O teatro do Boal e a comunidade emancipada in Teatro do Oprimido e Universidade, Rio de Janeiro: 2016

May 28, 2017 | Autor: Alessandra Vannucci | Categoria: Performing Arts, Theatre Studies, Social Sciences, Social and Cultural Anthropology
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O teatro do Boal e a comunidade emancipada Boal’s theatre and the public emancipation

O teatro do Boal e a comunidade emancipada A partir da década de 80, exercendo sua reflexão artística em plena sociedade do espetáculo, Boal busca arrancar o teatro de sua servidão aos dispositivos de controle para fazer dele uma tática de resistência. Contrariando a negatividade de Adorno quanto ao uso da arte no sistema da indústria cultural, Boal busca nela um possível antidoto aos regimes hegemônicos. Agir a arte é um gestus que revela e põe a prova as condições sociais vigentes. Como experiência pública de subjetivação, tal gestus é transformador, não somente de quem o age como de toda a comunidade. É o que faz o espect-ator do Teatro-Forum, quando irrompe em cena para reclamar a razão dos oprimidos. Tal conduta insurrecional é uma prática constituinte de cidadania. A comunidade se emancipa, se torna consciente de sua potência de transformar o espaço público e não somente viver nele. PALAVRAS CHAVE: teatro dos oprimidos, comunidade, cidadania.

Boal’s theatre and the public emancipation Since the 80’s, exercising its artistic reflection in the society of the spectacle, Boal try keep theatre aside to be a control device in order to make it a tactic of resistance. Counteracting the negativity of Adorno about the use of art in the cultural industry system, Boal seeks for making it a possible antidote to hegemonic regimes. Acting art is a gestus that reveals and puts to test the prevailing social conditions. As a public experience of subjectivity, such a gestus transforms, not just the one who acts as the whole community. That is what makes the Spect-actor in Forum Theatre when it breaks out on stage to claim the right of the oppressed. This insurrectionary behaviour is a constituent practice of citizenship. The community emancipates: it becomes aware of his power to transform public space and not just live in it. KEY-WORDS: theatre of the oppressed, community, citizenship

Alessandra Vannucci, maio de 2016

O insistente desafio, na reflexão e na prática teatral do Augusto Boal, de revogar a proscrição dos poetas e artistas que, segundo Platão, deveriam ser expulsos da República, convida a argui-lo à luz dos conceitos do filosofo grego e de seus leitores contemporâneos, mesmo que leitores heterodoxos, como o próprio Boal. Um primeiro conceito é o de arte como dispositivo. Entre outras maneiras de fazer, as artes embasadas na representação, ou seja, na mimesis ou imitação da realidade, enganam e escravizam o cidadão – argumenta Platão na Republica (III) – ao invés de iluminá-lo e fazer dele um sujeito emancipado, porque tais artes lhe apresentam imagens ilusórias (fantasmas) e não imagens autênticas e desveladoras de conhecimento. Ao desqualificar a arte de poetas e atores por causa de sua impraticabilidade ética (como poderia alguém ser ao mesmo tempo cidadão e enganador de cidadãos?) e desejar que tais artes não sejam admitidas na República ideal, entendida pelo filósofo como uma comunidade de cidadãos emancipados, Platão também lança uma questão: para que serve o teatro? Qual sua função, desde que mesmo aparentemente inútil e paradoxal, é normalmente praticado e, portanto, constitui um regime de exceção entre outras práticas ordenadas de trabalho? No interesse de quem se faz teatro? Pode soar como resposta a que Aristóteles oferece na Poética (VI, 27) quando reconduz a exceção ao princípio pedagógico da utilidade, apelando para um termo de derivação médica (catarse) que remete ao conceito de antídoto: a utilidade do teatro consiste no efeito de purificação das paixões através da aplicação em dose homeopática de um remédio (farmakon) ao espectador, como paciente de uma terapia de controle social. Tal remédio é a identificação emotiva e sua enorme eficácia depende da separação entre realidade e ficção e da conseguinte condição de passividade do espectador o qual, sentado e encantado, é levado a aceitar a ação (drama) apresentada, sacrifício ou castigo do herói, como algo inevitável e natural. A sociedade embasa seu controle sobre a governabilidade não na força, mas na cura dos desejos julgados inconvenientes; esta postura disciplinar necessita do palco como lugar de exposição onde tudo pode ser mostrado ao espectador já que ele, ou ela, vai assistir tranquilamente um outro cidadão submetido a terríveis e por vezes injustas consequências de seus desejos e ainda vai sentir prazer (pathos) de não estar sendo envolvido pessoalmente. O que é paradoxal na arte do ator – ser ao mesmo tempo real e simulacro, cidadão e enganador de cidadãos – corresponde à sua utilidade. O teatro é ferramenta (tecné) de produção à serviço de uma sociedade espetacular, que mostrando uma determinada ordenação de mundo, manipula os regimes de visibilidade e passa a controlar a partilha do que é comum. Emprestando agora o termo do Michel Foucault, o teatro é um dispositivo, isto é, uma “estratégia racional e combinada de

relações de força” (1994: 299) funcional à manutenção do regime representativo que fundamenta a sociedade no cânon do “espetáculo”. A ideia de Aristóteles teve muito sucesso: pensemos na gigantesca exceção iconológica das liturgias da Igreja Católica embasadas na representação dramática por imagens-simulacros (fantasmas) nas quais o deus é figurado em regime disciplinar como juiz e as consequências do pecado (ou seja, da realização de desejos inconvenientes) são mostradas em infinitas variações de castigos, martírios e sacrifícios, em uma realidade outra, inteiramente ilusória e ficcional, como a vida eterna. Não por acaso é citando a crítica de Feuerbach à religião, que Guy Débord na Sociedade do espetáculo aponta a essência espetacular da nossa sociedade na separação entre a vida e suas representações, as quais tendem a tomar o lugar da vivência (no sentido de experiência autentica) mesmo que sabidamente falsas. Antes dele, Horkheimer e Adorno (1985, cap. III) alertam quanto ao uso das artes miméticas como o cinema, a televisão e até mesmo o teatro, nos regimes totalitários, onde ele inscreve seja o fascismo e seja a indústria cultural, como um “sono sem sonhos” induzido socialmente para fazer da multidão de trabalhadores uma massa de consumidores de felicidades ilusórias, enquanto a própria vida permanece inalcançável no mundo real. Entre outros simulacros, a arte realizada como mais uma mercadoria na sociedade do espetáculo se esvazia de qualquer conteúdo teleológico e produz experiências estéticas cada vez mais opressoras. O paradoxo da condição de espectador é que mais ele/ela contempla, menos sabe e menos é; de modo que a única libertação possível desta triste condição de espectador (passivo e ignorante) seria parar de sê-lo para se tornar agente (ativo e consciente) de outras práticas sociais. Por causa disso, Platão desejava substituir à comunidade ignorante do teatro, onde uns contemplam outros que sofrem, sem agir, outra comunidade em que todos os cidadãos se reconhecem como coletivo, analisam e compreendem a sua situação e buscam transforma-la para o bem comum. Uma comunidade emancipada. Esta ideia de restaurar a natureza relacional e comunitária – de encontro entre indivíduos com pares direitos e funções na partilha do comum – do teatro é própria da tradição romântica e de muitos renovadores modernos, como Artaud e Brecht. O sonho de Antonin Artaud para um “teatro sem espectadores” não seria auspicio de uma plateia de cadeiras vazias, mas, sim, de uma outra relação estética, de outro modo de fruição. O espectador não seria um observador passivo, mas um participador ativo, como no ritual ou no jogo – onde nenhum presente é excluído da vivencia performática que por sua vez coincide com o ato criativo. Segundo os antropólogos, rituais e jogos constituem experiências liminares, isto é, são capazes de transpor os limites entre realidade e ficção, de modo que os participantes, em dimensão de suspensão das pressões do

cotidiano, se subjetivam, chegando a reconfigurando as suas identidades. Rituais e jogos, representando as relações de poder, podem ser considerados “dramas sociais” no sentido dado por Turner (1974). A performance ou realização de tais experiências presenciais coletivas faz visível e elabora o sentido da comunidade, isto é, as formas como uma comunidade partilha seu “comum”, seus modos de perceber o mundo. Será que o teatro, que ao mesmo tempo é um jogo (se repete) e um ritual (é performático), pode também funcionar como dispositivo de drama social? Pode ser um terceiro lugar assemblear (após as igrejas e as instituições políticas) onde se cria um povo e este põe em prova o mundo melhor, a civilização do futuro? Será que, como sugere Bertolt Brecht, o teatro pode funcionar como ensaio geral da revolução? Estamos falando de uma revolução “estética”, isto é, não uma ação direta sobre o mundo, mas uma revolução das formas com as quais percebemos o mundo. Ao usar este conceito na Estética do Oprimido, Boal evoca toda uma tradição de esforços de pensar a arte “artisticamente”, isto é, através de categorias especiais. A partir da obra de seus iniciadores – filósofos modernos como Baumgarten, Kant e Hegel – a disciplina cognitiva chamada Estética surge ao lado das grandes áreas cognitivas por precisar de suas próprias ferramentas e critérios. Não é uma teoria da arte, mas um atributo que segue a palavra “juízo”, para Kant, o qual busca definir (na Crítica do juízo) os processos cognitivos que ocorrem na plataforma do conhecimento sensível, ou seja, da percepção (aisthesis em grego). Quando afirmamos que algo é “belo” não atribuímos um valor intrínseco à coisa (que seja da natureza, da arte ou humana) mas, sim, avisamos da relação estabelecida entre o sujeito que percebe e o objeto sensível que está sendo percebido. É um afeto que acontece como pensamento; um pensamento que não poderia acontecer nos campos semânticos da lógica e não pode ser comunicado de modo “claro e distinto”; se o fosse, não seria arte. Gilles Deleuze, na palestra sobre “O que é um ato da criação” (disponível na rede) nega que arte seja comunicação, porque uma obra de arte não contém informações – entendendo por “informação” uma palavra de ordem, que ensina como obedecer ao sistema hegemônico de instruções que conhecemos como mídia. Pelo contrário, então, segundo Deleuze, um ato de criação pode vir a ser um ato de resistência e contrainformação. Criar (arte, filosofia, etc.) significaria produzir afetos por meio de técnicas de pensamento específicos que resistem a qualquer lógica pre-instruída. Neste ponto, Boal parece concordar com Deleuze. Mesmo que o nosso cérebro seja invadido por instruções desde as sinapses primordiais, argumenta Boal, o fato de que ainda praticamos e curtimos as artes prova que podemos criar afetos para além dos estereótipos de entretenimento propagados pela mídia.

Voltando ao conceito de “resistência”, que Deleuze atribui ao ato da criação. Giorgio Agamben (2014, p. 39-60), comentando a palestra de Deleuze em um ensaio com o mesmo título, lembra que o conceito de potência (dynamis), desde a Física de Aristóteles, é vinculado, mas não coincide com o conceito de ato (en-ergeia) pois quem possui uma potência pode tanto pô-la em ato, como não. Aristóteles define a potência pela possibilidade da sua suspensão, do seu não exercício; caso contrário, ela se reduziria à força bruta ou à execução de instruções – o que não confere com a essência de liberdade que Aristóteles atribui ao ser humano. O fogo pode somente arder, enquanto o ser humano pode agir como não agir; esta opção de resistência emancipa a sua ação da esfera da mera utilidade ou da mera obediência. Um arquiteto é potente mesmo enquanto não constrói; um trabalhador é potente, outro exemplo, quando opõe a greve, isto é, a resistência à ordem econômica do trabalho, a qual o obrigaria à ação compulsiva. Diversamente do gesto do trabalho, o gesto da arte não é funcional, não atende a critérios de utilidade – assim, segundo Agamben, é um gesto inoperoso que expõe e contempla sua potência enquanto potência-de-não. A poesia, por exemplo, é “uma operação da linguagem que desativa as funções comunicativas e informativas da língua para abrir-lhe um novo, possível uso” (2014, p. 59). Por isso, um ato de criação é um ato de resistência. Quais experiências artísticas reconhecemos como dispositivos de resistência? Quando busca modificar a dinâmica da recepção, Brecht traça caminhos de resistência que predispõem as reflexões do Boal. Considerando que, no cânon dramático ocidental, é por meio da identificação emotiva (empatia) que o espectador é afetado, encantado e acaba por aceitar o castigo do herói (mesmo que injusto) como natural, Brecht sugere ao ator empregar recursos cênicos que interrompam tal ilusão; recursos que rendam a representação inoperosa sem necessariamente sair do palco italiano. Se fosse posto em condições de resistir à empatia, o espectador passaria a estranhar aquela situação e analisar de quais maneiras seria remediável – faria experiência de um modo de pensar “dialético”: isto é, capaz de dar conta das contradições do real e de sua própria potência de compactuar ou não com elas. O “distanciamento” praticado pelos atores em relação ao personagem provocaria uma “suspensão” da crença do espectador que poderia então ser capaz de contemplar sua potência como potência-de-não. Assim, Brecht entende que um mesmo drama pode vir a ter, para o espectador, um efeito repressor (purgar o desejo ilegítimo do espectadorpaciente) ou transformador (fazer com que o espectador-dialético se descubra capaz de realizá-lo no mundo real). Cabe ao ator arrancar o teatro do uso que dele se faz à serviço de regimes de controle e proporcionar ao espectador uma experiência estética de resistência e de emancipação: uma espécie de antidota à catarse, um “contra

dispositivo”. Sendo alguém que “queira dizer com eficácia a verdade sobre o mal-estar das coisas, é preciso que diga de maneira que permita reconhecer as suas causas evitáveis, pois, uma vez reconhecidas as causas evitáveis, o mau estado de coisas pode ser combatido”, alerta Brecht nas Cinco dificuldades para alguém que queira escrever a verdade (1973, disponível na web). Assim como Brecht, Boal atribui ao ator um compromisso ético. O ator, especialmente quando está no papel de curinga, precisa ter “coragem” para fazer que a “verdade” se revele: não uma verdade essencialista, mas imanente ao estado de coisas que ocorre naquela determinada realidade. Ainda em sua fase de diretor do Teatro de Arena, quando sua prática se embasava manifestamente em expectativas realistas e em um arsenal de exercícios tirados do método Stanislawskij, via leituras norteamericanas (Actor´s Studio e John Gassner, doo qual Boal foi aluno na Columbia University), Boal propõe aos atores a função-coringa no sentido de um rodizio de alguns personagens entre diversos intérpretes. Mesmo sem renunciar inteiramente ao impacto do sistema de identificação empática (que por exemplo, lhe faz sugerir poupar o protagonista deste rodízio), a função-coringa surge, já nas primeiras propostas do Boal, como técnica de interrupção da ilusão. O sucessivo surgimento do ator-curinga, no Teatro-Forum, propõe uma mudança radical de forma, seja para o ator como para o espectador que, desde o começo da apresentação (quando é treinado com jogos exercícios de aquecimento ideológico, sendo inclusive informado que o final apresentado não é o único possível, pois ele poderá a qualquer momento suspender a ação, entrar em cena e modifica-lo) adentra voluntariamente em um regime estético esvaziado das anteriores expectativas. Neste jogo o ator-coringa, sem personagem, é o mediador meta-teatral que pactua as regras com o público, suspende o uso “normal” da prática teatral e abre possíveis novos usos – é, portanto, um ator superativado em sua presença performática. O tempo que ele instala em cena é o tempo daquele encontro único e não repetível, compartilhado. Assim como o iluminado de Platão (Republica, VII) que entra e sai da caverna, tentando despertar os outros seres humanos do encantamento de espectadores, desvendar os simulacros e fazer com que a verdade se desvele, o ator-coringa transpõe o limiar entre ficção e realidade, toda vez que fisicamente atravessa e profana a fronteira entre palco e plateia. Vice-versa, o espectador, ao entrar em cena, torna-se espect-ator, isto é, coautor daquela situação em que ele vivencia uma experiência performática potencializadora. Enquanto resiste e combate o “mau estado das coisas” no mundo ficcional, ele possivelmente se dá conta de que é capaz de transformar a realidade: ao entrar em cena para substituir a personagem, ele adentra simultaneamente dois planos de existência (eu e outro, real e ficcional). Transformando, o espect-ator se transforma.

Para Boal, o exercício (no Teatro-Forum) de verbalização coletiva da verdade, entendida como luta contra a mentira, a ilusão, a enganação e a manipulação, é a experiência estética autêntica que redime a arte mimética da proscrição platônica. É preciso coragem, não somente para o ator, mas também para o espect-ator que, irrompendo na cena, revela-se para a comunidade como sujeito, sem ser por isso subjugado: ao contrário, subjetivando-se. Seu gesto é o ato cínico de quem resolve “falar tudo francamente” que Michel Foucault no Governo de si e dos outros (2010, pp.123 e sgg.) valoriza como gesto fundador da política, sem o qual não há democracia. É um gesto que exige coragem, pois configura a irrupção de quem não tem voz e não tem papel, na cena do poder. O ato de dizer a verdade, assumindo o risco de reclamar o seu direito diante dos poderosos é o derradeiro recurso, em sistemas desiguais, de quem é vítima de injustiça e opressão. Por ser uma experiência pública de subjetivação (de resistência insurrecional ao domínio), tal gesto emancipa não somente quem o age, como toda a comunidade, pois revela e põe a prova as condições vigentes e a partilha do poder, fazendo com que a comunidade requalifique o espaço público como lugar comum, que pode ser transformado por quem vive nele. Na assembleia da polis grega, regida pelo princípio da isonomia, sem heróis e sem delegados, continua Foucault, a “fala franca” é um direito-dever do cidadão (não a praticar seria uma falta ética): é uma prática constituinte de cidadania passível de ser apreendida (inclusive repertoriada e ritualizada na sociedade grega) enquanto necessária a governabilidade. O discurso é agido através de um comportamento físico (um ato de palavra, speech act) que materializa visualmente as relações conflitais entre indivíduo, massa e poder, modificando o modo de ser de quem o enuncia e também de quem o escuta. É um gesto performativo que tem efeitos sobre a realidade: é um gestus – o mesmo que faz o espect-ator do Teatro-Forum quando interrompe a cena e irrompe nela, para reclamar e resistir, defendendo a razão dos oprimidos. Seu ato (independente dos conteúdos) qualifica o espect-ator como aquele que age socialmente, ou seja, um cidadão que toma parte do comum no cuidado de si e dos outros, governando enquanto é governado. Neste sentido, quando Boal atribui ao ator um preenchimento ético oposto ao esvaziamento preconizado por Denis Diderot no Paradoxo do ator, dá uma resposta clara ao desconcerto do Platão diante o uso da arte: afirma que o gesto artístico é em si político, pois dele depende a criação da comunidade. Se seguirmos a sugestão do Richard Schechner segundo o qual Boal “está fazendo um tipo de teatro socioterapêutico: terapia social ao invés de terapia individual” (apud LIGIERO, TURLE, ANDRADE, 2013, p.13) ele estaria então deslocando a ideia ética da “cura de si” (de matriz socrática) ao âmbito político da “cura de si e dos outros” (de matriz cínica, como apontado por Foucault no texto acima citado). A perspectiva do Boal é marxista,

continua Schechner: “cure a sociedade e você irá curar os indivíduos” oposta “à perspectiva capitalista: cure o indivíduo e você irá curar a sociedade” (ibidem). O apontamento revela uma margem de não correspondência da ideia de “coragem” do gesto proposto por Boal com a sua matriz cínica, descrita por Foucault. Adotando formas de existência coerentes ao conhecimento adquirido e destinadas a promover uma transformação ontológica da coletividade, o filosofo cínico que pratica a “fala franca” (paresia), vive seu heroísmo até as extremas consequências e morre. Diversamente, o espect-ator, agindo no limiar entre realidade e ficção, sobrevive ao seu ato de coragem e requalifica a si mesmo como ator de uma a experiência publica, sem, porém, implicar nisso um sacrifício pessoal. No ser artista há um devir cidadão e no ser cidadão há um devir artista: este é o jogo proposto. Especialmente o Teatro-Forum é um dispositivo de jogo que, colocado à disposição dos espect-atores, funciona como treinamento da cidadania, reestruturando e fortalecendo a produção de presença do cidadão-artista: não somente de quem tem coragem de jogar, mas de todos os presentes. A segunda parte do evento, o fórum, é um happening cuja autoria é compartilhada em plena isonomia entre os presentes e se preenche dos sentidos imprevisíveis produzidos por aquela comunidade humana naquele momento público. Importa relevar a essencial dimensão pública do gesto do espect-ator, constituindo um exercício da inteligência não no domínio privado, mas, sim, no domínio coletivo: do conjunto de indivíduos que constituem aquela comunidade. E. Kant, em seu ensaio sobre “o que é o Iluminismo” (escrito em 1784, aqui citado apud Foucault, 2010, p. 25 e sgg.), chama este uso público e responsável da razão de “saída do estado de menor idade” daquela comunidade; entendendo por “menor idade” uma espécie de estado de infância da humanidade, antes da era dos lumes, o qual corresponderia à incapacidade de se servir do seu entendimento e raciocínio, sem ser sob o jugo e a direção de outrem. O que, segundo Kant, está acontecendo com o advento das ideias iluministas, especialmente após a Revolução Francesa, é a estreia do uso público de nossas faculdades racionais e de nossas condutas, inclusive a faculdade de decidir sobre o bem comum e que tipo de governo (de si e dos outros) desejamos para nós. Entretanto, infelizmente, depois do Iluminismo tivemos o século XX, que demonstrou que a evolução histórica da humanidade não necessariamente dirige-se rumo à construção de uma civilização mais adulta, mais humana e mais justa. Na Estética dos oprimidos, Boal insiste na consideração catastrófica de que regimes simbólicos (como a estética monológica empossada pela indústria cultural na televisão, na publicidade e no teatro) tendem a incorporar as desigualdades existentes no âmbito social, em sua apreensão do mundo sensível; sendo assim, segundo ele, é todo um sistema estético-político, não tanto a mimese que de tal sistema é uma das

ferramentas, que precisa ser questionado. É justamente o que faz o espect-ator quando, transitando entre eu e não eu, real e possível, produz um deslocamento no regime de visibilidade e reconfigura a partilha do comum entre vozes autorizadas ou menos, competentes ou não. O movimento do espect-ator que se apropria da palavra e da cena põe em questão um dos fundamentos do sistema estético vigente na indústria cultural, que Boal significativamente chama de “império”; isto é, a fundamental pressuposição de que cidadãos destinados a governar e cidadãos os destinados a serem governados não teriam o mesmo equipamento sensorial nem a mesma inteligência simbólica. A busca incessante por um método (um arsenal de contra dispositivos), por parte do Boal, visa suspender esta dicotomia ativo-passivo que no teatro burguês corresponde à partilha da autoria entre atores-espectadores ou produtores-consumidores. Suas inovações técnicas são táticas empíricas (variantes, maneiras alternativas de fazer) que visam subtrair a arte do âmbito das mercadorias e devolve-la ao âmbito da palavra, não no sentido convencional, mas no sentido de comunicação expandida às dimensões visual, plástica, tátil e auditiva: palavra como potencial escrita do mundo, à qual todo cidadão igualmente tem direito. O que embasa o lance utópico do Boal é uma visão dialética de mundo, em movimento constante, em que qualquer indivíduo pode fazer sua própria história pois reconhece na opressão não um destino individual irremediável e sim uma construção social, com suas contradições e falhas. Uma história que pode ser reescrita. O teatro, isto é, a representação ficcional de determinada conjuntura real, justamente por causa deste duplo regime de visibilidade, capaz de produzir deslocamento e diferença, permite a análise do sistema e a multiplicação de experiências autenticas de luta contra a opressão. Propriamente, é a técnica que fixa a exceção do teatro (da arte, em geral) como forma desalienada de trabalho, que elabora seu próprio sentido mesmo quando se repete. Então certamente, para Boal, seguindo a sugestão de Brecht, o teatro pode funcionar como ensaio geral da revolução. Cabe notar que, ao longo de todo o seu percurso político-teatral, Boal se mantém atento a não abastecer o sistema dominante, interrompendo constantemente seja a sua possível integração (como artista e intelectual, detentor de fama e de direitos autorais) e seja a abdução das técnicas pelo aparelho repressor (como no caso, frequente, da metodologia do Teatro do Oprimido virar produto contratado por empresas para apaziguar as demandas dos trabalhadores). Como aponta Walter Benjamin no ensaio “Autor como produtor” (1985, escrito em 1934), para manter a arte como arma na luta contra a opressão, para impedir que entre ao serviço dos regimes de consenso e totalitários, não basta liberar e multiplicar os meios de produção: é preciso refuncionaliza-los. Qualquer recurso (objeto físico ou sonoro, imagens, dados estatísticos, slogans, provérbios, lendas, histórias e até mesmo o ator com seu repertório gestual e

verbal) pode se tornar material para um novo regime estético desde o momento que é desnaturalizado, isso é, analisado no contexto da opressão que simboliza ou produz. Qualquer espaço (praça, rua, salão de igreja, de escola, de hospital psiquiátrico ou sindicato, até mesmo um teatro) pode se tornar lugar de um novo regime estético, desde que sejam nele suspendidas as normas de conduta ali aplicadas como dispositivos de manutenção da vigilância, do controle e da opressão. Qualquer arte (dança, pintura, poesia, instalação, canto e até mesmo representação) pode se tornar uma pratica de presença que transgrede o mapa, suspende o sentido das condutas rotineiras e revela interrogações coletivas sobre qual sociedade o mapa hospeda e as condutas obedecem. A produção, dentro da cartografia oficial dos espaços, de outro território humano, mesmo que temporário e efêmero, mas livre de qualquer alienação, coerção e controle pois embasado em características ideias de convivência, tal como isonomia, acessibilidade e livre expressão de desejos de transformação, parece constituir uma concreta estratégia de invenção de mundos. Não, porém um mundo imaginário e não realizável, sem posicionamento real no mapa, mas, sim, um outro mundo possível: não, talvez, uma utopia (no sentido que a palavra assumiu por causa dos recorrentes fracassos das propostas a ela vinculadas) mas uma heterotopia. Esta palavra, proposta por Foucault em 1968 para descrever aqueles lugares “desenhados na própria instituição da sociedade” que funcionam como “uma espécie de contra localização [...] uma espécie de utopia efetivamente realizada, na qual as localizações reais, que podemos encontrar no interior da cultura são ao mesmo tempo representadas, contestadas e invertidas” (1994, p.1574, tradução minha) serve para definir esta dimensão paralela, propriamente cognitiva, onde realidade se dá como é e, contemporaneamente, como poderia ser. Quando, nas cidades-estados gregas, a multidão (oi polloi) instituiu a política como assembleia pública, o fez deslocando seus corpos no espaço urbano aparelhado e interrompendo o fluxo ordenado do cotidiano com a tomada da palavra por parte de quem não tem parte no comum. Para dar mais um susto no Platão, então, poderíamos descrever a própria democracia em sua origem como uma heterotopia: um contra dispositivo que prevê e permite a irrupção da multidão dos oprimidos na agorá, revelando um desajuste e dando visibilidade ao que era invisível, voz ao que não era ouvido, representando o irrepresentável. É o que revela Jacques Rancière no Desentendimento (1996). Neste sentido, reformulando a pergunta da Gayatri Spivak (1992, pp. 66–111) sobre a possibilidade do oprimido (por ela chamado de subaltern) falar, parece mais interessante indagar de que modo o subalterno pode ser ouvido. A resposta de Rancière no Desentendimento diz respeito à reintrodução da dimensão

política no espaço público, a partir da irrupção dos que não tem parte no espaço comum: deslocamento que por si só desvela a pura contingencia de qualquer ordem social e denuncia a ausência de qualquer fundamento para a opressão de um ser humano pelo outro e dominação de uma classe sobre outra. É a verdade (no sentido não essencialista mas performático, do “dizer verdadeiro”, dado por Foucault) que irrompe na cena pública, subverte os discursos hegemônicos estabelecidos e visualiza fisicamente as relações de poder, colocando todos os presentes em estado de alerta: literalmente (do it. all’erta) um estar prestes ao movimento. Neste deslocamento de corpos e derrubada da distribuição convencional de lugares que ocorre quando subalternos tomam a palavra, na assembleia publica assim como no teatro, Rancière reconhece mais do que uma aventura intelectual: a “demanda de que o teatro alcance, como sua essência, a reunião de uma comunidade” (2012, 118). Tal potência de criação do “comum” que funda a comunidade – um território autônomo mesmo que temporário, onde todas as vozes podem ser ouvidas e todos os corpos serem representados como espect-atores de sua própria história – instituiria, segundo Rancière, um novo estágio de igualdade onde “os diferentes tipos de espetáculo se traduziriam uns nos outros, demandando espectadores que são interpretes ativos, se apropriam das histórias e escrevem suas próprias histórias a partir daquelas” (ibidem). Na assembleia teatral, a comunidade se emancipa. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEN, Giorgio. “Che cos’è l’atto di creazione” in Il fuoco e il racconto. Roma: Nottetempo, 2014 ARISTOTELES. Poética. São Paulo: Ars Poetica, 1993 ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985 BENJAMIN, Walter. “O autor como produtor”, in Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985 BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009 BRECHT, Bertolt. “Le cinque difficoltà per chi vuole scrivere la verità” in Scritti sulla letteratura e sull'arte. Torino: Einaudi, 1973 (em português: PDF on-line) --------. Diário de trabalho (1938-41). Rio de Janeiro: Rocco, 2002 --------. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005 DELEUZE, Gilles. Palestra “O que é o ato da criação” (em português: PDF on-line http://www.dailymotion.com/video/x1dlfsr_gilles-deleuze-o-que-e-o-ato-de-criacaolegendas-em-portugues_creation) DÉBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997 DIDEROT, Denis. Paradoxo sobre o comediante. In Obras, v.II. São Paulo: Perspectiva: 2000 FOUCAULT, Michel. “Des espaces autres. In Dits et ecrits, v.III. Paris: Gallimard, 1994 ----------. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009 --------. Governo de si e dos outros. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

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