O TEATRO COMO HISTÓRIA E SUBVERSÃO: O DISCURSO POPULAR NO DRAMA SHAKESPEARIANO

June 6, 2017 | Autor: Deize Fonseca | Categoria: Theatre Studies, Shakespearean Drama, Teatro, Discurso
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O TEATRO COMO HISTÓRIA E SUBVERSÃO: O DISCURSO POPULAR NO DRAMA
SHAKESPEARIANO
Deize Mara Ferreira Fonseca

men might safely write of others in manner of a tale; but in manner of a
history,
safely they could not: because, albeit they should write of men long since
dead,
and whose posterity is clean worn out; yet some alive, finding themselves
foul in
those vices which they see observed, reproved, and condemned in others,
their
guiltiness maketh them apt to conceive, that, whatsoever the words are, the
finger pointeth only at them.

John Hayward, dedication to Lives of the III Normans (1613)[1]


Ocupando um lugar central no cânone literário do Ocidente, a obra de
William Shakespeare (1564-1616) guarda um espaço privilegiado para
discussão política, em especial nas peças baseadas nas histórias da
Inglaterra e de Roma. Isso ocorre porque a era elisabetana-jaimesca, na
qual Shakespeare viveu, foi um período efervescente, de grandes
transformações políticas e sociais, em que o teatro, além de ser a grande
indústria cultural, assume um caráter didático, ao deslindar as formas como
o poder é disputado em uma sociedade, aproveitando-se tanto da curiosidade
dos espectadores com relação ao passado do país quanto da identificação do
público com o ideário político romano, contribuindo dessa forma para a
construção da identidade nacional.

Este texto pretende discutir brevemente a presença da voz popular e
suas implicações para a compreensão da dramaturgia shakespeariana em três
peças: Henrique VI, parte 2 (1591), Júlio Cesar (1599) e Coriolano (1608).
Nestas peças, como em outras escritas pelo autor, a luta pelo poder tem
papel preponderante na trama e determina a conduta das personagens, tanto
principais quanto coadjuvantes. A progressão cronológica não é acidental: a
partir dela, é possível perceber uma sutil mudança na visão shakespeariana
sobre as ações de governo e a participação popular na construção do
discurso do poder ao longo da obra do autor.

Shakespeare e a História

É sabido que Shakespeare tornou-se um grande dramaturgo graças também
à sua capacidade de adaptar, de encontrar nas fontes que tinha à
disposição, histórias que fossem capazes de chegar ao palco e agradar ao
público diversificado para o qual estavam voltadas. As crônicas de Edward
Hall (1498-1547) e Raphael Holinshed (1529 - 1580), foram fontes para os
dramas que reconstruíram a história inglesa, especialmente os períodos das
Guerras das Rosas (1455-1485) e da Guerra dos Cem Anos (1337-1453)

Os dramas históricos ingleses foram escritos por Shakespeare sob a
forma de duas tetralogias. A primeira tetralogia, que contém as peças
Henrique VI, partes 1(1592), 2 e 3(1591) e Ricardo III(1593), trata de
assuntos mais recentes, do ponto de vista cronológico. Shakespeare escreveu
as tetralogias na ordem inversa dos acontecimentos, ou seja: a primeira
tetralogia envolve assuntos que, historicamente, ocorreram depois daqueles
tratados na segunda tetralogia. Não é possível afirmar que houvesse um
propósito específico do autor ao agir assim. Dessa forma, a primeira
tetralogia focaliza o confuso reinado de Henrique VI, filho de Henrique V,
que herda o trono precocemente (aos nove meses de idade) em função da morte
repentina de seu pai. Henrique VI herda as coroas da Inglaterra e da
França, já que havia um pacto firmado entre seu pai e o rei da França, o
qual estabelecia que, após a morte do rei francês, o monarca inglês
assumiria o trono da França. A segunda tetralogia, conhecida como "A
Henriada", contém as peças Ricardo II (1596), Henrique IV partes 1 (1597) e
2 (1598) e Henrique V (1599) e delineia a trajetória que leva Henrique V ao
trono e aos vários triunfos militares, a partir da tomada/usurpação do
trono por seu pai, Henrique IV.

É possível que a primeira peça escrita por Shakespeare a ser encenada
tenha sido um drama histórico. Ao menos, a primeira referência conhecida
sobre seu trabalho nos palcos londrinos vem de um drama histórico: a
célebre menção de Robert Greene, datada de 1592, a um dramaturgo que se
considerava "the onely Shake-scene in a countrie" (HELIODORA, 2001, p.12) e
que teria um "Tygers heart wrapt in a Players hide" - alusão óbvia à fala
do Duque de York contra a rainha Margaret, em Henrique VI, parte III,
quando o Duque, feito prisioneiro e humilhado pela rainha, diz que ela tem
um "tiger's heart wrapp'd in a woman's hide"[2] (I. iv.137).

Deve-se pensar no drama histórico como parte do fenômeno cultural
fascinante e complexo que foi o teatro renascentista inglês. Uma indústria
de entretenimento (talvez a primeira no mundo) sustentada pelo seu público,
embora "moralmente" apoiada pela nobreza e vigiada de perto pela censura
real. Um teatro dinâmico, que buscava antes de tudo satisfazer a quem o
assistia. A era elisabetana-jaimesca foi uma época de afirmação da
identidade nacional e ao mesmo tempo, de muitas dúvidas no tocante à
sucessão do trono, já que a rainha era solteira e não parecia disposta a
decidir-se por nenhum de seus pretendentes. Jaime I, ao suceder Elisabete,
trouxe consigo não apenas a corte escocesa e seus hábitos, mas também uma
nova discussão sobre a forma mais adequada ao governo. Além disso, sua
época foi marcada por forte crise econômica, o que acarretou mais
questionamentos sobre a forma de governo e sobre a capacidade dos
governantes em proverem o bem-estar geral da população.

No tocante às peças romanas (a saber, além de Julio Cesar e Coriolano,
Tito Andrônico de 1592 e Antonio e Cleópatra de 1606) a principal fonte de
Shakespeare foi a obra Vidas Paralelas, de Plutarco, na tradução de Sir
Thomas North (1579), além das obras de Tito Lívio e Ovídio. Ao retratar as
vidas de líderes ilustres, a obra de Plutarco municiou Shakespeare com
ideias e modelos a respeito dos governantes bons e maus e do quanto as suas
atitudes afetavam a vida da população. Além disso, o ideário político
romano era bastante presente na época no imaginário da população inglesa,
já que o latim era ensinado nas grammar schools (o equivalente à Educação
Básica ) por meio de obras de autores famosos, como Sêneca, Plauto, Cícero,
entre outros. Conforme diz Bárbara Heliodora:



O que desejo dizer é que a continuada leitura das peças
históricas, inglesas ou romanas, revela sempre a mesma e
inabalável preocupação com o estabelecimento da relação de causa
e efeito na investigação das ações humanas, e muito
particularmente, no caso, das ações políticas de governantes e
governados. (HELIODORA, 2001,p. 156)



Assim, tanto o drama histórico quanto as peças baseadas na história de
Roma surgem como um discurso construído em torno de um conjunto de anseios
e curiosidades da comunidade em torno de seu passado e de seu presente.
Enquanto construção discursiva, a história está, portanto, sujeita às
escolhas de quem profere o discurso, no caso, o dramaturgo. Se pensarmos
que a época a censura era exercida sobre o teatro de maneira rígida, fica
ainda mais patente a coragem do autor e o esforço necessário para escrever
tais peças, comunicando-se com o público e, ao mesmo tempo, driblando a
vigilância do Master of Revels.[3]






As peças em discussão

A primeira peça a ser discutida é o drama histórico Henrique VI parte
2. A peça lida com a inabilidade do rei em conduzir o reino; com a morte de
um de seus melhores homens, o Duque de Gloucester e com o acirramento das
rivalidades entre os nobres, que chegam ao conflito armado. Nesse contexto,
emerge a figura do rebelde popular Jack Cade e seu bando. Cade domina o ato
IV da peça, a partir da cena 2. Alguns críticos atribuem sua presença a um
sinal do alívio cômico, comum nas peças trágicas de Shakespeare. Cade e
seus companheiros, porém, representam mais do que isso. Suas ações no
contexto político da peça são um sinal de que a desintegração social,
causada pelas lutas intestinas entre os nobres, atingiu o grau máximo. Cade
pode ser, até certo ponto, uma figura manipulada pelo nobre York, mas, ao
mesmo tempo, funciona também com uma espécie de caricatura desse mesmo
nobre, operando uma crítica justamente a partir do assunto mais caro ao
conflito civil: a legitimidade (ou não) da linha sucessória do trono
inglês. Cade reivindica para si uma linhagem nobre, o que lhe garantiria
direito ao trono, ou ao menos a um posto de protetor do rei – reivindicação
esta, comum a várias figuras da corte. O modo farsesco e cômico com que seu
pleito é apresentado, soa muito mais como uma crítica à nobreza do que como
um desprezo pelo modo de expressão popular: (IV, 2, p.464)
CADE – Nós, John Cade, assim denominado por nosso pai
putativo...
DICK (à parte) – Quem não te conhecer que te compre!
CADE - ...porque o inimigo vai cair diante de nós, levado pelo
espírito de derrubar príncipes e reis, recomendamos silêncio.
DICK – Silêncio!
CADE – Meu pai foi um Mortimer...
DICK (à parte) – Homem honesto, de fato, e muito bom pedreiro.
CADE – Minha mãe, uma Plantageneta..
DICK (à parte) – Conheci-a muito bem; era parteira.
CADE – Minha mulher descendia dos Lacys...
DICK (à parte) - Não há dúvida; como filha de um mascate, devia
ter vendido muitos laços.
SMITH (à parte) – Mas, ultimamente, por não poder mais com a
mochila, passou a lavar em casa roupa na barrela.
CADE – Descendo, portanto, de uma casa honrada.



As aspirações de Cade e seus companheiros (todos identificados por
suas profissões) reúnem o desejo da tomada do poder com o anseio por
fartura e liberdade. Além da famosa "morte aos juristas", ("The first thing
we do, let's kill all the lawyers", no original), o discurso de Cade e seus
companheiros incorpora aspirações populares: a queixa diante da perda dos
territórios diante da França, o desprezo pela aristocracia e pelo
intelectualismo e um pleito por "justiça" contra a nobreza, que nunca se
importou com os sofrimentos do povo: (IV, 2, p.466)
CADE – Vós, amigos do povo, acompanhai-me!
É pela liberdade. Se sois homens,
mostrai-o agora. Não deixemos vivo
nenhum lorde, nenhum desses fidalgos.
Só poupai as pessoas que estiverem
de sapatos ferrados, que são todos
honestos e econômicos e, certo,
se bandeariam para o nosso lado,
se tivessem coragem para tanto.



Portanto, temos aí uma voz de sublevação, que, segundo Patterson
(1989), surge no palco como parte de uma tradição cultural de protesto. O
drama histórico shakespeariano, ao reler o passado, faz uma correlação com
a sua contemporaneidade: em uma época de instabilidade política por conta
das incertezas com relação à sucessão de Elisabete I, cabia alertar a
plateia, formada tanto por nobres quanto por pessoas do povo, sobre os
perigos da rebelião popular. Ao mesmo tempo, voz popular de protesto, que
clama por justiça e também por uma utopia de igualdade, liberdade e
prosperidade para todos, torna-se um discurso incorporado por Shakespeare
na peça.

Na cena 8 do Ato 4, vê-se como o povo ainda é retratado neste peça
como ingênuo e volúvel. Cade ordena seu bando que saqueie a cidade. São,
porém, interceptados por dois nobres e suas tropas. Os nobres,
espertamente, em lugar de promoverem o confronto, tentam com palavras
convencer a turba a seguir o rei. Depois de alternar o apoio entre Cade e o
rei, o povo opta por seguir os nobres e abandona Jack Cade:



TODOS – Viva Clifford! Viva Clifford! Seguiremos o rei e
Clifford!
CADE (à parte) – Quem já viu pena mais fácil de soprar do que
esta multidão? O nome de Henrique V os leva a perpetrar centenas
de ações más e lhes dá ânimo para me deixarem desolado. Estou
percebendo que eles estão combinando em voz baixa para caírem
sobre mim. Não há mais tempo a perder: vou abrir caminho com a
minha espada.(Alto) Apesar dos demônios e do inferno, passarei
no meio de vós! Os céus e a honra sejam testemunhas de que não é
por falta de coragem, mas pela traição vil e ignominiosa de meus
companheiros, que sou obrigado a rodar nos calcanhares. (Sai)
BUCKINGHAM – Como! Fugiu! Correi ao encalço dele. Receberá de
prêmio mil coroas quem levar para o rei sua cabeça. (Saem alguns
homens) Soldados, vinde! Hei de arranjar um meio de vos
reconciliar com o soberano. (Saem) (IV, 8,pp.471-472)

Assim, a rebelião fracassa e Cade é executado de forma patética, pois,
já faminto e sem forças, não teria condições de reagir contra seu algoz .
Portanto, em Henrique VI, parte 2, o discurso popular é derrotado para que
a "normalidade' da luta pelo poder (nobre contra nobres) possa seguir
intacta.

Já em Julio César, o desenrolar é outro. A peça é famosa por discutir
a trama do assassinato de César engendrada por Bruto, os perigos da tirania
e a mudança de regime de governo. Logo na cena de abertura temos os
populares (mais uma vez, identificados por suas profissões) no centro da
cena. São questionados sobre o motivo de festejarem o triunfo de César
sobre Pompeu. O povo surge aqui com vontade própria, vestindo
espontaneamente suas melhores roupas para comemorar aquilo que considera
legítimo. Fica patente a tensão entre os sentimentos do povo e os da
nobreza, representada pelos tribunos, que lamentam a derrota de Pompeu.



FLÁVIO — Mas por que hoje saíste da oficina? Por que andas pelas
ruas com estes homens?
SEGUNDO CIDADÃO — Para falar franco, senhor, é para que eles
gastem os sapatos e eu venha a obter mais trabalho. Mas a
verdade, senhor, é que fizemos feriado para ver César e nos
regozijarmos com o seu triunfo.
MARULO — Por que regozijar? Qual foi a grande conquista que ele
fez? Que tributários o acompanham a Roma, para as rodas enfeitar-
lhe do carro com seus liames do cativeiro? Não passais de
troncos e de pedras; sois piores do que as coisas insensíveis.
Corações duros, todos! Romanos cruéis, já não vos lembra o nome
de Pompeu? Quantas vezes não trepastes pelos muros e ameias e
nas torres ficastes e janelas e até mesmo no alto das chaminés,
com vossos filhos nos braços e, pacientes, esperastes o dia
todo, só para poderdes ver o grande Pompeu, quando passasse
pelas ruas de Roma? E quando o carro dele víeis, embora só de
longe, vivas não dáveis, com ardor tamanho que no seu leito o
Tibre estremecia ao estrondo que os ecos espalhavam por suas
margens côncavas? E ora vestis vossas melhores roupas e
inventais um feriado? Espalhais flores à passagem de quem marcha
em triunfo no sangue de Pompeu? Fora daqui! Recolhei-vos a casa,
ajoelhai-vos e aos deuses suplicai que a peste afastem que tanta
ingratidão torna iminente.(I, i, p. 133)



O povo reaparece nas cenas 2 e 3 do terceiro ato. A cena 2, na qual o
povo ouve primeiramente o discurso de Bruto e considera justo o assassinato
do tirano, para, logo em seguida, após ouvir o mais que persuasivo discurso
de Marco Antonio, considerar que Bruto sim é que deve morrer; é tida como
exemplo de como o povo pode ser manipulado por bons oradores, ou por
políticos inescrupulosos senhores do dom da palavra. Devemos lembrar,
porém, que a fúria do povo só se consuma (ao ponto de levar ao massacre do
poeta Cina) após a leitura do testamento de César, no qual fica claro que
César de fato amava o povo e deixou-lhe benefícios. A perspectiva da perda
de ganhos é que leva de fato o povo a consumar um ato violento, ou seja, o
povo abandona a passividade e vai à ação. Talvez o fato de ter sido
insuflado seja menos importante do que a demonstração de que, finalmente,
resolveu fazer algo conforme a sua vontade:
ANTÔNIO — Concidadãos, ouvi-me. Vou falar-vos.
CIDADÃOS — Que fale Antônio, o muito nobre Antônio!
ANTÔNIO — Sabeis, amigos, o que estais a ponto de realizar? Em
que mereceu César ser a tal ponto amado de vós todos? Ah! não o
sabeis. Preciso, então, contar-vos. E o testamento, já vos
esquecestes, de que falei há pouco?
CIDADÃOS — É certo! É certo! O testamento! Ouçamos a leitura do
testamento!
ANTÔNIO — Aqui vo-lo apresento, com o selo ainda de César. César
deixa para cada romano em separado setenta e cinco dracmas.
SEGUNDO CIDADÃO — Nobilíssimo César! Vamos vingar a morte dele!
TERCEIRO CIDADÃO — Oh real César!
ANTÔNIO — Ouvi-me com paciência.
CIDADÃOS — Olá! Silêncio!
ANTÔNIO — Além disso, deixou-vos seus passeios, caramanchões
privados e os recentes jardins por ele feitos neste lado do
Tibre. Sim, deixou-vos, para sempre, para vossos herdeiros, como
pontos de diversão comum, porque pudésseis passear e distrair-
vos. Foi um César, realmente! Outro igual, quando teremos?
PRIMEIRO CIDADÃO — Nunca! Nunca! Sigamos para a praça sagrada, a
fim de o corpo ali queimarmos, e com os tições as casas
incendiemos de todos os traidores. Carreguemos o corpo.
SEGUNDO CIDADÃO — Trazei fogo.
TERCEIRO CIDADÃO — Derrubemos os bancos.
QUARTO CIDADÃO — Derrubai logo janelas, cadeiras, o que for.
(Saem os cidadãos, com o corpo de César.) (III, 2, pp. 182-183)



Percebe-se, dessa forma, a mudança em comparação com destino de Jack
Cade em Henrique VI, parte 2. Aqui, a voz do povo não é silenciada, e,
ainda que a sublevação leve à guerra civil, existe uma mudança nos rumos do
governo na qual a participação popular tem si, papel relevante.

Já em Coriolano, a ação do povo é determinante para o desenrolar e o
desfecho da trama. Caio Marcio, mais tarde Caio Marcio Coriolano, é uma
máquina de guerra, que não acredita em paz ou conciliação. O general
conquistou a cidade de Coroli aos Vólscios, mesmo assim tornou-se o
político mais odiado pelos romanos, por considerar que a manutenção dos
exércitos estava acima da satisfação das necessidades mais básicas da
população. A tensão aumenta quando, ao ser convencido pelos patrícios a
pleitear o cargo de cônsul, Coriolano não aceita submeter-se à aprovação do
povo. Enfurecido com o que considera uma inaceitável capitulação dos
patrícios frente à plebe e banido pelos romanos, vai refugiar-se nos
acampamentos dos Vólscios. Ansiando por vingança, alia-se ao rei inimigo,
Aufidius, para cercar Roma. A mãe de Caio Márcio, Volúmnia, acompanhada de
Virgínia, esposa do general, e de Valéria, amiga da família, demovem-no da
ideia de destruir Roma. Acatando o apelo das três retorna à cidade dos
Vólscios, onde é morto pelo povo que o acusa de falsidade e traição.

À semelhança de Júlio César, a cena de abertura pertence ao povo, que
planeja um levante contra Coriolano. A ação, nesse caso, é imediata. A voz
popular está em primeira pessoa:
Entra um grupo de cidadãos amotinados, com ferramentas, bastões,
varas e outras armas.
PRIMEIRO CIDADÃO - Antes de irmos adiante, deixem que eu fale.
TODOS – Fala! Fala!
PRIMEIRO CIDADÃO – Estão todos aqui resolvidos a morrer, antes
que
passar fome?
TODOS - Estamos resolvidos. Resolvidos.
PRIMEIRO CIDADÃO – Para começar, sabem que Caio Márcio é o
principal
inimigo ?
TODOS – Sabemos, sabemos!
PRIMEIRO CIDADÃO – Vamos matá-lo, pois teremos então o trigo ao
nosso preço . É esse o veredicto?
TODOS – Chega de falar. É fazer e pronto. Vamos!Vamos! (I,1,
p.49)



Nota-se que o destino de Caio Marcio está traçado desde a primeira
cena, e será determinado pelo povo. Sua única chance de se redimir seria
ter aceitado o julgamento popular, ter percebido que estava vivendo uma era
de mudança de paradigma, na qual o poder absoluto já não poderia responder
sozinho pelos destinos de uma nação. Uma era na qual a voz do povo, ainda
que de forma tênue, passa a fazer parte dos mecanismos de poder.



MENÊNIO:- Coriolano, ora apraz ao senado fazê-lo cônsul.
CORIOLANO – Sempre a ele devo Vida e serviço.
MENÊNIO – Resta então agora que se dirija ao povo.
CORIOLANO – E eu peço a todos que saltem tal costume; pois não
posso envergar trapos e implorar, seminu, que por minhas feridas
me deem votos. Eu peço que me poupem de tais atos.
SICÍNIO – Senhor, o povo quer ter a sua voz; e ele não abre mão
de nem uma gota do ritual.
MENÊNIO – Não ponha o povo à prova. Por favor, vista-se segundo
o hábito, pra colher, como seus antecessores, a honra segundo a
forma.
CORIOLANO – É um papel que eu coro em desempenhar, e podia ser
tirado do povo.(II,2, p. 139-141)



Barton (2004) deixa claro que, em Coriolano, não é somente Plutarco,
mas também Tito Lívio e, sobretudo, Maquiavel, em seus comentários à obra
Ab Urbe Condita de Lívio, que guiarão Shakespeare na escrita da peça. O
nome de Maquiavel já circulava à época como sinônimo de defesa da ideia de
que "os fins justificam os meios". Shakespeare, porém, parece ter-se
apegado aos trechos em que Maquiavel deixa claro que nenhum ser humano é
bom ou ruim, e que o equilíbrio de forças seria a melhor forma de levar a
bom termo um governo justo. É justamente por recusar a possibilidade desse
equilíbrio, representado pela voz popular, que Coriolano sucumbe. E é esta
mesma necessidade de equilíbrio que os contemporâneos de Shakespeare
percebem em sua sociedade, em especial depois da morte de Elisabete I e da
ascensão de Jaime I, época na qual Shakespeare escreve Coriolano. Conforme
diz Patterson(1989), a peça parece dirigir-se não apenas às revoltas
populares de 1607, mas discute questões maiores, sobre a distribuição não
só do poder , mas também dos recursos naturais.


Conclusão



Em sua introdução ao teatro shakespeariano, Sara Smith afirma:
"History was not, then, a matter of recovering the truth of the past, but
of constructing a contingent truth for current pragmatic purposes. It was
always politically loaded and subjectively laced, and for these reasons,
therefore, the writing of history was topical and immediate – sometimes
explicitly"[4].(SMITH, 2007, p.137). Topicalidade esta, que tem o poder de
estabelecer o diálogo com o público de seu tempo e que nos permite ter o
teatro shakespeariano como leitura de sua época e de constante diálogo
também com o nosso tempo. Da irresponsabilidade quase inocente de Jack Cade
e seu bando, à firmeza da participação dos cidadãos em Coriolano, a
história se faz representar no palco shakespeariano como um discurso forte,
capaz de dialogar ou até quem sabe, influir no presente.

Referências Bibliográficas



BARTON, Anne. "Livy, Machiavelli and Shakespeare's Coriolanus. In
ALEXANDER, Catherine (ed). Shakespeare and Politics. Cambridge: CUP, 2004,
p. 67-90


LEÃO, Liana & SANTOS, Marlene Soares dos (org). Shakespeare, sua época e
sua obra. Curitiba: Editora Beatrice, 2008


HELIODORA, Bárbara. Falando de Shakespeare. São Paulo, Perspectiva, 2001.


PATTERSON, Annabel. Shakespeare and the Popular Voice. Cambridge: Basil
Blackwell Inc, 1989


SHAKESPEARE, William. Teatro Completo - Dramas Históricos. Trad. Carlos
Alberto Nunes.5ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.


______ Antonio e Cleópatra e Julio César. Trad. Carlos Alberto Nunes.Rio de
Janeiro: Ediouro, s/d.


______Coriolano. Trad. Barbara Heliodora. Edição bilíngüe. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1995


______The Arden Shakespeare Complete Works: revised edition. Edited by
Richard Proudfoot et all. London: Cengage Learning, 2001.


SMITH, Sara. The Cambridge Introduction to Shakespeare. Cambridge:
Cambridge University Press, 2007

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[1] Talvez os homens possam escrever sobre os outros de modo seguro em
forma de fábula, mas em forma de história, a segurança não é mais possível,
pois embora possam escrever sobre homens mortos há muito tempo, cuja
descendência já se esgotou, outros ainda vivos, vendo-se pegos em defeitos
que podem ser observados, reprovados e condenados nos demais, sua culpa os
faz pensar que, não importa a quem as palavras se dirijam, haverá sempre um
dedo apontado em sua direção.
[2] "Coração de tigre envolto em pele de mulher" – Todas as citações
traduzidas das peças históricas de Shakespeare são da tradução de Carlos
Alberto Nunes, bem como as de Julio César. Para Coriolano, a tradução
utilizada é a de Bárbara Heliodora. As demais traduções de textos em inglês
são de minha autoria.
[3] Oficial da corte que desde a era Tudor até o Licensing Act de 1737, era
responsável por supervisionar a produção, o financiamento e às vezes por
elaborar os entretenimentos da corte. Mais tarde, tornou-se o emissor
oficial de licenças para teatros e companhias teatrais e censor de peças
apresentadas em público.
[4] "A História não era, então, uma questão de recuperar a verdade do
passado, mas sim a construção de uma verdade contingente para as propostas
pragmáticas correntes. Ela era sempre construída de forma subjetiva e
carregada de política. Por isso, a escrita da história era sempre tópica e
imediata – e, algumas vezes, explícita.
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