é a parte famosa do casal, mas não deveria ser desta forma. D. Aracy também deveria ser reverenciada; não por ser esposa do escritor, mas por sua atitude humanitária, (bio)ética e corajosa, pois ajudou dezenas de judeus a conseguirem vistos para fugir da Alemanha nazista, desobedecendo o governo de Getúlio Vargas, em atitude que mesclava desobediência civil, defesa dos direitos humanos e alteridade. Em 1985, em sua última viagem internacional, Aracy visitou Jerusalém e a placa de mármore que eterniza seus próprios atos heróicos nos tempos do nazismo. Uma exposição no Yad Vashem contribuiu para destacar o trabalho de Ara. Sob o título "Vistos para a Vida: os honrados diplomatas", a exposição reuniu a história de dezoito diplomatas que salvaram judeus durante o Holocausto, fornecendo-lhes papéis para que chegassem a um destino seguro. Na lista da exibição do Yad Vashem, Aracy desponta como a única mulher. (SPITZCOVSKY, 2008) Seus atos, como responsável pelos vistos, ao ajudar dezenas de judeus a saírem da Alemanha, levaram-na a ser conhecida como “o Anjo de Hamburgo”, mas sua simpatia e coragem não se limitaram a suas atitudes no Consulado, pois além de salvar judeus na Alemanha de Hitler e de enfrentar as leis antissemitas do Estado Novo de Vargas, ela ajudou a esconder vários perseguidos durante a ditadura militar2, no Brasil pós-1964, quando já vivia no Rio de Janeiro.

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O ANJO DE HAMBURGO Embora

sua

história

e

sua

importância

sejam

praticamente

desconhecidas no seu próprio país, Aracy Guimarães Rosa é “Justa entre as Nações”, em Jerusalém, em reconhecimento pelas vidas que salvou, onde há uma árvore plantada em seu nome, no Jardim dos Justos entre as Nações, no Museu do Holocausto (Yad Vashem), em Israel.

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Esta homenagem é um reconhecimento que o Estado de Israel presta aos góim (não-judeus) que auxiliaram judeus a escapar do genocídio. Apenas outro brasileiro, o embaixador Luiz de Souza Dantas, recebeu, em 2003, a mesma honraria de D. Aracy. (CAMARGO & STUDART, 2008) O lugar também é conhecido como Alameda dos Justos e todos os escolhidos

e

escolhidas

recebem,

ainda,

uma

medalha,

cunhada

especialmente para si, e um certificado de honra, além de ter o nome cravado na Parede de Honra que existe no Jardim. Aracy Guimarães Rosa é a única funcionária consular – sem ser embaixador ou cônsul – cujo nome está lá e que recebeu esta grande honra. Na realidade, esta mulher especial parece ter conseguido feitos notáveis: encantou um dos maiores escritores brasileiros e enganou dois homens com poder máximo em seus respectivos países: Hitler e Getúlio Vargas; sua história poderia, por si só, transformar-se no enredo de uma obra de sucesso: Aracy de Carvalho Guimarães Rosa teve trajetória, conquistas e méritos próprios para ser reconhecida e homenageada. Como numa narrativa ficcional, seu passado, sua história é repleta de aventuras, perigos e romance. (...) A história brasileira não contempla esta mulher conhecida por Aracy Guimarães Rosa, a funcionária consular que não gozava de todas as garantias diplomáticas pode ser considerada protagonista de uma grande aventura entrecortada de perigos, coragem e recheada de muito amor e dignidade. A trajetória de vida de Dona Aracy, ou como seu companheiro Guimarães Rosa a chamava, Ara, revive personagens e imagens que fazem desta mulher um vulto histórico exemplar, digno de ser incluído urgentemente nos livros de história do Brasil. (grifo nosso) (http://www.mulher500.org.br/acervo/biografiadetalhes.asp?cod=7)

Suas atitudes demonstravam muita coragem, pois existia perseguição do governo alemão àqueles que ajudassem os judeus, bem como proibição expressa do governo brasileiro de Getúlio Vargas quanto à liberação de vistos, pois o Brasil atravessava tempos de racismo e xenofobia3. Poucos anos antes de Aracy e Guimarães Rosa se conhecerem em Hamburgo, uma Circular secreta,

a Circular no. 1.127, foi assinada no

Itamaraty. De acordo com suas disposições, ficava proibida a concessão de vistos para todas as pessoas de “origem semítica”, sinônimo de judeu e

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israelita na documentação do Ministério das Relações Exteriores brasileiro, nas décadas de 1930 e 40, mas os atos e a interpretação de D. Aracy contribuíram para que esta circular não obtivesse o êxito esperado... pelo menos em Hamburgo. Aracy, em franco ato de Desobediência Civil, interveio em favor dos judeus, gerando um questionamento ímpar: [...] O que faz alguém decidir que o único modo de salvar também a si mesma é desobedecer a ordens que prometeu cumprir? (...) Chocada com a perseguição aos judeus promovida pelo nazismo, Aracy resolveu ignorar as determinações do Itamaraty para impedir a entrada dos "semitas" no Brasil e ajudou a conceder vistos a dezenas deles, talvez uma centena. (grifos nossos) (BRUM & JEAN, 2008)

Utilizando-se de inteligente estratégia e do fato de ser responsável por despachar com o Cônsul geral, D. Aracy misturava aos documentos oficiais outros tantos, que concediam vistos para judeus. De forma praticamente automática, o cônsul assinava a “pilha de papéis”. E assim, à revelia da lei, Aracy, “mera” funcionária do Consulado brasileiro em Hamburgo, auxiliou dezenas e dezenas de judeus a entrar “ilegalmente” no Brasil. (ARACY, 2010) D. Aracy manteve-se sempre muito reservada e ainda é recente a descoberta e divulgação de sua história de coragem e enfrentamento ao Poder constituído, de defesa dos direitos humanos, da cidadania, de exemplo bioético e da grandeza de seus atos recheados de alteridade. Aliás, a divulgação de sua história não se deu por ela mesma, mas pelo empenho daqueles que foram beneficiados por sua bondade e coragem4. Uma das poucas vezes em que Aracy falou sobre si foi em 1983, quando recebeu a homenagem do Estado de Israel: "Nunca tive medo; quem tinha medo era o Joãozinho (o escritor Guimarães Rosa). Ele dizia que eu exagerava, mas não se metia muito e me deixava ir fazendo", disse Aracy ao Jornal do Brasil. (CAMARGO & STUDART, 2008) Foram as atitudes de ajuda de D. Aracy que lhe renderam, por parte da comunidade judaica, a alcunha respeitosa e carinhosa de “o Anjo de Hamburgo”.

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D. ARACY E A DESOBEDIÊNCIA CIVIL De acordo com Guimaraens: No exato instante em que o soberano se transforma em tirano, infringindo certas normas, sejam morais ou jurídicas, é aberta a possibilidade de se resistir aos seus desígnios. (...) Assim, apresenta-se o Direito de Resistência na forma de oposição ao arbítrio e à ação ilegítima do poder constituído. (grifos nossos) (GUIMARAENS, 2007, p. 167-8)

Sem dúvida, Aracy Guimarães Rosa utilizou-se deste instituto do Direito de Resistência – a Desobediência Civil – para resistir ao arbítrio das decisões do governo autoritário de Getúlio Vargas, assumindo a responsabilidade que ela acreditava que todos tinham na vida dos outros seres humanos. D. Aracy discordou especificamente de um determinado preceito normativo, de uma determinada política governamental e a desobedeceu em segredo devido à situação que vivia no momento, residindo num país antissemita e sob as ordens de um governo pátrio também antissemita, sem poder declarar o quão era contrária a este desrespeito ao ser humano, sob pena de perder, ela mesma, seus direitos ou, ainda pior, a própria vida. Neste ponto, é impossível deixar de destacar a reflexão, o dilema que conduz o ser humano a agir de forma ética (Cf. Bittar, 2006, p.127), pois só a reflexão e a liberdade para a tomada de decisão farão com que a atitude consciente tenha em si todos os parâmetros da Ética, como mostraram ter as atitudes de Aracy. Ara defendeu a cidadania e os direitos humanos em uma época em que essa noção sequer existia na Alemanha nazista e fez uso de um instituto nada simpático àqueles que defendem a obediência cega ao Direito, isto é, insurgiuse por meio de claro ato de Desobediência Civil, espécie de instituto de Direito ainda hoje visto com revés – o que não dizer em 1938! – haja vista que, a priori, as determinações do Direito são impostas, coercitivas, destinadas a serem, por força de sua natureza, obedecidas sempre, e o Direito de Resistência, já em sua essência, contradiz isso. Ainda assim, a História da Humanidade deixa claro que o papel dos desobedientes – homens e mulheres – foi fundamental. É possível encontrar exemplos gloriosos no mundo todo, não sendo pequeno o número de

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desobedientes que foram presos e pagaram com a própria vida por seus atos de bravura e coragem. São eles/somos nós, os responsáveis por importantes conquistas, tanto na linha de frente, como nos bastidores das batalhas travadas por essa humanidade tão inquieta e sempre em busca de justiça e de felicidade e essas personagens, quer pela profundidade e alcance, quer pela transcendentalidade de suas ações, foram fundamentais para a construção de um mundo melhor e mais justo. É neste universo que se imiscui esta personagem ímpar, D. Aracy de Carvalho Moebius Guimarães Rosa que, mesmo correndo perigo, tornou-se uma dessas personagens gloriosas, cujo brilho das atitudes ainda hoje se reflete nos descendentes daqueles que ela ajudou a salvar.

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D. ARACY E A BIÓETICA Como enfatizam Hossne & Pessini (2010), a Bioética é ponte para a

cidadania e para a sociedade e, desta forma, parte importante da Ética biossocial (de vida e sociedade), o que Hossne, em seus estudos e declarações tem denominado Bioética social, apesar da resistência do próprio autor em adjetivar Bioética. Esta visão social da Bioética possibilita perceber que a importância da atuação de D. Aracy não se limita só ao aspecto histórico, mas sim, e principalmente, ao aspecto social, pois os fatos que a circundavam levaram a atos bioéticos que vão muito além da análise histórica, transformando-a, em si mesma, numa precursora prática da teoria e do ramo de conhecimento que ora, na atualidade, estuda-se e se torna tão necessário para a Humanidade, conhecido como Bioética. Ademais, a aplicação do termo Bioética surgiu e se desenvolveu como caminho para a busca e a luta por uma vida ética, justa, e digna e isso fez o Anjo de Hamburgo – para a comunidade judaica, Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa – por nascimento e casamento, no mundo civil; ou simplesmente Ara, para seu Joãozinho, nos caminhos do coração.

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A LISTA DE D. ARACY – PEQUENAS HISTÓRIAS DOS “JUDEUS DE ARACY” A seguir, pequenas histórias de algumas poucas famílias que tiveram,

por meio de D. Aracy, o caminho aberto para desafiar Hitler e, indiretamente, Getúlio, com aquilo que eles passaram a ter de melhor para responder aos dois: continuarem vivos. Existiu Inge, que era noiva de Günter e que ouviu rumores sobre “o Anjo de Hamburgo”. Aracy aconselhou Inge a trocar os passaportes de suas cidades pelos de Hamburgo, para que pudesse ajudá-los. (BRUM, 2008) E também houve Grete e Max Callmann. Diz Grete: “meu marido um dia me ligou dizendo que havia uma chance em Hamburgo. No dia seguinte, estávamos esperando nossa vez na sala cheia (...) uma moça nos chamou. Era a D. Aracy. Ela nos arrumou visto para viajar para o Brasil. Nós quisemos pagar. Mas ela disse: „Vocês não me devem nada‟”. Também houve Karl Franken, funcionário de uma loja de roupas para senhoras em Hamburgo, que escapou com a ajuda de Aracy e embarcou no vapor Cap Norte com 10 marcos no bolso. Com o visto dado por Aracy, Inge arrancou Günter de um campo de concentração. Casaram-se antes de embarcar para o Brasil no navio Monte Sarmiento. A noiva estava de preto – um luto profético. (BRUM, 2008) Quando a guerra acabou, Grete soube que os pais estavam mortos. Karl descobriu que pouco tinha restado da família. Günter e Inge foram informados de que seus pais tinham sido incinerados. Os “judeus de Aracy” teriam de viver num país tropical, do outro lado do Atlântico, com essa herança. Viver era sua vingança. E foi o que fizeram. (grifo nosso) (BRUM, 2008) Karl Franken morreu em 1 de março de 2008. Declarou a Revista Época, cinco dias antes de morrer: “Eu sou só brasileiro”. (BRUM, 2008) Günter Heilborn criou uma espécie nova de orquídea. Deu a ela o nome de sua mãe, queimada num forno crematório. Selma tinha pétalas brancas e amarelas. Günter morreu em 1992 e Inge em 2000. (BRUM, 2008) E houve Margarethe Bertel Levy. Ela e D. Aracy foram protagonistas de uma aventura cinematográfica na Alemanha nazista. Tornaram-se amigas para

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sempre. “Enquanto as pessoas eram separadas pelo nazismo, essas duas mulheres se encontraram. Sua amizade vai muito além de gratidão.” Disse sobre elas a historiadora Mônica Raisa Schpun. (BRUM, 2008) Quando a guerra acabou, em 1945, a Alemanha estava coberta de cinzas humanas. Hitler teria dado um tiro na cabeça. Vargas foi deposto. Ao apoiar a democracia lá fora, não dava mais para manter a ditadura aqui. Karl Franken, Grete e Max Callmann, Günter e Inge Heilborn estavam vivos. Assim como dezenas de judeus salvos por Aracy. (BRUM, 2008)

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O ANJO RELEGADO AO ESQUECIMENTO Como declara o historiador e escritor René Daniel Decol, empenhado no

resgate desta fascinante personagem: "Discreta, sem jamais ter caído na tentação de se promover por ter sido quem foi, Aracy paga hoje o preço do esquecimento (...) Até sua influência sobre o escritor tem sido negligenciada pela crítica, pelos historiadores da literatura e pela mídia". (DECOL, 2007) Apesar de ter um filho pequeno e a mãe que dependia dela, Aracy não se intimidou. O advogado Eduardo Tess, filho dela, declarou à ISTOÉ: "Minha mãe achava aquilo tudo injusto, ignorou a determinação do Itamaraty e, com a maior discrição, continuou a preparar os processos de vistos, à revelia de seus superiores". (CAMARGO & STUDART, 2008) Aracy não se limitava a isso. Ela utilizava clandestinamente o carro do serviço consular para transportar judeus, desviava alimentos da cota que o Consulado recebia e entregava para os judeus... "Muitas vezes, ela transportou judeus no porta-malas do carro do consulado. Chegou a levar uma pessoa até a Dinamarca", declarou seu filho (CAMARGO & STUDART, 2008) e “até mesmo a esconder judeus em sua casa”. (BRUM & JEAN, 2008) Além disso, de personalidade forte, Aracy não se intimidava quando era parada pela Gestapo5. Pelo menos uma vez, enfrentou os policiais de dedo em riste, desconcertando-os com seu alemão impecável. "Minha mãe exibia muita segurança e autoridade e os alemães respeitavam a autoridade". (CAMARGO & STUDART, 2008)

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Entretanto, nenhuma dessas ações é lembrada ou referenciada em campos brasileiros. Não bastasse o perigo que corria, Aracy viu-se obrigada a se separar de seu filho. Eduardo era pequeno na época e, por questões de segurança, foi enviado de volta para morar com a avó em São Paulo. (CASO, 2008) O rabino da Congregação Israelita Paulista (CIP), Michel Schlesinger, comentou: “Aracy é uma dessas pessoas que não silenciaram diante do regime nazista (...) e colocaram a própria segurança em segundo lugar para que os semitas fossem salvos. É admirável, porque ignorou a proibição. A coisa mais fácil era deixar passar.” (CASO, 2008) Ao declarar que “ignorou a proibição”, o rabino nos remete ao caráter de desobediente civil de D. Aracy. Muito embora sobre isto existam poucas declarações de cunho próprio, quando lhe perguntaram por que fez o que fez, ela

disse

simplesmente:

“Porque

era

o

justo”.

(http://themaias.wordpress.com/category/reportagens/page/6/). Alcançar o justo é uma das justificativas para a Desobediência Civil e ser justa é defender os direitos humanos e é, também, ser bioética.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo dos desobedientes civis é resistir às leis e normas consideradas injustas e, portanto, abusivas e isto ocorre em situações ocasionais e limitadas. Desta forma, atos de Desobediência Civil podem vir a ser mecanismos adequados para obter mudanças ou para restabelecer a justiça e representam um expediente bastante importante para a sociedade civil. Mais do que isso, a Desobediência Civil é ato político e têm motivação construtiva; nunca destrutiva. Além disso, deve sempre ter mote de benefício para a coletividade e se expressar por meio de manifestações não-violentas. A análise das atitudes de Aracy a coloca, embora vivesse num verdadeiro inferno, no céu dos desobedientes que corajosamente fizeram uso do instituto jurídico da Desobediência Civil para lutar pela justiça, que ainda hoje se busca neste mundo que quanto mais luta por situações de igualdade, mais perpetua as desigualdades.

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D. Aracy foi muito discreta. Tão discreta que poucos conhecem a sua fascinante história e, infelizmente, suas ações são muito mais conhecidas no exterior do que em sua pátria, ainda que sua vida pareça um verdadeiro roteiro cinematográfico. Por desafiar o nazismo, Aracy tornou-se cidadã do mundo “[...] sua saga daria, seguramente, um belíssimo roteiro”. (SCHUSTER, 2009) Além de citada no Jardim dos Justos, no Museu do Holocausto, em Jerusalém, Aracy foi homenageada também com o nome de um bosque do Keren Kayemet, nas cercanias da cidade sagrada. Ela mesma inaugurou a placa comemorativa com um discurso, em 1985, quando fez sua última viagem internacional. E é homenageada também no Museu do Holocausto, em Washington. Vítima do Mal de Alzheimer, D. Aracy morou desde meados dos anos 1990, quando deixou o Rio de Janeiro, com o filho Eduardo Tess e sua família, em São Paulo. A saúde debilitada significou um cotidiano de isolamento, ao lado da família, que se dedica cada vez mais aos esforços para organizar e registrar a memória de uma vida que, em nome de firmes valores, desafiou também a repressão militar no Brasil no final da década de 1960. (SPITZCOVSKY, 2008) Diversas homenagens, no Brasil e no exterior, recentemente têm jogado luzes sobre a vida desta mulher discreta e especial, conhecida como "o Anjo de Hamburgo". No fenômeno literário Grande Sertão: Veredas, publicado em 1956, logo de início há uma menção a ela e assim tem-se, na literatura, instrumento universal e eterno, uma forma de não se esquecer esta mulher singular. Entretanto, não é só o Brasil que parece ter esquecido “o Anjo de Hamburgo”. Ela também se esqueceu... esqueceu-se de si mesma, esqueceuse de seu “Joãozinho”, esqueceu-se de sua família e esqueceu-se das diversas famílias que ajudou a salvar. O grande vilão que a conduziu a este tão completo e devastador esquecimento também tem, em mais uma dessas ironias inexplicáveis, um nome alemão: Alzheimer.

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O Mal de Alzheimer parecia estar nela como a determinar que de uma forma ou de outra ela não escaparia de seu destino alemão: nasceu descendente de mãe alemã, trabalhou em solo alemão, lá conheceu seu grande amor e lá ajudou a salvar muitas outras vidas... encaminhando-as a solo brasileiro, onde viveu até sua morte e onde está a descansar eternamente, desde que deixou de ser só o Anjo de Hamburgo e passou a ser o anjo transcendental que habitou a memória de todos que ela ajudou. Assim, torna-se impossível não tecer, ainda, um jogo de palavras com a inusitada situação de D. Aracy. O esquecimento daquela que se esqueceu... esqueceram-se

dela

e

ela

se

esqueceu.

E

apesar

disso,

quando

completamente esquecida é que parece começar a ser lembrada e reconhecida. Em movimentos pequenos, a história desta fabulosa mulher parece começar a receber a luz e os holofotes que merece, sendo este também um dos objetivos deste pequeno ensaio.

E O ANJO FOI AO CÉU Dona Aracy viveu até 102 anos, morava em São Paulo com a família e faleceu em março de 2011. No final da vida, Aracy não cuidava mais; era cuidada. O tempo foi implacável, como é com a maioria dos seres humanos – mas a mulher corajosa, ética, determinada e inteligente que ela foi no passado resistiu a esse tempo até quando conseguiu, e passou de um século neste mundo que tentou transformar em mais humano.

NOTAS EXPLICATIVAS

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O primeiro texto a utilizar a palavra Bioética, escrito em língua inglesa, fazia parte do artigo Bioethics, the science of survival (Bioética, a ciência da sobrevivência) e apresentava uma adaptação do texto do Capítulo I do livro Bioethics: a bridge to the future (Bioética: uma ponte para o futuro), publicado em janeiro de 1971. Embora de acordo com Pessini & Hossne (2008, p. 7), no sentido histórico, o termo “Bioética” tenha aparecido na literatura em 1927, proposto por Fritz Jahr no periódico alemão Kosmos, no artigo Biethik. Eine Unschou uber die ethischen Beziehungen dês Menschen zu Tier und Pflanze (Bioética: uma revisão do relacionamento ético dos humanos em relação aos animais e plantas), Kosmos 1927; 24:2-4. 2 Ao retornar ao Brasil, ela se dedicou inteiramente a colaborar com a atividade literária do marido. Mas ainda voltaria a desafiar o arbítrio. Em 1968, pouco depois de ter se tornado viúva,

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Aracy participava de reuniões de intelectuais que se opunham à ditadura militar no país. No dia 13 de dezembro, quando o regime baixou o AI-5, um dos artistas caçados pela polícia encontrou guarida no apartamento de Aracy, no Posto 6, no Arpoador, com vista para o Forte de Copacabana. Era o compositor Geraldo Vandré, autor de Pra não dizer que não falei das flores. "Do apartamento, ele podia ver a movimentação de soldados e policiais na rua", diz Tess. (CAMARGO & STUDART, 2008) 3 Como declaram Camargo & Studart: “Desde 1921, sucessivos governos vinham criando barreiras à entrada dos "apátridas" da Primeira Guerra Mundial, em especial aos judeus russos fugidos da Revolução Bolchevique de 1917, tratados num documento oficial como "semitas indesejáveis para compor a população brasileira". Em 1933, Adolf Hitler tomou o poder na Alemanha e começou a perseguir judeus, ciganos, homossexuais, liberais, socialistas e comunistas. No Brasil, a Assembleia Constituinte de 1934 discutiu abertamente políticas de "branqueamento", a eugenia estava em alta, o assunto da hora era o "perigo amarelo" (os japoneses) e nossas elites acreditavam na relação entre a etnia e a ética. (...) Em 1935, Hitler criou as Leis de Nuremberg contra os judeus e começou a avançar sobre o Leste Europeu. Aumentou então a fuga de judeus para as Américas. De início, eles entravam no Brasil na cota de alemães e austríacos. Mas (...) O Itamaraty reagiu com a Circular Secreta 1.127, de 1937, restringindo a entrada de todos os "semitas". A partir daqui, as embaixadas brasileiras na Europa tinham ordens expressas do Itamaraty para não conceder vistos a judeus. O chefe de Aracy, o cônsul-geral do Brasil em Hamburgo, Joaquim de Souza Ribeiro, não era antissemita, mas um diplomata disciplinado. Dificultava ao máximo a concessão de vistos a judeus para não desagradar o embaixador e o governo”. (CAMARGO & STUDART, 2008) 4 Cf. BRUM & JEAN: Karl Franken sobreviveu a Hitler graças a Aracy. No Brasil, ele encontrou outra fugitiva do nazismo, Gertraud. E com ela Karl iniciou uma família...” e Cf. CAMARGO & STUDART (2008): “Testemunhos de judeus que foram salvos por Aracy contam que ela os acompanhava até o camarote do navio para assegurar proteção diplomática e, muitas vezes, levava as joias, bens e dinheiro dos refugiados em sua bolsa para evitar que fossem confiscados pela polícia nazista. Uma delas é Maria Margareth Bertel Levy que, em 2006, gravou um depoimento para o historiador René Decol: "Aracy me levou pessoalmente ao navio, usando seu passaporte diplomático". 5 Aracy era uma morena com mais curvas que o Reno, capaz de fazer os alemães gingarem ao virar a cabeça para vê-la passar a caminho do consulado. Para sorte dos judeus, também tinha uma personalidade capaz de azedar um Apfelstrudel. Um dia deu uma bronca tão grande num policial que queria revistá-la que ele se encolheu diante de sua baixa estatura. Aracy, então, atravessou calmamente a fronteira com um judeu no porta-malas do carro. E esta personalidade persistiu até que ela começou a ser derrotada pelo Mal de Alzheimer, pois aos 80 anos, Aracy acabara de retirar dinheiro no banco quando tentaram lhe arrancar a bolsa. Deu tantas bolsadas no ladrão que o deixou estirado na calçada da Nossa Senhora de Copacabana. De lá para cá, a cidade que mais amava no mundo foi se tornando campo minado também para ela. E com relutância, bem devagar, Aracy foi aceitando São Paulo. Nos últimos anos, enquanto saboreava um cigarro, foi cortando um a um os fios que a ligavam ao mundo de fora. Um dia levantou âncora e partiu inteira para dentro de si mesma. (BRUM & JEAN, 2008)

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